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Andréa Martinelli | Mariana Muller NO AMOR E NA DOR Histórias de Paixão e Violência

No Amor e Na Dor

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Livro-reportagem sobre violência contra a mulher

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Andréa Martinelli | Mariana Muller

NO AMORE NA DORHistórias de Paixão e Violência

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Andréa Martinelli | Mariana Muller

NO AMORE NA DORHistórias de Paixão e Violência

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Orientação do projetoRenato Essenfelder

FotografiaMariana MullerArquivo Pessoal

TextosAndréa MartinelliMariana Muller

Edição e revisãoMariana GoulartRenato Essenfelder

Projeto gráfico e diagramaçãoMarcelo Campos

Impressãoxxxxxxxxx

Andréa Martinelli | Mariana Muller

NO AMORE NA DORHistórias de Paixão e Violência

Orientação:

Renato Essenfelder

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Gostaríamos de agradecer a Casa Eliane de Grammont; a Márcia Victoriano e Fátima Marques, da Coordena-doria da Mulher; às psicólogas Elodéa Palmira Perdiza e Adriana Mozzambani; à Maria da Penha e a todas as mulheres que lutam por seus direitos em sociedade; às filósofas Elizabeth Badinter e Michelle Pierrot, à Irman-dade dos Alcoólicos Anônimos, e a todos os homens que buscam por si mesmos; à Secretaria de Seguran-ça Pública, à 1º Delegacia dos Direitos da Mulher de São Paulo; à Universidade Presbiteriana Mackenzie; ao professor Renato Essenfelder pela paciência, amizade e profissionalismo; à professora Rosana Schwartz, pela atenção e direção na essência das relações de gênero; à Dora Martinelli, Erminda Cardoso, Márcia Detoni, Lucas Pires, Léo Cardoso, Marcelo Campos, Mariana Goulart, Sabrina Martinelli, Paula Morales, Vitoria Muller, Flávio Muller; e, principalmente a Antônio, Francisca e Helena, três pessoas que confiaram suas histórias de vida a nós; e, a tantas outras que, mesmo sem saber, contribuíram para que este projeto se concretizasse.

AgRAdEciMEntos |

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À Maria Auxiliadora, que insiste em me mostrar a mágica que há nas coisas.

Andréa Martinelli

Dedico este livro a Vitoria Maria, que me ensinou os mais valiosos valores. Minha mãe.

Mariana Muller

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Atroz contradição a da cólera; nasce do amor e mata o amor. Simone de Beauvoir

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“A cada 2 minutos, 5 mulheres espancadas” (O Esta-do de São Paulo, 21/02/2011); “Homem é condenado a 23 anos por matar ex-mulher a cadeiradas em Cuiabá” (O Estado de São Paulo, 27/04/2011); “Homem man-tém ex-mulher refém em Aracaju (SE)” (Folha de São Paulo, 18/04/2011); “Mulher acaba presa depois de dar mordida no lábio do namorado após discussão” (Glo-bo.com, 07/05/2011).

Diariamente, casos de violência são denunciados publicamente na imprensa. A violência contra a mu-lher atinge cerca de 11,5 milhões de brasileiras, segun-do dados recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Em 90% dos casos denunciados, as agressões partem do companheiro sob efeito de al-guma droga1 .

Por conta de espaço e tempo limitados, o trabalho jornalístico limita-se à superficialidade. Os (as) perso-nagens da história tornam-se estereótipos e tem suas histórias de vida reduzidas a estatísticas e a visões de mundo particulares quando retratadas apenas pelas vo-zes de fontes oficiais envolvidas indiretamente no fato.

Eduardo Galeano, famoso sociólogo uruguaio, certa vez, afirmou que “o mundo deve estar feito de histórias. Porque são as histórias que a gente conta, que a gente escuta, recria, multiplica que permitem transformar o passado em presente e também, transformar o distante em próximo em algo possível e visível”.

Este livro-reportagem, diferente da cobertura tra-dicional, buscou dar voz aos protagonistas da história. Personagens como sujeitos e não objetos de sua pró-pria vida; unindo texto e fotografia para retratar sob um

viés amplo e único histórias baseadas em amor, paixão, dor e violência que aparecem todos os dias nos jornais.

no AMoR E nA doR

“Ele ficou com medo de me perder, e me levou cor-rendo para o hospital”; “A mãe dele dizia: ‘bom filho, bom esposo’. Bom filho não é um bom esposo. É mentira!”; “Ela era folgada e eu batia nela. Eu pensava assim”.

Ser fiel, amar e respeitar, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, por toda a vida, são quebrados em pe-quenos pedaços, para dar lugar a histórias baseadas em violência. O que deveria ser amor se transforma em dor e destoa, a princípio, dos votos matrimoniais.

Francisca convive, após o término de um casamen-to problemático, com trinta e oito marcas de tiros na parede da sala de sua casa que não que apagar. Marcas de vinte e nove anos que não se apagam da memória e nem de seus olhos. Ela, diferente de Helena, conseguiu vencer alguns traumas.

Era linda, apaixonante. Qualquer um que ela esco-lhesse estaria aos seus pés. Mas, por ironia do destino, Helena optou por aquele que, mais tarde, sem que pudesse premeditar, usaria uma arma de fogo para intimidá-la com a desculpa de que só poderia ser sua, e de mais ninguém.

Entre a militância a favor dos negros, a bebida, e um casamento problemático Antônio largou sua paixão pelo esporte e os estudos. Aprendeu a descontar suas frustra-ções no outro. Dormia bêbado, acordava sóbrio e ia ler Maquiavel. Sob efeito da cachaça, ele culpava a esposa por todos os seus erros.

1 Em 2008, o Cebrid (Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas) da Unifesp, realizou uma pesquisa mostrando que na maioria das agressões o álcool está presente. Cerca de 90% dos casos de violência são provocados quando o companheiro está sob o efeito da droga.

Eu vos dEclARo hoMEM E MulhER |

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pAixão E violênciA |

Francisca: 29 anos de casamento, 38 tiros na parede | 18

Antônio: o casamento, a cachaça e Maquiavel | 38

Helena: paixão desmedida por um homem | 54

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Francisca, 65 anos

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mãe dele dizia: ‘bom filho, bom esposo’. Bom filho não é um bom esposo. É mentira.” Definitivamente,

Francisca1 pôde perceber que o ponto de vista de uma pessoa, nem sempre é tido como uma verdade abso-luta. Francisca da Silva é natural de Santana, cidade localizada no oeste da Bahia. Foi criada por mãe dona-de-casa e pai agricultor. Com ela, o número de filhos chegou a onze. Um número considerado grande para os padrões de hoje, porém, na época, natural.

O primeiro contato com Francisca foi feito através de uma ligação. Após meia dúzia de palavras, ela logo disse: “Filha, estou super atrasada. Preciso passar no banco antes de voltar para o trabalho. Você pode me ligar mais tarde?” Devido à vida corrida que leva, nem sempre é fácil de achar um bom momento para uma conversa telefônica calma.

Após a primeira ligação, ficamos cerca de dois a três dias sem conseguir falar com ela. O celular caía fre-quentemente na caixa postal, independente do horário. Devido a um golpe de sorte, finalmente Francisca nos atendeu. “Me diz, quem passou meu contato para vo-cês?”, perguntou um pouco desconfiada. Após uma série de explicações, finalmente ela cedeu. “Eu posso dar um depoimento para vocês. Pode ser aqui em casa?”

A voz de Francisca é muito aguda, e ela fala muito alto também. Às vezes de tão rápida que é, acaba en-rolando as palavras. Fisicamente, percebe-se que ela está muito bem devido a todas as situações pelas quais passou. De estatura baixa e pouco peso, a mulher do telefone parece gigante quando vista pessoalmente. Os olhos marcantes são a primeira coisa que se pode repa-

rar. Além da bela cor azul, o olhar é muito intenso e trás junto dele um misto de sentimentos. Vê-se superação e dor ao mesmo tempo. O nariz entrega a descendência árabe que carrega em seu sangue. As mãos enrugadas e cansadas revelam um passado difícil.

Francisca mora em uma casa não muito grande no quilômetro 15 da rodovia Raposo Tavares. É um local muito simples. Os detalhes expostos, como as reformas interrompidas, relatam que o dinheiro ganho é gasto de forma contida. Em dias tranquilos, o trajeto de ônibus dura algo em torno de 40 a 50 minutos. Tanto de ida, como de volta. Quando o trânsito está muito carregado, às vezes, ela leva cerca de duas horas para chegar. Insis-te em dizer que não vê o tempo passar, afinal, como ela mesma conta, “Já virou rotina! Nem percebo direito. Só é ruim quando não tem lugar para sentar.”

A rua onde mora é bem tranquila, a sua casa fica perto de uma praça e de um supermercado. A região é silenciosa e por lá passam poucos carros. No meio da rua, há uma bandeira do Brasil pintada no asfalto. Percebe-se que em época de Copa do Mundo a comu-nidade se organiza para enfeitar o local.

A garagem de Francisca possui um portão de grades brancas grandes e o chão é todo feito de azulejo, tornan-do o espaço bem fresco. Para entrar na casa, é necessário subir uma escada. Quando se chega ao andar superior, logo se vê que o espaço é muito bom. A casa em si não é tão grande, mas o local é bem arejado.

A porta de serviço que dá para a cozinha é utilizada como entrada principal. Ali se vê um fogão, uma geladei-ra nova, uma mesa com três lugares e alguns armários.

francisca29 anos de casamento, 38 tiros na parede

Nos azulejos da parede, próximo a mesa, existem várias marcas pretas bem pequenas e sutis. “Isso parece sujei-ra, mas não é. É tudo marca de tiro. A bala batia da parede e voltava. Não troquei porque não vi necessidade”, expli-ca. Ainda existem resquícios de uma das brigas que mais traumatizou Francisca. As balas do revólver que foram compradas para acertar o seu corpo ficaram marcadas na parede para lembrá-la do passado.

A casa possui três cômodos, um banheiro e uma cozi-nha. O quarto onde fica a cama de casal e o guarda-roupa tem uma janela que dá para a laje. “Eu consegui cons-truir esse lugar pra tomar um solzinho”, conta. A sala tem uma televisão e dois sofás. O maior deles é coberto por uma roupa de cama, enquanto o outro fica abarrotado de livros e materiais que ela usa na faculdade.

“A

“Eu não consigo dormir no escuro. Preciso de algum barulho”, relata Francisca. Devido aos maus tratos que sofreu durante anos, o silêncio da noite é algo que a in-comoda demais. O sofá de três lugares virou a sua cama. “Depois que ele tentou me matar naquele quarto, em cima da cama de casal, com os panos de chão, eu nunca mais dormi em uma cama. Gosto desse sofá”, explica.

A recordação de que um dia passou por uma ten-tativa de assassinato na cama em que dormia, hoje a impossibilita de deitar em uma. Encontrou no sofá todo o conforto que precisava para descansar seu corpo. Ao mesmo tempo em que se sente mais segura, daquele móvel ela não tem pensamentos negativos.

O banheiro é bem simples. Não tem muita coisa, só o essencial. Logo ao lado, o quarto que deveria ser um dormitório virou uma espécie de depósito, ou então, ex-ateliê de costura. Francisca guarda todas as máquinas, tesouras, lãs e agulhas naquele lugar. Percebe-se que ela

não as manuseia mais devido ao pó do lugar, e guarda ali para não ocupar espaço.

“Venha ver a minha lavanderia! Eu acabei de fazer ela!”, chama Francisca, eufórica. No fundo da casa, ela abre uma porta branca e mostra o novo espaço. Têm duas máquinas de lavar roupa. “Essa é nova, chegou há poucos dias. Preciso achar alguém que queria ficar com a velha”, explica. O teto ainda está em fase de finaliza-ção. “Falta o gesso sabe? Não repara, não”, pede.

Pela casa, vê-se que não existem fotos espalhadas pelas estantes e pelas paredes. “Guardei tudo em uma caixa. Não sei onde está. Preciso procurar”, explica. De-pois de todas as agressões pelas quais passou durante o casamento, enquanto fazia terapia, Francisca decidiu que precisava apagar de alguma forma todas as más

lembranças que tomavam conta de sua cabeça. Além das frequentes reformas, as fotos também perderam o espaço na casa. Todo tipo de recordação não é bem vista.

“Todo décimo terceiro eu deixo destinado para a minha casa”, explica. A única coisa que manteve intac-ta foi a cama. “Esse foi a único móvel que eu preservei. Não consigo me desfazer dela.” A cada ano que passa ela cuida de alguma parte do seu espaço. Ela compra novos móveis, novos aparelhos domésticos, muda a pintura, entre outras coisas.

A infância que teve foi típica de uma criança vinda de uma cidade do interior nordestino, não muito fácil, também não muito difícil. Ao conversar com Francisca, pode-se perceber que a criação dada pelos pais foi mui-to simples, tornando-a ao longo dos anos uma pessoa muito humilde. Quando recorda dos familiares, é no-tável o carinho em sua voz. O amor pelo pai, a gratidão pela educação que recebeu.1 Foram usados nomes fictícios para preservar a identidade dos personagens envolvidos na história

““Elas me chamavam de preta. Apontavam minhas diferenças.

Eu gosto da minha cor, acho ela bem bonita.

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Francisca era muito próxima de suas irmãs. Devi-do à miscigenação que tinha em sua família, uns eram bem diferentes dos outros. Alguns tinham nascido de olhos claros, pele escura. Enquanto outros possuíam olhos escuros e uma tonalidade de pele mais clara. “Eu sofri preconceito dentro da minha própria casa”, recorda Francisca, que dizia não saber como se chama-va aquela atitude quando era pequena. As irmãs eram bem brancas, enquanto a sua pele era mais escura. Não chegava a ser negra, mas podia-se notar a diferença quando comparada às outras. “Elas me chamavam de preta. Apontavam minhas diferenças. Eu gosto da mi-nha cor, acho ela bem bonita”, exclama orgulhosa do tom que carrega em seu corpo.

Todos foram muito bem educados, porém foram poucos os que tiveram a sorte de estudar. “Eu fiz um supletivo quando eu cheguei em São Paulo para tirar o diploma do fundamental. Na Bahia, eu parei de estudar quando era menina. Ficava em casa ajudando minha mãe”, conta. Ela explica que no sertão nordestino nem todos conseguiam finalizar os estudos. Os irmãos mais velhos ajudavam na lavoura, e as mulheres da família faziam o que podiam dentro de casa. “Todos nós ti-vemos estudos até certo período. Depois disso, foram poucos os que tiraram diploma”, diz.

Com dezessete anos, ela teve o seu casamento ar-ranjado e planejado pela família. Escolher não estava entre as suas opções. “Ele já era meu parente. Meio distante, mas era. Eu morava na Bahia e ele aqui em São Paulo. A mãe dele quando me encontrava sempre falava assim: ‘Quando ele vier passear aqui, você vai se casar com ele! Eu quero que ele se case com uma moça como você’”. Inocente, consentiu com a ordem e decidiu que aquele seria o seu destino. “Queira ou não queira, tem que casar porque os parentes que-rem”, ela pensava. Não tardou e José ficou sabendo do que se passava na sua cidade natal. Voltou para a Bahia a fim de tornar Francisca, uma jovem menina, em sua esposa.

“Nós não nos conhecíamos direito, eu era menina, jovem. Ele chegou todo arrumado, se engraçou, e aí aconteceu.” Tempo insuficiente para conhecer o par-ceiro e decidir se aquela é a pessoa ideal para passar o resto da vida. “Namorei um mês antes do casamento. Foi uma loucura. Eu tinha dezessete anos! Era nova e não tinha experiência nenhuma. Ele também era jo-vem, tinha vinte três anos, exatamente seis a mais que eu”, enfatiza Francisca.

No começo do casamento, José já demonstrava que era um homem violento. Francisca confessa que: “nesse meio tempo de casamento, já existia violência, mas eu não sabia que era.” Logo depois do matrimônio consumado, ela não tardou a juntar os seus pertences e acompanhou o marido de volta a São Paulo. “Vie-

menino. As agressões pararam. Durante nove meses ela teve sossego. O máximo que acontecia era um ou outro xingamento. José não encostou o dedo na es-posa até ela parir o segundo filho do casal. Em 1964, nasceu Luiz.

Francisca pôde perceber que não estava sozinha quando conversava com algumas mulheres da região. Ela se recorda: “Muitas mulheres falavam assim: ‘meu ma-rido jogou comida na minha cara, mas não me bateu.’” A comida jogada na cara já é uma forma de violência, mes-mo quando não associada ao enfrentamento físico. Ela mal podia contar, e mesmo se lembrar de quantas vezes já havia passado por essa humilhação. “Quantas vezes ele já cuspiu a comida na minha cara? Isso é algo que eu não consigo esquecer”, lamenta.

A primeira grande briga em que houve grande violên-cia física, assombra Francisca até hoje. “Ele trabalhava de domingo, e um dia eu resolvi fazer uma boa refeição para quando ele chegasse em casa. Enfeitei uma mesa enorme para ele comer. Fiz doce de abóbora, frango, macarrão, fiz tudo. Não tardou e ele chegou em casa transtornado. Ele começou a discutir comigo e pegou o revólver que ele guardava no quarto. Fui ameaçada de morte. Ele foi toma-do por uma agressividade tão grande, que todas as tigelas que eu tinha posto em cima da mesa foram quebradas na minha cabeça. A cozinha ficou destruída, com comida para todos os lados. Até hoje eu não consigo entender o motivo daquela briga”, conta Francisca.

