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Revista de Arqueologia, v.22, n.2, (ago-dez.2009): 105- 119, 2009 105 Artigo INVASORES À VISTA: UMAABORDAGEM BIOCULTURAL SOBRE A VIOLÊNCIA DURANTE A ERA DOS PUKARAS NO OÁSIS ATACAMENHO Andrea Lessa * Sheila Mendonça de Souza* Resumo Uma amostra esquelética de 33 indivídu- os proveniente do cemitério pré-colombi- ano Quitor-6 foi analisada para traumas agudos associados à violência. Este sítio, localizado em San Pedro de Atacama, Chile, está associado ao período posteri- or à influência deTiwanaku na área andina. As frequências de lesões tanto em homens (18,2%) quanto em mulheres (4,5%) foram mais baixas do que aquelas anteriormen- te observadas para outros períodos cultu- rais no oásis atacamenho. Este padrão parece contraditório com o contexto socio- político do período estudado, marcado por conflitosintergrupais, expressados através da construção de pukaras em toda a área andina. Uma possível interpretação para estes resultados é que os indivíduos mas- culinos mortos, possivelmente durante batalhas, foram enterrados dentro do Pukara de Quitor, ou fora do oásis. A vio- lência entre as mulheres, associada nos períodos anteriores aos assuntos do coti- diano, pode ter assumido outro caráter durante este período, estando relaciona- * Departamento de Endemias Samuel Pessoa. Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca/Fiocruz. Rua Leopoldo Bulhões, 1840 – 6ºandar. Manguinhos, Rio de Janeiro (RJ). 21 04 1- 21 0. [email protected] e [email protected] .

INVASORES À VISTA: UMAABORDAGEM BIOCULTURAL SOBRE … · pica iconografia Tiwanaku, passou a ser cada vez menos significativo, indicando uma clara ruptura com a ideologia ou in-fluência

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  • Revista de Arqueologia, v.22, n.2, (ago-dez.2009): 105- 119, 2009 105

    Artigo

    INVASORES À VISTA: UMAABORDAGEM BIOCULTURALSOBRE A VIOLÊNCIA DURANTE A ERA DOS PUKARASNO OÁSIS ATACAMENHO

    Andrea Lessa*

    Sheila Mendonça de Souza*ResumoUma amostra esquelética de 33 indivídu-os proveniente do cemitério pré-colombi-ano Quitor-6 foi analisada para traumasagudos associados à violência. Este sítio,localizado em San Pedro de Atacama,Chile, está associado ao período posteri-or à influência de Tiwanaku na área andina.As frequências de lesões tantoem homens(18,2%) quanto em mulheres (4,5%) forammais baixas do que aquelas anteriormen-te observadas para outros períodos cultu-rais no oásis atacamenho. Este padrãoparece contraditório com o contexto socio-político do período estudado, marcado porconflitos intergrupais, expressados atravésda construção de pukaras em toda a áreaandina. Uma possível interpretação paraestes resultados é que os indivíduos mas-culinos mortos, possivelmente durantebata lhas , foram enterrados dentro doPukara de Quitor, ou fora do oásis. A vio-lência entre as mulheres, associada nosperíodos anteriores aos assuntos do coti-diano, pode ter assumido outro caráterdurante este período, estando relaciona-

    * Departamento de Endemias Samuel Pessoa. Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca/Fiocruz.Rua Leop oldo Bu lhões , 18 40 – 6º anda r. Mangui nhos , Ri o de Janei ro (R J) . 21 041- [email protected] e [email protected].

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    LESSA, A.; SOUZA, S.M.

    da com as invasões ao oásis atacamenho.

    Palavras chave: Bioarqueologia; traumasagudos; San Pedro de Atacama.

    AbstractA skeletal sample of 33 individuals fromQuitor-6 cemetery was analyzed for acuteviolence-related trauma. This site, locatedat San Pedro de Atacama, Chile, isassociated with the subsequent period ofthe Tiwanaku influence at the Andeanregion. Frequencies of lesions in both men(18.2%) and women (4.5%) were lowerthan those observed for other culturalperiods at the Atacameño oasis. Thispattern seems contradictory with the soci-al and political context of the period that ismarked by conf lic ts between groupsexpressed by the pukaras, fortified areasbuilt along the Andean region. A possibleinterpretation for the present results is thatmen who died during battle causal itieswere not buried in the cemetery studied ionthis paper, but somewhere else in thePukara of Quitor, or even outside the oasis.Vio lent trauma in wom en during theprevious cultural periods was associatedto daily incidents, but in the present studythe only case may also be related toconf licts between groups affecting theoasis.

    Key words: bioarchaeology;acute trauma;San Pedro de Atacama.

    O deserto de Atacama está localizadono extremo sul do altiplano andino, ao nor-te do atual territóriodo Chile (figura1),ondefloresceu por mais de dois milênios a cul-tura atacamenha. A domest icação decamelídeos, o cultivo de um número limi-tado de espécies vegetais devido à extre-ma aridez da região, e principalmente ointercâmbio de produtos através das ca-ravanasde lhamas caracterizavamas prin-

    cipais atividades desenvolvidas no oásisde San Pedro de Atacama durante o perí-odo pré-colonial (Núñez, 1992).

    Figura 1 – Mapa indicando a localização de SanPedro de Atacama e áreas relacionadas.

