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O Dualismo Mente- Corpo: Implicações Para a Prática da Atividade Física Lucas Vieira Dutra

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O Dualismo Mente-Corpo:

Implicações Para a Prática da

Atividade Física

Lucas Vieira Dutra

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Título: O Dualismo Mente-Corpo: Implicações Para a Prática da Atividade Física Autor: Lucas Vieira Dutra Editora: CopyMarket.com, 2000

O DUALISMO MENTE-CORPO: IMPLICAÇÕES

PARA A PRÁTICA DA ATIVIDADE FÍSICA

LUCAS VIEIRA DUTRA

ORIENTADOR: Maria Eunice Quilici Gonzales

Dissertação apresentada ao Instituto de Biociências do Campus de Rio Claro, Universidade Estadual Paulista, como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Ciências da Motricidade (Área de Motricidade Humana).

RIO CLARO

Estado de São Paulo - Brasil

Setembro 1.996

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Oferecimento e Agradecimento

Lucas Vieira Dutra

Ofereço este trabalho aos meus pais e irmãos pelo incentivo e apoio e aos meus filhos.

AGRADECIMENTOS

Observando este trabalho, lembro-me de muitas pessoas que contribuíram para que viesse à luz. Não vou declinar os nomes por receio de deixar de reconhecer alguém de direito. Meus pais, amigos e colegas do curso, todos a sua maneira auxiliaram na manufatura do texto, mesmo sem o saberem. Também os funcionários da Universidade Estadual Paulista, em especial as moças do Departamento de Pós-Graduação, sempre gentis e solícitas. Os Professores do Curso de Educação Física, muitos dos quais, entre as aulas e nas discussões que mantivemos, influenciaram a direção que o trabalho adquiriu. O maior agradecimento vai para a amiga e orientadora Maria Eunice, cuja influência em minha formação vai muito além do que se intenta num adestramento acadêmico. As suas qualidades profissionais, notadamente a honestidade e o rigor, ombreiam em excelência as suas pessoais, o que reconheço deixaram marcas perenes em meu espírito. Obrigado!

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Sumário

Lucas Vieira Dutra

AGRADECIMENTOS ........................................................................................................................................... i

SUMÁRIO ................................................................................................................................................................... ii

RESUMO .................................................................................................................................................................... iii

ABSTRACT ................................................................................................................................................................ iv

INTRODUÇÃO........................................................................................................................................................ 01

PARTE I - As Raízes Histórico-Filosóficas do Problema da Relação Mente-Corpo........................................ 09

Capítulo 1. O Problema Da Relação Mente-Corpo nos Gregos Clássicos.......................................................... 09

Capítulo 2 . O Dualismo Cartesiano........................................................................................................................... 13

PARTE II - O Problema da Relação Mente Corpo na Visão Filosófica-Científica Contemporânea............. 18

Capítulo 3 . Crítica ao cartesianismo: Gilbert Ryle................................................................................................... 18

Capítulo 4 . Materialismo, Funcionalismo e Ciência Cognitiva............................................................................. 26

PARTE III - O Problema da Relação Mente-Corpo na Prática da Atividade Física..................................... 36

Capítulo 5. Dualismo e a Prática da Atividade Física.............................................................................................. 36

CONCLUSÃO............................................................................................................................................................. 52

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................................................................................ 54

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Título: O Dualismo Mente-Corpo: Implicações Para a Prática da Atividade Física Autor: Lucas Vieira Dutra Editora: CopyMarket.com, 2000

Resumo

Lucas Vieira Dutra

O assunto desta dissertação é o problema da relação entre Corpo e Mente, bem como algumas de suas implicações para a atividade física humana. Discutimos inicialmente em que consiste este problema, tentando identificar alguns de seus componentes, em especial, as conceituações do que seria 'mente' e 'corpo' e a relação entre eles.

Investigando as raízes filosóficas subjacentes a este debate, consideramos, na antigüidade, as contribuições das tradições: Idealista, representada pelo trabalho de Parmênides e Platão e Monista e Dualista, através de Heráclito e Aristóteles.

A seguir, verificamos, na modernidade, os reflexos destas tradições, através das concepções dualistas e materialistas dos estados mentais.

Como principal representante da visão dualista do problema mente-corpo, consideramos o raciocínio de René Descartes nas obras Meditações e As paixões da Alma. O posicionamento cartesiano ainda possui muitos defensores, apesar das dificuldades apontadas pelos seus críticos.

O trabalho de um crítico de Descartes, o filósofo inglês Gilbert Ryle, é discutido em relação ao que pretende apontar de equívocos lingüísticos no raciocínio cartesiano. Neste tipo de erro residiria, segundo Ryle, grande parte da fragilidade lógica da visão dualista.

Outro posicionamento que identifica certas dificuldades na visão dualista seria o Materialismo. Discutimos neste âmbito algumas contribuições para o debate materialismo/dualismo, oriúndas do eliminativismo, do materialismo reducionista e do Funcionalismo. Analisamos também a incorporação da abordagem funcionalista ao programa da Ciência Cognitiva, durante as décadas de 70 e 80.

Em seguida, discutimos as implicações da visão dualista para a prática da atividade física, através da análise do trabalho de alguns teóricos de Educação Física. Estes estudos versam sobre vários aspectos, tais como: saúde, "fitness" e a necessidade de considerar o fenômeno do movimento humano de uma perspectiva mais holista, integradora dos vários aspectos do Homem que foram se compartimentalizando ao longo dos séculos.

Terminamos a dissertação sugerindo que a análise do componente lingüístico pode exercer um papel importante, no estudo do problema da relação mente-corpo. Este aspecto da linguagem parece estar subjacente nas discussões tanto teóricas quanto práticas e muitas vezes implicam em equívocos que dificultam o debate, levando a obstáculos trabalhosos de parte a parte.

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Abstract

Lucas Vieira Dutra

This thesis deals with the Mind-Body Problem (MBP), and its implications to studies of human physical activity. For centuries, this MBP has been the subject of attention of a great number of thinkers in many fields, but in spite of this, we do not have consensus about this matter. In others words, this problem remains unsolved.

As a matter of fact, the MBP embraces many others problems, mainly the correct definitions of what is 'body' and 'mind', and the relationships between them. Additional obstacles prevents, on the one hand, an understanding of human being as a whole, sometimes determinating a partial conception of them as a quasi-perfect aggregate of parts forming a self-contained, independent physical unit. On the other hand, humans can be viewed as an expression of an aggregate of two or even three different substances, one necessarily 'spiritual' or mental.

The present work introduces some of the traditional theories on the MBP and analyses the influences they led in this field nowadays. Implications of these views to some aspects of human physical activities are discussed, and the possibility of linguistic errors in the mantenance of the dualistic view is considered.

KEY WORDS: Categorical mistake, Dualism, Functionalism, Human physical activity, Materialism, Mind-body problem.