“Quando ele pegou aquela arma, eu a vi disparar na minha frente”, recorda. Os filhos que eram bem peque-nos, tinham cinco e seis anos respectivamente, presen-ciaram toda aquela trágica e assustadora situação. Sem entenderem nada, eles viram o pai chegando alucinado dentro de casa, agredindo a esposa, pegando um revól-ver e ameaçando-a de morte. “Ele me jogou no chão e apontou a arma para mim. De repente eu vi meus filhos se jogando em cima de mim”, relata. O medo tomou conta de Francisca, porque os filhos agora estavam também na mira.

um rapaz exemplar e a mulher que se casasse com ele podia ser considerada uma pessoa de sorte. A única coisa que ela já havia escutado antes de se casar em relação a esse tipo de atitude eram os problemas de seu cunhado Joaquim, irmão de José. “Todos nós já sabíamos do histórico do irmão dele. Sabíamos que ele batia na esposa. Mas o José não! Ele era tão bom com as pessoas, que a própria mãe fazia questão de dizer o quão especial ele era”, diz.

Logo no começo do casamento engravidou do seu primeiro filho. Durante o período da gravidez, José não encostou nenhum dedo se quer na esposa. “Acho que ele tinha medo de acontecer alguma coisa com o bebê”, conta. Quando soube que estava grávida, pensou que talvez ele fosse mudar. A família estava aumentando, aquela criança iria trazer alegria a ambos. Foi só dar a luz a Gabriela, que tudo voltou a ser o que era antes.

Francisca que ainda não possuía a malícia e astúcia de uma mulher adulta, sonhava que um dia seu marido fosse mudar. “Eu pensava assim, vamos construir uma casa e o casamento vai se ajeitar. Não, foi pior. Eu só não apanhei grávida”, conta. Todo e qualquer motivo passou a ser desculpa para ferir a esposa. Gritos, xingamentos e tapas passaram a fazer parte da rotina de Francisca. O que não era normal virou comum em pouco de tempo de casamento.

A tolerância com o passar dos meses ficou menor, a violência aumentou e Francisca não conseguia se des-vencilhar desse pesadelo. “A violência foi crescendo cada vez mais. Eu não tinha como sair dali. Quando al-guém sofre esse tipo de problema, a cabeça parece que fica bloqueada”, explica. O medo não era só com ela, e sim com os filhos também. Se um homem daqueles po-dia fazer tantas maldades com a própria mulher que ele jurou amar e proteger o resto de sua vida, será que os filhos estariam em perigo também?

Um ano depois de ter dado a luz à sua filha, Ga-briela, engravidou novamente. Além da menina que lhe fazia companhia, agora estava chegando à casa um

“ nós não nos conhecíamos

direito, eu era menina, jovem. Ele chegou todo arrumado, se engraçou,

e aí aconteceu.”

mos para São Paulo, e com o dinheiro que tínhamos mudamos para um bairro ‘mixuruca’ lá na Zona Les-te. Era bairro novo, não tinha nada, nem asfaltado era. Compramos um terreno e construímos uma casa para morar.” São Miguel Paulista, na época, era um bairro industrial com uma população crescente de nordesti-nos, especificamente baianos e pernambucanos.

Até o momento em que se casou, ela nunca havia convivido com problemas dessa natureza. Seu pai ja-mais fora capaz de encostar a mão em sua mãe para machucá-la. Ela não entendia como aquilo podia acontecer. Casou-se esperando uma vida descente e feliz. A reputação que José tinha em Santana era óti-ma. Bom filho, bom amigo, bom cunhado. Aquele era

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A comida que havia sido preparada com carinho foi jogada no lixo. As tigelas de que Francisca tinha tanto orgulho foram estilhaçadas em poucos minutos. E ela estava cada vez mais destruída como mulher, e prin-cipalmente, como ser humano. “Aquele domingo foi muito terrível. Foi um dia chocante. Eu via a hora da-quele revólver disparar e acertar uma das crianças.”

Naquela época, a renda de casa era proveniente principalmente do salário de José, que era emprega-do da prefeitura, impossibilitando Francisca de fazer diversas coisas de interesse próprio. Ela passava o dia organizando a casa e cuidando dos filhos para agradar o marido e se proteger de uma possível agressão. “Qual-quer coisa era motivo, uma comida que ficou salgada, um móvel com pó, uma camisa mal passada. Aí ele gritava, xingava, batia”, esclarece. Ela diz que perdeu a conta de quantas camisas foram rasgadas e jogadas em sua face por causa de um colarinho marcado.

Tudo o que José fazia deixavam além das marcas fí-sicas, marcas psicológicas. A vizinhança não conseguia enxergar naquele homem uma pessoa tão cruel. A cul-pada disso tudo, era Francisca. Todos pensavam que se ela apanhou foi porque ela mereceu. José demonstrava ser uma ótima pessoa fora de casa. Todos os vizinhos o viam com olhos diferentes dos filhos e da esposa. “Eu tinha uma amiga que dizia não acreditar em mim. Que aquele homem era muito bom para me fazer tanto mal como eu dizia”, conta. O pensamento machista com o qual ela convivia diariamente, a fez se sentir a própria culpada pelos problemas que rodeavam o seu cotidiano.

Sair na rua era um grande problema, pois ela sabia que seria alvo de comentários maldosos a seu respeito. “Você vê como era a mulher de antigamente: quem tinha que ter vergonha não era eu, era ele. Mas eu tinha, os homens davam risada de mim, eles achavam bonito”, explica. “Eu era vista como culpada. Apanhava porque merecia, era isso que passava pela cabeça dos meus vizinhos. Eu não prestava, não merecia um homem tão bom, não era boa esposa”, recorda de como era lembrada na vizinhança.

Depois da partida dos dois filhos mais velhos, Fran-cisca ficou sozinha em casa com José e o caçula, Leonar-do. A vida passou a ser atormentada novamente e com mais frequência pela violência praticada dentro de casa. “Os meninos se casaram e ele aproveitou para recome-çar com a violência novamente. O meu pequeno presen-ciava todas as brigas”, recorda. Nessa época, Francisca já estava mais forte e ao menos agora pensava em se de-fender, ainda que desistisse de fazê-lo. “Eu saía correndo pra chamar a polícia quando ele começava a me bater, mas aí eu chegava no portão e algo me brecava. Eu não conseguia passar pro lado de fora. Eu pensava que ele ia mudar”, explica. Ela ainda sentia que ele poderia mudar e tornar a vida melhor. Passava por sua cabeça que ele ia perceber sozinho que aquilo tudo não valia a pena.

Como já tinha o ensino fundamental completo, esta-va na hora de tirar o diploma do ensino médio. Francisca que já trabalhava na Prefeitura desde a época em que morava em São Miguel, sabia que para boas mudanças acontecerem, ela tinha que se formar. Ela se matriculou em um supletivo perto de sua casa e passou a estudar à noite, depois do trabalho.

José não gostava de ver sua mulher estudando à noi-te, então utilizava dos medos do próprio filho para fazer a mãe desistir do que era importante para ela: “Ele abria as janelas, saía de casa e deixava o menino sozinho. Ele ficava com medo e chorava alto. Os vizinhos vinham re-clamar dizendo que não conseguiam dormir por causa do barulho”, explica Francisca, que ganhou fama de mãe

Buscando novas alternativas, Francisca decidiu que deveria terminar os estudos – parados desde sua mudança para São Paulo. Matriculou-se em um supletivo perto de sua casa para tirar o diploma do ensino fundamental. A escola em que estudava era tão precária que ela tinha que levar o seu próprio material, incluindo cadeira e apoio para escrever. “Sorte que eu morava bem perto. Assim não ficava pesado para mim”, explica. Esse período que deveria ser lembrado como uma fase boa de seu aprendiza-do, não foi nem um pouco fácil. “Como eu captei a mensagem da escola, eu realmente não sei. Quando ele cismava que eu não deveria ir, eu faltava. Às vezes, ele ia me buscar com um revólver escondido no casa-co”, recorda Francisca.

Devido a tantas agressões físicas e psicológicas, Francisca passou a ficar doente com mais frequência. As crises asmáticas tornaram-se parte do seu cotidiano, e ela mesma conclui que “ficava mais doente do que sa-dia. Muita coisa pra fazer, filho pra tomar conta e ainda aguentar o marido.”

Francisca engravidou pela terceira vez aos 34 anos. Mais um menino estava chegando ao mundo. A casa, que antes supria a necessidade do casal e dos filhos, deixou de ser boa e passou a ficar pequena demais. A família passou a procurar uma nova moradia para um novo começo. Em São Miguel não havia luz elétrica, a água era de poço, e a localização não era das melhores. O dinheiro era pouco, mas dava para conseguir um lu-gar melhor. Depois de muito procurarem, encontraram uma casa no Butantã. A família mudou-se e a esperança de alguma coisa boa acontecer, ressurgiu.

Mas o tempo passou, e os hábitos violentos de José continuaram. Os filhos já não aguentavam a relação do-entia dos pais e logo que puderam, deram um jeito de sair de casa. A menina se casou cedo, aos 19 anos, e foi morar em Sorocaba. O filho do meio quando percebeu que tinha chances de sair daquele ambiente foi embora. Alistou-se no Exército, arrumou as malas, e partiu.

irresponsável, capaz de abandonar o filho sozinho em casa durante a noite.

“Como eu tinha frequentes ataques de asma, eu passei a procurar ajuda médica mais vezes. Conheci o Dr. César, um pneumologista muito bom”, recorda. Os dois, devido à procura frequente da paciente, acabaram criando um vínculo de amizade. Não foi preciso muito tempo para o médico saber o que se passava na vida de sua paciente. As marcas aparentes no corpo eram a prova viva de que o casamento dela era na realidade, uma tortura. “Ele fala-va assim: ‘Francisca, você não pode ter mais filhos! Não é bom para uma criança viver em um ambiente desses!”, diz, “Quando ele sugeriu que eu fizesse uma laqueadura, eu nem sabia o que era isso.”

Com a ajuda do doutor, Francisca marcou uma cirur-gia escondida do marido. Ela sabia que a melhor decisão a ser tomada era “amarrar” as trompas o mais rápido possí-vel. Uma semana depois daquela visita ao consultório, ela já tinha horário e data marcada para a operação. “Fiz tudo escondido e super rápido. Eu não podia mais ter filhos com um homem daqueles. Tinha que dar um basta. Com 38 anos, eu decidi colocar um ponto final”, conta.

Não demorou a tardar, e após alguns meses de convi-vência, os vizinhos passaram a conhecer um pouco mais a história de Francisca. Os gritos, os barulhos dos objetos sendo estilhaçados passaram a fazer parte da rotina da rua. Desistiu de procurar a família quando escutou de um parente que casa e comida já era suficiente, brigas faziam parte de uma crise passageira. ”Nunca tive amigos, ele não permitia”, diz lembrando a sua solidão durante anos. Ciumento e possessivo, José se irritava quando Francisca ficava conversando durante muito tempo com alguma vizinha. Para proibir esse tipo de contato, trancava a pró-pria mulher dentro de casa. “Ele me prendia para eu não conversar com ninguém. Eu não podia sair na rua, ir ao bar, ao supermercado. Ele trancava o portão e se apode-rava das chaves”, recorda Francisca. Na época, ela não entendia direito o que se passava, mas hoje afirma que sofria cárcere privado.

““ Ficava mais doente do

que sadia. Muita coisa pra fazer, filho pra

tomar conta e ainda aguentar o marido.

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Frequentemente, ele entrava em casa dizendo o quanto a mulher não prestava. “Ele olhava na minha cara e começava a me xingar. Assim, sem motivo nenhum”, diz. “Não demorava muito e ele me ameaçava. Dizia que ia arrancar a roupa toda do meu corpo, me dar uma surra e depois me jogar no meio da rua”, completa. Francisca nunca soube ao certo quando o marido estava muito bê-bado. “Nunca o vi caído, falando muito mole. Ele bebia e disfarçava. Colocava um cravinho na boca para tirar o cheiro”, recorda. O marido sempre estava com a espe-ciaria na boca, no entanto, ela nunca descobriu quais as quantidades que ele bebia quando estava fora de casa.

“Em 1992 nós nos separamos. Ele foi morar no inte-rior e eu fiquei com a casa no Butantã”, conta. A situação ficou tão insustentável que Francisca, pela primeira vez em anos, assumia a sua posição como mulher. “Eu pedi o divórcio”, relembra. Para afrontar a esposa e fazê-la so-frer, José carregou junto com suas coisas o filho caçula

do casal. “Ele fez isso para me atingir. O meu menino era meu maior bem”, diz.

Desesperada, Francisca ligou para o seu advogado e pediu ajuda, ela não queria ficar longe do filho. “Meu ad-vogado disse assim: ‘Dona Francisca, não se preocupe. Uma hora ou outra ele vai saber que o pai não presta e vai voltar para casa’”, relembra. Até o menino cair em si e descobrir que o pai não era um bom sujeito, muitos fatos marcantes aconteceriam. Com medo do que pudesse acontecer, ela nunca pediu a guarda da criança.

Quando finalmente pensou que ia ter um pouco de paz, ela enganou-se. José não era o tipo de homem que desistia fácil, ele estava disposto a arrancar tudo que pensava ser seu. Ele queria o filho, a casa, o dinheiro e a vida de Francisca.

“Ele me atormentava. Todos os dias, às sete horas da manhã o telefone de casa tocava. Ele comprava um monte de fichas telefônicas e colocava um monte de homens para falar comigo”, conta. Certo de que tinha outro em seu lugar, José estava disposto a descobrir quem era. “Ficavam me perguntando se eu conhecia alguns homens. Eles chutavam alguns nomes para ver se eu falava de alguém”, ri debochadamente.

Apesar da separação de corpos, os papéis ainda não estavam assinados, portanto, perante a lei, eles ainda eram casados. Logo no começo do mês, o marido já li-gava atrás de seu sustento: “Ele me ligava e dizia assim: ‘Põe o dinheiro na minha conta’”, fala enquanto coloca as mãos na cabeça. “Eu tinha tanto medo, que eu não pensava o contrário. Logo que eu recebia, eu deposita-va na conta dele”, completa.

A violência já tinha virado uma rotina na vida de Francisca. Ficou casada por vinte seis anos e meio, e du-

rante todo esse tempo conviveu com essa situação. Não era porque ela estava separada fisicamente do marido que ia deixar de ser. O filho, que na época tinha treze anos, estava morando com o pai aposentado em outra cidade. O caminho estava livre para José. Não tinha nin-guém dentro daquela casa que pudesse impedi-lo de cometer alguma atrocidade. Ela estava ciente disso, mas imaginava que ele não fosse chegar a tanto. “Eu nunca imaginei passar o que passei naquele ano. Não tive sos-sego um único dia sequer. Eu vivi um ano da minha vida com medo, doente, sem dormir, esperando ele aparecer e me matar”, recorda.

Francisca sentia tanto medo de ser surpreendida por José, que na hora que ela levantava para trabalhar, nem café ela tomava. Queria sair o mais rápido possível

de casa. “Eu ia trabalhar bem cedinho. Tinha uma cole-ga que trabalhava em outra repartição, e como eu não preparava café de manhã eu deixava para tomar com ela”, conta. Um dia, enquanto ela se dirigia à copa da repartição em que a colega trabalhava, avistou o ma-rido de longe. Ele que já estava aposentado na época da separação, tinha tempo para poder vigiar a esposa.

“Quando eu vi ele (sic) por ali, já escutei um monte de xingamentos. Ele gritava se eu estava atrás de algum macho”, relembra. A amiga de Francisca ficou assusta-da e logo disse para ela tomar cuidado porque poderia ser morta ali mesmo. No entanto, como tinha muita gente trabalhando naquele local ela sabia que ele não se atreveria a machucá-la em público. Passado o café da manhã, Francisca se dirigiu à sua repartição. Estava na hora do trabalho. Ela resolveu enfrentar o medo.

Como de costume, ela foi em direção à porta dos fundos e entrou direto na cozinha. Foi surpreendida por um puxão de cabelo. “Ele me agarrou os cabelos, só que eu consegui escapar e saí correndo de lá. Fui pra fora. O problema, é que tinha sido a primeira a chegar. Não tinha ninguém para me ajudar, e as pes-soas da rua não fizeram nada”, recorda.

Instintivamente, ela pensou em ligar para o 190 e pedir ajuda à polícia. Voltou correndo para a reparti-ção e pegou o telefone. José chegou logo em seguida e lhe acertou um murro no olho. “Aquele dia eu sofri muito. Aquele soco foi muito forte. Mas eu sabia que se eu não fizesse alguma coisa, ele ia me matar. Levan-tei e peguei o telefone de novo. Ele saiu correndo logo em seguida”, conta Francisca sobre a agressão que lhe rendeu um olho ruim até hoje.

“Ele foi direto para a casa do meu filho dizer que não conseguia conversar comigo porque eu era muito difícil, muito ignorante. A sorte é que a minha nora é muito inteligente e na hora ela viu que tinha algo de errado na história”, explica Francisca. Sabendo que algo estava errado, a mulher de seu filho ligou para o serviço da sogra em busca de mais informações. Em

““dizia que ia arrancar a roupa toda do meu corpo,

me dar uma surra e depois me jogar no meio da rua.

um telefonema ela ficou sabendo que a polícia tinha levado Francisca para o hospital porque a briga tinha sido violenta.