    Desde o trabalho pioneiro de GustavoLe Paige, a partir da década de 1950,muitos cemitérios pré-colombianos foramescavados na região do oásis, a maiorparte deles abrangendo mais de uma fasedentro da sequência cultural proposta parao oásis atacamenho. Com base nestes ce-mitérios, o período mais estudado da Cul-tura San Pedro foi sem dúvida aquele re-lacionado à influência de Tiwanaku na re-gião (aproximadamente entre 700 e 1.000AD), ocasionando uma deficiência no co-nhecimento relativo aos demais momen-tos da sequência cultural do oásis de SanPedro de Atacama.

    Esta deficiência motivou o trabalho re-alizadopor Costa (1988), que buscou iden-tificar elementos para melhor definir o Pe-ríodo Intermedio Tardío da Cultura SanPedro (Fase Solor, aproximadamente en-

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    Invasores à vista: uma abordagem biocultural sobre a violência durante a era dos pukarasno oásis atacamenho

    tre 1.000 e 1470 AD), analisando os con-textos funerários e o material osteológicodo cemitério Quitor-6. Desta forma, o ob-jetivo principal deste trabalho foi identifi-car indicadores antropofísicos e culturaisespecíficos desta fase, razão pela qual aanál ise paleopatológ ica da amos traesquelética foi realizada de forma maisabrangente e não foram realizadasdiscus-sões específicas com base no padrão delesões observadas. Com relação aos trau-mas ósseos, a autora informou de manei-ra resumida a observação de 24,2% deadultos com fraturas, com 15,1% dos ca-sos relacionados a fraturas acidentais e12,1% representando traumas violentos,sendo duas fraturas no crânio, uma nosnasais e uma no arco zigomático.

    No presente trabalho a sérieesqueléticade Quitor-6 foi analisada especificamentepara os traumas agudos associados à vi-olência, buscando-se desta forma comple-mentar os dados obtidos no trabalho deCosta (1988), bem como desenvolverumadiscussão direcionada exclusivamentepara a questão da violência durante o pe-ríodoposteriorà interaçãoentre San Pedroe Tiwanaku. Cabe enfatizar, portanto, queo trabalhode Costae o que será aqui apre-sentado foram realizados com base emobjetivos e metodologias totalmente dis-tintas, o que explica as diferenças nos re-sultados obtidos.

    I. Contextualização doPeríodo Pós-Tiwanaku (FaseSolor ou Período dasAutonomias Regionais)

    Durante esta fase, a qual se estendeuaproximadamente entre 1000 e 1450 d.C.,e cuja estrutura geral se igualou em todaa região andina centro-sul, configurou-seuma plena identidade da nação ataca-menha. As experiências culturais, tecno-lógicas e ideológicas anteriores sustenta-

    ram uma elite de autoridades locais emtodos os oásis e uma população em ace-lerado crescimento. No que se refere àTiwanaku,por razões ainda em discussão,no final de sua etapa expansiva este cen-tro cerimonial deixou de funcionar, desar-ticulando-se sua influência ideológica nosAndes meridionais, assim como da imen-sa rede de trocas de larga distância porele administrada. Começou então a defi-nir-se uma maior autonomia regional polí-tica e religiosa.

    A população atacamenha como umtodo, mesmo vivendo em distintos núcle-os, seguia normas culturais e políticas queconferiam-lhe homogeneidade e unidadeétnica, distinguindo-se, por exemplo, dosgrupos aymaras do altiplano meridional.Um dos itens mais marcantes da culturamaterial associada ao período anterior, ovirtuoso e variado equipamento para con-sumo de alucinógenos apresentando a tí-pica iconografia Tiwanaku, passou a sercada vez menos significativo, indicandouma clara ruptura com a ideologia ou in-fluência relig iosa do altip lano. (Núñez,1992).

    Além do complexo alucinógeno,os de-mais itens do material cultural encontra-dos nas tumbas do setor tardio de todosos cemitérios da região também divergembastante daquele encontrado nos setorescorrespondentes ao período anterior, sen-do observada uma tendência generaliza-da à uniformização. Uma ruptura culturalnotável foi expressa através de um “em-pobrecimento” das oferendas funerárias,traduzido pelo seu baixo nível técnico emenor quantidade. Em muitas tumbas foiobservada ausência total de contextosmateriais (Le Paige, 1963, 1964; Tarragó,1968).

    Especificamente para Quitor-6, Costa(1988) observou que as oferendas sãoescassas ou até inexistentes em algumastumbas. A cerâmica, que nos períodos an-

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    teriores era abundante e bem trabalhada,passou a apresentar formas mais utilitári-as e, em alguns casos, miniaturizadas. Otipo Gris Grueso Pulido, característico doperíodo anterior, não foi observado, sen-do o Dupont o tipo mais popular, seguidodo Rojo Pulido. Os têxteis e a cestaria sãoescassos e quase não apresentam deco-ração. Os raros instrumentos que integramos aparatos para inalação de alucinóge-nos são bastante simples, em oposiçãoaos elaborados artefatos da fase anterior,e assumem estilos próprios desta etapasem apresentarem a típica iconografiaTiwanakota. Outra característica própriadeste período são as inovações no que serefere às estruturas funerárias e à formade deposição dos mortos nas tumbas.