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Introdução Lucas Vieira Dutra

Um dos temas mais apaixonantes com que a Humanidade sempre conviveu, desde a Antigüidade, foi o

do relacionamento entre a Mente e o Corpo. Neste final de século, com o grande progresso científico, este mistério adquiriu contornos ainda mais desafiadores. Quanto mais explicações são propostas para elucidar a natureza do "mental", muitas vezes confundido e/ou associado com "alma" e "espírito" e sua relação com o corpo, tantas mais perguntas surgem.

A mente sempre foi considerada um enigma, constituindo um objeto de estudo, principalmente de filósofos e psicólogos. Contudo, ultimamente, ela passou a ser também matéria de textos e programas apresentados normalmente ao grande público, principalmente através dos meios impressos de comunicação (1).

Apesar de seu 'difícil' acesso, os fenômenos mentais se reduzem, para a Ciência, a estados cerebrais. O cérebro constituiria a fonte de onde poderiam surgir, assim que avançassem as pesquisas, as descobertas sobre a natureza do fenômeno mental. Para os materialistas, não existe a dificuldade platônica de explicar os acontecimentos da mente entendidos como "invisíveis", i.e., acontecimentos que ocorrem mas ninguém tem acesso, além do próprio sujeito que os possui.

Das pesquisas do efeito de drogas no cérebro e das doenças neurológicas, novas descobertas acerca do que seria a mente vêm dando suporte à concepção materialista do mental. Diversos periódicos de divulgação institucional também abordam o tema. O informe publicitário oficial da Associação Paulista de Medicina, distribuído através dos jornais de grande circulação, em sua edição de 30 de outubro de 1.992, traz em seu Editorial a aceitação da interação entre mente e corpo, citando que fatores emocionais influenciam "praticamente todas as doenças" (p. 01).

Se o grande público pode ter acesso, atualmente, a uma massa de informações muito extensa sobre o assunto, originada das mais inesperadas fontes, mais premente se faz à Ciência discutir alguns aspectos da relação mente-corpo. Em especial, os profissionais envolvidos com a atividade física esportiva ou recreativa poderiam, assim julgamos, incluir em seu programa de trabalho a consideração de tais temas, pelas implicações práticas e de pesquisa que suscita. Por exemplo, na discussão sobre se Educação Física constitui um tema científico ou uma disciplina acadêmica, o assunto da relação entre mente e corpo tem o seu lugar (2).

Santin (1.990) sugere a necessidade de se discutir as relações entre o corpo e a mente para a constituição de um saber apropriado, no bojo da Educação Física. Subordinar, quer o corpo, quer a mente, um ao outro em termos de importância, vai dificultar o reconhecimento da harmonia e beleza que ao final deve presidir as considerações sobre o ser humano. Isto porque parece que o Homem é um todo, não obstante dividirem-no para fins didáticos e de pesquisa e a ênfase num ou noutro aspecto vai influenciar a compreensão dos demais.

Na mesma linha de pensamento, Cunha (1.988) identifica a tendência antiga de se dualizar o ser humano no ato de estudá-lo, o que leva, em sua opinião, a incorreções pelas parcialidades que emergem. Continuando seu raciocínio, o autor considera a Educação Física como pré-ciência da Ciência da Motricidade Humana, constatando ser aquela "tão somente uma tradição disciplinar, não uma autonomia disciplinar" (idem, p. 06). O que parece estar implícito nesta discussão é o relacionamento entre a mente e o corpo, visto que, segundo Cunha, falta à Educação Física o que a Ciência da Motricidade Humana procura abarcar: o correto balanço entre o que a primeira tradicionalmente estudou e o que se concebe necessário acrescentar em conhecimento sobre o Homem como um todo (Cunha, 1.986 ; Cunha, 1.991).

A partir dos comentários acima, onde ressaltamos a importância do tema da relação mente-corpo em geral e no contexto da atividade física em particular, iremos discuti-lo sob uma perspectiva teórica de cunho filosófico.

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Aparentemente, todo campo de atividade que se relacione diretamente com vidas humanas pode se beneficiar em considerar o estudo de seus pressupostos filosóficos. Muitas questões consideradas de modo isolado, compartimentalizado, induzem a raciocínios no mínimo incompletos, quando não ilusórios ou equivocados. Há que se fiar nos procedimentos já consagrados de reflexão sistemática que nos garantam margem aceitável de rigor e plausibilidade nas indicações dos caminhos escolhidos e nas conclusões.

O presente trabalho pode ser entendido como um esforço para esclarecer conceitos relativos à concepção de corpo e mente. Como os conceitos só podem ser compreendidos com relação a redes de outros conceitos, julgamos oportuno discuti-los, bem como a relação entre eles, dentro do contexto da atividade física.

Antes de delimitar os caminhos específicos por onde desenvolveremos nossa pesquisa, faremos uma breve introdução geral aos conceitos de corpo e mente, que serão discutidos em detalhe no decorrer do nosso trabalho.

Iremos identificar adiante algumas caracterizações destes e de outros conceitos associados ao corpo, à mente e à relação entre estas duas instâncias, baseados principalmente na obra de Churchland (1.984).

O conceito de corpo

Nomeamos "corpo", no discurso do senso comum, às coisas que ocupam lugar no espaço (que possuem extensão), que nos rodeiam e que percebemos sensorialmente. Já nas várias abordagens científico-filosóficas, para que possamos compreender e raciocinar sobre este conceito, procuramos identificar e descrever-lhe os atributos distinguíveis. Desde a Antigüidade isto já se intentava. Por exemplo, Lucrécio (1.973), discípulo de Epicuro, salientava que "quanto aos corpos, basta o senso comum para lhes afirmar a existência; se não pusermos esta crença como fundamento sólido, não haverá, quando tratarmos de assuntos mais obscuros, nada em que nos apoiemos para estabelecer pelo raciocínio o que quer que seja" (p. 44, linha 420).

Um outro exemplo é a caracterização de Voltaire (1.752/1.978a) que identifica dois aspectos denotativos essenciais dos corpos: a extensão e a solidez. Sugere ainda a divisibilidade, quando pergunta: "De que se faz um corpo? De várias partes, e estas tais partes dividem-se noutras partes. E o que são estas últimas partes? Ainda e sempre corpos..."(p. 129-130). No entanto, em outro trabalho, (Voltaire, 1.734/1.978b) ao criticar uma idéia de Pascal, o mesmo alerta que "...não conhecemos o espírito nem o corpo; não temos idéia alguma de um e temos idéias muito imperfeitas do outro. Portanto, não podemos saber quais são seus limites (Vigésima Quinta Carta, LVI, p. 57).