A chefe de Francisca, logo na saída do pronto-so-corro disse que ela deveria fazer um exame de corpo de delito. Ela foi encaminhada ao Instituto Médico Legal localizado no Jaguaré. Seu filho do meio, que ao sair do Exército conheceu uma mulher e casou-se, foi buscá-la para passar a noite em sua casa. “Eu não consegui dormir de tanta dor. Eu gritei a noite inteira”, relembra ao contar os momentos de dor. “Eu quase fi-quei cega, foi por muito pouco. Meu olho dói até hoje, e depois da operação que eu fiz, eu descobri que foi por causa daquele soco”, completa.

“Na hora eu não conseguia lembrar que eu tinha plano de saúde. Eu ia no hospital público mesmo”, diz. Além do esquecimento, Francisca tinha muita vergo-nha de ser atendida por um médico conhecido e ter de dizer o motivo de suas marcas. “Olha como eu ti-nha uma cabeça pequena. Eu tinha vergonha de dizer o que estava acontecendo comigo”, confessa. A marca ficou em seu rosto durante cinco meses. Mesmo de-pois, nunca mais voltou a ser igual.

“Ele tinha uma birra com essa casa muito grande. Apesar de ter sido eu quem pagou tudo, ele insistia que o espaço era dele”, conta. José queria a casa e faria qualquer coisa para tê-la de volta. “Ela estava jogada às traças. Não tinha absolutamente nada. A única coi-sa que eu podia chamar de minha, ele também queria tomar”, recorda. Em pouco tempo, as invasões come-çaram a acontecer.

Durante uma noite da semana, quando tudo pare-cia calmo, José voltou a São Paulo com o intuito de dar um “susto” em Francisca. Sorrateiramente, ele conse-guiu entrar em casa e surpreendeu a esposa na sala. “Quando eu vi aquele homem na sala, eu pensei que minha hora tinha chegado”, conta. Com um plano ar-quitetado cuidadosamente, ele apontou um revólver para ela, dizendo para não fazer nenhum barulho.

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“Ele pegou uma linha, dessas de pesca, e amarou na maçaneta e depois na janela. Não tinha como eu escapar”, diz. Junto do revólver, ele carregava consigo uma sacola cheia de ferramentas para destruir a casa, os móveis e todos os aparelhos que existiam dentro dela. Como José sabia que a esposa costurava muito bem e utilizava disso como uma fonte de renda, uma das ideias era destruir cada máquina de costura.

“Durante horas ele ficou batendo o revólver no meu peito me chamando de tudo quanto era nome. Vaga-bunda, biscate, prostituta. Ele queria saber quem era o macho que estava comigo”, recorda. Quando o relógio marcou quatro horas da manhã, ele pegou alguns pa-nos de chão, jogou a esposa de costas na cama, subiu em cima dela e começou a sufocá-la repetidamente. “Ele gritava assim: ‘Essa noite você vai morrer, sua filha de puta. Hoje você não me escapa’”, conta. Na época, Francisca estava arrasada fisicamente. Ela não tinha forças para se defender.

Depois de um tempo torturando a esposa, ele ficou com sono e decidiu dormir um pouco. Deitou na cama que antes pertencia ao caçula, abraçou o revólver e disse que se Francisca gritasse ela estava morta. “Eu fiquei imóvel na cama. Minha asma já estava atacada. Eu sabia que se ousasse levantar, aquele revólver ia disparar”, relembra.

José não dormiu. Em alguns minutos ele se levantou e recomeçou. Ele queria matar a mulher de forma len-ta e dolorosa. “Foi naquele dia que eu soube que Deus existia”, confessa. “Ele subiu em cima de mim e uma hora eu consegui gritar em voz alta: ‘Jesus, me salva! Esse homem vai me matar!’”, completa. Foi nesse mo-mento que ele parou. “A mão dele começou a formigar. De repente, ele disse que não estava sentindo o braço. Ele levantou, pegou a sacola e foi embora”, suspira ao relatar que quase perdeu a vida naquela noite. A casa ao menos, não foi destruída.

Depois daquela horrível situação, Francisca tinha plena consciência de que deveria fazer alguma coi-

sa o mais rápido possível. “Eu levantei bem cedinho e fui à delegacia. Depois de registrar sete boletins de ocorrência, aquela delegada resolveu escutar a minha história, diferente dos outros delegados”, diz. Preocu-pada com a vida daquela cidadã, a delegada ordenou que ela trocasse todas as fechaduras de casa. Aquela era a primeira medida a ser tomada.

Aquele não tinha sido o primeiro boletim de ocor-rência que Francisca tinha registrado. Muitos outros já haviam sido feitos, no entanto, nenhum tinha dado re-sultado até o sétimo. “Eu não sabia que depois de fazer o B.O, tinha que dar andamento no processo. Por isso que nunca acontecia nada”, diz. Foi rejeitada nas dele-gacias normais, “eles diziam que ali não era lugar para fazer aquele tipo de ação. Eu tinha que procurar um lu-gar específico.” Sem preparação, os delegados da época não tinham condições de ajudar e amparar as vítimas de violência doméstica. Francisca teve que passar por várias pessoas até ser ouvida por uma.

Ao sair da delegacia, Francisca foi direto em dire-ção ao chaveiro. Trocou tudo. Nem uma só porta ficou como era antes. Não tardou e José descobriu. Até hoje ela não sabe como. “Alguns dias depois do que houve, os meninos da rua começaram a gritar que meu marido estava vindo em direção à nossa casa com alguns poli-ciais”, relembra. Francisca apanhou seus documentos e desceu as escadas correndo. Ela se posicionou na fren-te da casa e ficou esperando.

“De repente, eu o vi virando a esquina todo arrumado acompanhado de alguns policiais”, recorda. Os policiais chegaram até Francisca e disseram que por lei, ela não podia expulsar o marido de casa. Ela tinha que deixar ele entrar. A vizinha que presenciava tudo de perto, interfe-riu. “Ela olhou bem nos olhos do policial e disse: ‘Se você deixar esse homem entrar, amanhã ela estará morta’”, diz contando o que a amiga fez para ajudá-la.

Temendo um novo atentado, ela consentiu em dor-mir na casa da amiga. José ficou com a casa para ele aquela noite. “Eu não consegui dormir. Eu estava muito

uma série de feridas. Acho que quem sentava do meu lado chegava a sentir nojo”, complementa. As feridas de fundo emocional não cicatrizavam com remédio algum. Debaixo das unhas de Francisca, as feridas chegavam a criar pus.

“Um dia nasceu um caroço enorme no meu ombro, bem onde eu apoiava a minha bolsa. Eu nem liguei”, confessa. As amigas ficaram preocupadas e pediram que ela procurasse ajuda, afinal, aquilo podia ser algo grave. Ela foi encaminhada para uma dermatologista que a acalmou e passou alguns medicamentos. “Ain-da bem que eu não pensei em câncer. Acho que se isso tivesse passado pela minha cabeça, eu tinha desenvol-vido um”, confessa. Cumprindo as ordens da médica, Francisca passou a passar permanganato de potássio no corpo após o banho, um pouco antes de deitar. “De manhã, na hora de levantar, o lençol branco ficava cheio de pó. Dava para pegar com a mão”, relata.

“Eu tinha uma colega que na época trabalhava no Palácio do Governo. Em um sábado, durante uma convocação ela reparou no meu olho roxo e veio falar comigo”, recorda Francisca. Luíza Erundina estava em-penhada em montar alguns programas destinados às mulheres que sofriam com a violência doméstica. A casa Eliane de Grammont tinha sido fundada naquele mesmo ano, e já recebia algumas pessoas que procura-vam mudanças positivas na vida.

Em março de 1990, surgiu no país o primeiro servi-ço público destinado ao público feminino que passava por situações de violência doméstica. A Casa Eliane de Grammont, criada em março, leva o nome da famosa cantora assassinada por seu marido devido à uma crise de ciúmes após a separação dos dois. No ano em que levou o tiro, em 1981, foi um dos principais casos res-ponsáveis pela mobilização das mulheres em combate à violência. O centro dá à mulher um atendimento espe-cial para os diversos casos de violência. Oferece serviços como orientação psicológica, atividades, assistência so-cial, e outros.

““

durante horas ele ficou batendo o revólver no meu peito me chamando de tudo

quanto era nome. vagabunda, biscate, prostituta.

nervosa. Durante aquela noite eu escutei o tempo in-teiro algumas marteladas, eu pensei que fosse a minha imaginação”, conta. No dia seguinte, ela percebeu que não era. De fato, ele passou a noite inteira pregando pregos pelas portas e telhas da casa. Ficou ainda mais claro que ele queria a casa de qualquer forma. Quando levantou pela manhã e viu que não havia nenhum carro na garagem, pôde conferir que todas as portas estavam pregadas, e ela não tinha como entrar. Felizmente, o portão abria por dentro. Depois de entrar no próprio terreno, mais uma vez o chaveiro foi chamado para re-solver o problema.

Passado alguns meses, quando finalmente a vida estava mais calma, Francisca sofreu um novo ataque.

“Uma noite eu sabia que meu menino do meio ia pas-sar aqui em casa. Eu só não imaginava que o pai dele também soubesse”, diz. À meia-noite, alguém chamou por ela no portão. “A voz era do meu filho. Idêntica. Mas na hora eu achei melhor escutar a voz de novo para ter certeza”, relembra. Algo estava errado. Aquele não era seu filho. O revólver disparou três vezes e depois disso, o silêncio da noite voltou a reinar. Francisca entendeu que a paz não viria tão rápido quanto ansiava desde que José saiu daquela casa.

Francisca é asmática e têm crises mais fortes quan-do está emocionalmente abatida. Durante esse período, ela chegou a utilizar de quatro a cinco bombinhas por dia. “Eu vivia no pronto-socorro. Não conseguia respi-rar de jeito nenhum”, explica. “No meu corpo apareciam

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“Ela contou que tinham aberto uma casa para tratar de casos como o meu. Na hora eu não tive coragem de li-gar”, explica. Francisca não tinha motivação para comer, dormir, relaxar. Ela havia abandonado a sua vida. Uma atitude só foi tomada quando sua chefe deu um basta e mandou-a marcar um horário. “Eu marquei em novem-bro, mas a psicóloga só voltava em janeiro. Nesse meio tempo, em dezembro, ele apareceu e desmontou a mi-nha casa”, conta.

O mês de novembro passou e o medo tomou conta de Francisca mais uma vez. Ela já não dormia direito, não comia bem, a saúde estava debilitada. Ela não ia aguentar muito tempo. “Minha filha me ligou apavora-da e disse que o pai tinha comprado uma arma pesada de calibre 12 e uma marreta. Ela disse que ele queria inaugurar tudo aqui em casa”, recorda.

pediu para que Francisca deixasse a casa em que vivia antes que fosse morta. Conhecendo o homem com quem se casou, Francisca sabia que isso realmente poderia acontecer a qualquer hora.

Quando caiu a noite, Francisca não podia esperar que aquela seria uma data tenebrosa lembrada por ela e pelos próprios vizinhos. “Ele já chegou dando uma pancada bem forte. Fez bastante barulho. Eu levei um susto tão grande que pulei da cama. Na hora, eu pensei que ia morrer”, recorda com a voz já exaltada. “Eu saí correndo e fui direto para o banheiro. Quando eu olhei para a janela, ouvi os tiros. Foi um barulho muito forte”, continua, ofegante. “Ele conseguiu en-trar quando quebrou os dois portões com a marreta. Ele arrebentou o vitrô da sala e ficou atirando muito. Depois ele quebrou o vitrô da cozinha. Não contente, ele deu uma marretada na fechadura da porta. Eu que-ria fugir e não consegui, a porta enguiçou”, relembra Francisca os momentos de terror que passou.

O tempo parecia passar de vagar, e o barulho dos tiros interminável. “Ele atirou tanto, que parecia que aquilo tudo não ia acabar nunca!”, conta. Francisca teve sorte porque o marido não sabia atirar direito, portanto, apesar de intencionais, os tiros foram dados de qualquer jeito. A parede da sala ficou marcada por 38 tiros, fora os que pegaram na parede do corredor e da cozinha.

A vizinha, que presenciava toda aquela cena, decidiu que estava na hora de dar um basta. Ela gritou e disse que ia chamar a polícia. José escutou e foi atrás da senhora. “Nesse momento eu subi na janela e comecei a pedir por socorro. Eu gritava muito, dizendo que eu ia morrer”, conta. Infelizmente, o marido foi mais rápido e alcançou a senhora antes dela pedir ajuda. “Ele colocou o revólver na nuca dela e disse que se ela ousasse chamar alguém, ele matava ela e a filha”, explica Francisca.

“Eu precisava me defender e me coloquei entre a pia e a geladeira. Nesse meio tempo eu o escutei na rua gritando que era Lampião e ia matar todo mundo.

Fiquei muito assustada”, lembra. A vizinhança ficou tão revoltada com tudo que estava acontecendo, que decidiram tomar uma atitude. Juntaram pedaços de madeira, pedras e tijolos e começaram a jogar no carro de José. Ele estava prestes a ser linchado.

A polícia chegou e ele conseguiu escapar. Até hoje os vizinhos não entendem como ele não se machucou. “Eu só estou viva porque os vizinhos me ajudaram. Caso contrário, acho que tinha morrido naquela noite”, recorda. Toda aquela situação foi tão estressante, que Francisca não aguentou. Sua saúde já estava debilitada, sua estrutura emocional fraca. Aquilo foi a gota d’água.

“Eu já estava vendo tudo amarelo, laranja. Eu via umas bolas na minha frente. Os vizinhos chegaram para me ajudar e eu não reconhecia nenhum deles”, conta. Alguns homens conseguiram abrir a porta dan-do alguns chutes. Francisca que já tinha se arrastado pelo chão estava toda cortada. Devido ao choque, ela não conseguia sentir nada além do coração pulsan-do fortemente em seu peito. “Eles me puxaram pelos braços e me arrancaram de dentro de casa. Eu só me dei conta do que estava acontecendo quando entrei na casa de uma moça aqui da rua”, diz.

Chamaram uma ambulância e Francisca foi in-ternada às pressas. O choque tinha sido forte demais. Passou alguns dias no hospital. “Fiquei jogada ali, sem ninguém. Meus filhos não foram me visitar”, recorda. Quando recebeu alta, ela voltou para a sua rotina, deci-dida a colocar um ponto final naquela história. Aquela tinha sido a última vez que tinha passado por uma ex-periência tão chocante.

De volta à sua casa e após retomar a sua rotina, logo procurou o advogado e pediu para que ele agilizasse os papéis do divórcio. Não tardou e o filho caçula bateu à porta da mãe para a sua alegria. “Ele voltou pra mim! Ele percebeu que o pai não prestava e voltou para a casa”, diz contente. José não ficava com o filho. O me-nino passava o tempo sozinho enquanto o pai saía para se divertir. Ele se deu conta de que precisava da mãe.

Quando as coisas estavam melhorando e a saúde de Francisca, um pouco mais estável, ela passou a correr atrás do que era seu. “Eu já estava fora do hospital e meu filho já estava comigo. Fui ao banco ver quanto dinhei-ro eu tinha”, conta. Com tantos problemas, a poupança que tinha guardada era uma incógnita. Ela não sabia o quê e quanto tinha. Conheceu o gerente do banco e pe-diu sua ajuda. Ele tirou todas as suas dúvidas, e passou a orientá-la.

Apesar dos problemas pelos quais passava, Francis-ca sempre foi responsável o suficiente para nunca faltar ao trabalho. “Eu perdi trabalho por causa da violência que eu sofria. Não gostava de faltar”, conta. Os colegas já sabiam das brigas que tinha com o marido. As mar-cas na pele delatavam o abuso físico pelo qual passava constantemente.

“Quando eu vi o tanto de dinheiro que tinha na mi-nha conta, mandei Júnior negociar com o pai o preço da casa. Eu queria comprar a parte dele”, recorda orgulho-sa. José pediu R$ 42 mil pela sua metade. Ela aceitou. Foi decidido que ela pagaria uma entrada, e em dois anos a compra seria fechada. Como o salário que re-cebia era para cobrir as despesas da casa e da família, Francisca teve que procurar outras soluções.

Tirou o pó das máquinas de costura e foi falar com os amigos. “Cheguei falando que precisava de ajuda. Não queria que me dessem dinheiro, queria trabalho. Passei a oferecer meus serviços de costureira”, diz. Além disso, a cozinha de Francisca havia virado um comércio. Ela fa-zia diariamente pão de minuto e saía para vender. “Meu menino não pode ouvir falar em pão de minuto de tanto que comemos”, conta, às gargalhadas.

Como esse tipo de negociação precisa de um me-diador, ambas as partes contrataram um advogado. No começo da negociação, tudo aparentava estar certo. “Por incrível que pareça, os dois advogados se uniram e tentaram me dar um golpe”, recorda. Felizmente, a cunhada descobriu e a alertou do que estava aconte-cendo. “Quando eu descobri que eles queriam me dar

““

no meu corpo apareciam uma série de feridas.

Acho que quem sentava do meu lado chegava a

sentir nojo.

O ano estava acabando, e ela só queria recomeçar. Quem sabe desta vez ela não teria mais sossego? A es-cola do filho mais novo, que na época terminava a oitava série, ofereceu a todos os alunos uma colação de grau seguida de uma festa para os parentes. “Meu marido não queria que eu fosse. Ele disse que eu era uma prostituta e não podia me apresentar como mãe”, conta.

“Meu filho ficou muito preocupado com as amea-ças e pediu para que eu não fosse. O pai ficava falando assim: ‘Se ela aparecer, eu acabo com ela aqui mesmo’. Eu fiquei em casa.” Francisca comentou com a vizinha as ameaças que o marido estava fazendo. A amiga não podia assistir àquela situação toda sem tentar algo. Ela

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um golpe, eu mandei o Júnior falar com o pai e fazer uma nova negociação”, diz.