    A mesma autora levanta duas hipóte-ses para este novo padrãoobservado: umasimplif icação geral do desenvolvimentocultural; ou uma mudança na natureza dosritos funerários, com o uso de alguns ob-jetos cotidianos, mas sem a elaboração deobjetos específicos para a ocasião, comoa cerâmica tipo Negro Pulido, característi-ca de períodos anteriores. A distribuiçãodas oferendas funerár ias sugere que aconcentração de riqueza se restringiu auma elite mais centralizada e seletiva, por-tadora de bens de status, como pedrassemipreciosas, enquanto o resto da popu-laçãose limitava a oferendasmais simples.Os objetos relacionados às práticas agrí-colas e de tecelagem, no entanto, conser-varam seu virtuosismo (Núñez, 1992).

    Este período de autonomias regionaisadquir iu uma dinâmica inconfundível ,regida pelo cruzamento de várias esferasde interação orientadas por um padrãogeneralizado de ecocomplementaridade,com o desenvolvimento de uma economiaagropecuária de excedentes e incremen-to das atividades agrárias. Este padrão secaracterizou por uma alta mobilidade, apartir de mecanismos chave tais como o

    tráfego caravaneiro, o estabelecimento decolôniase um padrãode assentamento nú-cleo-per if er ia genera lizado (Sch iap-pacasse et al, 1989).

    Os señoríos atacamenhos delimitarame protegeram seus espaços fronteiriçosconstruindo diversas fortificações (puka-ras) nos distintos oásis da área circum-puneña. Essas fortificações eram verda-deiras aldeias semi-urbanizadas, porémapresentavamuma claraarquitetura defen-siva e localização estratégica no alto decolinas. A partir dessas fortificações se or-denavao domíniopolítico e econômicodosseñoríos, com domínio visual sobre osconflitos limítrofes e o movimento de pes-soas e de caravanas com cargas, centra-lizando assim a administração do territó-rio (Núñez, 1992).

    II. Material e MétodosO cemitério Quitor-6, localizado no lado

    oeste do ayllu homônimo, foi escavadodurante muitos anos pelo Pe. Gustavo LePaige, quando foram identificadosdois se-tores distintos relacionados principalmen-te às fases Quitor e Coyo do período Mé-dio (Le Paige, 1963, 1964).

    Em 1983, o setor norte que se encon-trava intacto foi totalmente escavado porAgustín Llagostera, quando foram exuma-das 42 tumbas relacionadas ao períodoIntermédio Tardio (fase Solor), com 33 es-queletos de indivíduos adultos e 14 suba-dultos. A partir de três datações radio-carbôn icas e de duas datações portermoluminescência, foi estabelecido umperíodo de 300 anos de utilização destesetor do cemitério, entre 940 e 1240 d.C.(Costa, 1988).

    No presente trabalho foram analisadostodos os indivíduos adultos recuperadosno espaço funerário, 11 masculinos e 22femininos, os quais apresentaram pelomenos 75% do esqueleto preservado. Ad-

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    Invasores à vista: uma abordagem biocultural sobre a violência durante a era dos pukarasno oásis atacamenho

    mite-se aqui a prioridade na análise dosindivíduos adultos, normalmente envolvi-dos com as atividades bélicas, ainda queo contexto específico para o período nãoexc lua totalmente a possib ili dade deenvolvimento de indivíduos subadultos nosepisódios de violência.

    Foram utilizados os dados referentesàsestimativas de sexo, idade e número deindivíduos recuperados presentes nas fi-chas de cadast ro elabor adas pe labioantropóloga do Museu de Atacama,Maria Antonieta Costa. Estes dados foramparcialmente publicados em Costa (1988).Os segmentos etários foram agrupadosdaseguinte forma: I – indivíduos entre 18 e29 anos; II – indivíduosentre 30 e 39 anos;III – indivíduos acima de 40 anos.

    Foram considerados traumas agudosassociadosà violênciaaqueles tradicional-mente descritos na literatura especializa-da: fraturas em depressão no crânio; fra-turas na face; fraturas transversas naepífises distais da ulnas (fratura de parry);e pontas de projétil incrustadas nos ossos(Walker, 1989, 1997; Larsen, 1997; Lovell,1997, 2008; Galloway, 1999; Ortner, 2003).

    O diagnóstico e a descrição das fratu-ras foram feitos a partir da observação dosseguinteselementosdiagnósticos, estabe-lecidos segundo critérios anátomo-patoló-gicos (Steinbock, 1976; Adams, 1976;Merbs, 1989; Larsen, 1997; Ortner, 2003;Waldron, 2009): neoformação,ausência e/ou reabsorção ósseas; solução de conti-nuidade nas estruturas anatômicas, alémde suas conseqüências morfológicas,como anomalias de forma e/ou tamanho;textura cortical superficial densa (proces-so cicatricial) ou porosa (reabsorção ati-va).

    A identificação das lesõescausadasporpontas de projétil foi feita a partir da pre-sença de pontas ou esquíro las líticasencravadas nos ossos e as fraturas peri-mortem não foram incluídas na análise

    uma vez que não apresentam processocicatricial identificável à vista desarmada,dificultando o estabelecimento de um di-agnóstico seguro.

    As lesões foram examinadas conside-rando-se sua distribuição anatômica e aagregação dos indivíduos em subgruposobedeceu ao critério sexual.Avariável ida-de não foi utilizada na quantificação daslesões em função da baixa freqüência to-tal observada, tornandoesta segmentaçãoda amostra sem significado. A título decomplementação dos dados, no entanto,a distribuição da série foi quantificada se-gundo segmento etário, apenas com oobjetivo de observar se ela segue o mes-mo padrão observado em outras sériespré-colombianas.