A ênfase na extensão, solidez e divisibilidade está também presente em Locke (1.706/1.973) que identifica, na sua obra "Ensaios sobre o entendimento humano", vários aspectos importantes para a consideração dos corpos. Diz ele, principalmente nos capítulos XIV (p. 195), XVI (p. 199) e XVII (p. 201), que todos os corpos compartilham as características de terem uma extensão mensurável ou atribuída, o que leva à noção de quantificação e também o aspecto de ocuparem um espaço delimitado. A extensão implica aos corpos se justaporem uns aos outros, posto que não se interpenetram (cap. IV, p. 174) e condiciona as suas partes extraporem-se num todo configurável (cap. XIII, p. 192, 193). Pode-se ainda conjeturar outros aspectos sobre os corpos, tais como a mutabilidade e a diversidade

Entre todas as qualidades mencionadas acima, uma vai assumir importância fundamental no exame dos corpos: o aspecto da animação da matéria. O corpo, o ente corpóreo, é uma partícula do cosmo material. Alguns corpos apresentam a capacidade de locomoção, assimilação, crescimento e reprodução, próprios dos organismos vivos. Tais corpos, além de possuir em si as leis dos processos meramente físico-eletro-químicos, passam a subordinar-se também às leis que presidem a vida orgânica. Podemos, segundo Jolivet (1.979, p. 116) caracterizar a vida, descrevendo-a, em sua manifestação, pelo movimento espontâneo e imanente, ou seja, por um movimento que o ser vivo produz por si mesmo.

O movimento não é sempre comunicado ao ser vivo mecanicamente, de fora, como no caso do movimento de uma pedra, mas pode resultar de desejos, intenções, crenças, inerentes ao ser vivo (estas noções serão discutidas no decorrer deste trabalho).

De particular relevância para o Homem é uma região do corpo denominado encéfalo (3) que, em seus vários estados, segundo os materialistas, caracteriza a atividade mental. Nas discussões sobre a existência do que se denomina "mente" inevitavelmente se divisa o tema do corpo humano em geral e do encéfalo em particular.

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Afinal, parece que as mentes "habitam"(4) os corpos, em especial numa parte circunscrita ao tecido nervoso nomeado cérebro(5). Sabemos disso principalmente pelos efeitos que se demonstra na vida mental quando o cérebro sofre a ação de traumatismos, intoxicação por drogas, doenças(6), etc.

Segundo Churchland (1.984, p. 121), o sistema nervoso foi desenvolvido a partir de uma necessidade requerida pelos organismos multicelulares, de modo a facultar maior longevidade do indivíduo (o todo organizado tem a melhor expectativa de duração do que as partes que o compõem, além de ter melhor resposta à ação de predadores) e propiciar melhor capacidade reprodutiva. As várias partes especializadas de um organismo necessitam um sistema de comunicação entre células e órgãos que seja muito mais confiável e rápida do que a comunicação química.

Através de informações obtidas do estudo dos registros de fósseis, do estudo do desenvolvimento do sistema nervoso em embriões e do estudo da biologia dos organismos simples, consegue-se reconstruir a história evolucionária dos sistemas nervosos. Esta história evolucionária leva-nos a crer que, de dois conjuntos básicos e distintos (física e funcionalmente) de fibras nervosas, evoluíram os organismos em direção a sistemas altamente especializados de controle de comportamento e de movimento, dentro de um ambiente de objetos que também se movimentam.

O responsável em grande parte por este fenômeno é o neurôneo, uma célula alongada transmissora de impulsos, processadora de "inputs" recebidos via sinapses de outras células. Estes neurônios interconectam-se intensamente e adensam-se no tecido denominado córtex cerebral. Este nada mais é do que a superfície exterior de cada hemisfério cerebral composta de um largo tecido celular, dobrado sobre si mesmo como um papel amassado, "enrugado como uma noz" (Rose, 1.984, p. 25) de modo a maximizar a área total existente dentro do crânio.

O cérebro gerencia, através dos neurônios sensoriais, as atividades do ambiente fora do mesmo, mas ao realizar este trabalho gerencia também muitos aspectos de suas próprias operações. O cérebro tem uma rede extensa de "pontes" entre suas partes, o que se revela crucial para o seu funcionamento. A plasticidade das atividades de processamento de informações que o cérebro exibe fundamenta-se, em grande parte, na sua capacidade de dirigir atenção a aspectos prioritários, orientando seus recursos na consecução destes objetivos (Churchland, 1.984, p. 137).

Por meio de sua neuroarquitetura, o cérebro monitora os comportamentos corporais. Através de estudos dos distúrbios cognitivos produzidos por lesões em diferentes regiões do cérebro, infere-se que existe estreita correlação entre o que ocorre na matéria neural e o que se verifica no exame dos estados mentais (Churchland, 1.984, p. 142). O tecido nervoso pode ser danificado via uma infinidade de causas: objetos externos adentrando o crânio; danos pela pressão dos fluídos ou pelo crescimento de tumor; pode definhar pela perda de suprimento de nutrientes e oxigênio ou ainda degenerar por doença ou problemas geriátricos. Sabemos de distúrbios ocasionados por mal funcionamento bioquímico no nível dos neurotransmissores, hormônios facilitadores (ou inibidores) da transmissão de impulsos nervosos na sinapse.

Dependendo da localização da lesão cerebral ocasionada por quaisquer das causas acima declinadas, impedimentos na capacidade psicológica vão ocorrer para aquele que sofreu a lesão, variando enormemente na sua extensão e especificidade. Através da análise de cadáveres bem como de dados de outras técnicas diagnósticas, neurologistas e neuropsicólogos encontraram inúmeros correlatos neurais de distúrbios cognitivos e comportamentais, possibilitando a construção de um mapa funcional que ilustre o funcionamento de um cérebro normal. Estes dados, associados com um detalhamento da neuroarquitetura e da microatividade das áreas relevantes do cérebro, permitem nos levar a um entendimento do modo de funcionamento de algumas de nossas capacidades cognitivas, ainda que de forma limitada.

Por outro lado, não se deve esperar que as neurociências irão descobrir inteiramente, um dia, um tipo unificado e simples de atividade neural que explique o fenômeno da inteligência consciente (Churchland, 1.984, p. 144). Aparentemente, esta abrange muito mais situações do que as que possamos descrever com o funcionamento das partes do cérebro, no ato de processar informações. Contudo, dadas as inegáveis correlações entre alterações no cérebro e estados alterados de consciência, autores como Churchland pretendem explicar o funcionamento do sistema cognitivo, estabelecendo-se uma identificação entre mente e cérebro (posição materialista reducionista).