“Eu estava chegando perto de terminar o pagamen-to, ele me ligou e fez uma proposta”, conta. José precisava de dinheiro para fazer uma compra pessoal, mas ele não tinha. Pediu para Francisca pagar tudo de uma vez que ele daria um desconto. Ela aceitou. “Quando eu paguei a última prestação eu tive paz. Minhas feridas começaram a fechar”, recorda, feliz. “Depois disso eu tirei a docu-mentação da casa, e finalmente me senti livre”, diz.

Devido à sua história de vida, Francisca passou a ser referência não só na casa onde fez terapia durante nove anos, a Casa Eliane de Grammont, como também na Co-ordenadoria da Mulher. Sua luta e sua força de vontade para recuperar sua vida, auto-estima e posicionar-se no-vamente na sociedade como mulher, foram fatores que influenciaram outras mulheres.

José nunca deixou de falar de fato com a ex-mulher. “Ele me liga às vezes. Para ele nada aconteceu. Ele diz que foi só uma fase”, explica. Para o ex-marido foi mui-to fácil de esquecer tudo o que fez, no entanto para ela alguns fatos a assombram até hoje. “Fui eu quem viu tudo amarelo. Eu que passei medo. Eu que pensei que ia morrer, não ele”, relata.

Em 2002, chegou a hora de deixar a psicóloga e cami-nhar sozinha. Justamente naquele ano, a então prefeita da cidade, Marta Suplicy, e a Coordenadoria Especial da Mulher estavam entregando à casa Eliane de Grammont novas acomodações. A reforma aconteceu graças a uma parceria que o governo conseguiu com o Consulado do Japão em São Paulo.

As autoridades precisavam de uma personagem para apresentar no dia da inauguração. O primeiro nome que veio a cabeça foi o de Francisca. “Eles me convidaram para aparecer no dia. Não me disseram nada. Apenas me informaram que minha presença era fundamental. Eu aceitei”, recorda. No dia, o nervoso apareceu e ela pensou em desistir. Se escondeu no ba-nheiro durante algum tempo.

Quando a cerimônia começou, ela ficou no fun-do porque sabia que seria difícil de ser vista. “Não demorou e começaram a me chamar para subir. Eu não queria ir, mas não teve mais jeito, eu fui”, conta, às gargalhadas. “Subi no palco e apertei a mão da Marta. Ela perguntou o que eu estava sentindo. Eu disse que apesar de todo o sofrimento que passei, eu estava me recompondo. Eu disse que estava me sentindo pode-rosa”, completa. Os fortes aplausos foram seguidos de gritos que ecoavam: “Poderosa”.

Hoje ela ainda recebe algumas ligações do ex-mari-do. “Parece que para ele nada aconteceu. Ele ainda me liga para conversar”, diz. “Para ele foi fácil de esquecer, agora, para mim, foi bem difícil. Fui eu quem sofreu com a violência durante anos, não ele”, constata. A faculdade de Letras ajuda Francisca a ocupar a cabeça. Livros, tra-balhos, provas. “Às vezes, eu penso em desistir, mas no final eu sempre resolvo ficar. Já está acabando, só mais três anos”, conta. “Eu ainda quero fazer inglês, mas só de-pois que eu terminar a faculdade. Os cursos são muito caros!”, exclama.

Francisca continuou prestando seus serviços para a prefeitura. Hoje ela trabalha na Secretaria de Participa-ção e Parceria. Deixou a costura de lado, e dedica parte de seu tempo aos estudos. “De manhã eu acordo bem cedo e vou direto para a faculdade. Minha aula acaba meio-dia, de lá, vou correndo para o trabalho”, explica.

Como projeto de vida, Francisca pretende escrever um livro contando a própria história. “Eu sei que várias mulheres passaram ou ainda passam pelo que eu passei, acho muito importante falar sobre esse assunto”, diz. “Eu até já sei qual vai ser a capa do livro. Esses 38 tiros que ficaram marcados na parede no dia em que José tentou me matar”, finaliza, cheia de planos para o futuro.

A vontade em aprender permanece até hoje, mesmo após tantos conflitos dolorosos e pessoais

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Ela abriu mão da costura, mas nunca da culinária. Quando recebe alguma visita, sente um enorme prazer em preparar algum prato típico de sua terraUm passatempo que após tanto sofrimento foi transformado aos poucos em uma grande fobia

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A saúde delicada obriga a ter sempre por perto algo que lhe ajude em seus momentos de criseO único móvel da casa que foi conservado em seu devido lugar. A única lembrança que foi deixada

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Antônio, 54 anos

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“E la era folgada e eu batia nela. Eu pensava assim.” De calça jeans, camisa azul com pequenas listras e

óculos pendurados no pescoço; de pele morena, cabe-los curtos, voz firme e grave, olhos cor de jabuticaba, salientada pela vermelhidão do cansaço, Antônio1, aos 54 anos, sente orgulho de dizer que está sóbrio há mais de 15, graças ao programa dos Alcoólicos Anônimos.

Ele se denomina “um doente em recuperação eterna”. Casou duas vezes. O primeiro casamento é lembrado pelo fracasso, pelos momentos de raiva e mágoa. Um período obscuro e regado de tristeza e violência. O vício pelo álcool acabou com a sua vida, a relação de amor com a primeira mulher, os filhos e a sua saúde.

Filho de pais alcoólatras, Antônio nasceu em Parana-vaí, cidadezinha pacata, calma e familiar do interior do Paraná. Quando jovem, não podia imaginar que um dia travaria um combate com o mesmo problema dos seus pais e pensava: “Não quero ser como eles”. Abandonou seus sonhos pelas doses diárias de cachaça, sua melhor amiga. Cerveja, Campari, conhaque também, mas, para ele, nada se comparava a uma dose da “branquinha”.

Dentro de si, uma ânsia por viver. Mas, como mui-tos, Antônio chegou até o limite entre a sobrevivência e o álcool. Trocou os filhos, mulher, carros, trabalho, dinheiro, por violência, desafeto, desamor, carência, brigas, gritos, frustrações e cobranças. Mas, quando pensou que não houvesse mais saída, tentou achar for-ças onde tudo era fracasso e lutou para se restabelecer.

A história dele começa aqui. Logo após o divórcio de seus pais, a vida tomou um rumo inesperado. Sua mãe se desligou da família e assumiu uma postura comple-

antônioA cachaça, o casamento e Maquiavel

1 Foram usados nomes fictícios para preservar a identidade dos personagens envolvidos na história

tamente diferente da que vivera até então. “Minha mãe foi pra zona, virou prostituta”, recorda Antônio com ar de tristeza e conformismo na voz. O pai não aguentou a humilhação. Primeiro fracassara como marido, e agora deveria suportar todas as fofocas de uma cidade com 81.595 habitantes. “A separação dos meus pais foi feia, eu penei muito quando criança”, conta.

Todos na cidade comentavam. Antônio ainda era um bebê e as lembranças ficaram vagas, mas a percep-ção da vergonha na cidade veio logo depois, quando seu pai achou melhor sair de lá e recomeçar a vida em outro lugar. Largou o filho. “Meu avô assumiu a mi-nha guarda”, lamenta ele, que, na época, ainda estava aprendendo a andar.

Cresceu em um ambiente pesado. E o sentimento de rejeição se fez presente diversas vezes. Todos na ci-dade sabiam de sua história e, quando nada poderia ficar pior, já um pouco mais velho, teve que enfrentar uma tentativa de suicídio daquela que se encaixara no papel de mãe, na falta de uma. “Minha avó também era alcoólatra. Tentou suicídio colocando álcool no corpo e ateando fogo logo depois. Era uma família e tanto”, constata Antônio com a voz séria, amarga, enquanto desvia os olhos da repórter que o faz entrar em contato com o passado novamente.

A avó já bebia muito, porém, na época, o alcoolis-mo, como ainda hoje, não era considerado uma doença e sim falta de força de vontade para parar. No final das contas, sua criação foi por conta do avô que assumiu o papel de pai e de mãe para o rapaz, que logo cedo de-monstrou interesse pelos esportes.

Antônio lembra que não tinha nem doze anos quando entrou para o time de atletismo de sua esco-la. O garoto, que apresentava ótimos resultados nas competições realizadas na região, não tardou e foi para a seleção colegial do Paraná de atletismo. “Era o meu sonho, a minha paixão”, diz. Ainda era um menino sem grandes experiências e conhecimento de vida quando decidiu que queria ser professor de educação física. Para isso, tinha que sair de Paranavaí.

Ambicioso, sabia que para crescer precisava sair da sua zona de conforto. Aos quinze anos tomou a decisão de morar e trabalhar com o pai, que fez carreira como mestre de obras em São Paulo. “Quando eu cheguei a São Paulo eu já ganhava muito mais do que os meus amigos que trabalhavam em escritório”, diz. A falsa impressão de que daquela forma ele enriqueceria mais rápido e facil-mente, teve grandes consequências e pesou no futuro. “Eu me iludi e abandonei a escola”.

suado de tão gelada, doce, naqueles copos bonitos com aquelas coisas que colocam para enfeitar, sabe? Eu to-mei e gostei”.

Com o efeito da desinibição que o álcool causa, aquele tímido rapaz de dezoito anos teve coragem para conversar com uma menina em que estava de olho há muito tempo, e que estava também no pesqueiro só de “paqueirinha”, trocando olhares. A timidez foi deixada de lado. Desinibido, ele foi até ela, e conseguiu encon-trar carinho. Aí, para ele, a bebida foi um facilitador para demonstrar seus sentimentos, e então pensou que aquela poderia ser a saída para muitos outros proble-mas. “Eu vi que aquela era a chave para o sucesso”, diz.

Depois da batida doce e gelada de maracujá, com o tempo Antônio foi apresentado à dourada cerveja, ao doce e vermelho Campari, à sedutora caipirinha e depois, à pinga pura da melhor qualidade. “Come-cei como todo mundo começa. Não achei que tivesse problema com o alcoolismo, embora meus familiares tivessem. Eu achava que eu ia beber diferente deles. Afinal de contas, eu tinha uma concepção em relação à bebida que eles não tinham.”

Ele se enganou. Aos poucos entrou em um mundo do qual demoraria a sair. Na época, como ainda prati-cava esportes – e a prática requer uma disciplina maior com o corpo – ainda havia certo controle sobre as suas vontades. Quando chegou aos dezenove anos, Antônio já bebia muito mais do que qualquer pessoa saudável de sua faixa etária. Uma festa, um jantar, uma alegria, uma tristeza, uma boa ou má notícia, no trabalho, em casa: para ele, tudo era motivo para beber.

“A coisa foi se desenvolvendo e o esporte ficou de lado. Eu troquei uma coisa pela outra. Troquei o que eu mais gostava pela bebida.” Os pais, que antes eram um grande exemplo vivo do que não gostaria de se tornar, passaram a se parecer mais e mais com a vida que es-tava levando.

Em meio a tudo isso, Antônio conheceu uma moça dois anos mais nova que ele. Ela era linda. Negra como

““Eu achava que eu ia beber

diferente deles. Afinal de contas, eu tinha uma concepção em relação à

bebida que eles não tinham.

Os estudos ficaram em segundo plano, e o traba-lho ocupou a cabeça do rapaz em tempo integral. A única coisa que ainda tinha espaço nas horas vagas era o atletismo.

Durante um final de semana, Antônio foi convidado por amigos a almoçar em um pesqueiro perto da cida-de. Devido ao calor que fazia no dia, ofereceram a ele uma batida de maracujá. Sem dó, nem lamentação, e até em tom brincalhão, ele diz que foi ali que tudo co-meçou. “Ah, foi paixão à primeira vista! Me ofereceram uma batida de maracujá, geladinha, com o copo ainda

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““

Eu achava que eu não era um cara violento. Eu bebia e por qualquer coisa eu agredia.

começava sempre com a agressão em forma de palavras.

ele, de pele escura, olhos pretos da cor da noite. Para ele, encantadora. Apaixonaram-se. Com menos de um ano de relacionamento, os dois tiveram uma surpre-sa. Acidentalmente ela engravidou e, com dezenove anos, sem nenhuma preparação psicológica, o garoto foi informado de que seria pai. O namorico de portão se transformou em casamento. “Eu fui criado em uma família sem pai nem mãe, eu não queria que o meu filho passasse pelo que eu passei.”

Antônio assumiu o filho e decidiu que era com aquela mulher que ele ia construir sua família. No auge da juventude, nenhum dos dois tinha maturidade su-ficiente para criar um filho. Mas tiveram que fazê-lo. A situação financeira dos dois não era nada estável. A moça ainda dependia da família, e Antônio ganhava o suficiente para o seu próprio sustento, mas não para o de uma família.

A criação e os valores passados pelo avô tiveram grande influência na hora de tomar uma decisão. “Eu venho de uma geração em que se você engravidasse uma mulher, você tinha que casar. Tudo isso pesou quando eu tive que tomar uma atitude”, ressalta. A obri-gação definitivamente era maior do que o amor de um pelo outro, embora estivessem apaixonados.

Descontrolado, Antônio passou a gastar dinheiro com idas e vindas nos bares perto de casa, na Vila Bra-silândia, bairro da zona noroeste na capital paulista. “O trabalho com meu pai já não dava muito dinheiro. Depois que eu passei a beber diariamente aí é que não deu mesmo. Além da família, eu tinha que sustentar um vício.” Ele estava na fase das “doses”. Uma antes do trabalho, outra depois. Sua mulher sentiu que as con-tas ficaram mais apertadas, e a renda do casal estava cada vez mais baixa. O dinheiro de um mês, que servia para sustentar as necessidades daquela família, pas-sou a ser pouco.

Ele ainda trabalhava com o pai na construção. Os dois se davam bem e algumas vezes chegaram até a be-ber juntos, mas, na época, esconder o vício era fácil. As

pessoas ainda não tinham percebido que Antônio es-tava desenvolvendo um mal que faria grandes estragos em sua vida. Não eram apenas doses de bebidas toma-das socialmente. Eram outras doses.

Nove meses passaram rápido, e o primogênito nasceu. Esperava-se que aquele filho trouxesse paz e felicidade ao novo casal, mas eles estavam enganados. Cada vez mais os sinais mostravam o fracasso. A pres-são tomou conta de Antônio, e ele não soube lidar com ela. “O neném nasceu, e por incrível que pareça foi uma confusão. Os problemas se acumularam de tal maneira que eu preferia ficar no bar a ficar em casa com eles. Eu não sentia a mínima vontade de ficar com a minha família”, lamenta.

o peso. Ele teve que tomar uma decisão, abandonar o es-porte ou a família. Ele escolheu deixar de lado o que mais amava, e permitiu que a bebida conquistasse seu lugar.

“Eu achava que eu não era um cara violento”, confessa. No seu papel de mulher, mãe e esposa, sua companheira se sentia no direito de cobrar explicações. O marido, que pela manhã saía para trabalhar, voltava no final da noite exalando álcool. Algo estava errado, e ela sabia disso. Cada cobrança resultava em uma agressão verbal diferente. “Eu bebia e por qualquer coisa eu agredia. Começava sempre com a agressão em forma de palavras.”

“Eu pensava assim: não vou beber no bairro por-que gente que bebe em boteco fica conhecido, e está no fundo do poço.” A saída foi beber na Lapa, bairro onde ele trabalhava na época. “Eu bebia lá perto do trabalho, onde ninguém me conhecia. Não tinha amigos, nem co-nhecidos”, explica.

“Um dia, por incrível que pareça, eu acabei numa barraquinha caindo aos pedaços perto da nossa casa”, admite. Antes ele se sujeitava a beber longe dos olhos de todos, depois de um tempo, aquilo não era mais uma desculpa. Quanto mais perto, melhor, assim não tinha muito esforço ou demora. A questão era a disponibilida-de e as facilidades.

“Eu costumo dizer que aquela mulher que me co-nheceu legal, bonito, cheiroso... de repente, aos poucos, isso foi mudando e fui me tornando um bêbado”, conta. Foram quinze anos de casamento e quinze de alcoolismo. Os dois caminharam juntos o tempo inteiro. Enquanto o vício crescia, o casamento ia se desgastando.

Antônio não tinha estrutura para levar a família em frente. Ele mal podia tomar conta de si próprio, imagine então de outras pessoas. “Eu tinha uma mulher que me cobrava diariamente, eu precisava ter mais responsabi-lidade. Mas eu não conseguia!”, recorda. “Eu encontrava na bebida um anestésico emocional.”

“Eu bebia por causa dela. Ela não era uma pessoa bacana”, assimila Antônio, levando em conta as co-branças que recebia da ex-esposa. Ela pedia por um

casamento de verdade, por uma vida melhor e menos apertada, e ele não conseguia entendê-la. “Ela me chamava de dondoca quando eu dormia até tarde. Ela sabia me provocar e provocava demais. Não era legal”, recorda, com mágoa. A família dele demorou a enten-der o que acontecia na casa dos dois. “Meu pai virou um ex-alcoólatra. Ele decidiu largar o vício, casou de novo e virou pastor evangélico. Eu evitava muito con-tato com ele quando estava em uma fase muito tensa.”

Cinco anos após os dois juntarem seus pertences para construir uma vida juntos, os dois decidiram que o melhor a fazer era oficializar aquela situação no papel. Eles decidiram casar formalmente. “Eu atribuía as mi-nhas desavenças familiares ao casamento. Eu pensava que se eu não tivesse casado, assinado os papéis, talvez as coisas fossem melhores entre nós”, explica. O motivo pela frequência das brigas foi potencializado após se tornarem marido e mulher aos olhos da lei.

