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1 PIBID LEITURA E ESCRITA: PRINCÍPIOS NATURAIS DO GOSTO E DO DESGOSTO 1 C. Ferrarezi Jr. 0. Introdução Há doze anos ganhei um pequeno livro 2 de presente. Nele, encontrei implícita uma das mais interessantes perguntas de minha vida como professor, pergunta esta que me vem perseguindo desde então, sem resposta, fervilhante dentro de mim, repetida milhares de vezes aos meus alunos e colegas: sem resposta. Intrigou-me o fato de que o próprio livro em que encontrei a pergunta não me 1 Este texto é a versão de divulgação científica dos resultados de um trabalho realizado por uma equipe multidisciplinar de doze profissionais, entre os anos de1995 e 1998, com cerca de duas mil crianças de Educação Básica. Nele, a preocupação é muito mais com a necessidade de divulgação das ideias para leitores de todas as áreas e níveis, do que com preciosismos técnicos e terminológicos. 2 Trata-se da pequena, mas muito significativa obra: Lilian L.M. da SILVA (1986). A Escolarização do Leitor: A Didática da Destruição da Leitura. Porto Alegre: Mercado Aberto. ofereceu uma resposta que me satisfizesse. E, desde então, penso em uma resposta para tão aguçada questão. Creio que agora, passados doze anos de pensar constante, cheguei a uma conclusão que me satisfaz. Não tenho, é claro, a pretensão de que minhas ideias a esse respeito satisfaçam a todos os meus leitores, porque eu mesmo não me satisfiz com o que encontrei no livro que li, mas, a mim me satisfaz esta resposta que hoje tenho. Por isso quero compartilhá-la com aqueles que ensinam a Língua Portuguesa nas escolas de todos os graus, como eu, há quinze anos, o faço. Mas, afinal, que pergunta é esta capaz de fazer um professor pensar doze anos para poder respondê-la e qual a natureza da resposta que encontrei para ela? Ei-las: por que razão o maior anseio de nossas crianças, o que mais querem na vida antes de entrar na escola, que é aprender a ler e a escrever, logo nos primeiros contatos com a realidade escolar transforma-se em aversão ou apatia para com a leitura e a escrita? Ou, em uma formulação mais simples: como algo que se ama e se deseja transforma-se em algo que se odeia ou, no mínimo, não se dá valor? Tal pergunta não mereceria uma solução que não fosse fundamentada nos princípios naturais da vida dos organismos chamados humanos. É esta resposta em forma de princípios naturais que esboço neste artigo: uma abordagem que demonstra como a escola atua com as crianças nas suas primeiras experiências da vida estudantil e quais as reações naturais desenvolvidas pelas crianças - tanto as chamadas “bons alunos”, quanto as chamadas “maus alunos”. Ainda, precisamos ver que espécie de resquícios essas respostas

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PIBID

LEITURA E ESCRITA: PRINCÍPIOS

NATURAIS DO GOSTO E DO DESGOSTO1

C. Ferrarezi Jr.

0. Introdução

Há doze anos ganhei um pequeno livro2 de presente.

Nele, encontrei implícita uma das mais interessantes

perguntas de minha vida como professor, pergunta esta

que me vem perseguindo desde então, sem resposta,

fervilhante dentro de mim, repetida milhares de vezes aos

meus alunos e colegas: sem resposta. Intrigou-me o fato de

que o próprio livro em que encontrei a pergunta não me

1 Este texto é a versão de divulgação científica dos resultados de um trabalho realizado por uma equipe multidisciplinar de doze profissionais, entre os anos de1995 e 1998, com cerca de duas mil crianças de Educação Básica. Nele, a preocupação é muito mais com a necessidade de divulgação das ideias para leitores de todas as áreas e níveis, do que com preciosismos técnicos e terminológicos. 2 Trata-se da pequena, mas muito significativa obra: Lilian L.M. da SILVA (1986). A Escolarização do Leitor: A Didática da Destruição da Leitura. Porto Alegre: Mercado Aberto.

ofereceu uma resposta que me satisfizesse. E, desde então,

penso em uma resposta para tão aguçada questão. Creio que

agora, passados doze anos de pensar constante, cheguei a uma

conclusão que me satisfaz. Não tenho, é claro, a pretensão de que

minhas ideias a esse respeito satisfaçam a todos os meus

leitores, porque eu mesmo não me satisfiz com o que encontrei

no livro que li, mas, a mim me satisfaz esta resposta que hoje

tenho. Por isso quero compartilhá-la com aqueles que ensinam a

Língua Portuguesa nas escolas de todos os graus, como eu, há

quinze anos, o faço. Mas, afinal, que pergunta é esta capaz de

fazer um professor pensar doze anos para poder respondê-la e

qual a natureza da resposta que encontrei para ela? Ei-las: por

que razão o maior anseio de nossas crianças, o que mais querem

na vida antes de entrar na escola, que é aprender a ler e a

escrever, logo nos primeiros contatos com a realidade escolar

transforma-se em aversão ou apatia para com a leitura e a

escrita? Ou, em uma formulação mais simples: como algo que se

ama e se deseja transforma-se em algo que se odeia ou, no

mínimo, não se dá valor? Tal pergunta não mereceria uma

solução que não fosse fundamentada nos princípios naturais da

vida dos organismos chamados humanos. É esta resposta em

forma de princípios naturais que esboço neste artigo: uma

abordagem que demonstra como a escola atua com as crianças

nas suas primeiras experiências da vida estudantil e quais as

reações naturais desenvolvidas pelas crianças - tanto as

chamadas “bons alunos”, quanto as chamadas “maus alunos”.

Ainda, precisamos ver que espécie de resquícios essas respostas

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naturais das crianças deixam para o restante da sua vida

estudantil.

Entretanto, para poder esboçar uma resposta de tal

forma abrangente, penso ser necessário deter-se nas

soluções encontradas nos livros e artigos que abordam o

assunto. As que mais comumente tenho encontrado para

esta pergunta na bibliografia são as seguintes:

1. por uma confluência de fatores;

2. porque a criança é obrigada a ler;

3. porque as leituras não são adequadas às crianças;

4. porque as crianças não compreendem o que leem.

Quero comentar e refutar uma a uma destas

respostas só com base na minha experiência como professor

de Língua Portuguesa. E digo refutar, porque todas essas

respostas têm uma falha comum que tem feito os

professores gastarem seu precioso tempo em atividades

erradas, baseadas em uma concepção equivocada do

problema. Esse erro de concepção está no fato de que essas

respostas comuns propõem que o problema do desgosto

das crianças pela leitura e pela escrita podem ser resolvidos

com atividades superficiais, com a excitação momentânea

de uma técnica elaborada de redação em classe ou de

leitura em grupo, por exemplo. As ideias de que os livros

são ruins, os textos inadequados, os professores não são

suficientemente dedicados, são parte desse rol de ideias

equivocadas que têm como fundamento a hipótese de que

se pode resolver o problema do desgosto das crianças pela

leitura e pela escrita com atividades superficiais, porque é

igualmente comum que se considere equivocadamente que a

causa desse problema é superficial. O problema é mais profundo,

porém. As causas desse desgosto estão localizadas em um nível

mais profundo da psique infantil, nível não alcançado por uma

excitação momentânea. Vejamos.

A leitura e a escrita são tecnologias. Logo, trata-se de algo

artificialmente elaborado pelo ser humano para facilitar (ou

dificultar?...) sua existência aqui. A leitura e a escrita são

culturais e não potenciais, como a fala e a audição. Ora, se assim

o são, ler e escrever são habilidades e não capacidades.