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Segundo o Materialismo reducionista (ou Teoria da Identidade) os estados mentais são estados do cérebro. Cada tipo de estado ou processo mental é idêntico a um tipo de processo ou estado físico, dentro do cérebro ou sistema nervoso central (Churchland, 1.984, p. 26). Na visão de alguns estudiosos da teoria da identidade, temos uma identidade universal em que um tipo específico de estado físico corresponde sempre a um mesmo tipo de estado mental. Por outro lado, outros teóricos asseveram que diferentes sistemas físicos podem, por constituirem estados físicos diferentes, estar relacionados a um mesmo estado mental. No primeiro caso, temos a tradicional teoria 'type-type' da identidade, no segundo caso, a chamada teoria 'token-token' da identidade. Tanto no posionamento 'type' como no posicionamento 'token', temos uma identidade e não uma mera correlação entre estados cerebrais e estados mentais. Observa-se uma área onde não se distingue mais a mente do corpo e vice-versa. Contudo, muita crítica tem sido desenvolvida, principalmente para o posicionamento 'token', posto que, paradoxalmente, a partir desta perspectiva, o estudo do cérebro não permite uma explicação da mente. Frente a este paradoxo, alguns materialistas radicais, entendidos como eliminativistas, esclarecem que o problema ocorre visto adotarem-se os termos da psicologia do senso comum, fortemente impregnada, segundo nossa concepção de termos mentalistas.

Vemos, a partir destes últimos parágrafos, como a conceituação de corpo humano parece incorporar, sob certas abordagens, aspectos que poderiam ser catalogados sob a rubrica de "mente". Está longe de ser claramente demarcada a fronteira que delimita as instâncias do que pode ser entendido como 'corpo' e 'mente'. Contudo, vários tipos de problema têm sido formulados para o estudo desta correlação e a seguir vamos introduzir alguns deles.

O conceito de mente

O Problema Mente-Corpo (ver Quadro 1) pode ser dividido em três sub-problemas, com o intento de delinear um possível relacionamento que a mente mantém com o corpo humano. Para termos uma aproximação adequada desta questão, devemos estabelecer outro questionamento, além da já abordada "O que é o corpo humano?". A questão complementar que se interpõe justamente é "O que é a mente?".

RELAÇÃO MENTE-CORPO

MENTE CORPO

Quadro 1 - Representação diagramática dos componentes do Problema da Relação Mente-Corpo

Iremos basear nossa explanação nos argumentos de Campbell (1.971), Priest (1.991), Searle (1.984) e Armstrong (1.983), elencando o que os mesmos discutem sobre o que seja a mente. Falaremos sobre individualidade, pensamento, consciência e intencionalidade.

Uma primeira questão a estabelecer é se a mente (se a entendemos relacionada com o corpo) seria uma coisa, uma substância, um algo. Assume-se que pessoas adultas saudáveis possuem uma (e uma só) mente. Contudo, isto não prova que a mente exista, no mesmo sentido em que dizemos, no caso de alguém que tem diabetes, apresentando sintomas específicos efetivamente averiguados, que o diabetes existe. Campbell (1.971, p. 5) coloca que a sugestão de considerar-se a mente como uma 'coisa' está aberta a questionamentos, mas que este questionar-se afeta somente o modo de se colocar o problema, e não o problema em si, que permanece. O autor indica que nova luz pode ser enfocada na questão ao se assumir a mente como algo, como uma coisa, facultando auferir em que consiste as características mentais do homem e as relações que mantêm com as suas características físicas.

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Outro aspecto que surge é o da individualidade. Ainda que haja discordância do que seja a mente, considera-se que um adulto possui uma mente individual. Mesmo que outros problemas apareçam, do tipo: "pode uma mente ser compartilhada com outra?" (como, ao que parece, na telepatia), fica a questão de como minha mente se relaciona com meu corpo, como sua mente se relaciona com seu corpo.

A Mente parece ser o elemento principal que diferencia o Homem dos outros objetos que aí estão, como plantas e pedras (há controvérsias sobre a existência ou não de mente nos animais). Entretanto, no discurso do senso comum, as pessoas seriam diferentes dos demais seres vivos, devido à existência da mente e esta retrataria, identificaria justamente esta diferença. Isto porque o Homem faz muitas coisas que as pedras, carvão e a maioria dos animais em conjunto não realizam. Falar de mente, segundo Campbell (1.971, p. 3), é falar de atividades auto-organizadas que distinguem o Homem de pedras, de carvão, de cadáveres, etc.

Priest (1.991, p. 210) julga que se considerar algo como mente é dizer que o mesmo tem capacidade de pensar. Para ele, ter a capacidade de pensar é logicamente necessário e suficiente para ser uma mente. O autor, compartilhando a teoria materialista, coloca ainda que a mente é o cérebro e que esta constatação é uma verdade empírica e contingente, não uma verdade a priori e necessária. Seria empírica no sentido que é verificada por experiência, como quando uma parte do cérebro de alguém é danificada e ocorrem danos em sua capacidade de pensar. Considera a mente uma parte do corpo, visto ser o cérebro, e remete o problema mente-corpo à investigação de como se processa o relacionamento do pensamento com o cérebro e o relacionamento entre a consciência e o cérebro.

Um outro tópico sempre associado ao tema da mente é a noção de consciência. A consciência é a primeira de quatro características mentais com que Searle (1.984) inicia suas ponderações sobre a dificuldade em se tratar o problema mente-corpo. Diz o autor, à pagina 20, que é um fato evidente que o Mundo contém estados e eventos mentais conscientes, apesar de ser difícil ver como meros sistemas físicos, podem ter consciência. Ele se pergunta: 'como o cérebro cinzento e branco dentro do crânio pode ser consciente?'. A consciência seria, em sua concepção, o fato central da existência especificamente humana. Sem ela, outros aspectos também especificamente humanos de nossa vida (linguagem, amor, humor), seriam impossíveis.

Uma segunda característica da mente seria a intencionalidade (Searle, 1.984, p. 21), pela qual nossos estados mentais, nas palavras do autor, "se dirigem a, ou são acerca de, ou se referem a, ou são (oriúndos) de objectos e estados de coisas do mundo diferentes deles mesmos". A questão da intencionalidade guarda semelhança com a questão da consciência, no sentido de que, como meu cérebro poderia ser acerca de alguma coisa? Como poderia se referir a algo?

Uma terceira característica da mente seria a subjetividade dos estados mentais. Exemplificando, digo que posso sentir minha dor, mas você não. Somos cônscios de nós mesmos e de nossos estados mentais, enquanto distintos dos estados mentais e da individualidade dos demais. Como se compatibiliza a realidade dos fenômenos mentais subjetivos com a concepção científica da realidade objetiva do cérebro?

A quarta característica apontada por Searle (1.984, p. 22) seria a causação mental. Se nossos pensamentos e sentimentos são verdadeiramente mentais, como podem afetar causalmente algo de físico? Como pode, indaga o autor, algo que é mental originar uma diferença física?(idem, ibidem). O conceito de causação mental permanece ainda bastante polêmico dentro dos estudos do mental. Ele será retomado no decorrer deste trabalho.