Ele diz que já aguentava muitos “desaforos” vindo da mulher. Com o tempo, cada cobrança, cada pedido pas-sou a ficar insuportável. A situação estava insustentável. Quando Antônio se sentia muito pressionado, ia passar uns dias na casa do pai. “Quando nós brigávamos feio, eu ia correndo ver a minha família e aproveitava para me lamentar. Como eles não tinham consciência do meu vício, acreditavam quando eu dizia ser um homem tra-balhador. Sempre acabavam acreditando que ela era a louca da história. A culpada pelo casamento ruim”, diz, confessando o drama que fazia para os que estavam de fora da situação. Ela não podia ficar com a imagem de so-fredora, ela não merecia. “Eles ficavam com raiva dela.”

Como deixava grande parte do seu salário nos cai-xas dos bares que frequentava, sua esposa teve que buscar alternativas para bancar as necessidades da família. “Quem trabalhava de verdade era ela. Ela assu-miu o posto e resolveu que o sustento viria do suor dela, e não do meu. Eu não dava conta”, recorda. “Eu ia pro trabalho no máximo três vezes por semana, os outros dias eu não conseguia levantar cedo.”

Com pouco tempo de casamento, as brigas se torna-ram rotina. “A primeira briga aconteceu um ano depois que nós juntamos. Ela sentia algumas necessidades e eu não tinha condições de dar”, conta. Como esposa, passou a cobrar a postura de homem, de um marido, de um chefe de família, na cama, nas contas, com o filho. Ele fugiu das responsabilidades e se escondeu atrás de um vício que tomava cada vez mais conta do seu corpo e de sua mente.

O atletismo foi abandonado. “Eu trabalhava lá na Lapa e treinava no Ibirapuera. Eu até tentei manter os treinos, mas não dava. Eu tinha que voltar para casa, para a mi-nha mulher. Fora que eu ficava muito cansado, era muita coisa. Trabalho, treino e família. Complicado.” O menino, que ainda estava aprendendo a ser homem, não aguentou

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No começo da década de 80, surgiu um movimento político chamado “Movimento Negro Unificado” com uma proposta inovadora e necessária para a época. Ele existe até hoje, e luta para combater as manifestações preconceituosas e discriminatórias praticadas contra negros no Brasil e no mundo. Antônio, que tinha orgu-lho de sua cor, juntou-se ao grupo em busca dos seus direitos e maior igualdade. Ele queria lutar pela causa. “Era uma contradição muito grande, porque eu par-ticipava do movimento e batia na minha mulher. Eu defendia os direitos da mulher negra e em casa era to-talmente diferente”, conta. Uma das causas pela qual ele lutava não era cumprida debaixo do próprio teto.

O grupo recomendava uma série de leituras para os integrantes e, entre um porre e outro, no meio da ma-drugada, Antônio acordava, levantava do sofá em que ficou jogado, e mergulhava nas teorias de Nietzche, Marx, Maquiavel, entre outros. “De madrugada, quan-do eu acordava sóbrio, eu pegava todo aquele material para ler. Passava o resto da noite lendo. Só quando o sol raiava que eu sentia necessidade de dormir. Pela ma-nhã, quando eu tinha que levantar para trabalhar, não conseguia. Ela ficava furiosa”, recorda.

“Ela saía para trabalhar e via que eu estava dor-mindo. Ela fazia questão de me acordar e dizer que eu não era homem. Ela me provocava”, conta. “A bebida só abriu a porteira para eu colocar meus instintos para fora”, diz, em tom de consentimento. “Às vezes ela me cutucava e começava a me chamar de dondoca. Ela era folgada e eu batia nela”, revela um pouco constrangido.

Quando namorados, os dois sempre estavam presen-tes nas festas de amigos e familiares. Quando casados, Antônio bebia o suficiente para aprontar alguma coisa. Então, sua esposa passou a evitar a presença do marido em certos ambientes. O casal já não era mais um casal, no sentido puro da palavra. Ela tinha vergonha de acom-panhá-lo em certas ocasiões porque sabia qual seria o resultado final. “Teve um período que eu fiquei tão mal que ela tinha vergonha de ficar comigo. Eu não conse-

guia beber socialmente, era muito difícil. Eram duas garrafas de pinga de uma só vez.”

A cada dia a casa ficava mais precária. A louça se transformava em cacos em questão de segundos. Comprar móveis novos não adiantava em nada; logo estariam todos quebrados. “Na minha casa a confusão era tão grande que não tinha cama, era só colchão. As brigas eram tão violentas que eu quebrava tudo o que eu encontrava pela frente”, conta. Antônio perdia o con-trole e destruía absolutamente tudo, não importava se era novo ou velho. A fúria tomava conta de seu corpo no auge da bebedeira e tudo virava pó.

Além das brigas por causa do trabalho ou do esta-do em que Antônio se encontrava, o ciúme também era um dos fortes motivos para uma discussão. “Ela trabalhava na copa da presidência da TV Cultura. Du-rante uma época eu achei que ela estava me traindo com alguém de lá. Eu passei a sondar tudo o que ela fazia dentro da empresa. Eu a segui diversas vezes”, confidencia. Sua ex-esposa não sabe disso até hoje. “Eu nunca contei das perseguições, acho que não vale a pena ela saber disso”, diz.

A relação sexual entre os dois definitivamente ti-nha mudado bastante quando comparada ao começo do relacionamento. Jovens e apaixonados, sempre es-tavam dispostos um para o outro. A cena mudou aos poucos em decorrência das brigas e da situação em que o alcoolismo fez Antônio chegar como homem e amante. “Eu chegava embriagado em casa quando ela estava me esperando. Nós éramos novos, ela se arru-mava toda para fazer amor, namorar. Só que eu não tinha condições, eu mal conseguia ficar em pé. Ali já estava armada toda uma situação para brigarmos.” E foi assim que muitas noites terminaram entre eles.

“Ruim mesmo era quando eu queria e ela não queria. Nossa, eu ficava louco de vontade!”, conta. Ele chegava embriagado e sua esposa o rejeitava. Fedido, sujo, completamente alcoolizado. Os momentos de lucidez vinham pela madrugada. “Eu acordava de ma-

drugada e queria sexo, mas aí é difícil de aceitar. Aí não tinha jeito, eu ‘namorava’ à força”, explica. “Tudo isso gerou uma situação de desamor”, confessa. Sua esposa nunca chegou a denunciá-lo. Mas, diferente de outras mulheres que vivem este tipo de relação doentia, ela o desafiava. Cobrava melhoras e uma postura diferen-te. Pedia ajuda para familiares e vizinhos com quem tinha intimidade. E perdoava Antônio diversas vezes por causa dos filhos, e não mais por amor.

Os filhos de Antônio não foram planejados. “As crianças nasceram no meio de tudo isso. Teve um fi-lho que foi concebido praticamente em um período de resguardo da parte dela. Ela não queria mais filhos, ela estava vivendo uma fase comigo muito ruim onde não existia mais amor.” Quando sua esposa ficava muito ir-ritada devido a algum comportamento inadequado do

marido, ela acusava os próprios filhos como o motivo de sua infelicidade. “Ela rejeitava as crianças. Ela dizia assim: ‘Vocês estão atrapalhando a minha vida. Eu es-tou com esse cara por causa de vocês!’”, conta Antônio.

“Ela fazia como se não houvesse alternativa. Eu não ligava.” A mulher, ao mesmo tempo que rejeitava as crianças, as poupava de certas situações. Ao invés de sair gritando pela casa por causa das investidas do companheiro, ela apenas consentia com o que estava acontecendo. “Eu criava fantasias enquanto eu bebia. Eu chegava em casa e só pensava em sexo. Nem liga-va para as condições em que eu me encontrava. Era só aquilo que eu queria”, conta.

Cada momento ficou gravado no relacionamento dos dois, apesar de diversas vezes, alcoolizado, Antônio

não lembrar nem de como tinha chegado em casa. “Eu fazia por fazer. Tinha vez que eu nem lembrava como eu tinha chegado em casa e feito alguma coisa”, diz. A mes-ma cena aconteceu repetidas vezes, durante os longos quinze anos de casamento. “Depois de um tempo, ela não aguentava mais. O nosso casamento ficou insupor-tável.” Ela ameaçou diversas vezes ir embora, mas, da primeira vez, quem juntou as tralhas foi ele.

Antônio se mudou para a casa de parentes. Foi ali, durante aquele momento, que a família dele enfim percebeu que ele tinha um sério problema de depen-dência alcoólica. Em uma conversa que teve com o pai, tomou a decisão: aquela era a hora certa para parar de beber. “Comprei uma garrafa de pinga e fui para a casa do meu filho. Eu disse que aquela seria a última vez que eu colocava bebida na boca. Honestamente, nem meu

2 Alcoólicos Anônimos é uma irmandade de homens e mulheres que compartilham suas experiências, a fim de resolver seu problema comum com o álcool.

““tinha vez que eu nem lembrava como eu tinha chegado

em casa e feito alguma coisa.

menino acreditou. Ele deu risada.” O que ninguém sa-bia, é que de fato aquela seria a última vez.

Ele não tinha crenças, não acreditava em Deus e não gostava de nada relacionado à Igreja. Quando soube dos Alcoólicos Anônimos2, achou que a instituição fos-se ligada a alguma religião. “Primeiro eu procurei um ambulatório”, conta. “Entrei no lugar muito relutante. Eu tinha claro na minha cabeça que eu estava bom, que não tinha problema algum”, completa.

“Minha arrogância era tão grande, que quando eu vi aquela fila de bêbados, logo eu pensei: O que foi que eu vim fazer aqui?”, recorda em tom de riso. O próprio al-coolista não aceitava a sua dependência. Estava com a saúde debilitada; conviveu quinze anos com uma mu-lher em meio a brigas e agressões físicas, psicológicas,

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morais e não tinha emprego fixo porque não dava conta de cumprir com o seu dever.

Passou anos culpando, por todos os seus problemas, frustrações, medos e inseguranças, uma mulher que só queria ser feliz. Os problemas criados por ele mesmo, na sua cabeça, vinham todos da esposa. Ele nunca ti-nha culpa de nada. Tentava achar os culpados para o problema, mas não a responsabilidade. Perdeu-se em si mesmo. Durante anos, a infelicidade, a má sorte, as brigas, tudo era culpa de uma única pessoa: a mulher. Pelo menos na opinião dele. As coisas só começariam a mudar ali, diante da “fila de bêbados”.

“No ambulatório eu já percebi que ela não era cul-pada dos meus problemas”, conta. Quando foi atendi-do, logo perceberam qual era o seu caso e o encami-nharam para uma psicóloga. Ele precisava de uma avaliação, mesmo achando que era besteira. Como ele mesmo diz, “achei que era uma perda de tempo, uma besteira das grandes. O que ela sabia da minha vida? Nada. Ela não poderia me ajudar”.

Como já estava acostumado, Antônio tentou enrolar a profissional. Jogou a culpa na esposa e tentou sair ileso. Não deu certo. “Ela disse uma coisa de uma forma bem direta. Não mediu as palavras. Olhou fundo nos meus olhos e disse que eu era o culpado dos meus problemas. Só eu poderia fazer alguma coisa”, diz. No ambulatório recebeu todas as instruções necessárias. Novo destino: Alcoólicos Anônimos. “Foi um alívio quando eu soube que não tinha nada a ver com a igreja. Fiquei curioso para conhecer”, ressalta.

Foi muito bem recebido. Todos ali partilhavam do mesmo problema, ele não se sentiu como um estranho. “Os companheiros me acolheram logo que eu che-guei. Eles sabiam o que acontecia comigo”, recorda. Foi instruído, e percebeu que, de fato, a maior arma para aquele difícil combate seria a própria força de vontade

que vinha dele. Ninguém poderia fazer por ele. “Eu era o responsável, ninguém mais. Se eu saísse da linha, o maior prejudicado seria eu!”

“Quando eu entrei para o A.A., melhorei. Eu assu-mi a vida depois de anos”, explica, orgulhoso. Os Doze Passos 3 criados para a recuperação não foram fáceis de serem seguidos, mas valeram o sacrifício. “Eu percebi que tinha tempo! Eu tinha que correr atrás das minhas conquistas”, conta. Antônio se sentiu muito bem ao descobrir que não era o único que precisava de ajuda. Deixou o preconceito de lado e resolveu lutar por uma vida melhor, consciente, sem álcool. Ele devia isso à sua família, e principalmente, a ele mesmo.

Com o apoio da família, Antônio conseguiu a mu-lher de volta. “Após eu parar de beber, nós voltamos. Mas ela não aguentou. Ela não conseguiu me per-doar completamente”, conta. O casamento já tinha passado por períodos muito tristes, ela não estava tão disposta a esquecer tudo e recomeçar como ele estava. “Eu fiz muitas promessas, mas no final, não deu certo”, recorda.

Por mais que o A.A. estivesse ajudando muito, o passado ainda era mais forte. Antônio resolveu esque-cer tudo o que havia passado e tentar novamente. Desta vez ele tinha certeza que seria diferente. Para sua espo-sa, esquecer quinze anos de maus-tratos não parecia ser uma tarefa fácil. Querendo ou não, promessas ha-viam sido feitas várias vezes, por que daquela vez seria diferente? O sentimento até podia ser forte, mas a des-confiança ganhou mais espaço. “Nós nos gostávamos, mas a coisa foi deteriorando com o tempo”, diz. Perdoar nem sempre é fácil. Hoje, Antônio tem certeza disso.

“Ela sempre foi a coitada da história. As pessoas sempre questionavam como ela me aguentava. Só que quando eu mudei, também repararam. Ela não teve condições de aceitar isso”, conta. Durante tantos anos

assumindo o papel de mãe, pai, dona-de-casa e chefe de família, não foi fácil para sua esposa aceitar as novas condições. Ela, que durante todo esse tempo tinha as-sumido as rédeas da família, não podia simplesmente largar tudo.

Antônio estava pronto para “vestir as calças” no-vamente. Um posto que tinha perdido para a mulher logo no começo de seu casamento. O pai, o marido, o chefe de família, literalmente, ressurgiu das cinzas. O que ninguém esperava que um dia acontecesse, aconteceu. “Eu comecei a controlar as coisas, a falar grosso com os filhos. Isso gerou desavenças. Ela errou em também não procurar ajuda”, ressalva. Ele estava em processo de tratamento. Ela, não. Procurar ajuda não estava entre os seus planos. Foi difícil ver o marido “vestindo as calças” novamente.

Eu estava bom, cheio de amor para dar, e ela não deu valor”, conta. Os companheiros iniciaram a reunião, e ele se acalmou aos poucos. Foi naquele dia que ele entendeu porque o casamento não tinha dado certo. “Os caras disseram: ‘Você passou quinze anos mas-sacrando a sua mulher. Você quer que ela faça o que? Te dê uma medalha de ouro?’”.

“Ela foi embora e eu tive que continuar a vida. Se eu voltasse a beber, eu sabia que ia ser pior”, conta. Graças ao tratamento, ele diz que passou a entender também o lado dela. Finalmente, depois de muito tempo passando longe do posto de “culpado”, ele ha-via compreendido que os problemas não eram culpa dela. Após muitos anos sem ser honesto consigo mes-mo, Antônio passou a se perguntar se ele realmente a amava tanto assim. “Eu fui olhando para mim e eu vi que não existia mais amor. Definitivamente, não era mesma coisa há anos.”

Depois, começou todo o processo burocrático de separação. “Como não tinha o que dividir, nós dividi-mos os filhos. Quem queria ficar comigo, ficou. Quem escolheu ir embora com ela, foi.” Ela ficou com a casa e os três meninos, Antônio levou com ele as duas meni-nas. Com a ajuda da família, das filhas, do AA, ele teve força de vontade suficiente para recomeçar a vida. Dessa vez, a bebida alcoólica não teria lugar em sua nova vida.

“Nos primeiro tempos do divórcio, tinha muita raiva, muito ódio, muito ressentimento de ambas as partes. Só nos falávamos por causa dos filhos”, explica. Cada um seguiu com a sua vida sem olhar para trás. O melhor que eles podiam fazer era recomeçar e tentar esquecer, na medida do possível.

Cinco anos mais tarde, quando Antônio já nem chegava perto de uma dose de cachaça, ele teve uma notícia nada agradável. “Comecei a sentir dificuldade em evacuar. As fezes não saiam”, conta. Ele percebeu que alguma coisa estava errada. Durante uma consul-ta, o médico pediu uma colonoscopia. O resultado não

3 Os Doze Passos é um programa sugerido para a recuperação de alcoólicos em potencial, com doze tópicos que preparam o alcoólatra para o tratamento e aceitação da sua condição e melhora. A íntegra está disponível ao final do texto.

““ cheguei chamando-a de

desgraçada, vagabunda. Eu estava bom, cheio de

amor para dar, e elanão deu valor

Mal tinha completado um ano de A.A., Antônio teve outra surpresa. Foi abandonado. O casamento naufra-gou de vez. As promessas foram em vão, o último resquí-cio de felicidade desaparecera, e o amor já não existia há muito tempo. “Eu cheguei em casa depois de uma reu-nião e não encontrei mais nada. Só tinha uma mala com as minhas roupas”, lembra. Sua esposa pegou as crian-ças, as roupas, e foi embora para não voltar nunca mais.