Entretanto, embora o ser humano moderno tenha se tornado um

homem de letras, ele continua sendo um organismo vivo. Suas

reações aos elementos externos continuam obedecendo aos

princípios naturais que vêm regendo sua existência desde a

origem. É assim que nosso organismo e nossa mente reagem a

um televisor ligado hoje como reagiriam se o televisor tivesse

sido inventado há vinte séculos: organicamente. Da mesma

forma, reagimos organicamente a um microondas, a um telefone

celular, a uma viagem interplanetária. Simplesmente, porque

continuamos sendo organismos vivos e submetidos às regras

naturais que regem esses organismos. No caso específico do ser

humano, deve-se acrescentar toda uma complexidade

psicológica vagamente conhecida, que complica as coisas na

educação. Não que os animais não possuam essa complexidade

psicológica; nós somente não temos respostas satisfatórias para

dar sobre a psicologia animal. As respostas sobre a psicologia

humana, porém, são bem mais elaboradas e serão muito úteis

para entendermos o que ocorre com as crianças com relação à

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leitura e à escrita. É sobre o que conhecemos do

funcionamento natural do organismo vivo chamado

homem, portanto - tanto quanto à sua dimensão física,

quanto no que se refere à sua dimensão psicoemocional -

que fundamento minha resposta. Creio que somente uma

resposta que explique o processo do ponto de vista de suas

bases naturais pode dar conta de resolver o problema.

A hipótese em que me baseio para formular tal

resposta natural é bastante simples, e pode ser dividida em

três fases de elaboração:

1. uma vez que a leitura e a escrita são atividades

culturais - portanto não naturais - do ser humano, mas,

como todas as demais atividades externas, desenvolvem

reações naturais, precisamos identificar que tipos de

reações são essas e em que ordem se encadeiam;

2. identificadas as reações naturais na criança e em

que ordem ocorrem, torna-se necessário identificar as

seqüelas que estas reações trazem ao desenvolvimento do

gosto pela leitura e pela escrita;

3. identificadas tais seqüelas, precisamos reverter o

processo natural construído pela escola, provocando

reações naturais contrárias às que causaram os problemas

nas crianças para, assim, resolvê-los. Em outras palavras: a

escola percorre um caminho com as crianças que resulta,

normalmente, em um profundo desgosto pela leitura e pela

escrita; proponho que percorramos o caminho inverso,

desfazendo esse desgosto e criando o gosto por essas

tecnologias.

Mas, primeiro, como disse, devemos passar pelas

respostas costumeiras. Vamos a isto.

1. Uma confluência de fatores

Este é o típico caso de resposta que não ajuda muito. Seria

melhor dizer simplesmente “porque sim”. Mas, de qualquer

forma, encontramos isso como explicação para o desgosto das

crianças pela leitura em muitos compêndios sobre o tema. O que

me parece significativo é que a impossibilidade direta de

identificar quais são esses fatores e de que forma agem na

criança para fazê-la odiar a leitura e a escrita é a “mãe” desta

resposta evasiva.

Ao dizer apenas “muitas coisas”, coloco em um mesmo

balaio tudo o que acontece na escola, inclusive as coisas boas que

a escola têm feito com as crianças. Há uma tendência das novas

correntes de pensamento bastante semelhante aos ciclos de

“negação da negação” das escolas literárias. Uma nova corrente

surge e, quase que por obrigação, inicia o trabalho de negação do

valor e das conquistas da escola anterior, quase sempre através

da ridicularização do trabalho anterior. Há um grande perigo

nisso. E esse perigo está calcado no fato de que, ao negar a

experiência passada, negamos as possibilidades de aprender com

ela.

Uma ilustração bastante comum do que quis dizer no

parágrafo anterior é a criação que alguns pais querem dar a seus

filhos. Eles sempre começam com a mesma história de que

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“querem dar a seus filhos aquilo que não tiveram, não vão

bater em seus filhos porque não gostavam de apanhar, não

vão colocar seus filhos para trabalhar porque tiveram que

trabalhar quando adolescentes” e daí para frente. O que

estes pais não enxergam é que se, hoje, eles são cidadãos

conscientes, trabalhadores, produtivos e participativos na

sociedade em que vivem, se construíram algum

patrimônio, se não têm medo do trabalho, tudo isso é

porque foram criados da forma que foram. Quando esses

pais, simplesmente para negar a educação que tiveram dos

próprios pais, estabelecem novas formas de criação

baseadas em pura negação aleatória de princípios, negam

concomitantemente aos seus filhos as oportunidades que

eles mesmos, enquanto crianças, tiveram, e que fizeram

deles o que são. O mesmo se vê na educação.

Não sou favorável à violência na escola, mas não

posso negar que muitos grandes homens foram educados

neste país na época da palmatória e do milho atrás da

porta. Alguma coisa havia na educação daquela época que

fazia desses homens grandes pessoas, gente de

responsabilidade, grandes pensadores. Talvez eles

desenvolvessem o cérebro pensando em uma forma de

livrar-se da palmatória e do milho... Mas, de qualquer

forma, em alguns aspectos, a educação tradicional possuía

atributos que não se deveriam ter perdido no tempo.

Deveriam, sim, ter sido aproveitados nas correntes

pedagógicas posteriores, ao invés de ser simplesmente

negados. E cito um desses aspectos que muito me

agradava: o ensino artístico. Lembro-me bem das minhas aulas

de primário (e não se vão lá tantos anos...): nós cantávamos,

éramos ensinados pelas professoras a gostar da música em suas

diversas modalidades, sabíamos os hinos pátrios e os

treinávamos com regularidade. Também cantávamos uma

grande diversidade de músicas folclóricas e, periodicamente,

havia apresentações de canto na escola. E hoje? Há alguns anos

não ouço uma criança de escola pública cantar o Hino à Bandeira

ou alguma canção folclórica. Por que o princípio de ensino da

arte depauperou-se tanto? Simples negação? Já ouvi quem

dissesse que os hinos pátrios não deveriam ser ensinados na

escola porque isso era reminiscência do período militar! Será que

essa avaliação ideológica está mesmo correta? Tenho para mim

que não.

Quando simplesmente digo que nossas crianças não

gostam de ler e de escrever por uma confluência de fatores e não

sou capaz de identificá-los com precisão, jogo muita coisa boa no

lixo. Conoto, com essa resposta, que há muito mais coisa errada

do que realmente há nas escolas brasileiras. A constante crítica

pedagógica às escolas nacionais nas duas últimas décadas

desenvolveu nos professores e na comunidade uma concepção

catastrófica de nossa escola. Mas essa concepção não é

verdadeira. Nossa escola erra, como todas as escolas do mundo

erram - é só isso! Nossa escola não é a “calamidade” idealizada

por Darcy Ribeiro, nem “a doença social” pregada por alguns

pedagogos interacionistas. Muita coisa boa tem sido feita nas

escolas brasileiras desde sempre. Não posso, portanto, acreditar

em uma resposta de tal forma vácua, que se contenta em dizer “a

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criança não gosta de ler por muitos fatores”. Gostaria,

portanto, de tirar duas conclusões dessas considerações,

conclusões que nos ajudarão a construir a resposta que

necessitamos. São elas:

a. a tradição não é execrável somente por ser

tradição; há muita sabedoria na educação e na moral

tradicionais, sabedoria que deveria ser melhor aproveitada

pela educação atual;

b. nossa escola, nossos professores, nossas

concepções educacionais não são tão ruins como são

pintadas; a escola brasileira não é tão ruim como é descrita;

nossa prática necessita de melhoras, mas isso não é

privilégio da educação nacional: ocorre em todo o mundo.

2. A criança é obrigada a ler

Esta resposta é um desenvolvimento da invariante

pedagógica de Freinet: “A criança e o adulto não gostam de

imposições autoritárias”3 que, a despeito de ter belo efeito

sonoro-pedagógico, é meio perigosa. Primeiro, porque “a

criança e o adulto”, isto é, “todos” constitui-se em um

universo grande demais. Há, sim, quem por suas

peculiaridades de personalidade goste de “imposições

3 Essa e as demais Invariantes Pedagógicas de Freinet podem ser lidas em: Rosa Maria W.F. SAMPAIO. (1989). Freinet: Evolução Histórica e Atualidades. Série Pensamento e Ação no Magistério, no 2, São Paulo: Scipione.

autoritárias”. Segundo, porque não se explicita bem o que são

essas tais “imposições autoritárias” na escola.