Após esta breve introdução aos conceitos de corpo e mente, passaremos agora a delimitar os objetivos e o caminho que desenvolvemos na pesquisa realizada nesta tese.

Objetivos e tema do trabalho

Iremos adiante identificar nosso itinerário de análise do problema da relação mente-corpo, expondo os assuntos que serão debatidos. Nossa pretensão não é discutir filosofia, mas analisar um assunto que permeia qualquer esforço de explicação das conquistas na Ciência, relacionadas à atividade física e ao Homem como um todo.

Conforme mencionado, nosso tema de trabalho gira em torno da análise do problema mente-corpo, visto sob uma perspectiva teórico-filosófica que visa averiguar as implicações das diferentes abordagens deste problema para a prática da atividade física.

Na parte I, composta por dois capítulos, iremos analisar as raízes histórico-filosóficas do problema mente-corpo. No capítulo I, discutiremos estas raízes nos gregos clássicos. No capítulo II, consideraremos o problema da relação mente-corpo na tradição cartesiana.

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Mais especificamente, estudaremos no capítulo I dentro dos gregos clássicos, como as tradições de Parmênides e Heráclito deram lugar, através respectivamente de Platão e de Aristóteles, à formação de duas concepções de Homem que ainda encontram eco nos dias de hoje. No capítulo II, discutiremos a contribuição de René Descartes para a discussão do problema mente-corpo, analisando as obras Meditações e As Paixões da Alma. Temos representado em Descartes o primeiro esforço racional, sistemático, elaborado com sentido de dotar o dualismo entre o físico e o mental com um embasamento criterioso. A influência destas obras para a Ciência e a Filosofia, no tocante ao problema mente-corpo em geral, faz necessário inserirmos esta discussão antes de introduzirmos outros aspectos.

Na parte II, composta de dois capítulos, discutiremos o problema da relação mente-corpo na visão filosófico-científica contemporânea. Através do capítulo III, analisaremos algumas críticas ao trabalho de Descartes. Nas seções I, II e III deste capítulo, discutiremos a obra de Gilbert Ryle The Concept of Mind (1949), onde é apresentada uma análise crítica do dualismo cartesiano.

No capítulo IV apresentaremos a posição do Materialismo, do Funcionalismo e da Ciência Cognitiva sobre o problema mente-corpo. Discutiremos as seguintes questões: (a) podem os processos mentais serem entendidos como processos cerebrais, e (b) as hipóteses materialistas concernentes ao problema da relação mente-corpo possuem efetivamente um status científico?

Na parte III, iremos refletir sobre o problema da relação mente-corpo na atividade física, em duas etapas. No capítulo V, analisaremos inicialmente questões sobre a mudança da imagem tradicional do Homem e sobre a influência dualista na prática da atividade física. Prosseguindo, discutiremos os conceitos de 'fitness' e saúde e as contribuições das abordagens orientais de atividade física, para o alargamento da visão ocidental em torno das tendências futuras para a prática da atividade física.

Finalmente, na Conclusão, faremos um balanço das questões anteriormente discutidas, e analisaremos alguns de nossos achados.

Metodologia empregada

O termo "método científico" é utilizado normalmente para descrever um conjunto de procedimentos racionais, sistematicamente empregados na busca e justificação do conhecimento.

A nossa empreitada aqui é discutir como utilizar um método de modo a clarificar nossos argumentos, tornando possível a obtenção do conhecimento sobre o problema da relação mente-corpo. Com tal objetivo iremos introduzir brevemente os raciocínios subjacentes aos métodos dedutivo, indutivo e abdutivo (ou retrodutivo), baseando-nos principalmente em Peirce (1.974) e Beveridge (1.981). Segundo este último, as principais etapas do método científico podem ser assim resumidas:

"(a) Reconhecimento e formulação do problema; (b) Coleta de dados relevantes; (c) Definição de uma hipótese por indução, indicando as relações causais ou padrões significativos dos dados; (d) Deduções a partir da hipótese e comprovação de sua exatidão pela experimentação ou com a coleta de

mais dados; e (e) Raciocínio de que se os resultados forem coerentes com a dedução a hipótese ficará fortalecida, mas não

comprovada". (Beveridge, 1.981, p. 56-57)

Estas etapas, aparentemente simples, envolvem inúmeras dificuldades lógicas e práticas, as quais não serão objetos de análise neste trabalho. Vamos antes, nos concentrar em alguns elementos dos tipos de raciocínio acima mencionados, de modo a colocarmos posteriormente o método que utilizamos em nosso trabalho.

Peirce (1.974), discutindo as etapas do raciocínio científico, indaga "Qual é a utilidade do pensamento?" (par. 159, p. 50) e passa a explicar, respondendo a sua própria pergunta, três tipos de raciocínio, o dedutivo, o indutivo e o abdutivo.

No raciocínio dedutivo, descobre-se uma verdade a partir de outras já conhecidas. "Na dedução, partimos de um estado de coisas hipotético definido abstratamente por certas características"(idem, ibidem). A inferência é válida se e somente se observamos uma estreita relação entre a informação contida nas premissas e a informação contida na conclusão.

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Nas palavras de Peirce, "a dedução envolve apenas as conseqüências necessárias de uma pura hipótese" (idem, p. 52), não podendo por isso dar origem a nada de novo (ver também Vargas, 1.985, p. 35)( ). Neste tipo de raciocínio o nexo lógico é o preponderante, não sendo tão relevante para o desenvolvimento do trabalho uma ligação das premissas com o mundo real. Por exemplo, no raciocínio:

Todos os homens são mortais Sócrates é homem Sócrates é mortal

todos os elementos para se chegar à conclusão estavam presentes nas premissas.

Diferentemente, no raciocínio indutivo procura-se, principalmente através da experiência, a correspondência das idéias com o que existe na realidade. "Um experimento...é uma pergunta posta à Natureza...(e)...baseia-se numa suposição"(Peirce, 1974, p. 52). Segundo Peirce, "A indução determina o valor de uma quantidade. Acompanha uma teoria e mede o grau de concordância desta teoria com os fatos. Não poderá nunca dar origem a uma nova idéia"(idem, p. 47). No raciocínio indutivo, se as premissas são verdadeiras, dizemos que a sua conclusão é, provavelmente, verdadeira. Exemplificando, se após inspecionarmos milhares de feijões em um saco constatarmos que, sem exceção, todos são brancos, diremos que todos os feijões daquele saco são brancos. No entanto, bastará a constatação da presença de um feijão preto naquele saco para ser necessário reformar o que até então se supunha verdadeiro.

Segundo Peirce (1.974), para apreender ou compreender os fenômenos, só o raciocínio abdutivo pode funcionar como método (p. 52). Para ele, este raciocínio consiste em estudar os fatos e inventar uma teoria para explicá-los (idem, p. 47); é o processo para formar hipóteses explicativas. É a única operação lógica a introduzir idéias novas (idem, p. 52).