    Experiências ante riores com sériesatacamenhas(Lessa & Mendonçade Sou-za, 2003, 2004, 2006, 2007) demonstra-ram que a análise estatísitca, mesmo coma utilização de testes específ icos paraamostras pequenas, como o de Fisher,apresenta pouca sensibilidade na identifi-cação de variações ocorridas ao acaso napresença de valores de contagem baixose representados por pequenas variações.Por este motivo, a significância estatísticadas di fe re nças obse rvadas não fo iverificada através de testes estatísticos.Foram consideradas as análises explo-ratórias e as interpretações buscaram in-tegrar os padrões de lesão observadospara cada segmento ao contexto arqueo-lógico de cada período cultural. Desta for-ma, os resultados não tiveram como su-porte a signif icância estatística, mas asignificância biocu ltural (Mendonça deSouza et al, 2003).

    III. ResultadosA distribuição da série recuperada em

    Quitor-6 segundo segmento etário (tabela1) apresenta tendência heterogênea en-tre os sexos nas duas últ imas faixas

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    etárias, com os seguintespercentuais parahomens e mulheres respectivamente:36,4% e 36,4% na idade I; 54,5% e 36,4%na idade II; 9,1% e 27,3% na idade III.Considerando-se o total da série, obser-va-se um desequilíbrio na representaçãode homens e mulheres, sendo 11 indiví-duos masculinos e 22 femininos (respecti-vamente 33,3% e 66,7% do total da sé-rie).

    Tabela 1 – Distribuição da amostra de Quitor-6segundo sexo e faixa etária

    Não foi observada predominância dequalquer tipo específico de lesão e ne-nhum indivíduo apresentou mais de umalesão. Os percentuais de indivíduos por-tadores de lesão segundo cada tipo espe-cífico (tabela 3) foram os seguintes parahomens e mulheres respectivamente:9,1% e 0% para lesões no crânio; 9,1% e4,5% para lesões na face; 0% em ambosos sexos para lesões causadas por pon-tas de flecha e para fraturas de parry. Aslesões na face correspondem a uma fra-tura no osso nasal (figura 2) em um indiví-duo masculino e a uma fratura na mandí-bula em um indivíduo feminino. A fraturano crânio masculino (figura 3) tem sua lo-calização no parietal esquerdo.

    Tabela 3 – Distribuição de indivíduos que apresen-tam lesões associadas à violência segundo sexo etipo de ferimento, cemitério Quitor-6 – San Pedrode Atacama

    Masculina Feminina

    Idade N % N %

    I 4 36,4 8 36,4

    I I 6 54,5 8 36,4

    II I 1 9,1 6 27,3

    Total 11 100 22 100

    Com relação ao percentual de indivídu-os que apresentam lesões (tabela 2), ob-serva-se uma inversão de valores em re-lação à distribuição sexual da série, comos homens apresentando valor mais altoque as mulheres, com 18.2% e 4,5% res-pectivamente.

    Tabela 2 – Freqüência de indivíduos que apresen-tam lesões associadas à violência segundo sexo,cemitério Quitor-6 – San Pedro de Atacama

    N L %

    Masculinos 11 2 18,2

    Femininos 22 1 4,5

    Total 33 5 15,1

    Masculinos (N=11) F emininos (N=22)

    Lesões N % N %

    Crânio 1 9,1 - -

    Face 1 9,1 1 4,5

    Parry - - - -

    flechada - - - -

    Total 3 27,3 2 9

    * Percentuais calculados sobre o total de indivídu-os analisados

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    Invasores à vista: uma abordagem biocultural sobre a violência durante a era dos pukarasno oásis atacamenho

    Figura 2 – Indivíduo masculino (# 0366) apresen-tando fraturas cicatrizadas no osso nasal, com des-taque para as linhas de fratura e perda de porçãoóssea (Foto: Andrea Lessa).

    ais agregados segundo faixa etária, indi-cando que nenhum subgrupo encontrava-se sob risco específico de morte. O quemais chama a atenção nestes dados, noentanto, são os percentuais totais de mor-talidade, sendo observado o dobro de in-divíduos femininos em relação aos mas-culinos.

    Costa (1988), baseando-se em dadosetnográficos e arqueológicos para zonasvizinhas, propôs de forma embrionária ahipótese de que esses valores refletissemuma ausência freqüente dos homens nosseus ayllus de origem, em função da ins-talação de colônias agrícolas fora do oá-sis para aproveitamento de recursos deambientes variados. Este argumento estáem concordância com o registro arqueo-lógico, o qual indica que é durante esteperíodo de autonomias regionais que aspopulações circumpuneñas exploram aomáximo o potencia l dos diversos pisosecológicos,os quais estariambem integra-dos sob um padrão de intercâmbio com-plementar de produtos (Schiappacasse etal, 1989). De fato, a paisagem dos oásis evales localizados na vertente ocidental eoriental da cordilheira andinaé formadaporum mosaico de ambientes diversificados,onde o pastoreio e a agricultura semi-tro-pical e altiplânica flutuam consideravel-mente através dos contrastes de alturas(Núñez & Dillehay, 1995).

    Coloca-se agora em pauta outros doisfatores que também podem ter contribuí-do para a alta mobilidade populacionalobservada para a Fase Solor. Em primeirolugar deve ser mencionada a relevante di-nâmica econômica característica desteperíodo, estabelecida através do incre-mento do tráfego caravaneiro de curta dis-tância , principalmente ent re a regiãoatacamenha, o altiplano meridional e onoroeste argentino (Núñez, 1992; Núñeze Dillehay, 1995).