Desenvolvamos algumas considerações sobre essas

imposições. O que a escola impõe? O que ela não impõe? Por

exemplo, o horário do recreio é imposto ou a criança escolhe a

que hora ela sai da classe para a merenda e as brincadeiras? Mas,

nem por isso, me consta ter ouvido reclamações sobre o horário

do recreio, exceto aquelas que se referiam à sua pequena

duração. O conteúdo ministrado, o regime disciplinar, o sistema

de notas, as classes em que se estuda, as carteiras que se tem, o

uniforme da escola, tudo são imposições autoritárias! E, se não

são unanimidade, não são, por outro lado, odiados por todos.

Há uma infinidade de crianças que amam vestir seu uniforme

cheiroso e bem passado todas as manhãs (quando isso é

possível), que adoram tirar uma boa nota, que gostam de suas

classes e, até, ajudam a lavá-las, pintá-las, enfeitá-las. Há muitas

que se orgulham da disciplina rígida de sua escola, mesmo

sabendo que tal disciplina tolhe muitas de suas ações. Onde está

o efeito devastador da obrigatoriedade aí?

Não me parece que o fato seja exatamente a

obrigatoriedade do fazer, mas o reconhecimento da inutilidade

da obrigatoriedade. Parece-me que não gostamos de fazer

obrigados algo que percebemos inútil. E aí o sábio Freinet acerta

em sua invariante “ninguém gosta de trabalhar sem objetivo.”4

Mas, aquilo que sabemos útil, não o fazemos obrigados;

ao contrário, nos auto-obrigamos a fazê-lo. Poderíamos nos

4 Idem.

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perguntar pertinentemente que espécie de princípios regem

isto que se chama imposição. Os princípios são os mesmos

que regem todos os organismos vivos: manutenção e

perpetuação. Todos os seres vivos - todos mesmo, sem

exceção - quando em seu estado normal, obedecem a esses

dois princípios vitais.

O primeiro princípio é o da manutenção e dita que o

ser vivo deve fazer tudo o que estiver a seu alcance para

manter-se vivo pelo maior espaço de tempo possível.

Nenhum ser vivo em seu estado normal aceita a morte com

naturalidade. O ser humano, em sua complexidade

psicológica, reconhece que sua manutenção depende de

mais do que somente sua condição orgânica. O ser humano

reconhece a importância do psicoemocional e do social e

sabe muito bem que enormes prejuízos podem ser

acarretados ao organismo se tais dimensões não forem

devidamente cultivadas. A manutenção para o ser humano,

portanto, é mais do que alimentar-se, exercitar-se e

repousar.

O segundo princípio é o da perpetuação ou da

reprodução. Todos os seres vivos reconhecem

instintivamente a necessidade de perpetuar seus genes

através das diversas maneiras naturais de multiplicação das

espécies: algumas de forma sexuada, outras de forma

assexuada. Mas, sem exceção, de um ser unicelular a um

ser humano, todos são obrigados a obedecer à necessidade

natural de reproduzir-se.

Muito bem, tudo o que se refere à manutenção (no caso do

ser humano, no mais amplo conceito da palavra) e à perpetuação

é aceito como natural pelos organismos vivos. As ações que se

identificam de alguma forma com um desses dois princípios

citados são consideradas sempre naturais e, consequentemente,

poderão ter utilidade aos olhos do organismo. Quando uma

criança ou um adulto veem alguma relação com sua manutenção

ou sua reprodução em qualquer atividade que seja, autoimpor-

se-ão essa ação. Assim é que comemos, dormimos, nos mexemos,

conversamos, etc., considerando essas ações naturais e

necessárias, porque nelas enxergamos utilidade para nossa

manutenção e para nossa reprodução. Quando um ser humano

enxerga nitidamente essa utilidade, ele fará dessas atividades

consideradas necessárias, possivelmente, atividades prazerosas.

O prazer em qualquer atividade nasce da autoimposição do

organismo para tal atividade. Mas quando, por qualquer razão, o

ser humano perde seu equilíbrio e deixa de ver utilidade nas

ações que normalmente lhe seriam naturais, então ele passa a

desrespeitar os princípios naturais da manutenção e da

reprodução; deixa, então, de comer, de dormir, de exercitar-se,

enfim, passa a um estágio que pode ser considerado doentio,

porque desrespeitoso à natureza dos organismos vivos.

Assim, o problema com uma atividade proposta a uma

criança na escola estará simplesmente no fato de que esta criança

poderá não ver nela uma utilidade real para sua manutenção ou

sua reprodução, mas nunca no fato de que essa atividade é

obrigatória ou não. Aliás, a imposição autoritária é uma

necessidade da escola e de todos os demais organismos sociais.

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Isto sim me parece significativo: a imposição autoritária é

necessária ao desenvolvimento do trabalho escolar, mesmo

porque sem autoridade não há organização que se

mantenha. O próprio Freinet reconheceu, em outra

invariante, que “a ordem e a disciplina são necessárias na

aula.”5. E considero claro que a ordem e a disciplina só se

estabelecem se há liderança, autoridade em sala. Não falo

de um autoritarismo cego e ditatorial, mas de autoridade e

liderança da parte do professor. Então, como dizia, não está

na imposição autoritária o problema, mas no fato de que,

muitas vezes, não se vê razão plausível para a imposição.

Vejamos um exemplo corriqueiro disso. Alguns

adolescentes não gostam de limpar seus quartos (quando os

têm), mas o fazem; resmungando, mas o fazem. Já tive

oportunidade de perguntar a vários deles o que pensavam

de limpar o quarto. Disseram-me, sem exceção, que era

uma chatice, que a mãe só pedia para que limpassem seus

quartos na hora errada, mas que o faziam porque era preciso,

porque reconheciam a necessidade disso. Mas, uma vez, tive a

oportunidade de conversar com um adolescente que via na

sujeira de seu quarto a melhor forma de protestar contra a

separação de seus pais. Limpar o quarto era uma imposição

que, para ele, além de não ter razão de ser, feria suas razões

mais íntimas! Ele odiava limpar o quarto; amava sujá-lo e

desordená-lo. Até que engraçou-se por uma menina da

escola, daquelas direitinhas, arrumadinhas... Em poucos

5 Ibidem.

dias, sua mãe mo relatou, inaugurou-se uma nova ala em casa: a

ala da limpeza e da arrumação. Agora havia uma razão para

aceitar a imposição da mãe. A imposição deixou de ser uma

imposição externa, passando a ser autoimposição. Quando

reconhecemos o valor de uma ação, impomos autoritariamente a

nós mesmos sua execução, modificamos nossos hábitos, nosso

padrão e cronograma de vida, e aceitamos como natural do dia-

a-dia ter que fazer algo que nos parecia, antes, inútil.

Nunca perguntei a uma criança se ela considerava

importante ler e escrever e ouvi a resposta não. Parece uma

unanimidade cultural o fato de que a leitura e a escrita são

habilidades importantes, necessárias ao cotidiano de uma pessoa

inserida em uma sociedade moderna e democrática. Qualquer

criança reconhece isso. Muito mais significativo do que isso,

porém, é o fato de que a criança ingressante deseja tanto

aprender a ler e a escrever que a leitura e a escrita são já para ela

uma autoimposição. A criança quer, e por várias razões:

a. ela vê os outros lendo e escrevendo, e sente uma

necessidade imitativa, quase biológica, de poder fazer o mesmo;

b. ela já reconhece o valor que se dá à leitura e à escrita em

nossa sociedade, porque já é cobrada pelos pais quanto à isso:

“meu filho já vai pra escola aprender a ler e a escrever...e o papai

vai ficar contente quando isso acontecer”;

c. ela sente falta das habilidades de leitura e de escrita no

dia-a-dia, porque é cercada pela língua escrita por todos os

lados, desde uma simples figurinha de chiclete até as legendas

de um desenho animado estrangeiro.