O raciocínio abdutivo tem originado muitas das idéias da ciência. Em termos práticos, parte-se da análise da hipótese que se julga temporariamente verdadeira, extraindo-se as conseqüências de uma tal suposição. Em outras palavras, testamos nossa suposição ou conjetura, explorando suas conseqüências, ainda que não possamos demonstrar totalmente a validade de nossa suposição inicial.

Gonzales (1.984) discute o que Hanson (1.963) cita sobre a descoberta do neutrino, como exemplo de ocorrência do raciocínio abdutivo:

"Essa descoberta ocorreu com a detecção de partículas beta que, ao serem emitidas de uma fonte radioativa de desintegração espontânea, diferente-mente das partículas alfa, apresentavam camadas, e portanto, energia cobrindo um amplo espectro. Mas este fato conflitava com o princípio aceito de conservação de energia pois, se a fonte radioativa era homogênea, e todas as partículas possuem as mesmas propriedades, então, o fato de que algumas teriam mais energia que outras levava a crer que "nessas outras" a energia não estava sendo conservada. Diante desta anomalia, cogitou-se a hipótese de que, se as partículas beta fossem sempre emitidas com alguma outra partícula (neutrino) ainda não detectada (possuindo carga neutra e algumas outras propriedades relevantes), então cada par de partículas emitidas (beta mais neutrino) teria uma energia igual à de qualquer outro par de partículas". (Gonzales, 1.984, p. 53)

Gonzales sugere que, na abdução, um aspecto essencial é que a mente procura restabelecer a harmonia na visão do mundo, quando constata que alguma anomalia ocorreu. Assim, partimos sempre da constatação de um problema ou de alguma anormalidade. As hipóteses sugeridas vem no sentido de restaurar a quebra da suposta harmonia, reintroduzindo uma visão coerente do fenômeno a ser explicado.

Comparando os três tipos de raciocínio, Peirce (1.974, p. 52) assevera: "Dedução prova que algo deve ser; Indução mostra que algo atualmente é operatório; Abdução faz uma mera sugestão de que algo pode ser".

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Em nossa dissertação, iremos utilizar o método abdutivo na atividade de pesquisa, intentando compatibilizá-la com as demais atividades acadêmicas. Temos um problema, qual seja, como se processa a relação entre a mente e o corpo e as implicações desta relação para a atividade física. Partimos da hipótese de que o vocabulário subjacente ao discurso utilizado pela tradição, escola ou visão teórica, influencia tanto os achados de sua própria discussão, como problematiza o debate com outras tendências ou posicionamentos acerca do problema mente-corpo.

O método abdutivo irá nos auxiliar nesta empreitada visto possuir o mérito de permitir mantermo-nos, inicialmente, distanciados desta ou daquela posição acerca do tema da tese. Num assunto como este, seríamos tentados a adotar um ou outro posicionamento como ponto de partida. A nossa estratégia consiste em partir apenas de uma intuição, no sentido comum de se possuir uma vaga idéia do problema e explorar as conseqüências desta intuição.

Notas

(1) O Jornal "O Estado de São Paulo", no caderno GERAL de 10 de fevereiro de 1.993, à p. 10 reproduziu texto do jornalista Andrew Pollack, do The New York Times, relatando, entre outros fatos, que "computador poderá ser controlado pela mente". Nesta linha de apelo tecnológico, o Caderno de Ciência do jornal "Folha de São Paulo" do dia 04 de novembro de 1.992, à p. 1-12 (artigo da Redação) relatou que "televisão modifica a estrutura da mente". Eminentes personalidades, utilizando principalmente tais veículos de comunicação, emitem opinião sobre o assunto, tentando veicular o tema as suas áreas. O cineasta Ruy Guerra assinou matéria no jornal "O Estado de São Paulo", denominado "Da mulher, da alma, do índio e do negro", no caderno 2, à p. D-3 (31 de Outubro de 1.993) e perguntou "algum dia aos animais lhes vai ser reconhecida a existência da alma?". O renomado consultor de empresas Gutenberg de Macêdo relata em seu artigo "Administração clássica está condenada", publicado no caderno de empresas do jornal "O Estado de São Paulo" à p. L-1, de 16 de setembro de 1.993 que "não existe a divisão corpo-mente; o ser humano é uma unidade". No Jornal Folha de São Paulo, o Caderno MAIS! de 24 de março de 1.996 trouxe vários artigos sobre o problema da relação mente-corpo, com variados tópicos. Até nas revistas femininas 'curiosos' perpetram reportagens divulgando o tema. A jornalista Cristina Ribeiro Nabuco retrata no artigo "Corpo e Mente - como as emoções interferem na nossa saúde" (Revista CLÁUDIA, Ed. Abril, numero 11, novembro de 1.989, p.44) opiniões de médicos, psicólogos e terapeutas associando diversos aspectos intrigantes do papel da mente na sua relação com o corpo. Até em revistas pacifistas encontram-se artigos razoávelmente interessantes. Para uma discussão sobre medicina alternativa, ver artigo do Dr. L. Terry Chapell (Fellowship, March/April, 1.995) e a sessão de cartas, in Fellowship, September/October, 1.995, p.22-24.

(2) Em nosso trabalho, procuraremos evitar o uso do termo 'Educação Física', dada a sua carga teórica. Contudo, quando for empregada por autores específicos, a utilizaremos. Teixeira (1.993), por exemplo, relata que a expressão 'Educação Física', como nomenclatura, seria ambígua e imprecisa, e sugere originar-se esta imprecisão, entre outros aspectos, da atividade de formação do profissional baseada também em exercícios ginásticos, destinados ao adestramento do corpo, envolvendo atividades motoras. Este contexto nos parece remeter a questões ligadas à relação presumida da mente com o corpo.

(3) Encéfalo seria a parte do Sistema Nervoso Central contida na cavidade craniana, abrangendo o cérebro, o cerebelo, pedúnculos, a protuberância e o bulbo raquiano.

(4) Conforme veremos nos capítulos posteriores, a noção de mente "habitando" um corpo ou identificando-se com ele é objeto de grande controvérsia entre dualistas e monistas.

(5) Cérebro seria a porção do encéfalo que ocupa dentro da luz craniana toda a parte anterior e superior.

(6) Em um livro dirigido ao grande público, Crook (1.986) discute os efeitos da presença do fungo Candida Albicans no funcionamento do organismo humano de um modo geral e sobre o funcionamento mental em particular. Um grande elenco de sintomas orgânicos, tais como prostração, debilidade física, depressão e apatia são associados ao grau de infestação do fungo no indivíduo.