Logo, ele pensou, “Como assim? Eu estava pro-curando ajuda!”. Na reunião seguinte ao dia em que foi abandonado, Antônio chegou enlouquecido no A.A. Estava incrédulo com toda aquela situação. “Cheguei chamando-a de desgraçada, vagabunda.

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foi positivo. O problema era sério o suficiente para pre-ocupá-lo. Ele estava com um câncer. “O tumor estava impedindo a saída, eu tinha que operar urgente!”, diz.

“Se eu estivesse bebendo, eu tinha morrido. O meu câncer foi uma decorrência do abuso da bebida”, con-ta Antônio, hoje um homem curado. O tratamento foi mais pesado do que o esperado, considerando que o seu corpo já era mais fraco devido a tudo que tinha passado. “Eu fiquei com medo de morrer. Aquela não podia ser a minha hora. Eu estava lutando por uma vida melhor, não era justo”, explica. Com o apoio da família e do A.A., ele conseguiu se recuperar.

Na reta final de seu tratamento, uma notícia veio para devastar ainda mais o que parecia não ter jeito. O filho mais velho de Antônio, na época com dezeno-ve anos, tinha se envolvido com uma das drogas mais perigosas de todas. O crack passou a fazer parte de sua história de vida. Primeiro, a bebida, depois um câncer, e finalmente um filho sucumbindo às drogas. Sua família estava fadada ao sofrimento.

Além do filho mais velho, o segundo também foi sedu-zido pela droga. “Isso tudo é resultado de filhos criados em meio a tantas brigas. Tudo isso foi consequência de uma separação turbulenta, um casamento problemático e um lar desestruturado. O meu alcoolismo que desencadeou tudo isso”, diz. O mais velho ficou internado quatro meses, mas logo depois que saiu da clínica voltou a se drogar. O segundo foi morar em Vitória, no Espírito Santo e nunca mais deu notícias. “Não sei dos meus filhos. Estão por aí, jogados na rua. Não posso nem dizer que estão vivos, por-que nem isso eu sei”, conta.

“Eu voltei a falar com a minha ex-mulher. Nós tí-nhamos dois filhos mergulhados nas drogas. Tínhamos que encarar isso juntos”, diz. Claramente os meninos precisavam de ajuda, mas eles não conseguiam enxer-gar isso. A pressão foi tanta que, para não voltar a beber,

Antônio passou a frequentar o Al-Anon4, um centro de ajuda a familiares e amigos de alcoólatras e depen-dentes químicos. “Eu precisava aprender a lidar com aquilo, senão eu podia ter uma recaída feia”, explica.

Além dos encontros com os colegas que lutavam contra o alcoolismo, Antônio passou a frequentar tam-bém outra reunião semanalmente. Não tardou e ele fez novas amizades. O apoio de todos era muito bem-vin-do. Conheceu Eleonora em uma dessas semanas.

diz, muito orgulhoso de sua conquista. “A gente não briga, não existe agressão física e nem verbal. Nós sabe-mos lidar com o problema quando ele aparece”, conta.

Eleonora sabe do passado de Antônio e decidiu que aquilo não seria um impedimento para a sua felicidade. Depois de tantos anos suportando um irmão alcoóla-tra, ela sabia que precisava ser feliz. “Temos um filho. Logo que nos casamos, ela já engravidou!”, ressalta. Fi-lho este, que por sinal, nunca viu o pai colocar uma gota de álcool na boca.

No entanto, as duas meninas que escolheram ficar com ele tiveram uma vida bem diferente. “Consegui fa-zer duas filhas tirarem o diploma. Uma é formada em contabilidade, e a outra, em enfermagem”, conta, todo orgulhoso. “Eu fiz questão que elas estudassem. Eu sei a falta que o estudo faz. Paguei faculdade, ajudei no que foi preciso.” Ele provou que nem tudo estava perdido. As coisas ainda podiam dar certo.

Hoje, ele diz claramente que assume as responsa-bilidades. “Não sinto culpa alguma e também não me culpo. Não me faço de coitadinho de jeito nenhum. O que aconteceu já foi. Hoje eu sei que tenho condições de fazer diferente.” Antônio chegou à conclusão que para acontecer alguma mudança positiva, quem precisava mudar primeiro era ele. Era um processo que devia vir de dentro para fora. “Eu procurei através dos anos uma mu-dança, não para agradar aos outros, e sim a mim mesmo. Eu vi que se eu me sentisse melhor, quem estava conviven-do à minha volta, também sentiria a mesma sensação.”

Em relação à escolha que fez com dezenove anos de idade, ele afirma que as coisas poderiam ter sido mui-to diferentes. “Hoje eu tenho certeza que eu não me casaria com ela. Naquele momento foi um erro. Tudo aconteceu no impulso. Não pensei em nada. Calor do momento, sabe?”. Ao desabafar sobre o primeiro casa-mento, ele conclui, com muita convicção, que “se não tivesse bebida, eu não conseguiria levar aquele casa-mento por quinze anos. A bebida só adiou o fato de ter que tomar uma decisão”.

4 Al-Alon é uma associação de parentes e amigos de alcoólicos que, assim como o A.A. fazem reuniões semanais e compartilham experiências a fim de solucionar os problemas em comum com o álcool e outras drogas.

““ não sinto culpa alguma e também não me culpo. não

me faço de coitadinho de jeito nenhum. o que

aconteceu já foi. hoje eu sei que tenho condições

de fazer diferente.

os doze passos

“Ela tinha um irmão alcoólatra e viu que precisa-va aprender a lidar com esse problema, antes que a afetasse demais”, conta. Os dois passaram a dividir an-gústias e alegrias. Eles encontraram um no outro algo que faltava. Debilitados no campo emocional, um serviu de apoio ao outro. Eles se envolveram e desco-briram muitas afinidades. Antônio teve a prova de que seria novamente capaz de amar, dar amor a alguém, e principalmente, ser amado.

Hoje, ele conta orgulhoso que já tem quinze anos de casamento feliz, e muito bem estruturado, com a nova esposa. “Eu casei com uma pessoa completamente di-ferente. Outro tipo de comportamento, uma mulher mais esclarecida. Hoje eu tenho prazer em ir para casa”,

1. Admitimos que éramos impotentes perante o álcool - que tínhamos perdido o domínio sobre nossas vidas.

2. Viemos a acreditar que um Poder Superior a nós mesmos poderia devolver-nos à sanidade.

3. Decidimos entregar nossa vontade e nossa vida aos cuidados de um Poder Superior, na forma em que O concebíamos.

4. Fizemos minucioso e destemido inventário moral de nós mesmos.

5. Admitimos perante o Poder Superior, perante nós mesmos e perante outro ser humano, a natureza exata de nossas falhas.

6. Prontificamo-nos inteiramente a deixar que Deus removesse todos esses defeitos de caráter.

7. Humildemente rogamos a Ele que nos livrasse de nossas imperfeições.

8. Fizemos uma relação de todas as pessoas a quem tínhamos prejudicado e nos dispusemos a reparar os danos a elas causados.

9. Fizemos reparações diretas dos danos causados a tais pessoas, sempre que possível, salvo quando fazê-las significasse prejudicá-las ou a outrem.

10. Continuamos fazendo o inventário pessoal e quan-do estávamos errados, nós o admitíamos prontamente.

11. Procuramos, através da prece e da meditação, me-lhorar nosso contato consciente com Deus, rogando apenas o conhecimento de Sua vontade em relação a nós, e forças para realizar essa vontade.

12. Tendo experimentado um despertar espiritual, procuramos transmitir esta mensagem aos alcoólicos e praticar estes princípios.

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Foi dentro de uma instituição que ele conseguiu forças para superar um vício e seguir em frente Semanalmente ele faz questão de participar de uma reunião para fortalecer seu combate à doença

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Cego pelo álcool, ele se perdeu dentro de si mesmo. E a luz no fim do túnel só apareceu anos depois O passado ficou para trás, e hoje a meta estabelecida é viver de forma saudável cada dia de uma vez

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helena, 53 anos

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“E le ficou com medo de me perder e me levou corren-do para o hospital.” Há 30 anos, Helena era linda,

apaixonante. Intensa, obstinada. Loira, dos olhos quase transparentes de tão verdes, qualquer um que escolhes-se estaria aos seus pés. Mas, por ironia do destino, optou por aquele que, mais tarde, sem que pudesse preme-ditar, usaria uma arma de fogo para intimidá-la com a desculpa de que só poderia ser sua, e de mais ninguém.

Aos 54 anos, tem a saúde frágil e ainda sofre conse-quências de um tiro disparado contra o seu corpo após uma discussão dentro do carro com seu então namora-do, e atual marido. Ela perdeu um rim e conta que “dá para viver com um só”, mas que a palavra “hemodiálise” lhe provoca arrepios. “Nem me fala nesse nome que eu detesto! Nossa!” No final de 2010, Helena ficou interna-da e teve que passar por mais uma cirurgia no rim.

A história de Helena e Augusto desde o começo foi, de certa forma, tumultuada. Junto com suas amigas, ela frequentava uma famosa boate na Zona Leste de São Paulo, chamada “Toco”. Ela era de parar o trânsito, como dizem. Na boate era conhecida e fazia sucesso. “Ela era linda, nossa!”, afirma Julia, uma de suas ami-gas de infância. De vez em quando a boate promovia alguns concursos de beleza, comuns em meados dos anos 80. E ela venceu. Ganhou o título de “Miss Toco” em 1982.

“Eu conheci ele lá na ‘Toco’”, conta, sobre o primeiro encontro com Augusto. A boate era referência na vida noturna paulistana. Era a maior sensação entre os jo-vens. Ficou famosa pelo sistema de som e luzes que tinham nos ambientes. Para a época, era algo revolu-

helenaPaixão desmedida por um homem

1 Foram usados nomes fictícios para preservar a identidade dos personagens envolvidos na história

cionário e inovador. Desde o final dos anos 90, com o fechamento da casa, o imóvel de número 509 da Rua Dona Matilde, no bairro de Vila Matilde dá lugar a um bingo e guarda histórias que ficaram nas lembranças de Helena.

Ela aos 24 anos, linda, com todos os homens que qui-sesse aos seus pés. Dona de olhos verdes e pele bem clara, usava os cabelos loiros como os da atriz Farah Fawcett na época de “As Panteras”, seriado norte-americano de su-cesso. Ele, policial, soldado recém-formado da academia, forte e atraente, exalava masculinidade. Não era tão boni-to, mas tinha certo charme que atraía as mulheres.

Durante a entrevista, ela mostra uma foto da épo-ca, e comenta, “essa menina que está comigo na foto sumiu, mas, nesse dia, o Augusto colocou ‘bolinha’ na nossa cerveja e a gente ficou doidinha, demos muita risada! Eu lembro muito bem”. Foi assim que tudo co-meçou. Entre cervejas, cigarros, música alta, amigos e muita diversão, Helena e suas amigas só queriam se di-vertir e abusar da beleza que tinham para aproveitar o que a vida oferecia de melhor naquele momento.

Helena era nova, cheia de perspectivas. Despa-chada, nunca deixou de se divertir e não se privou de conhecer novos homens e fazer amizades. Augusto não suportava. Mesmo que ela não fizesse nada que pudesse comprometer aquilo que os dois estavam co-meçando a chamar de relacionamento, a sua beleza e desenvoltura indicavam para ele que, a qualquer mo-mento, outro estaria ali, no lugar que deveria ser seu. Não tirava os olhos dela na boate nenhum segundo, e se apaixonou.

Todos os finais de semana, depois do expediente, ele ia até a porta da boate para vê-la. Se não estava lá, ele dava um jeito de encontrá-la. E ela, como sempre apa-recia por lá com as amigas, sabia que ia encontrá-lo. Ela estava envolvida, e quando percebeu, completamente apaixonada pelo policial. Começaram a se conhecer e, depois de quatro meses, o relacionamento dos dois começou a ficar sério a ponto de Helena cogitar apre-sentar o novo namorado aos pais.

Augusto é sete anos mais velho que Helena. Como policial, na época ele trabalhava no Centro de Opera-ções da Polícia Militar (Copom), próximo ao centro da capital paulista. Ele já era um homem casado e escon-dia isso de Helena. Infeliz no relacionamento, Augusto passava muito tempo fora de casa. Já tinha dois filhos,

lou, enrolou, me enganou”, conta. Helena sentiu dor. Muita dor. Sofreu com a decepção de não poder encon-trar em Augusto o ideal de homem que desejava afinal, era casado, tinha filhos. Mas, ao mesmo tempo, sentia-se atraída pelo fato de que, futuramente, ele poderia trocar a atual mulher por ela.

Durante muito tempo Helena esteve certa do que queria. Digna, não deixou a paixão pelo moreno dos olhos negros falar mais forte. Ele a cercava de todas as maneiras. Ele a enrolou, disse que ia se separar e que ela sim era o grande amor de sua vida. E ela, apaixona-da, mesmo sabendo do casamento, se rendeu. Os dois continuaram namorando. Entre promessas não cum-pridas, Helena se tornou a primeira paixão de Augusto; e a segunda mulher de em sua vida.

““quem usa cuida, né. A pessoa que faz coisa errada

fica preocupada com o que você faz!

um menino de cinco anos e uma menina de oito. Ficava com os amigos, bebia, jogava cartas e começou a gos-tar muito de Helena. Ela, para ele, foi a perspectiva do desejo de uma mulher que pudesse ter de verdade em sua vida.

Um dia, após o expediente, Augusto percebeu que era a hora de contar a verdade sobre sua realidade, se quisesse realmente levar Helena a sério. Ele também estava apaixonado. Os dois, como de costume, se en-contraram na ‘Toco’. Depois de muita conversa, beijos, abraços, bebidas, diversão e muita música, ele tomou fôlego e contou a verdade a ela. “Comecei a namorá-lo ele e depois de quatro meses, ele me disse que era casa-do”, conta, em voz baixa, com descrição.

Até então, ela não desconfiava absolutamente de nada. Para Helena foi um susto e tanto. Receosa, firme e, mesmo decepcionada, disse a ele que então ficasse com seus dois filhos e sua então esposa. “Ele me enro-

Augusto então decidiu que ia se separar. E foi uma confusão só. “Aí ele separou da mulher. A gente dor-mia mais no motel do que em casa. A gente morava no motel. Muito ciúme. ‘Ciumera’, né”, aponta Helena. Eles assumiram o relacionamento. Até então, seus pais aprovavam o rapaz. Por ser muito trabalhador, poli-cial, a serviço da lei, acreditavam que sua filha estava em boas mãos. “Ele era muito bom pra ela e para to-dos. Uma simpatia de pessoa. Daquelas que você senta para conversar e não levanta nunca mais” afirma Julia, a amiga de infância.

Quase depois de um ano de namoro as coisas co-meçaram a ficar complicadas. Seus pais, tradicionais, não aprovavam o romance. Augusto e Helena viviam a vida intensamente e estavam praticamente casados. Ela trabalhava fora vendendo jóias o dia todo e, como não podia dormir em casa com o namorado, os dois optaram por dormir em motéis. Cada noite era em um diferente.

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“A gente dormia mais no motel do que em casa. Não ti-nha uma residência fixa”. A vida irregular, a incerteza de acharem um bom quarto, de certa forma agradava o casal. “Nunca sabíamos o que encontraríamos pela frente. Era até gostoso”, confessa. Toda a irregularidade fazia parte de um grande jogo de sedução.

Helena nunca gostou muito de estudar e, por isso, terminou apenas o colegial e decidiu não fazer facul-dade. Seus pais a sustentavam enquanto ela decidia o que fazer. Ela conta que até tentou, mas que o gosto pela independência do dinheiro que vinha do comér-cio sempre a atraiu mais. Já trabalhou com tudo nessa vida. Ouro, peixaria, roupas; de recepcionista... “Me-nina, nunca gostei de estudar. E sempre trabalhei por conta, eu gosto do ramo”, conta.

Augusto era muito ciumento. Além disso, a ex-mu-lher dele não deixou barato a separação. “Para todos os efeitos, fui eu que o tirei da outra”, conta. Helena tinha acabado com o casamento de uma mulher que, frus-trada em sua expectativa, batia na porta de Helena para reclamar e xingá-la de todos os nomes possíveis abaixo de ‘vagabunda’ e ‘meretriz’. Além disso, por causa dos filhos, o relacionamento dela com Augusto começou a gerar desconfianças. Dormiam juntos, mas, durante o expediente, ele a perseguia; ciumento, não queria sa-ber dela andando sozinha.

Certa vez, Helena deu sorte. Ela vendia jóia. Era mui-to conhecida na vizinhança e ganhava relativamente bem. Vendia para gente de alto poder aquisitivo da zona leste paulistana. Dava para sustentar a vida desregrada que levava com Augusto, de balada em balada e motel em motel. “Eu vendia jóia. Vendia tudo. Parei porque foi ficando difícil, os ladrões foram na minha casa, atrás de mim, a sorte era que eu tava dormindo no motel, e os ca-ras não me pegaram”.

E o susto de verdade sobrou para os pais dela, que estavam em casa e que, felizmente, saíram ilesos. “Eram pessoas que me conheciam”, diz. Desde então, parou desistiu das vendas que pudessem lhe prejudicar

Lá, antes de conhecer Augusto, engatou um namoro com um dos médicos que faziam plantão com fre-quência. “Eu namorei um médico no hospital que eu trabalhei e ele era de lá [Rondônia]. Fui pra lá ficar nas costas dele [risos]”.

Depois de voltar para a casa dos pais, com tantas insistências de Augusto por telefone, recados, perse-guições na rua, batendo na porta de sua casa; Helena viajou para Rondônia e ficou hospedada durante duas semanas na casa do ex-namorado. Augusto não podia sequer imaginar. Receosa, Helena lembra que foi para longe por medo de que o pior pudesse acontecer. “Eu não tinha levado o tiro ainda”, diz.