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Enfim, por essas e por outras razões facilmente

enumeráveis a criança em idade de alfabetizar-se reconhece

que a leitura e a escrita, na sociedade em que ela está

inserida, são uma necessidade que responde diretamente

aos princípios de manutenção e de reprodução e, assim, a

criança autoimpõe-se a alfabetização. Não se trata de uma

imposição autoritária da escola o fato de que ela vai ter que

aprender a ler e a escrever. Mas, então, por que ouvimos

respostas de crianças já na terceira ou na quarta séries, do

tipo: “só leio se a tia me obriga”, “não gosto mais de ler e só

leio se vale nota” ? Parece claro que a autoimposição já foi

aí destruída. Os alunos já experimentaram a causa de

destruição da vontade de ler e escrever. O problema não

está na imposição que se faz, mas no fato de que já se

perdeu, no processo escolar, a razão dessa imposição.

Assim, não posso crer que a obrigação de leitura

destrua o gosto de ler. Pelo menos, não na maioria das

crianças. Há algo que ocorre paralelamente à imposição que

a transforma em algo tão detestável. Não posso, portanto,

concordar com essa resposta também. Para finalizar este

subtítulo, vamos às conclusões que podemos retirar dele:

a. a alfabetização para a criança, na fase propícia de

entrada na escola, é uma autoimposição, pois a criança

reconhece que a leitura e a escrita são necessárias à sua

manutenção e, quem sabe, até à sua reprodução no mundo

moderno;

b. como a criança reconhece a importância da leitura

nessa fase, é bastante provável que seja o procedimento da

própria escola, logo nos primeiros dias de vida escolar, o que faz

com que a criança deixe de reconhecer na leitura e na escrita o

seu valor intrínseco para a própria manutenção na sociedade.

3. As leituras não são adequadas às crianças

Creio que posso começar minhas considerações sobre esta

resposta tão comum com a pergunta “o que é ser adequado, em

se tratando de leitura?”. Será que as crianças só gostam de ler

aqueles livrecos, alguns realmente ridículos, com uma frase por

página e um monte de ilustrações psicodélicas? Lembro-me de

minha experiência de quatro anos atuando em sala de leitura de

uma escola pública. Repetidas vezes vi crianças de quarta e de

quinta séries procurando nas estantes esse tipo de livrecos de

iniciação à leitura (se é que servem para isso...). Reiteradas vezes

perguntei-lhes porque escolhiam esses livros, se gostavam deles.

Invariavelmente a resposta era “Não... pegamos estes porque

não gostamos de ler e estes têm menos coisas para ler.”.

Parece-me um crasso engano considerar que as crianças

gostam desse tipo de livros porque são coloridos ou porque são

escritos com grandes letras. Há uns poucos dias minha esposa,

entrevistando alguns alunos de primeira série primária,

encontrou um menino que relatou sua leitura preferida: jornal.

Imediatamente lembrei-me de um primo que tinha o mesmo

hábito, quando estava na primeira série primária: era assíduo

leitor das páginas de esporte de O Estado de São Paulo. Lembro-

me perfeitamente que ele vasculhava aquele montão de cadernos

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diários da assinatura de seu pai (que sempre ficava bem

feliz com a arrumação do menino...) até encontrar as duas

ou três folhas diárias de futebol, que eram prontamente

devoradas. Será que O Estado de São Paulo, ou outro jornal

qualquer, é uma leitura visualizada como propícia para as

crianças em alfabetização por alguém que argumenta que a

causa da aversão das crianças pela leitura está na

adequação? Creio que não.

Onde está a adequação pretendida em uma leitura?

Os livros infantis que temos visto apontam para algumas

respostas contestáveis...

a. na cor das letras? E, desde quando, a cor das letras

faz diferença no sistema alfabético?;

b. no tamanho das letras? Só se a criança tem

problemas de visão...;

c. nas ilustrações? Por que as crianças judias

ortodoxas não se irritam, então, com a sucessão de folhas e

mais folhas da Septuaginta, sem uma única ilustraçãozinha

sequer? Quem não se lembra dos primeiros livros de

Monteiro Lobato, com uma figura em preto-e-branco a cada

dez páginas? E eram lidos muito mais do que hoje o são os

ilustradíssimos livros infantis!

Que efeito, podemos nos perguntar, tem uma

ilustração sobre uma criança? A mesma que tem sobre um

adulto, certamente. Se a criança souber ler, a ilustração

propiciará prazer estético tanto como ao adulto; se não

souber ler, tanto a criança quanto o adulto tentarão “ler” a

história nas ilustrações. E nada mais. As ilustrações de um

livro não levam ninguém a gostar de ler. No máximo, o levam a

gostar de folhear os livros atrás de novas e coloridas figuras;

d. nos formatos? Bem, os exemplos dos dois meninos que

amavam os jornais, parece, são suficientes para derrubar essa

hipótese. Quer coisa mais incômoda de se ler do que jornal? Cai

para os lados, é ruim de dobrar, é grande demais para segurar

aberto, enfim... é jornal!

Onde, então, está a adequação de uma leitura?

Obviamente no que se busca encontrar nela. E os alunos

alfabetizandos não querem encontrar na leitura cores, desenhos e

formatos, simplesmente porque não precisam da escola para

isso. Ver figuras e inventar histórias, ver as belas cores de uma

impressão cuidadosa e perceber a praticidade que um bolsilivro

oferece são coisas que a criança já sabe quando chega na escola.

O que ela quer é poder encontrar o conteúdo do que está escrito.

Logo, podemos concluir que a adequação, pelo menos no que

concerne à leitura, é uma característica residente na relação entre

o conteúdo expresso e o desejo do leitor. Uma foto é inadequada

para a criança não pelo papel em que ela é impressa ou pela

qualidade de suas cores, mas pelo conteúdo que ela carrega.

Adequado à leitura é um texto que responde diretamente aos

anseios dos leitores, mesmo que esses anseios não sejam

legitimados pela cultura. Lembro-me de um jovem que resolveu

que queria ler O Exorcista. Começou e não conseguiu mais parar

até que acabou. A experiência foi extremamente desagradável e

custou-lhe muitos dias subsequentes de sono. Mas ele não

passou a detestar a leitura depois dessa experiência. Isto porque

ele criou condições adequadoras para sua leitura e reconheceu,

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depois, que o problema estava na incompatibilidade

existente entre ele e aquilo a que se houvera proposto a ler.

Ele reconheceu uma incompatibilidade de conteúdo,

embora tenha lido, entendido e desgostado da experiência.

Mas, como ele criou condições adequadoras para sua

própria leitura (isto é, como considerou que,

independentemente da quantidade de páginas, da cor das

letras, da inexistência de figuras ou do formato do livro ele

poderia gostar do que iria ler) ele conseguiu ler e,

independentemente da péssima experiência com aquele

livro, esta não afetou seu gosto pela leitura.