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Título: O Dualismo Mente-Corpo: Implicações Para a Prática da Atividade Física Autor: Lucas Vieira Dutra Editora: CopyMarket.com, 2000

As Raízes Histórico–Filosóficas do Problema da Relação Mente-Corpo

Lucas Vieira Dutra

"Alma, não procure a vida imortal, mas esgote o reino do que é possível." Píndaro (518-438 a.C)

1. O Problema da Relação Mente-Corpo nos Gregos Clássicos

Introdução

Ao nos defrontarmos com o tema da relação existente entre mente e corpo, vemos que as suas raízes históricas remontam aos Gregos clássicos e a sua discussão contou, já naquela época, com inúmeras contribuições principalmente por parte dos filósofos. Iremos alinhavar aqui as principais correntes filosóficas que influenciaram as considerações modernas sobre o que veio a ser denominado problema mente-corpo, sem a pretensão, no entanto, de desenvolver uma análise detalhadamente filosófica. O intuito é, por um lado, argumentar que, a rigor, os temas estudados hoje em dia já foram colocados, de modo muito aproximado, desde os tempos antigos. Por outro lado, levantar o itinerário seguido pelos nossos predecessores pode em muito nos auxiliar na discussão dos recentes posicionamentos acerca do problema mente-corpo.

Inicialmente, na seção I, averiguaremos, com base na obra de Lombardo (1.987), duas tradições históricas antagônicas no estudo da relação mente-corpo: a dos Idealistas, na linha de Pitágoras e Parmênides e a tradição dos Materialistas, que tem como representantes Tales, Empédocles, Demócrito e Heráclito.

A seguir, na seção II, veremos como se originaram as posições de Platão e Aristóteles a partir destas tradições e também que os posicionamentos posteriores sobre o problema mente-corpo se situam num ou noutro ponto entre estes dois pensadores. Iremos concluir o capítulo, indicando que os modernos posicionamentos sobre a relação entre a mente e corpo como que retratam ou se superpõem, em graus variados, a partir dos posicionamentos discutidos já pelos principais pensadores da Grécia Clássica.

Seção I - As tradições Idealista e Materialista.

Como hoje em dia, os gregos clássicos também tentavam encontrar o entendimento adequado de seu meio, de seu mundo, e em tal empreitada encontravam muitas dificuldades (Vita, 1.964). Visando estruturar uma metodologia que facultasse a descrição e a compreensão dos aspectos essenciais da realidade, os pensadores gregos privilegiavam certos aspectos essenciais da mesma, em detrimento de outros, de acordo com cada tradição. Um destes aspectos era o caráter da mudança, do movimento.

Para Parmênides (515 - 445AC, apud Lombardo, 1.987) a Realidade era fixa e imutável e definida como o mundo do ser. O conhecimento verdadeiro pertenceria ao reino eterno do ser unificado e imutável, alcançado primordialmente pela Razão (por isso Parmênides é considerado um racionalista); ele julgava que os sentidos nos iludem e que somente o que é pensado através da razão existe. Este pensador grego estabeleceu que o mundo transitório de particularidades pode revelar somente aparências e o que seria real deveria ser eterno e unificado (Lombardo, 1.987, p. 14).

Parmênides nega a realidade do movimento com base na Lei da Identidade, segundo a qual toda coisa é igual a ela mesma (A = A). O movimento, se admitido como existente, levar-nos-ia a aceitar uma contradição, pois ele modificaria a realidade, o ser, apresentando, no mesmo fenômeno, o não-ser (Jennings-White, 1.977, p. 6).

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Alguns autores consideram esta Lei como uma outra forma do princípio de não-contradição, que se baseia no conceito do ser e na incompatibilidade do ser com o não-ser. Do ente (isto é, de alguma coisa que possui o ser), diz Parmênides, aquilo que é, enquanto é, não pode deixar de ser. Generalizando esta idéia, ele conclui que nada pode ser e não-ser ao mesmo tempo ou seja, o ser é, o não-ser não é. O movimento, que faria do "ser" o "não-ser", não existe.

No outro extremo, Heráclito (535 - 480AC, apud Lombardo, 1.987) entendeu a realidade como sendo um fluxo, dando primazia à mudança como seu aspecto essencial: a realidade era concebida por ele como um mundo do vir-a-ser, tudo está em perpétuo fluir (Copleston, 1.962). O conhecimento viria do Logos, que seria a forma ou ritmo das oscilações temporais.

Em oposição a Parmênides, Heráclito privilegiava a observação como ferramenta para se auferir os dados da realidade, por isso é considerado um empiricista. Para Heráclito, os sentidos tendem a enganar, a não ser quando a razão é capaz de penetrar além da superfície das aparências. Deste pensador identificar-se-á a influência que redundou no pensamento de Aristóteles, que veremos adiante. Consideremos antes, na seção II, a contribuição de Platão.

Seção II - Platão e Aristóteles.

Platão (427 - 347AC, apud Goldschmidt, 1.970) irá inaugurar a tradição dicotômica, ao intentar harmonizar e sintetizar as duas tradições divergentes entre si, a idealista e a materialista. Apesar de receber influência dos dois sistemas de pensamento, sendo um racionalista terá maior envolvimento com a tradição de Parmênides. Arístocles (nome original de Platão) julga que as essências são imutáveis e concebe o Cosmos, em sua Teoria da Linha Dividida, como sendo composto de dois mundos: o Mundo do Ser e o Mundo do Vir-A-Ser (ver Quadro 2).

Mundo do Ser: das formas, conceitos e idéias eternas __________________________________________________

Mundo do Vir-A-Ser: dos particulares transitórios, das aparências

Quadro 2 - A Teoria Platônica da Linha Dividida (Adaptado de Rintala, 1.991, p. 262.

O mundo acima da linha era considerado fixo, imutável, sendo que teríamos conhecimento deste através do trabalho da mente, da razão. Esta nos possibilitaria alcançar o mundo da verdade e da Realidade última, permitindo-nos penetrar até as idéias inteligíveis, formas exemplares ou unidades objetivas eternas, não sensíveis. Estas existem fora e acima das coisas sensíveis e conferem seu verdadeiro sentido ao mundo e à vida. O mundo inteligível é composto de idéias matemáticas (círculos, triângulos) e de idéias "anipotéticas" (prudência, justiça, beleza) que constituem em si uma ordem harmoniosa.

O mundo abaixo da linha, no modelo platônico, seria aquele onde os humanos vivem, o mundo das aparências onde se sucedem as gerações e onde existe corrupção. Este mundo está situado entre o ser e o não-ser; é fonte de ilusões e a sua realidade é aparente, pois o homem só encontra o princípio de sua existência no mundo verdadeiro das idéias inteligíveis, arquétipos dos quais os objetos sensíveis não passam de cópias imperfeitas. Tudo aqui neste mundo do "dia-a-dia" teria sua identidade, através da imitação das formas do mundo do ser (Prado Jr, 1.981). Nós, os viventes, teríamos opiniões e crenças sobre este mundo do vir-a-ser, que é um mundo sensível, alcançado pelos sentidos do corpo.