    Em segundo lugar estaria o fato do ter-

    Figura 3 – Indivíduo masculino (# 0270) apresen-tando fraturas ou depressão cicatrizadas no parietaldireito (Foto: Andréa Lessa).

    IV.Discussão

    Percentuais de Mortalidade

    Na série esquelética de Quitor-6, o pa-drão mais comum de mortalidade parapopulações pré-colombianas pôde ser ob-servado entre os indivíduos masculinos,com percentuais mais altos entre 30-40anos. O mesmo não ocorreu entre os indi-víduos femininos, cujos percentuais demortalidade são idênticos para as faixasetárias I e II. Não foi observada discrepân-cia de valores entre os segmentos sexu-

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    LESSA, A.; SOUZA, S.M.

    ritório atacamenho localizar-se no distritomais rico em fontes minerais do atual ter-ritório do Chile, constituindo-se no locusmais antigo de exploração metalúrgica daregião sul-andina. Durante o período pós-Tiwanaku, teria havido um controle maisrestrito destes produtos por parte das che-fias. O uso de implementos emblemáticosficou reduzido aos membros da elite, di-minuindo na vida cotidiana e na maioriados contextos funerários. Por outro lado,houve um incremento na circulação de lin-gotes e pedras semipreciosas para outrasregiões, atestado através da intensa ex-ploração durante este período nas atuaisminas de Chuquicamata, Abra,Tomic, Cer-ro Verde, Collahuasi e outras. As unida-des operativas se desenvolveram atravésde grupos especializados, os quais ocu-pavam acampamentospara exploraçãodeafloramentos afastados dos assentamen-tos permanentes (Núñez, 1999; Uribe &Carrasco, 1999; Núñez et al, 2003). Estademanda estaria relacionada com o pro-cesso de complexificação de sociedadespré-estatais emergentes na Área Centro-sul andina, cujas elites estavam orienta-das a criar símbolos de riqueza e poder(Clark & Parry, 1991 apud Cornejo, 1999).

    A associação das três estratégias eco-nômicas mencionadas poderia explicar odesequilíbrio no percentual representadopor cada sexo na série estudada, o qualresultaria do menor número de homensse-pultados no cemitério, e não de uma taxade mortalidade diferenciada entre sexos.Do mesmo modo, poderia explicar a baixadensidade no uso de Quitor-6, durante umintervalo de 300 anos, apesarda inferênciade Schiapacasse et al (1989) de uma altadensidade demográfica paraa vertente oci-dental circumpuneña, expressada nos as-sentamentos e nos sistemas agrícolas doperíodo.

    Sobre esta questão, convém mencio-nar o uso simultâneo de outros cinco ce-

    mitérios no ayllu de Quitor, inferido atra-vés dos contextos funerários. Eles foramescavados integralmente e não apresen-taram uso anterior à Fase Solor. São elesQuitor -0, Quitor-1, Quitor -3, Quitor-4 eQuitor-9, apresentando um número de in-divíduos que varia entre 6 e 35 (Le Paige,1964).

    Infelizmente, existe apenas uma data-ção radiocarbônica disponível, para Quitor-9, situada em 1.050 d.C. (Núñez, 1976).Desta forma, não é possívelestimar o tem-po de uso destes cemitérios do ayllu deQuitor, mas percebe-se um padrão de uti-lização homogêneo, com uma baixa den-sidade de indivíduos sepultados. Estudosfuturos poderiam informar se o dese-quilíbrio no percentual de mortalidade en-tre os sexos, observado em Quitor-6, é umfator específico deste cemitério ou se tam-bém configura o padrão geral para os de-mais cemitérios do ayllu relacionados aeste período.

    Com relação à densidade populacionalde outros ayllus durante este período,inferida atravésdo número de sepultamen-tos nos cemitérios, podem ser citados osquatro cemitérios do ayllu Yaye, os quaisapresentam um número de indivíduos quevaria entre 28 e 51; e os três cemitérios deConde Duque, com variação entre 10 e 25indivíduos (Le Paige, 1964). É interessan-te notarque, tal como nos cemitérios Quitor0, 1, 3, 4, e 9, não foi observada utilizaçãoanterior nos cemitérios supracitados.

    Estes números, se comparados comaqueles observados para cemitérios utili-zados durante períodos anteriores, comoQuitor5 (n=371), ToconaoOriente(n=368),SequitorAcequía (n=249), Sequitor Orien-tal (n=108) e Coyo Oriente (n=293), entreoutros, parecem indicar que durante estafase Solor ocorreu uma fragmentação doespaço funerário em várias unidades.

    Uma rápida revisão da composição fu-nerária nos consecutivos períodos indica

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    Invasores à vista: uma abordagem biocultural sobre a violência durante a era dos pukarasno oásis atacamenho

    que esta fragmentação tambémocorreunaestrutura das tumbas. Para o cemitérioSolcor-3, observa-se 26% da populaçãoenterradaem tumbas individuaise 74% emtumbas colet ivas. Para o período pré-Tiwanaku deste cemitério, no entanto, fo-ram registradas tumbas com até 12 indiví-duos, enquanto para o período Tiwanakuo número de indivíduos por tumba nãopassade seis (Llagostera et al, 1988).Parao período de transição, o cemitério deCoyo-3 apresentou 72,5% dos indivíduosenterrados em tumbas individuais, e ape-nas uma tumba continha seis indivíduos(Costa & Llagostera, 1994). Finalmente,para o período IntermedioTardio represen-tado por Quitor-6, das 42 tumbas escava-das, apenas cinco apresentam enter-ramento duplo (Costa, 1988), ou seja, 88%das tumbas eram individuais.