Com as crianças ocorre o mesmo fenômeno. Quando

uma criança se depara com um livro com ilustrações

psicodélicas e um texto que é pura bobice, ela não desgosta

do ato de ler, ela desgosta do livro. Assim, muitos alunos

detestam a leitura escolar, mas gostam de ler aquilo que se

adequa aos seus anseios. Ainda, há aqueles que leem aquilo

que, pensam, poderá fazer-lhes bem. Não é por outra

razão que se multiplicam os chamados livros de autoajuda:

é porque grande número de pessoas crê que, nesses dias de

grande competição, os “autoajudados” têm mais chances de

ser felizes em suas empreitadas. Veja-se, portanto, que

uma pessoa que gosta de ler procura aquilo que seja

adequado a ela, ou, que ela presume adequar-se a seus

anseios e necessidades. Ninguém que goste de ler deixará

de fazê-lo por ler um ou dois ou muitos livros ruins, assim

como ninguém que gosta de ir ao cinema deixará de fazê-lo

depois de decepcionar-se com um filme aclamado pela crítica

especializada.

A inadequação dos textos escolares, portanto, não explica

porque muitas crianças - a maioria delas, diga-se de passagem -

não procuram outras leituras fora da escola. Este fator não é

suficiente para impor-se como causa da aversão que muitas

criança sentem pela leitura dentro e fora da escola. Esta outra

resposta, então, eu também não posso aceitar, justamente pela

conclusão que apresentei acima sobre o que considero ser

adequação.

4. As crianças não compreendem o que leem

De todas as que tenho visto, esta é a mais ideologicamente

marcada das respostas. Ela pressupõe uma burrice natural do

gênero infantil, que se dissipa ao longo do tempo, com o

aprendizado. Isso, obviamente, não é verdade. A relação entre o

conteúdo expresso e os anseios e necessidades do leitor, a que

me referi anteriormente, merece atenção quanto a esses “anseios

e necessidades”. Um dos fatores mais importantes no

desenvolvimento das habilidades de leitura e escrita, como já

muito bem o clarificaram Piaget e seus seguidores6 , é a fase de

maturidade do ser. Os adultos também não compreendem certas

coisas que leem e, não por isso, deixam de gostar de ler. Muitos

desistem de certas leituras por não achar-se capazes de

6 Dentre esses seguidores das ideias de Piaget, cumpre ressaltar Emília Ferrero e sua teoria da psicogênese da língua escrita.

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compreendê-las, mas não desistem do ato de ler. Conheço

alguns cristãos que não se atrevem a incursões

apocalípticas, mas não deixam, de forma alguma, de ler a

Bíblia. Passam horas viajando nas histórias do Velho

Testamento e nos Salmos; gostam dos Provérbios e das

poesias dos Cânticos de Salomão e das Lamentações de

Jeremias. Mas o Apocalipse está lá, no canto dele... e o

hábito de leitura firmando-se cada vez mais!

A incompreensão de algo que se leia nunca

constituiu obstáculo para que se procurasse outro algo para

ler. O que não posso crer é que as crianças não

compreendam nada do que leem. Certa vez, fui procurado

por uma professora alfabetizadora que me perguntava

sobre a incompreensão, da parte das crianças, de textos

considerados banais pela professora. Então, ela chamou um

dos alunos considerados mais espertos de sua sala e deu

um texto que dizia algo como “Tito é dono do cão Totó”. A

professora pediu que o aluno lesse o texto, o que ele fez

muito bem. Então ela perguntou ao aluno: “O que Tito

tem?”, ao que ele respondeu, depois de pensar alguns

segundos, “Não sei...”. A professora, desesperada, virou-se

para mim e disse: “Viu professor, que inteligência? Como é

que eu vou alfabetizar isso? E não é só ele não, porque esse

é dos bons... o senhor precisa ver os outros.” A esta altura,

o menino estava quase para chorar. Eu virei para ele e

perguntei se ele não tinha entendido que o Tito tinha um

cachorro e que esse cachorro chamava Totó. Ele respondeu

exatamente isso: “Isso eu entendi, mas eu pensei que a

professora tinha me chamado aqui para perguntar uma coisa

mais difícil...”

O problema do aluno estava exatamente no nível de sua

compreensão: era maior do que a da professora... Ele havia

compreendido não só o que havia lido, mas também que a

pergunta feita pela professora era tão óbvia, tão inadequada para

o que ele, como aluno, esperava da escola, que acreditou que

algo mais complexo e mais inteligente deveria ser respondido.

Como ele não possuía essa resposta mais complexa, contentou-se

com um singelo e sincero “não sei”. Muitas vezes, a escola perde

grandes oportunidades de desenvolver habilidades importantes

em seus alunos pela presunção da incapacidade das crianças. A

ideologia do “ser inacabado, sem vontade e sem inteligência”

perpetua-se nas escolas ao lado da ideologia da “folha em

branco” a ser escrita pelo professor. Isso se reflete em uma

pergunta de tamanha “dificuldade” para uma criança normal de

sete anos: “com base em João tem um cão, responda: o que João

tem?”. Ora, fico sinceramente perguntando-me se nossas

crianças precisam ir para a escola para aprender esse nível de

coisas.

Mas, muito mais importante do que isso, é considerar que

nesta fase a criança ainda está formando seus complexos

psicológicos, complexos que a acompanharão por toda a vida. Se

considerarmos que uma criança de seis ou sete anos

recentemente resolveu (ou não...) seu complexo de Édipo ou de

Electra, que ainda vive as transições da infância e da

socialização que se inicia, poderemos ter uma leve medida do

que significará para ela as primeiras experiências escolares. O

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complexo psicológico que se formará com relação à escola,

a partir da própria experiência escolar, acompanhará a

criança provavelmente pelo restante de sua vida. Está aí a

explicação de porque um jovem de segundo grau ainda

conserva as mesmas dificuldades, com relação ao seu trato

com a escola, que possuía quando estava no ensino

fundamental. Ou seja, embora a criança cresça e evolua em

relação às suas concepções de vida e sociedade, a menos

que seja trabalhada especificamente para redimensionar

suas ideias com respeito à escola e suas atividades, ela

mudará apenas superficialmente sua visão dos fatos

escolares e somente o fará nas frequentes fases de curta

excitação que a escola tem se esmerado em propiciar, como

no período de uma atividade de redação com motivação

audiovisual ou de leitura em salas especiais. A mesma

escola que foi responsável por formar na criança uma

concepção de inutilidade e, mais do que isso, de

prejudicidade com relação à leitura e à escrita, deverá

trabalhar a criança para reverter tais concepções. É o que

chamei anteriormente de trabalhar na via inversa, de

reconstruir as concepções da criança profundamente.

Assim sendo, sinto muito, mas esta resposta de que as

crianças não entendem o que leem também não me

convence.

5. Enxergando no meio da fumaça

Durante os doze anos em que procurei uma resposta para

a pergunta que apresentei no início desta conversa, não consegui

encontrar muito mais do que essas respostas que contestei até

aqui. Vi, isso sim, muita lenha sendo queimada entre

professores, pais e alunos em uma fogueira de acusações mútuas

que gera uma fumaça muito intensa, que não ajuda muito a

encontrar uma resposta mais interessante para uma questão tão

crucial. Creio porém, que é possível encontrar uma causa mais

central, mais essencial para esta aversão das nossas crianças para

com a leitura e a escrita. O próximo passo nesse sentido será o de

juntar as características dessa causa já descobertas em nossa

discussão até aqui. São elas:

a. trata-se de um fenômeno que ocorre com a grande

maioria das crianças nas escolas brasileiras. Portanto, não pode

ter relação com idiossincrasias das crianças. Entretanto, é

possível que se relacione a peculiaridades da infância;

b. trata-se de um fenômeno que ocorre muito cedo na vida

escolar; provavelmente, logo no primeiro semestre da primeira

série primária;

c. não se trata de nada relacionado à natureza ou outras

características dos livros e demais leituras escolhidas. Portanto,

aponta-se para a possibilidade de que este fenômeno assustador

resida na forma como este material é tratado nas escolas;

d. entretanto, no que concerne à forma de tratamento da

leitura e da escrita, não podemos atribuir às imposições escolares

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tal fenômeno, pois, como vimos, nesta fase da vida escolar a

leitura e a escrita são uma autoimposição da criança;

e. finalmente, sabemos que esse fenômeno tem a

característica de transformar um objeto de desejo em algo

desprezado.