Ele a ameaçava e dizia que ela não poderia ser de mais ninguém se não fosse dele. De volta a São Paulo, Helena retomou a vida. Augusto ficou sabendo que ela tinha voltado e fez de tudo para encontrá-la. Ela gostou do interesse da parte do ex-namorado, sentiu que ele estava diferente. Ele ligou para ela e os dois combina-ram de se encontrar.

“A gente já tinha terminado e ia se reconciliar, e ele foi me buscar na Vila Matilde”, conta. Helena estava com uma amiga no dia. Ele chegou de carro, ela entrou e foram até uma rua próxima à casa dela conversar com tranquilidade, sem que ninguém pudesse atrapalhar. Ficaram conversando durante um bom tempo dentro do carro. Helena conta que ele bebia muito e que, no dia, dava para sentir o cheiro da bebida de longe. “E ele bebia, né. Hoje ele bebe só cerveja, mas antes ele bebia conhaque”, lembra.

Para Helena, depois daquele dia, o conhaque virou sinônimo de agressividade. Augusto estava embriaga-do o suficiente para trocar algumas poucas palavras e ficar com os olhos vermelhos. No dia, estava de folga e, como trabalhava na Polícia Militar, possuía porte de armas. Helena conta que, no meio da conversa, dentro do carro, ela insistiu que não dava mais mesmo para eles continuarem namorados. Ela afirma com tranqui-lidade que não houve nenhuma briga ou discussão.

e pensou primeiro em preservar os pais de mais trans-tornos. Nessa época, quase foi morar na casa de Julia, sua amiga. “Ela estava com muitos problemas com o Augusto e com os pais”, conta. Os pais de Julia, que já estava com uma filha pequena e viúva, disse que He-lena, se precisasse, poderia ficar com ela. Mas não deu certo. Helena escolheu Augusto.

Ele era muito ciumento. “Eu nunca dei motivo, ima-gina se eu desse”, afirma. A relação com os filhos dele desandou. Uma menina e um menino. Os dois contra a separação. “O menino nem tanto; para ele, acho que tudo bem. Agora, para a menina, não ficou nada bem”, relembra. Quando questionada sobre tanto ciúme por

“A gente já não brigava há muito tempo”, mas, mesmo assim “ele pegou a arma do porta-luvas e parou aqui“, conta Helena ao mostrar a marca da cicatriz nas costas, na direção do rim direito.

“Ele ficou desesperado e me levou correndo para o hospital quando percebeu o que tinha feito”, relembra. As roupas de Helena eram brancas. Ela se lembra bem: “era uma calça branca que eu adorava, eu estava de sal-to. Nossa... e tudo aquilo ali escorrendo, manchando tudo...”. Chegou ao hospital quase sem sangue e com uma de suas roupas preferidas tingida de vermelho. Ela conta que os dois entraram em desespero. “E ele falava ‘não morre não que eu estou socorrendo’, ‘não morre não!’, e eu falava ‘não vai bater o carro!’”.

Augusto saiu cantando pneus quando percebeu o que tinha acontecido. Só queria chegar rápido ao hos-pital mais próximo. Segundo Helena, ele pegou a arma apenas para intimidá-la, mas, quando tomou consci-ência do que aconteceu de verdade, ficou com medo de perdê-la. “E aí foi isso. Eu fiquei internada sete dias no hospital. E ele estava louco pra me ver, né”. Augusto não podia nem chegar perto de Helena por ordem dos pais da moça. Que, perplexos com a situação, proibiram ele de ir vê-la. Todos ficaram sabendo que ela havia perdi-do um dos rins por causa de uma violência praticada por seu namorado.

Julia, sua amiga de longa data, afirma que o tiro foi apenas mais uma das que Augusto aprontou com Helena. Segundo ela, durante o relacionamento, não foi só o ciúme que causou problemas entre eles. Eles dormiam sempre em motéis e saíam muito, bebiam, comiam do bom e do melhor, se divertiam com os amigos etc, uma noite, chegaram os dois embriagados e loucos por sexo. Ele, mal intencionado, pediu a ela que tirasse a roupa e posasse para algumas fotos que ele iria tirar, para guardar com ele e sempre se lembrar de como ela era linda. Ela topou. Mal sabia Helena que ele espalharia as fotos por aí e exporia seu corpo para todos os seus amigos.

““

Ele ficou desesperado e me levou correndo

para o hospital quando percebeu o

que tinha feito.

parte de Augusto, Helena tem uma teoria: “quem usa cuida, né. A pessoa que faz coisa errada fica preocupa-da com o que você faz!”.

De tanto ciúmes, ela chegou a ponto de não supor-tar mais o namoro com o policial. Helena terminou o relacionamento. Disse para ele que do jeito que estava não dava mais, e que, para o bem dos dois, era me-lhor o fim. Ela arriscou. Augusto não aceitou. Com a desculpa de outro em sua vida, ele a ameaçava com frequência. Helena então voltou para a casa de seus pais. “Ele passava aqui na rua dando cavalo de pau. Nossa senhora... Deus é pai”, relembra, com pesar nos olhos e voz baixa.

“Eu fugi pra Rondônia”, conta. Aos 18 anos, logo que se formou no colégio, Helena trabalhou em um hospital perto de sua casa, na zona leste de São Paulo.

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Helena tinha 26 anos. Ele simplesmente sacou a arma e atirou contra ela. Quando questionada sobre o real mo-tivo da atitude impensada do marido, Helena conta que tudo aconteceu porque ele não queria perdê-la. E per-cebeu isso principalmente na hora em que viu o sangue escorrer pelo corpo da moça. “Ele não queria me perder, né?”, ela diz, com frieza ao relembrar o acontecido. “E aí aconteceu tudo o que aconteceu e a gente nunca mais se largou”, diz, com conformismo e certo orgulho na voz.

Depois que Helena saiu do hospital, descobriu que Augusto tinha ido até a delegacia prestar queixa. Como ele era policial, tinha que justificar de alguma forma o que acontecera antes de alguém fazê-lo e a situação se complicar mais ainda. “Ele mesmo foi fazer. Ele falou que foi um disparo acidental”, conta. Tudo por causa do ciúme. “É, eu acho né. Só pode. Ele não queria me perder”, completa Helena. De tão sério, o caso chegou a sair no jornal. “Eu tenho o jornal guardado por aí”. Ela tentou procurar, mas não o achou no meio de tantas coisas espalhadas pela casa. E afirma novamente que quem usa, cuida.

Após a denúncia, durante sete anos um processo fi-cou tramitando na Justiça. E, enquanto isso, os dois ainda namoravam. Helena saiu do hospital e um tempo depois os dois se encontraram. Sua família passou a não olhar mais para Augusto. Indignados com o acontecimento e, principalmente porque Helena tinha aceitado ele de vol-ta, não desejavam que sua filha, bonita do jeito que era, cheia de vida, pudesse se envolver com uma pessoa que já tinha lhe feito um mal como aquele.

“Minha família nem falava com ele. Meu pai, minha mãe, ninguém. Afinal, não é pra menos, né?”, conta, en-quanto faz o gesto de indignação com as mãos. Seu pai lhe dizia, “filha, não fica com esse homem, olha só o que ele fez com você”. Mas, mesmo assim, os dois continua-vam se encontrando escondido. Só assim para manter o relacionamento. Helena conta que seu pai e Augusto brigavam muito, mas só quando se encontravam. Caso contrário, tudo ficava bem.

O processo contra Augusto ficou correndo duran-te sete anos. “Até que eu livrei ele, né”, conta. Louca de paixão e desejo por Augusto, assim foi. Depois de sete anos, Helena resolveu retirar a queixa contra seu ama-do afirmando perante as autoridades que realmente tinha sido um acidente, puramente um mal entendido entre os dois, no meio de uma discussão conjugal. He-lena e Augusto continuaram namorando, de motel em motel; ele policial, ela trabalhando por conta e pagando todas as despesas.

Hoje, aos 53 anos, ela tem sérios problemas de saú-de pela perda de um rim. “Ah, por enquanto estamos aí, meia boca. Dá pra me virar com um só”. Helena real-mente se vira bem com um só. Porém, no final do ano passado teve que se internar novamente. “Eu fiz uma cirurgia para tirar uma pedra da uretra”. Helena adqui-riu ao longo dos anos uma pedra no rim que estava se movimentando. “Nossa, eu fiquei ruim, menina. Só ti-nha calafrios, me sentia muito mal. A última vez me deu febre.” Dizem que as dores de cólicas renais são tão ruins como dores de parto, e depois de quase trinta anos, He-lena teve que tratar dos rins novamente só que dessa vez, o esquerdo que, pela falta do outro, está comprometido.

“Ele é assim, ele é muito ignorante, mas tem o cora-ção bom. Ele não é uma pessoa ruim. Se ele chegar aqui você vai falar ‘nossa, esse cara é excelente, né!’”. Bom de papo, não maltrata ninguém, entendeu? Mas o maior problema é isso”. O “isso” a que Helena se refere é a be-bida. Ela diz que o tiro não foi acidental. E sim, culpa do conhaque que Augusto tinha tomado no dia. “Aí eu tô pedindo a Deus que ele pare com a cerveja também, que ele vire outra pessoa. Ele esquece de tudo... deixa tudo aí, só coisa espalhada”, e suspira com o rosto aflito de tanta desordem ao passar as mãos pelos cabelos pre-sos e ao arrumar o óculos de grau no rosto.

A casa estava uma bagunça e Helena pareceu não se incomodar. A mesa da sala de jantar estava repleta de bombons e cones de chocolate que ela faz para vender. O armário da sala, onde está a televisão e vários porta-

retratos nas prateleiras, tem mais chocolates guarda-dos espalhados junto com remédios e alguns bibelôs. Nas laterais dos sofás estão as coisas que Augusto cole-ciona do motoclube e Helena não suporta. “Ele gasta o dinheiro dele só com isso”, reclama.

Todos esses anos Helena e Augusto passaram juntos. Ela não pode ter filhos, então, construíram uma vida a dois. Durante muito tempo dormiram em motéis espa-lhados pela zona leste da capital e, na maioria das vezes, era ela era quem sustentava tudo. Ele deixava para gastar o dinheiro com outras coisas que julgava mais importan-te, por exemplo, roupas novas e presentes.

na e Augusto resolveram assinar os papeis para valer. De namoro são 23 anos, mas, de casados, apenas sete. Nas fotos, Helena está com ar de satisfeita, e Augusto, de con-tente. Simples, em um cartório da região, convidaram apenas os padrinhos e amigos mais chegados para par-ticipar da cerimônia. Helena conta que muita gente apa-receu sem ser convidada. “A chata da minha tia que se convidou... fulano se convidou, cicrano se convidou...”, aponta um por um nas fotos, sem citar nomes.

Helena comprou um vestido verde claro para com-binar com os olhos, “custou R$ 49,90, menina! Ninguém fala”. Ela sempre teve muito bom gosto para comprar roupas e acessórios. Lembra que, dia desses, passou na Têxtil Abril, grande magazine de roupas no centro da capital. “Comprei umas blusinhas lá por sete reais”, conta. No casamento estava com os cabelos presos, mas ainda compridos. “Ah, não aguento mais. Imagi-na, menina, com 53 anos nas costas eu vou ter cabelo comprido? Olha essa ponta aqui, já está até pra cortar de novo!”, diz, com tom de pouca vaidade passando as mãos pelos cabelos.

Helena não se cuida mais como antigamente. No dia, após a cerimônia de casamento eles ofereceram um almoço aos convidados. Nada muito sofisticado, apenas para comemorarem a união oficial do casal. E, de repente, quando insisto em perguntar sobre o casamento ela inter-rompe abruptamente e diz: “Então, eu estou aí. É isso aí. Mas ele não para com as ‘galinhagens’ dele, né. Então...”.

Augusto sempre foi muito bom para os outros. No começo do namoro, tudo era lindo, tinha clima de ‘novo’, de conquista, de uma nova perspectiva de vida. Para Helena, depois de um tempo, e de tudo o que acontecera entre os dois, ele passou a ser quase um ini-migo. As ‘galinhagens’ a que ela se refere abertamente são os casos com outras mulheres que ele sempre man-teve e que ela só tomou conhecimento depois de muito tempo juntos.

Ela conta com ímpeto e certo orgulho que até já gravou algumas ligações com o intuito de desmascará-

““ nossa, eu fiquei ruim,

menina. só tinha calafrios, me sentia muito mal. A

última vez me deu febre.

Os pais dele tinham uma casa modesta em um bairro afastado do centro da zona leste, próximo a São Mateus, chamado Cangaíba. Quando os pais de Augusto faleceram, eles puderam finalmente, morar em uma re-sidência fixa. “Aí nós viemos morar para cá”, conta.

A casa não é muito grande. É como aquelas casas de antigamente: em um terreno retangular, compri-do e bem fundo. Os pais de Augusto que construíram. É térrea e, ao invés de um sobrado, construíram uma casa com um andar para baixo, como um porão, com quarto e cozinha. “Antes a gente morava lá embai-xo, só depois que viemos aqui para cima”. Augusto e Helena estão há vinte e nove anos juntos. “Fez dia 20 de fevereiro”, comemora Helena. Ela ressalta que tudo aconteceu em época de Carnaval. O romance, o namoro, o casamento.

“Eu casei com ele depois de 23 anos”, conta, ao procu-rar o álbum de fotografias do casamento. Em 2003, Hele-

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lo. “Eu já deixei até gravando aqui em casa, por causa das ligações que ele recebe... Pra eu pegar, né, e dar um pontapé na bunda dele”. Ela sabe quem é e também que não foi apenas uma outra mulher ao longo dos anos. Helena vasculha o celular do marido e não dá ponto sem nó. “Eu já peguei mensagem de voz no celular. Da segunda vez foi no shopping Penha, eu dei um show lá, menina!”, dramatiza.

Nesse dia em que Helena cita que deu um ‘show’, ela e Augusto foram até o shopping comprar um chip para o celular novo que tinham comprado. Ela tinha perdido o dela, e ele precisava de um novo, o atual já não fun-cionava muito bem. Ao relembrar a história, Helena se levanta do sofá da sala, e interpreta como se revivesse o momento: “Eu estava na fila da lotérica no shopping Penha junto com ele e ela estava no telefone só obser-

descreve. Helena é completamente louca por Augusto. Se não fosse, talvez não enfrentasse as “outras” como faz. De vez em quando ela vai a um centro espírita perto de casa, apesar de não ser muito religiosa. “Você sabe que eles contam, né? O guia [espiritual] falou assim pra mim, ‘se ele liga vinte vezes para você, ele vai ligar cinco para ela’. Eu falei, ‘eu quero que acabe isso aí! Eu já não aguento mais!’”.

Ela descobre as coisas só de conviver com o mari-do dentro de casa. “Ah, aparece tudo na minha casa, vem de bandeja”, explica. É o telefone que Augusto não desgruda, é o bar e, há um tempo atrás, ela encontrou coisas no Orkut. “Quando eu vi falei pra ele, ‘tira essa vagabunda daí se não jajá eu vou dar um soco nesse computador!’”, relembra Helena. Que não deixa barato e vai para cima do marido.

Helena diz isso porque sabe que a maioria das mu-lheres que dão em cima de Augusto, e que ele retribui, também têm maridos dentro de casa. Ela não pensa em deixá-lo, mesmo assim. Os dois vivem intensamente uma relação de amor e ódio. Quando nada parecia mais surpreender, Helena contou que assim como Augusto, também tem um revólver.

“Ele colocou cadeado no meu revólver. Eu tenho porte de arma e tudo. Porque ele tinha firma de se-gurança, e eu tinha que ter uma também, né. Para prestar conta. Ele tem o dele, tenho o meu, e temos mais um. Nós temos três”, conta. “Ele colocou cadeado porque outro dia eu quis matar ele. Peguei o revólver e falei, “eu vou te matar”. Aí ele pôs cadeado. Não é fácil, não...”, continua.

Perguntei a ela se o que ela sente por ele é amor. Ela diz que já não sabe mais. Segundo Julia, sua amiga, ela apenas fala que vai fazer algo, mas não faz. Ela o ama, apesar de tudo. Para Helena, seu casamento é puro costume. “São 29 anos. Então é difícil, né. Eu só peço a Deus que ele me-lhore, né. Que comece a enxergar as coisas por outro lado. Porque eu nunca fiz nada de errado. Não carrego nem ho-mem no meu carro”, justifica, mais uma vez.

Helena não é boba. Ela diz que é possível trair até pelo olhar, pelo pensamento, mas que, achar bonito quem é bonito não é mal algum. Ela olhou para outros homens sim, se interessou por eles, mas nunca pensou em ter outro relacionamento com algum outro homem como tem com Augusto. Julia diz que Helena dispensou muita oportunidade na vida. Com a beleza que tinha, poderia ter quem quisesse. “Sabe qual foi a verdadeira palavra pra ela? Burra!”, resume Julia, diante da amiga.

Helena namorou quatro vezes. Por duas vezes ficou noiva antes de conhecer Augusto. Aos dezessete anos conheceu Edinho. “Ah, ele era tão bonito...”, fala com um sorriso de lado no rosto. Ele era sete anos mais velho do que Helena. Como de praxe, meninas mais novas ficam encantadas por homens mais velhos. Ele era marcenei-ro na época. Hoje está casado, e está começando a fi-

car grisalho. “Como que a gente é besta, não é? O único com que eu queria estar era o médico, eu namorei um médico”, e volta a falar na história de Rondônia, com certa confusão nos fatos.