    Estes dados gerais sobre composiçãofunerária indicam claramente uma tendên-cia à individualização no padrão funerárioao longo do tempo. De forma ainda embri-onária, fica sugerido que esta mudançapossa ter relação com a crescente perdade prestígio ou status das chefias domés-ticas, em detrimentode um poder cada vezmais centralizado dentro do oásis. A au-sência constante de indivíduos masculi-nos, devidoaos motivosanteriormentedis-cutidos, também pode guardar relaçãocom este novo padrão de enterramento.

    Frequências de Lesões Associadas àViolência

    Quanto ao percentualde indivíduos queapresentamlesões associadasà violência,o valor mais alto observado para a amos-tra mascu lina em relação à femin ina(27,2% e 9% respectivamente) segue umpadrão já observado para outros períodosculturais atacamenhos. Excluindo-se opercentual masculino excepcionalmentebaixo observado no período pré-Tiwanaku(5,8%), tanto no período Tiwanaku quanto

    no período de transição os episódio deagressão foram mais comuns entre os ho-mens (Lessa & Mendonçade Souza,2004,2006, 2007).

    A discussão sobre o significado destepercentual, no entanto, deve ser feita comcuidado em função do pequeno númerode indivíduos e do seu desequilíbrio emrelaçãoà série feminina.Desta forma, bus-cou-se compreender o panorama sócio-político do período estudado conjugando-se os dados observados,porém restringin-do sua possível interpretação à amostraem questão.

    Os dados disponíveis para este perío-do pós-Tiwanaku indicam que na regiãocircumpuneña teriam se formado señoríoslocais unidos por interesses semi-confe-derados. Apesar da alta mobilidade dascaravanas, as redes de troca passaram ase entrecruzar em traslados de menor al-cance, sem chegar até a região circum-titikaka. As rotas continuaram a cobrir, noentanto, as distâncias que ligavam os oá-sis do Deserto de Atacama na vertenteocidental da cordilheira (2.500 -3.000 m.),às regiões da Alta Puna (3.000-4.000 m) eoásis e vales da vertente oriental, os quaisformavam as terras férteis do AltiplanoMeridional e do noroeste argentino. O im-pulso no desenvolvimento agrícola parafins de complementação de excedentes,atestado nas estruturas de cultivo, fez comque os espaços produtivos se tornassemmais restritose mais disputados. Desta for-ma, os micro-sistemassociopolíticos apre-sentariam entre si uma relação de com-petitividade produtiva e política, com ten-dência a ruptura dos níveis adequados deharmonia soc ial interétnica (Núñez &Dillehay, 1995).

    Schiappacasse et al (1989) concordamcom este panorama, sustentando que emuma região fortemente limitada do pontode vista de sua capacidade produtiva, apressão demográfica certamente contri-

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    buiu para que cada etnia buscasse con-solidar seus territórios e esferas de inte-ração.

    Ao que tudo indica, todo o altiplanoatacamenho e tarapaquenho, e ainda osseñoríos transandinos, estavam vivendoum período de tensão, uma vez que seacusa a construção de pukaras desde osul do Peru até o noroeste argentino. Amaior concentração destes assentamen-tos defensivos, no entanto, está localiza-da em uma área específicaentre o Rio Loae os oásis deAtacama. Os reinos aymarasdo Altiplano Meridional exerciam pressãosobre os señoríos dos vales do noroesteargent ino e do norte do Chile. Os ata-camenhos, por sua vez, também disputa-vam territórios com as etnias do noroesteargentino. Por outro lado, fizeram-se ne-cessárias novas alianças para assegurara circulação de produtos, criando-se maisuma vez relações vantajosas ao nível detroca de bens complementários proveni-entes de outras regiões (Núñez, 1992;Núñez & Dillehay, 1995).

    Para exemplificar a importância e o ta-manho de tais estruturas, pode ser citadoo pukara de Quitor, localizado na porçãonorte do ayllu homônimo sobre as ladei-ras que formamo valedo rioAtacama. Estesítio foi descrito e documentado atravésde fotos e planos em duas investigaçõesdistintas nas décadas 40 e 80, mas nuncaforam realizadasescavações sistemáticasem suas estruturas. Todas as informaçõesderivam da observação de superfície dediversos materiais, principalmente cerâmi-ca.

    O assentamento contava com 161 re-cintos e capacidadepara aproximadamen-te 400 homens, e foi utilizado para domi-nar e controlar a entrada do vale que dáacesso ao oásis e às comportas de irriga-ção que abasteciam uma fértil comarcaagropastoril. Sua arquiteturaera funcional-mente diferente daquela observada nas

    alde ias rura is , com suas estruturasconstruídas com material mais resistente,e apresentando grandes muralhas comaberturas para lançamentode flechas e depedras, além de recintos para armazena-gem de produtos de consumo. A organi-zação social necessária para a construçãodestas grandes e complexas fortificaçõessugere a existência de uma elite coesa eautoritária (Núñez, 1992).