Creio que essas características colhidas ao longo de

nossa conversa poderão ajudar-nos a encontrar uma

resposta. E quero abordar essa resposta começando com

uma pequena história ilustrativa. É através dessa parábola

que pretendo apresentar a conclusão a que cheguei. Vamos

a ela:

Imagine-se no lugar de Maria. Maria é uma

apaixonada das joias. Seu maior desejo é possuir um anel

com um enorme diamante solitário que aponte seu brilho

para o céu, a partir do dedo de Maria, é claro. Maria fala

disso para todo mundo: “Ah! se eu tivesse dinheiro... ah!

meu solitário...” Um dia seu chefe, um grande industrial,

entra na sala de Maria e a pega absorta, com uma revista da

alta sociedade nas mãos. Na página aberta, um anúncio de

uma grande joalheria com a fotografia de um belíssimo

solitário, cujo preço é totalmente impeditivo para Maria.

Talvez, se ela trabalhasse oitenta e sete anos - sem comer,

sem morar e sem vestir! - ela conseguisse pagar a tal joia. O

chefe dá uma “bronquinha” amiga em Maria, por estar

ocupando o tempo de serviço com aquilo e sai. No dia

seguinte, Maria é convidada para jantar com o chefe, que é

solteiro e, reconhecidamente um conquistador. Ela aceita e,

durante o jantar, ele tira uma caixinha preta do bolso: o tal

solitário da tal joalheria da tal revista... o tal dos sonhos de

Maria. Ela, entusiasmada, faz um charminho, mas... aceita diante

da afirmação do patrão de que o anel nada mais é do que um

direito dela, uma espécie de reconhecimento por dez anos de

secretariado fiel e eficiente. Ao deixá-la em casa, a primeira frase

destoante: “Olha Maria, se algum dia você quiser agradecer-me

por esse presente, você sabe onde eu moro...” Nos dias que se

passaram, Maria começou a ouvir coisas estranhas dos colegas a

cada vez que ousava usar o anel no trabalho ou em alguma

reunião da firma. Algumas semanas depois, tentou pedir um

aumento ao chefe e ouviu que até poderia receber o aumento se

o chefe já não tivesse gastado tanto com aquele anel... As

cobranças por uma retribuição sexual de Maria, feitas pelo chefe,

por causa do anel, começaram a intensificar-se. Dois meses se

passaram e Maria já não usava mais o anel. Mais um mês e ela o

devolveu ao chefe, que, é claro, o aceitou de volta, devido ao seu

grande valor na conquista de outras Marias.

O que ocorreu na relação entre Maria e seu anel? Maria

percebeu, no decorrer de todo o processo, que aquilo que ela

mais desejava havia se tornado um objeto contra ela. Maria não

projetou diretamente seu ódio nos colegas, os quais ela conhecia

há anos e com os quais convivia muito bem antes do anel. Maria

também não ousou projetar seu ódio no chefe, embora tenha

ficado chateada com ele muitas vezes. Ela considerava que a

atitude dele era normal para um homem solteiro e endinheirado:

pelo menos era o que a sociedade dizia desse tipo de homem.

Restou a Maria, então, projetar sua raiva na novidade, no objeto

novo que tinha mudado sua vida para pior, porque, a despeito

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de ser um objeto de desejo, era agora usado contra ela. E o

que era pior, o objeto de seu desejo, que antes Maria

considerava um meio de adquirir a felicidade, era agora um

fim em si mesmo: ele estava lá, e contra ela, sem que ela

soubesse o que fazer com ele para ser feliz. Mais do que

isso, Maria, agora, achava-se uma idiota por ter aceitado o

presente do chefe. A culpa, no fundo, para ela, era dela

mesma.

Algo análogo acontece com nossas crianças na

primeira série. Ao entrar na escola primária, nossas

crianças desejam o conhecimento da leitura e da escrita

como Maria desejava seu anel solitário. As crianças fingem

que sabem ler, brincam de professor e aluno, criam

histórias a partir de figuras, são bem falantes, em sua

maioria. No fundo, as crianças acreditam que a leitura e a

escrita serão instrumentos úteis para a consecução de

conquistas que pertencem a um mundo diferente do seu,

portanto misterioso e excitante: “o mundo das pessoas

inteligentes”, como as crianças sempre ouviram seus pais

falarem. O primeiro grande erro que a escola comete é

transformar o meio em fim.

A escola tem, tradicionalmente, transformado a

concepção infantil de leitura e escrita em algo tenebroso,

porque sem objetivos. Aquilo que deveria ser um meio, ou

seja, que deveria ser utilizado para aprender e para

comunicar - porque isso é ler e escrever: ler é poder

compreender um conteúdo codificado por alguém e

escrever é poder codificar um conteúdo que se quer

transmitir - passa a ser encarado como um fim em si mesmo.

Assim, a criança deve aprender a ler para aprender a ler; a

escrever, a criança aprende “porque sim”. No máximo, a escola

ensina que quem sabe ler e escrever é mais inteligente, mas

também não explica muito bem como isso de ser mais inteligente

acontece, nem exatamente o que significa isso. Mas, por si só, a

transformação do meio em um fim ensimesmado não me parece

suficiente para fazer com que as crianças passem a ter aversão

pela leitura e pela escrita. O que me parece mais significativo, é

que a escola usa a leitura e a escrita, já desde os primeiros dias, contra

a criança. Por causa da leitura e da escrita, a criança é

ridicularizada na frente de seus pares, por estes mesmos e pelo

professor. Por não aprender a leitura e a escrita, que agora são o

próprio objeto final, e não mais um meio de alcançar algo novo, a

criança é constantemente ameaçada de reprovação e de todos os

castigos impingidos por causa da reprovação: é a bicicleta que

não se vai mais ganhar, a surra que se vai levar, a vergonha que

se vai passar. Esta tortura estende-se por todo um ano, mas já

inicia nos primeiros dias de aula! Ou seja, aquilo que a criança

mais desejava passa a ser duas coisas, concomitantemente: o que

de novo aconteceu em sua vida e a razão da maioria de seus

males também novos. É natural que, assim como fez nossa amiga

Maria, a criança projete na leitura e na escrita toda sua aversão.

Afinal, seus colegas sofrem a mesma vida junto com ela e a

professora... bem, uma professora deve ser isso mesmo, senão

não estaria lá dando aula. O raciocínio da criança é muito

simples e bastante lógico: depois que essas tais de leitura e

escrita entraram na minha vida, eu só me dano. Então, o jeito é

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tê-las perto o mínimo de tempo possível. E é o que

efetivamente acontece.

No outro lado da história, estão umas poucas

crianças que conseguem dominar rapidamente o sistema de

leitura e de escrita. Essas são, nas entrevistas, aquelas que

dizem que amam ler e escrever. São as bem falantes da

classe e as que, efetivamente, leem mais e escrevem mais.

Estas têm a leitura e a escrita a seu favor: recebem elogios

constantemente, ganham presentes, recebem dose

redobrada de carinho em casa, em função de seu sucesso

escolar, têm uma bicicleta guardada no saco do Papai Noel.

Parece claro que toda vez que um objeto de nosso

desejo é usado contra nós, nós passamos a ter aversão a ele.

O desejo e a aversão são sentimentos limítrofes. Passar de

um a outro é um pequeno passo, como é pequeno o passo

de passar do ódio para o amor e vice-versa. A criança

percebe, desde muito cedo na escola, que a leitura e a

escrita que a professora ensina são poderosas armas

utilizadas contra ela, armas que poderão fazer ruir toda sua

vida infantil, acarretando uma sucessão de humilhações e

de perdas jamais sentidas antes por ela. Por sentir muito

cedo na vida escolar que a leitura e a escrita são usadas

contra elas, as crianças passam, também muito cedo na vida

escolar, a ter aversão por ler e escrever. Isto pode acontecer

já no segundo ou terceiro mês de aulas de alfabetização.