Com ar de riso, Helena relembra que, na solteirice, conheceu o dono de uma padaria próximo da casa onde morava com os pais. E diz que foi dele que gostou de verdade. Ele tinha a idade para ser pai dela e, até certo momento, cogitou levá-la para Portugal com ele. “Ele era magrinho, fino, me tratava que nem uma princesa...”.

De todos os citados nesta história, Helena afirma que o que ela queria estar mesmo era o médico de Ron-dônia. “O único com que eu queria estar era ele”, conta. Teve outros homens, aproveitou o momento, mas foi ao lado de Augusto que pode viver intensamente uma paixão. “Teve o Roberto também, dele eu fui noiva e de mais um outro namorado que tive. Mas nunca deu em nada”, relembra.

Logo quando Helena ia se casar no papel com Au-gusto, a mãe de Julia, já uma senhora de cabelos bran-cos pelo tempo, ficou muito brava. Ela, portuguesa nata, de personalidade forte, guerreira e com um ho-mem violento também dentro de casa, disse a Helena: “eu não acredito que você vai fazer isso. Eu gosto tanto de você, você vai fazer isso? Eu não acredito...”.

Dona Alice sabia de toda a história. Criou seus filhos e netos com Helena sempre por perto. Julia e ela eram amigas de portão. Sempre que precisava, pedia socor-ro a Helena. Um dos filhos de Julia, Gustavo, quando pequeno chamava Helena de “Xuxa”. O bebê chorava quando ela ia embora, e perguntava, “mãe, porque a Xuxa foi embora? Eu quero ela aqui!”, e caía no choro.

“Ela estava sempre lá com a gente. Minha mãe gos-tava muito da Helena. Meu pai também, uma vez, a gente foi pra Ubatuba, foi fazer uma viagem... O pneu furou, e foi caixa de tomate, caixa de cebola, saco de batata, tudo pra levar pra praia. Nós fomos para um chalezinho. Dessa vez o Augusto não foi junto”, conta com o gosto de boas lembranças.

““Quando eu vi falei pra ele, ‘tira essa vagabunda daí senão

já já eu vou dar um soco nesse computador!’

vando a gente de longe. Eu vi!”. Helena deixou Augusto na fila e foi atrás da mulher.

Helena se escondeu atrás de um dos pilares próxi-mos a escada rolante, sem que a moça pudesse perceber. No momento em que ela saiu do lugar em que estava rumo à fila da lotérica, Helena foi em sua direção e a puxou bruscamente pelos cabelos. “A hora que parou eu puxei o cabelo dela e falei: “sua puta! Você vai parar de ligar para o meu marido ou não vai?”“. E ela falava, “eu não sou puta”, e eu falava, “você é ‘putona véia’, sem vergonha! Some daqui que eu vou quebrar a sua cara!”. E ela sumiu que eu não vi nem pra onde foi!”“, diz Hele-na, com tom de orgulho na voz.

Essa outra mulher, especificamente, é casada. Mes-mo assim procura por Augusto, que aceita ao convite. Helena a descreve com certa precisão: “Ela tem o ca-belo preto, o olho bem azul e parece um kibe de corpo”,

Essa não foi a primeira mulher, nem a segunda, nem a terceira que Helena correu atrás. “Já fui na casa de uma, já fui na casa de outra, e vou assim...”. Ela diz que não pensa em se separar. Certa vez ela já arrumou suas coisas e decidiu que ia embora de vez, mas desis-tiu. Quando o assunto entre ela e Augusto é a separação ele é bem categórico: “Sabe o que ele fala? ‘Vamos no cartório, separa!’. E eu falo pra ele, “é fácil para você, né! Você não tem sentimento, mas eu tenho’”.

Helena conta com indignação que com um ano de casado, já depois de 23 anos juntos, ele beijou uma mulher, também casada, na sua frente e disse para ela que ia se separar quando Helena foi cobrá-lo. “E sabe o que ele falou aqui pra mim aqui, sentado no sofá? ‘Eu vou me separar...’, e eu disse “vai? Vamos separar, então. Amanhã tem mais neguinho separando porque eu vou na casa daquela vagabunda lá contar tudo!”“.

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Julia é bem direta quando diz que Helena é igual à sua mãe. “Igualzinha à minha mãe. Reclama e fala ‘ah, esse homem não sei o que’. E a minha mãe não vivia sem meu pai. E você a mesma coisa com o seu marido”, diz. Helena, com olhar de pesar e desconforto pela provo-cação olha para Julia e diz, “Ah, a gente acostuma né”.

Augusto é um ano mais velho que Helena, tem 54 anos. Além do quarto do casal, próximo à cozinha ele tem um quarto que faz de escritório. Helena chama o quarto de “maloca”. Segundo ela, é entrar lá e levar um susto de tanta bagunça. “Eu tinha arrumado tudo. Agora você entra ali na maloca dele e dá medo!”. Hele-na conta que de dia de semana chega a ser pior. “Você só tropeça em calçado, sapato, aí eu vou, ‘cato’ tudo, é colete, todas as coisas. Quando ele está aqui, essa mesa é só tralha dele”, e mostra objetos sobre a mesa da sala.

Ela ressalta esse tipo de coisa principalmente porque ele não está em casa no momento da entrevista. Augusto foi fazer uma viagem de moto até a Bahia para rever pa-rentes distantes. E ainda ressalta que Augusto exige que a casa esteja limpa e arrumada sempre. Agora que se apo-sentou como sub-tenente, chega a pedir para ela tirar o pó da tela da televisão. “Aí eu viro e falo pra ele, ‘ah, deixa assim que é pra conservar!’ E ele invoca. Eu não estou nem aí, eu deixo o pózinho lá mesmo...”, conta.

Augusto não ajuda Helena em casa. Só agora, no final do ano, quando ela fez a cirurgia, foi que ele tomou conta de parte da casa. “Ele larga tudo pra fora. Não tem nada no lugar”, reclama. “E eu não limpo. Eu não acho faxineira, e eu não vou me matar. Eu faço o que eu posso”, conclui.

Há 14 anos Helena e Augusto começaram a fazer parte de um motoclube famoso da capital paulista. Ele é apaixonado por motocicletas. Na garagem tem uma Su-zuki grande, robusta e vermelha. Digna de um verdadei-ro “chopper”. O motoclube a que pertencem não é como

o Hell’s Angels2 ou o Abutres3, mas é algo que conside-ram um passatempo, uma diversão aos finais de semana em que resolvem voltar a ser felizes, um com o outro.

“Ah, eu gosto. Uma vez ele ganhou uma moto aí de um delegado. Eu adoro, nossa, pegar, dar um rolê...”, conta Helena. Ela diz que tem dias, geralmente domin-go, eles pegam, saem de moto para passear e tomar um café da manhã fora de casa. “Eu tomo um banho, po-nho o colete. A gente vai almoçar em Guararema, tomar café...”, relata, com ar de saudade e nostalgia na voz.

“Ele era feio, você transformou ele...”, afirma Julia ca-tegoricamente. E Helena ironicamente concorda. “Na época que eu conheci ele, falei nossa, credo, que homem brega...”. Helena conta que ele evoluiu muito fisicamente e que cuida muito do corpo e da aparência. “Hoje ele é muito limpo, muito vaidoso, me irrita até! Ele me enche o saco com as coisas de casa, mas eu não estou nem aí”, diz.

Hoje Augusto e Helena não brigam mais a ponto de se bater. A relação dos dois como homem e mulher não é mais a mesma coisa faz tempo, conta Helena. “Ih, ó..”, e faz o sinal de negativo com as mãos. Na cama, os dois deitam apenas para dormir e descansar de um dia exaustivo. Ela conta que nem com aquele “remedinho”, a pílula azul, a relação acontece entre os dois. O que para ela chega a ser frustrante. Ela sabe que, fora de casa, ele está fora do seu olhar.

Helena diz que já pensou em sair, viajar, ficar um tempo longe para espairecer a cabeça e relaxar um pouco. Mas não o faz. “O grande problema é deixar ele sozinho aqui minha filha. Aí isso aqui desanda de vez”, premedita enquanto vai até a cozinha pegar um copo de Coca-Cola e alguns bombons que fez para a páscoa. “Eu não tenho tempo para nada! Quando não sou eu que passa mal é o ‘mala’ que eu tenho que levar no mé-dico. Tá assim, eu não tenho tempo de nada”, lamenta.

Hoje em dia ela deixou o comércio. “Faço doces pro colégio militar, pro ambulatório militar. Eu já trabalhei com saco de lixo, ouro, frango, peixe. Com tanta coisa. E no comércio, sempre”. Não trabalha mais como ven-dedora de porta em porta, mas faz chocolates e outros tipos de doces para manter o seu sustento. Ela conta que, com a aposentadoria de Augusto, agora que ele fica o dia todo dentro de casa, as coisas ficaram mais complicadas. “Ele torra todo o dinheiro dele”, diz.

No meio da entrevista, o telefone toca. Era uma clien-te querendo fazer encomendas para a páscoa. “Eu faço Amarula em casa”, conta Helena. Amarula é um licor, preparado com creme de leite e amendoim. Ela faz em casa e dá um toque especial com uma boa dose de cho-colate aerado derretido na receita. “Todo mundo adora. Já tenho umas dez encomendas para a páscoa”, conta.

da estar com ele. Ela responde pura e simplesmente que é pela convivência. “Ah, eu acho que a convivência né. Eu sou covarde de tomar atitude também”.

No fundo, só ela sabe o que realmente se passou esses anos todos de união e as coisas que escuta de Au-gusto até hoje. “Ele sempre fala, você pode se mudar, e se eu descobrir alguma coisa eu vou atrás... Falo para a sua família...”, e relembra diversas vezes que Augusto fez ameaças desse tipo a ela. Ela permitiu com que o grande amor de sua vida cometesse violências simbólicas con-ta ela. Permissão ssa que ferem mais do que qualquer outra. Helena perdeu o amor-próprio, e nos seus olhos é possível ver o desgosto e o cansaço de enfrentar a vida.

Helena é de Aracaju, mas foi registrada em Tabaca-íba, município próximo. Veio para São Paulo aos três meses. “Meus pais vieram para cá, vieram trabalhar aqui”. Enquanto pega um outro álbum de fotos, ela con-ta que antes morava na Vila Matilde e, seu pai ajudou o bairro a crescer junto com tantos outros e estrangeiros que fizeram residência fixa por lá. “O negócio da minha família sempre foi comércio”, conta.

Ela é a mais velha da parte das mulheres. Nunca quis saber a origem de seu nome. Eram seis irmãos, hoje são apenas quatro. Ela conta que em relação ao seu casa-mento, nunca ninguém se meteu, por mais que não concordassem. Como os pais de Helena já faleceram, ela já não tem quase mais ninguém da família. Uma das irmãs faleceu quando foi dar a luz a uma menina que, felizmente, sobreviveu; Helena tem mais duas irmãs e um irmão. Todos se distanciaram com o tempo e hoje, tem um relacionamento muito superficial com eles. “Eu não tenho família”, afirma.

Em 1991 ela e Augusto foram visitar a família em Aracaju. “Ele pagou o almoço para todo mundo”, conta. Augusto também não tem uma relação muito próxima com sua família. No final, sobram apenas os dois, um ao outro. E a filha dele que mora na parte de baixo da casa. “Eu já apanhei por causa da filha dele”, conta.

““ Ah, eu acho que a

convivência né. Eu sou covarde de

tomar atitude também.

2 Hells Angels Motorcycle Club é o mais famoso motoclube que existe. Foi através dele que modelo de um grupo de motociclistas “fora da lei” tal como hoje o conhecemos surgiu, nos Estados Unidos.

3Abutres MC é o maior motoclube do Brasil e um dos maiores do mundo, é formado por mais de 4000 motociclistas atualmente.

Mesmo com a produção intensa de doces e chocola-tes, durante a conversa, ela diz com o rosto franzido e um pouco pálido, que está desanimada com a vida. “Ah, eu es-tou! Não tenho vontade de fazer nada...”, lamenta. Augusto passa muito tempo dentro de casa e isso a incomoda. Po-rém, nas horas em que ele não está em casa, ele vai para uma padaria próxima e volta bêbado ou, pelo menos, com cheiro e gosto de cachaça na boca. Ela não suporta.

“Eu adoro quando ele vai viajar, ele dá um sossego para mim... Eu não lavo um fogão, nem nada. Só faço um café. É assim a vida da gente”, conta Helena. O relaciona-mento dos dois definha a cada dia que passa. Perguntei para Helena como ela se sente em relação a tudo o que aconteceu e se, depois de tantos anos, o porquê dela ain-

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Um dia, Helena e Augusto saíram de moto. O vidro da janela da sala ficou aberto afinal, a filha dele ainda estava em casa e não havia necessidade de fechar na-quele momento. Quando voltaram, Augusto quis saber porque estava aberto. “Aí a gente chegou aqui, depois do almoço e ele perguntou: “quem saiu por último?”. No momento em que Augusto fez a pergunta, Helena conta que voou lixo para tudo quanto é lado. “Ele chu-tou tudo... As coisas de páscoa, eu joguei tudo no lixo... Falei assim, ‘eu vou e jogo pra onde eu quiser, o dinheiro é meu’...”, relembra mais uma das brigas que tiveram e o modo como o desafiou.

“Aqui em casa é assim, cada um tem seu dinheiro”, conta Helena. Apesar da dependência de um pelo ou-tro que há entre Helena e Augusto, cada um tem a sua vida, de certa forma. “Nem dinheiro para comprar ci-garro eu peço para ele”, conta. O único problema é que Augusto pede, com frequência, dinheiro emprestado para Helena. Muitas vezes, ela foi quem sustentou tudo entre eles. Augusto gastava com futilidades e Helena era quem pagava as contas, os boletos, tudo. Porém, hoje, Helena diz que as coisas são um pouco diferentes. “Meu dinheiro ele não acha nunca. Ele também não pega, ele pede. E é gastão, viu?”, ressalta.

“Estou com o saco cheio da minha máquina de la-var”. Helena reclama da máquina de lavar que tem mais de vinte anos e vaza o tempo todo. Pensou em comprar uma nova, mais moderna, de 10kg. Mas o desânimo ainda é um impedimento. Além da máquina de lavar, Helena está sem ânimo para se cuidar, e cuidar da casa. “Ah, e eu não tenho mais vontade nenhuma de fazer coisas e comprar coisas aqui pra casa, perdi o gosto. Eu não quero fazer nada”, diz. Ela conta que sua insatisfa-ção chegou ao ponto de não deixar Augusto e seu irmão terminarem de pintar a parede da sala. “Ele e o irmão dele que pintaram e me irritou. Aí eu mandei parar”.

Com os cabelos presos e a roupa suja de tanto tra-balhar, Helena tem hoje a pele enrugada, cansada, com os olhos tristes. O desgaste que a relação com Augusto Aos 24 anos, com as roupas da moda, o cabelo Farah Fawcett; quando a vida ainda parecia ser divertida

causou durante todos estes anos chega a ser visível. Ela conta que, por mês, ele consegue tirar 3.500 reais de aposentadoria e que gasta tudo com besteiras. As cha-madas “besteiras” por Helena são roupas, e coisas para o motoclube, apenas. Ela consegue tirar cerca de 2.000 reais por mês com os chocolates que faz.

Próximo à cozinha, ela guarda todos os ingredientes para preparar os chocolates. É um corredor estreito, lo-tado de caixas e mais caixas de barras de chocolate. “Ali no corredor é a minha fábrica! Olha as minhas tranquei-ras...”, mostra Helena, com gosto. Logo na entrada da cozinha já dá para ver os pedidos presos na parede. Ela mantém todas as encomendas anotadas, catalogadas, para não se perder. Mas ainda, além dos chocolates, o que mais interessa a ela, são as saídas e viagens que Au-gusto faz para longe. Ela diz que é um sossego quando ele está fora, mas tem a segurança de que ele sempre vai voltar para ela.

O amor que ela sente por ele ainda existe, por mais que a convivência aponte para algo desgastado e repe-titivo. Se é que se pode chamar de amor o que sente. Ela é completamente apaixonada por Augusto. Algo como uma paixão desmedida talvez explique melhor. Helena deixou a si mesma para viver em função de um homem que, anos atrás, cometeu uma grave violência contra ela. Como ela mesma diz, motivo ele não tinha. E o perdoou por tudo. Deve ao erro da pontaria a sua vida. Mas, será? Como dizem os poetas, o amor às vezes tem facetas que até a própria razão desconhece.

No final da entrevista Helena escreveu, com des-gosto, o que realmente acredita ter acontecido naquela noite a quase 30 anos. “Pronto. Eu não gosto muito de escrever”, e entregou-me o caderno com o que acabara de rabiscar. Com a letra fraca, sem vontade, com alguns erros de português, ela, decepcionada, confessou que o tiro que levou nas costas, disparado por Augusto, seu atual marido, foi culpa do conhaque. E que, ao ver o de-sespero dele com tanto sangue, chegou a acreditar que foi por acidente e que ele só o fez por medo de perdê-la.

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Augusto e Helena se casaram no papel após 23 anos juntos; ela de vestido longo, ele de terno, para selar a uniãoQuem conhece Augusto hoje, e não sabe do que aconteceu no passado, não imagina que ele colocou uma vida em risco

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Não se sabe ao certo o que é. Pode ser amor, medo, insegurança. Depois de tantos acontecimentos, o casamento ainda resiste