    De uma forma geral, referências etno-históricas permitem deduzir que estes as-sentamentos eram ocupados de formatransitóriacomo sítioshabitacionais duran-te situaçõesde conflito. No caso do pukarade Quitor, merecemmenção determinadosrecintos, identificados como silos, que con-sistiam basicamente em vãos de 30 a 45cm formados por pedras e geralmente si-tuados dentro dos depósitos. Muitos des-tes silos foram utilizados como espaço fu-nerário, podendo ser observados sobre osolo, semisubterrâneos ou subterrâneos(Mostny, 1949).

    Schiappacasse et al (1989) observamque as situações de conflito potencial oureal estão expressas não somente nosurgimento dos pukaras, mas também naarte rupestre. Colocam ainda que tais con-frontos teriam ocorrido com freqüência noinício deste período de autonomia políti-ca, até que os señorios locais reorganizas-sem suas alianças, conjugando de formasatisfatória os interesses comuns e distin-tos das etnias envolvidas. Núñez (1992)complementa esta suposição mencionan-do que, no final deste período, os reinosaymaras do altiplano meridional teriamconsolidado seus señoriosem grande par-te do território circumpuneño, conforman-do certa estabilidade política interregional,atenuando-se os conflitos temporais.

    Diante do panorama exposto, supõe-seque, de forma esporádica ou não, foramintensos os confli tos em toda a regiãocircumpuneña, motivando pela primeira

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    Invasores à vista: uma abordagem biocultural sobre a violência durante a era dos pukarasno oásis atacamenho

    vez a grande demanda de energia paraconstrução de complexos sistemas com fi-nalidade especificamente bélica. Apesardeste notável incremento de estratégia de-fensiva, o percentual de indivíduos porta-dores de lesões associadas à violência nasérie masculina de Quitor-6 (18,2%), émais baixo do que aqueles observadospara momentos anteriores, com 47% parao período Tiwanaku (Lessa & Mendonçade Souza, 2004) e 33% para o período detransição (Lessa & Mendonça de Souza,2007).

    Este dado aparentemente discrepan-te, além do pequeno tamanho da série, emum primeiro momento sugere um viésamostral. No entanto, o fato de terem sidoestudados todos os indivíduos recupera-dos, o que representa a totalidade do ce-mitério, confere legitimidade aos dadosobservados. Vale ressaltar que nenhumadas lesões observadas levou o indivíduoà morte, e não foram observadas lesõesperi-mortem, o que poderia levantar dúvi-das sobre o percentual relativamente bai-xo de lesões entre os homens de Quitor-6.

    Assim,nestaprimeira abordagem, ficamcolocadas duas possibilidades de interpre-tação: a primeira, de que os indivíduos quepresenciaram os momentos de maior ten-são, e morreram durante os combates, te-nham sido enterrados dentro do pukara.Se os dados etno-históricosestiverem cor-retos, a estrutura só seria ocupada de fatocomo sítio habitacional nos momentos deconflito, o que sugere que um contingentegrande da população sob ameaça se re-fugiaria no alto da colina, incluindo mulhe-res e crianças. A segunda possibilidade éque apenas os homens, efetivamente en-volvidos com as atividades bélicas, acor-ressem ao pukara durante as invasõespara defenderem seu território. Esta po-deria ser ainda outra possibilidade para otamanho reduzido da amostra masculina

    de Quitor-6, localizado no mesmoaylluqueo pukara.

    A título de reflexão de todas as possibi-lidades interpretativas, não deve ser total-mente descartada a hipótese de que osguerreiros atacamenhos saíssem em in-cursão para invadir outros espaços produ-tivos em regiões limítrofes. Esta, contudo,não parece ser a interpretação mais plau-sível, já que dentro do contexto ambientaldo deserto atacamenho, o oásis de SanPedro é uma região privilegiada, estandolocalizado entre dois importantes rios, oSan Pedro e o Vilama.

    Torres-Rouff et al (2005), ao abordarema questão da violência no oásis durante omesmo período, analisaram as fraturas decrânios nas séries dos cemitérios de Yaye.Foram observados percentuais de 38,9%para homens (N= 54) e 26% para mulhe-res (N=77). A partir dos dados publicadospor Le Paige (1964), deduz-se que os crâ-nios estudados pelos autores correspon-dam ao total da amostra masculina e fe-minina.

    Vale mencionar que os traumas asso-ciados à violência estão sub-representa-dos na amostra de Yaye, composta ape-nas por crânios, uma vez que excluem aspossíveis lesões associadas à flechadas.Ainda assim, os valores mencionados sãomaisaltosdo que aquelesobservados paraQuitor-6, principalmente entre as mulhe-res. Esta série, portanto, estaria mais emconcordância com o panorama político-econômico do período pós-Tiwanaku, ex-pressando de forma mais marcada a ten-são materializada na construçãodo pukarade Quitor.

    Outra questão merece ser menciona-da, a título introdutório, para a reflexão docontexto em que ocorreram os episódiosde agressão no oásis. A necessidade deanexação de territórios por parte de ou-tros grupos, comprovada através da pre-sença de uma complexa estrutura defen-

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    siva, indica que durante este período osatacamenhos estavam sujeitos à ameaçade invasões de guerreiros. Esta situaçãoresultaria em ataques de maior escala, en-volvendosimultaneamente vários indivídu-os, diferindo da situação interpretada paraos períodos anteriores, na qual as dispu-tas teriam um caráter mais individual e aslutas apresentariam um perfil interpessoal.