E, por que as crianças não dizem isto claramente?

Mas elas dizem! Dizem através de seus atos inequívocos

com relação à leitura e à escrita. Mais do que isso, elas

dizem em dezenas de depoimentos como “se eu tivesse

aprendido a ler, teria ganhado uma bicicleta... mas não é culpa

da tia, é culpa minha mesmo”, que estamos cansados de ouvir.

Afinal, todos em nossa sociedade reconhecem que a leitura e a

escrita são importantes! Como falar mal de ler e escrever? Parece

impossível para as crianças, como parecia impossível a Maria

afirmar que era infeliz porque agora tinha um solitário de

diamante. A criança, então, quando fala aos outros, passa a

assumir para si mesma uma parte - ou toda - a culpa pelos

problemas que agora tem na vida. Mas, dentro de seu domínio

pessoal, o que faz é “devolver a leitura e a escrita ao seu legítimo

dono”, que é escola. Então ouvimos coisas como “A tia é que lê

bem” ou “a língua da tia é que é bonita” ou ainda “se eu

conseguisse escrever com a letra da tia...”.

A partir desse momento de “devolução”, a criança não se

sente mais responsável pelo aprendizado da leitura e da escrita.

O que era primordial passa a ser secundário, e o fracasso escolar

a seguirá por toda a vida acadêmica. O mesmo fenômeno ocorre

com as demais disciplinas. Toda vez que o aluno sente que a

disciplina é usada contra ele, passa a ter aversão por ela. Por que

tantos odeiam a Matemática, mas quase todos sabem passar um

troco, ou calcular os intervalos da novela, ou contar os pontos do

crochê? Por que razão os alunos têm aversão às provas e demais

avaliações? Porque desde muito têm sido usadas como

instrumentos poderosos na mão dos professores contra os alunos

em sala. Quem nunca ouviu algo como “se vocês não ficarem

quietos eu dou um teste relâmpago!” ou “como vocês

conversaram muito na aula de hoje, vou colocar esse conteúdo

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na prova...”? Do outro lado da moeda estão uns dois ou três

em cada sala que sempre tiram boas notas. Esses poucos

encaram as provas como uma arma em suas próprias mãos.

Eles mesmos usam as provas como armas contra seus

colegas na sala, e a favor de si mesmos ante os pais e

professores. Por isso não temem - e até gostam - das provas

e demais avaliações.

O princípio é muito simples e pode ser assim

resumido: se a meu favor, o desejo; se contra mim, a

aversão. Eis a causa da derrocada do ensino da leitura e da

escrita na escola brasileira.

6. O que podemos fazer?

Embora pense ter chegado bastante perto da causa

real para a aversão que muitas de nossas crianças sentem

pela leitura e pela escrita, não penso poder, ainda,

apresentar uma solução completa para o problema.

Considero que ela passa por uma reformulação muito

complexa da concepção filosófica da maioria de nossos

professores quanto ao ensino da leitura e da escrita. Talvez

mais do que isso, passa pelo trabalho de via inversa que

tenho enfocado. E esse trabalho passa pelos seguintes

passos:

1. devolver à criança a auto-imposição com relação à

leitura e à escrita, através de um processo em que a criança

reconheça a utilidade da leitura e da escrita para sua

manutenção e, quem sabe, até para sua reprodução;

2. devolvida à criança a auto-imposição, deve-se passar ao

desenvolvimento do prazer pela leitura e pela escrita, e isto se

dará demonstrando à criança que espécies de realizações a

criança poderá construir com essas tecnologias;

3. isto feito, certamente as mais profundas concepções da

criança a respeito da escola e das coisas que nela são feitas

estarão sendo afetadas, não superficialmente, mas em suas

raízes, porque em respeito aos princípios naturais que regem

todo o processo.

Assim, creio que podemos isolar algumas atitudes

favoráveis à resolução desse problema, atitudes que atuam no

sentido de reverter a parte ruim da ação escolar sobre a criança.

Vejamo-las.

7. A leitura e a escrita são meios e, não, fins

ensimesmados

A primeira coisa que deve mudar no ensino inicial da

leitura e da escrita é a concepção de que estas são habilidades em

si mesmas. Imaginem uma costureira ensinando outra: “sente

aqui na máquina, passe a linha na agulha, arrume a carretilha,

pise no pedal, ajuste o ponto. Muito bem, agora que você já sabe

mexer na máquina, pode ir embora!” A nós parece muito

estranho que a costureira estivesse ensinando a outra a mexer na

máquina pelo simples fato de que a outra saberia mexer na

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máquina. O objetivo de aprender a mexer na máquina,

obviamente, seria o de poder costurar com ela. Assim são a

leitura e a escrita. Aprendemos a ler, não para dizermos

que dominamos a técnica de ler, mas para sermos capazes

de depreender, da escrita alheia, os conteúdos ali inseridos.

Da mesma forma, aprendemos a escrever, não para

sabermos escrever e só isso, mas para escrevermos coisas

para que outros leiam.

Esta concepção de leitura e escrita como fins se

traduz nas avaliações escolares. O aluno ganha nota se lê

bonito. Aliás, passa ou repete de ano se consegue, ou não,

ler a ficha de leitura para a supervisora no final do ano.

Não interessa muito se ele é capaz de pegar uma revistinha,

ler uma história e contá-la aos amiguinhos de classe, ou se

ele pega o jornal e entende todas as histórias policiais que

lê. O importante é ler com fluência, com voz empostada e,

depois, saber responder a meia dúzia de perguntas idiotas

e idiotizantes.

A escola tem que mudar isso e fazer refletir essa

mudança nas avaliações escolares. Tem-se que ensinar que

a leitura e a escrita são meros meios de conseguirmos fazer

coisas muito maiores e mais importantes do que a leitura e

do que a escrita. Através da leitura, posso estar perto de

meus parentes distantes, conhecer outras partes do mundo

sem estar lá, atualizar-me, proteger-me, salvar minha vida!

Através da escrita, posso fazer um contrato, conseguir um

benefício para mim e para minha comunidade, aproximar-

me de meus parentes e amigos distantes, ensinar aos

outros, mudar concepções de vida, posso fazer o mundo girar!

São coisas que, em si mesmas, são muito maiores e mais

importantes para minha vida do que a leitura e a escrita em si;

estas são apenas os meios.

8. Ler e escrever são coisas diferentes

Outro grande erro perpetuado nas escolas é que ler ajuda

a escrever e escrever ajuda a ler. Já ouvi milhares de vezes que

“quem lê muito, escreve bem”. Isso é pura lorota. Em minha

experiência profissional, encontrei colegas que eram leitores

contumazes, verdadeiros devoradores de livros e que,

simplesmente, não sabiam redigir um requerimento pedindo sua

progressão funcional.

Vigotskii, um psicólogo russo do início deste século,

explicou isso muito claramente. Ele disse, referindo-se ao

aprendizado das habilidades exigidas pela escola:

“A resposta que os psicólogos ou os pedagogos

puramente teóricos costumam dar é que cada aquisição

particular, cada forma específica de desenvolvimento, aumenta

direta e uniformemente as capacidades gerais. O docente deve

pensar e agir na base da teoria de que o espírito é um conjunto de

capacidades - capacidade de observação, atenção, memória,

raciocínio etc. - e que cada melhoramento de qualquer destas

capacidades significa o melhoramento de todas as capacidades em

geral...