    Infelizmente, o pequeno número de le-sões observadas em Quitor-6 não permiteo estabelecimento de um padrão específi-co de agressão. A semelhança das lesõescom aquelas observadas para os períodosanteriores, no entanto, não sugere o em-prego de diferentes tipos de armas porparte dos agressores.

    Se nos períodos anteriores a violênciaderivada de assuntos políticos e econômi-cos foi associada predominantemente aoshomens (Lessa, 1999, 2005; Lessa & Men-donça de Souza, 2004; 2006; 2007), nes-te período pós-Tiwanaku ela pode ter seestendido para os demais segmentos dasociedade. Desta forma, a agressão co-metida contra uma única mulher, cuja in-terpretação para os períodos anteriores foicomo resultado de violência doméstica,pode ter assumido também outro caráter,não estando relacionada com assuntoscotidianos. A severa fratura não consoli-dada observada na mandíbula da mulherafetada aponta para um ataque mais vio-lento do que aqueles observados paraperíodos anteriores. O percentual de 26%de indivíduos femininos afetados na sériede Yaye, observada por Torre-Rouff et al(2005), é a mais alta observada entre to-das as séries femininas do oásis, reforçan-do esta interpretação.

    A partir da descrição dos contextos fu-nerários de Quitor-6 publicada por Costa(1988), foi feita uma quantificação das ar-mas, as quais não apresentaram variaçãona tipologia em relação aos contextos deperíodos anteriores. Seis tumbas mascu-

    linas apresentaram arcos e fragmentos deastes de flecha (54,5%) e duas apresen-taram pontas líticas (18,1%). No trabalhomencionado não fica claro se há associa-ção entre arcos e pontas no mesmo con-texto, podendoaumentarpara oito (72,2%)o número de tumbas que apresentam ar-mas. Se em Quitor-6 a violência real apre-sentou um valor pouco expressivo em re-lação aos períodos anteriores, a violênciapotencial, representada pelos meios deataque e defesa, aparece sem dúvida deforma mais latente.

    V. Considerações FinaisCertamente, o trabalho aqui apresen-

    tado teve sua orientação voltada não ape-nas para a obtenção de dados relativos àslesões, mas também para a organizaçãodos dados arqueológicos especificamen-te em função da questãoda violência, alémda reflexão sobre aspectos ainda inex-plorados. A escavação sistemát ica dopukara de Quitor, e acima de tudo umaanálise nos esqueletos sepul tados emseus recintos, possibilitaria uma discussãocom mais inferências e menos perguntas,mesmo que a complexidade advinda dasmúltiplas interrelações entre o mosaicoétnico que ocupou os Andes Centro-sul noperíodo pós-Tiwanakuexijaaindaum gran-de esforço para muitas geraçõesde arque-ólogos.

    Fica registrada, no entanto, uma cor-respondência entre a notável mudançacultural ocorrida durante o período pós-Tiwanaku, e as ações e reações advindasda inevitável tensão que acompanhou oprocesso de complexificaçãodas socieda-des andinas. Se por um lado os tipos delesão observadosneste períodonão apon-tam para inovações significativas no arse-nal bélico, por outro lado a construção dospukaras indica um rompimento com o pa-drão anterior dos episódios de agressão.Não há, para os períodos anteriores, qual-

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    Invasores à vista: uma abordagem biocultural sobre a violência durante a era dos pukarasno oásis atacamenho

    quer indicaçãoarqueológicade invasão aooásis, e o padrão de lesões masculinas(Lessa& Mendonça de Souza,2004, 2006,2007) permite a interpretação de confron-tos individuais, provavelmente durante em-boscadas. A necessidade de construçãodo pukara, ao contrário, revela uma novaconfiguração, em maior escala, do fenô-meno da violência.

    A distribuição da série de Quitor-6 se-gundo sexo revela um desequil íbrio nopercentual de mortalidade entre os sexos,apresentando o dobro de indivíduos femi-ninos em relação aos masculinos. Aspec-tos sócio-econômicos específicos da faseSolor, os quais resultariam na ausênciafre-qüente de um grande contingente mascu-lino no oásis, podem explicar este dese-quilíbrio na série.

    Tal como observado nos períodos an-teriores, o percentual de indivíduos porta-dores de lesões associadas à violência émais alto entre os homens. A fragmenta-ção sócio-política que sucedeu a retraçãoda influência Tiwanaku e as disputas porterras produtivas são os prováveis moti-vos para os conflitos durante este perío-do.

    O fato do percentual de indivíduos mas-culinos afetados, durante este períodomarcadamente conflituoso, ser mais bai-xo do que aqueles observados para perí-odos anteriores, pode estar indicando queos indivíduos mortos, possivelmente du-rante batalhas, foram enterradosdentro doPukara de Quitor, ou fora do oásis. A vio-lência entre as mulheres, associada nosperíodos anteriores aos assuntos do coti-diano, pode ter assumido outro caráterdurante o período Solor, estando relacio-nada com os conflitos intergrupais ocorri-dos oásis atacamenho.

    Agradecimentos: Nossos agradeci-mentos à Maria Antonieta Costa, curadorado acervo osteológico do Instituto deInvestigaciones y MuseoR.P GustavoS.J.,pelo acesso às coleções, e à técnicaMacarena Oviedo, pela valorosa ajuda epela amizade. À Verônica Wesolowski,parecerista, pelas sugestões e atenta re-visão do texto.

    Recebido para publicação em julhode 2009.

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