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Thorndike opôs-se a esta concepção baseando-se

nas inúmeras pesquisas que demonstram que ela é

insustentável. O desenvolvimento de uma faculdade

particular raramente origina o análogo desenvolvimento

das outras. Um exame mais profundo demonstra que a

especialização das capacidades é maior do que parece à

primeira vista.”7

Em outras palavras, e indo diretamente ao caso da

leitura e da escrita: ler é uma habilidade que exige um

conjunto de habilidades menores e o desenvolvimento de

um grupo de capacidades diferentes do que se exige para

escrever. Ler só se aprende lendo; escrever só se aprende

escrevendo. Não se aprende a escrever lendo, tampouco

isso funciona na direção inversa.

Assim, a escola deve entender que a relação entre a

leitura e a escrita está calcada unicamente nos objetivos de

cada uma dessas habilidades: lê-se porque se escreveu e

escreve-se para que seja lido. Cabe à escola desenvolver os

trabalhos de escrita de forma a que ela cumpra sua

finalidade, ou seja, que se escreva para que a escrita seja

efetivamente lida; da mesma maneira, que se desenvolvam

os trabalhos de leitura de forma a que o aluno possa dar,

como resposta a esta atividade, a confirmação de sua

compreensão do que foi lido. Trabalhar a leitura e a escrita

7 Lev S. VIGOTSKII. “Aprendizagem e Desenvolvimento Intelectual na Idade Escolar”. In.: José CIPOLLA-NETO et alii (orgs.) (1988) Linguagem, Desenvolvimento e Aprendizagem. São Paulo: Cone, pp.107-8.

integradamente, portanto, não significa acreditar que uma

desenvolve a outra; pelo contrário: significa acreditar que o

desenvolvimento independente de cada uma delas permitirá a

consecução, ao final, de seus objetivos inter-relacionais.

9. A cada fase, seu esforço correspondente

A escola perde muito tempo, hoje, tentando ensinar

conceitos gramaticais abstratos a crianças que não têm

maturidade intelectual para assimilá-los. Piaget demonstrou

inequivocamente que as crianças só dão conta intelectualmente

de abstrações lá pelos onze ou doze anos, o que corresponde à

quinta série, mais ou menos, no sistema escolar brasileiro. Isso

implica que, antes dessa fase, conceitos como sujeito, objeto,

tonicidade silábica, concretude de um substantivo, etc. - que são

meras abstrações teóricas - simplesmente não podem ser

assimilados pelas crianças por falta de maturidade intelectual.

Então, o máximo que elas fazem é decorar uns poucos conceitos

(às vezes, errados!) dados pelos professores. E podemos

perguntar: mas, como as crianças aprendiam essas coisas no

tempo do meu avô? É fácil de explicar: primeiramente, naquele

tempo não havia a precocidade do ensino, como há hoje. Uma

criança terminar o primário com catorze anos era considerado

normal. Em segundo lugar, as crianças que estavam em idade

regular, isto é, que eram submetidas ao primário entre sete e dez

anos, também não aprendiam esses conceitos da mesma forma

que as de hoje não aprendem. O que ocorria, apenas, era que,

como a escola era mais convincente na coerção (porque usava

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métodos físicos), as crianças tinham mais interesse pessoal -

até por autopreservação! - em decorar muito bem decorada

cada lição da escola. Essa “eficiência” na reprodução de

conceitos dava a impressão de que as crianças realmente

aprendiam os conceitos abstratos da gramática.

Nas primeiras séries escolares, então, a escola de

hoje deveria estar preocupada em fazer os alunos

dominarem as habilidades de leitura e escrita - e só! Se

conseguisse fazer isso, a escola primária estaria dando uma

grande contribuição ao Brasil. Ensinando as crianças a ler, a

escrever e a amar essas habilidades, porque as dominando

e entendendo suas finalidades práticas como meios de

consecução de objetivos maiores, a escola primária estaria,

enfim, cumprindo seu destino maior.

A cada fase de desenvolvimento cabe um esforço

correspondente. Tentar “queimar fases”, como se faz, por

exemplo, colocando as crianças cedo demais na escola ou

querendo que se alfabetizem precocemente, além de um

agravo à própria natureza da criança, pode ter

consequências devastadoras - já bem conhecidas - na vida

da criança.

10. Contratados para ensinar, não para dizer que

os alunos não sabem

Geralmente, fico constrangido quando tenho que

dizer isso a alguns de meus colegas professores. Mas sinto

que tenho que dizer, e não me posso calar. Parece tão óbvio

quanto dizer que andamos sobre a terra, que respiramos o ar ou

que o céu paira sobre nossas cabeças, mas parece verdade que

muitos professores ainda não entenderam que são pagos para

ensinar e, não, para dizer aos alunos que eles não sabem as

coisas que deveriam saber.

Durante muitos anos, a escola brasileira tem-se limitado a

fazer a segunda coisa. No final do ano, a escola vira-se para o

aluno e diz que ele não sabe o que deveria saber. E a maior prova

que ela dá para o fato de que ela fez sua parte é que há alunos

que aprenderam; logo, a culpa não é dela. Mas, será que esses

alunos que passam de ano aprenderam mesmo? E, ainda, será

que aprenderam o que deviam aprender para suas vidas?

Por que razão a escola teme falar sobre o processo? Por

que ela sempre enfoca o fim? Parece claro: porque o processo de

ensino8 é determinado pelo professor. Simplesmente, não posso

concordar com a centralidade do aluno no processo de ensino! É

óbvio demais que a condução do processo, mesmo em uma

metodologia construtivista, é do professor. Posso, sim, concordar

com a centralidade do discente nas preocupações do docente.

Que o aluno seja a razão de agir do professor, tudo bem. Mas, é

só. Aliás, atribuo a essa concepção equivocada de “aluno-deus”,

desenvolvida e propagada por algumas correntes pedagógicas

8 Particularmente, não gosto da expressão “ensino-aprendizagem”, pelo fato de que é redundante. Se há ensino, é porque houve aprendizagem; se ninguém aprendeu, é porque não houve ensino; se alguém aprendeu, é porque algo ou alguém ensinou. Então, ao falar simplesmente em “ensino”, fala-se obrigatoriamente em aprendizagem.

Page 20: LEITURA E ESCRITA: PRINCÍPIOS NATURAIS DO GOSTO E … e escrita.pdf · homem de letras, ele continua sendo ... neste país na época da palmatória e do milho atrás da porta. Alguma

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modernas, a destruição da imagem e do valor do professor

diante da comunidade. Portanto, falar do processo é falar

do professor. E a escola não gosta de falar do professor.

Mas, é preciso. É preciso lembrar que o professor é

contratado para ensinar, não para dizer que o aluno não

sabe o que deveria saber. E eu não falo aqui do contrato de

trabalho que o professor firma com o estado ou com o dono

da escola: falo do contrato social e moral que existe entre

ele e a comunidade. Quando um pai bem intencionado

coloca seu filho na escola, estabelece um contrato de

confiança com cada professor do estabelecimento. Ao

entregar a formação intelectual da criança ao professor (e,

às vezes, não só a formação intelectual, mas toda a

formação da criança!), esse pai acredita na boa vontade do

professor para com a criança. Mais do que isso: qualquer

cidadão reconhece a importância da classe dos docentes no

desenvolvimento do país. Em muitos lugares do Brasil,

principalmente nos interiores, ser professor ainda é uma

grande honraria. Pena que alguns não se deem conta

disso...

Muito do aprendizado escolar se perde porque os

professores assumem posturas pessoais estranhas à

natureza do processo de ensino. O autoritarismo

absolutista, o desprezo pela espécie humana, a descrença

na possibilidade de o homem mudar e a irresponsabilidade

para com seu trabalho são algumas dessas posturas que

devem ser evitadas na escola como se evita uma doença

contagiosa qualquer. Enquanto houver professores que

atuam na escola de uma forma que fere os princípios naturais do

processo de ensino, haverá crianças que tenham aprendido, na

própria escola, a desprezar a leitura, a escrita, o conhecimento,

enfim.

Julho de 1998.