Neste sentido, vemos um sistema dualista onde Platão contrapõe a permanência (eternidade) e a mudança, num momento e, noutro, os universais (ordem, constância, homogeneidade) e os particulares (variação, indivíduo, heterogeneidade). Este pensador grego vai oferecer uma explicação para a relação do conhecedor com o mundo físico, combinando uma dimensão física-sensorial (mundo temporal) com uma dimensão mental-conceitual (formas eternas). No entanto, o conhecimento certo só existiria no nível dos universais: a ordem somente poderia ser conhecida através da razão, pois ordem enquanto tal pertenceria ao reino das idéias e não ao mundo dos sentidos.

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Como o Homem superaria o mundo das aparências e alcançaria o conhecimento das Idéias? Na sua obra Fedro, Platão explica a queda da alma humana que, após ter vivido no mundo acima da linha, adentra no mundo abaixo da linha, via união com um corpo. Mergulhado neste mundo ilusório, através da arte do diálogo e da discussão, ou dialética, a alma vai se permitir elevar acima destes objetos múltiplos e mutáveis para o mundo inteligível das idéias. O homem deve se libertar do corpo e tentar viver de acordo com a vida do espírito, cuja natureza é a do ser imortal. Através do personagem Sócrates, Platão nos comunica ser o corpo um obstáculo para a alma (Rintala, 1.991, p. 263), mesmo uma prisão (Goldschmidt, 1.970).

Platão separa a mente e o corpo e, portanto, os objetos da mente daqueles do mundo material. Esta preponderância da razão sobre os objetos sensíveis caracteriza o "realismo platônico", como distinto do aristotélico(1).

Aristóteles (384 - 322AC, apud Vita, 1.964) era um dos alunos mais ilustres de Platão, mas optou metologicamente por ser um empiricista, na tradição de Heráclito. Aristóteles fundamenta suas doutrinas numa discussão exaustiva, prudente e histórico-crítica de seus predecessores, os pré-socráticos e especialmente Platão. Ele julgava que a verdade do conhecimento humano repousa não num mundo ideal transcendente, separado dos objetos da experiência, mas nas suas formas, que constituem o correlato real das idéias da mente humana. Este notável pensador grego(2) julgava que os objetos da realidade eram conhecidos através da percepção, privilegiando o corpo, rejeitando assim o dualismo ontológico da teoria platônica do homem: pensar e perceber são capacidades do corpo, sendo resultado de diferentes disposições da matéria.

Segundo a perspectiva aristotélica, conhecimento é obtido através da experiência e deriva do que é sentido ou percebido e não do transcendente ou do sobrenatural per se. Na formação e desenvolvimento do conhecimento humano vão cooperar, para Aristóteles, a experiência sensível e a abstração do entendimento. Para Platão, conforme indicamos anteriormente, somente através de algo eterno as coisas eternas poderiam ser conhecidas (Lombardo, 1.987, p. 31).

Um elemento importante na filosofia aristotélica é a noção de Psiché. Aristóteles concebe que todos os seres vivos tem psiché, que determinaria a forma dos seres viventes na Natureza. A forma do corpo é a psiché ; é o que identificaria o organismo como vivo. A matéria do corpo está constituída de suas partes, no entanto, Aristóteles não vai reduzir a forma vivente às suas partes, visto que o princípio de organização entre as partes do corpo é de cooperação da ação (ou processos). Aqui nesta consideração o movimento seria fundamental. Schopenhauer (1.991, p. 19) cita um pensamento de Aristóteles : "a vida existe no movimento e tem nele a essência do seu ser", ressaltando assim, a importância vital do movimento no pensamento aristotélico.

Aristóteles distingue logicamente a mente que conhece (o sujeito) do objeto, mas sustenta que, segundo Lombardo (1.987, p. 5), na realidade os dois seriam inseparáveis, denotando uma interdependência funcional entre eles. A mente não seria separada do corpo: os processos psicológicos estão integrados, visto que o corpo é organizado em termos de atividades interdependentemente co-operativas.

Esta perspectiva vai inaugurar a tradição Funcionalista (no sentido de ter função - ver nesta monografia o 'Funcionalismo', no capítulo IV), segundo a qual a Natureza envolve telos (propósito, fim) e que a explicação científica envolve o entendimento deste telos. No nível humano, Aristóteles amplia suas considerações, estabelecendo que a psiché caracterizaria o poder de chegar aos fins. Ainda que Aristóteles não faça referência explícita ao conceito de 'mente', o mesmo aponta para os aspectos da psiché que nos faz acreditar que a psiché, ou a "forma" do corpo, no caso específico do ser humano, constituiria a mente, que não seria entendida como uma segunda substância. Aqui vemos que Aristóteles não era materialista reducionista, nem idealista, mas sustentava que a ordem e a mudança estavam unidos: ordem, direção e universalidade podem ser encontrados através do fluxo, da mudança percebível de particulares.

Para explicar a mudança, Aristóteles ensina a pesquisar quatro tipos de causas, resumidas em Lombardo 1.987, p.34-35):

a) causa formal, que diz respeito àquilo que está mudando; representa a idéia, modelo ou paradigma ao qual o objeto corresponde.

b) causa material, que diz respeito àquilo do que é feito esta mudança; aquilo (matéria) do que algo surge ou da qual o objeto é feito.

c) causa eficiente, que diz respeito ao agente através do qual ocorre a mudança; o princípio da mudança, e d) causa final (telos), que diz respeito ao fim para o qual a mudança concorre; aquilo em vista do que o objeto

existe, ou apresentação de um fenômeno como meio de um fim; em outras palavras, a realidade para o qual algo tende a ser.

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Vamos dar um primeiro exemplo, tentando explicitar o fato de que, para Aristóteles, na produção de algo existe o concurso destas várias causas e estas podem ser consideradas como os diversos modos nos quais se manifestam as substâncias, enquanto substâncias. Consideremos uma flor: a causa formal seria a idéia de uma flor específica, a causa material seria a semente da qual se originaria a flor, a causa eficiente seria a deposição da semente em solo propício e a adequada irrigação da mesma, e a causa final a utilização da flor já desenvolvida, seja para embelezamento, produção de droga, etc.

O Homem é submetido a mudanças e vai realizar em si mesmo atributos, qualidades que nele a princípio eram apenas virtuais: entre o ser e o não-ser existe, para Aristóteles, um estado intermédio, o poder-ser, ou potência. A matéria seria aquilo que passa da potência ao ato, sendo colocada em forma e a forma (psiché) é o princípio que, como vimos, organiza a matéria e proporciona seu sentido.

A matéria é uma das causas (causa material), distinguida por Aristóteles para explicar a constituição de um ser. Citando outro exemplo, em uma estatueta, o barro, a argila, constituiria a causa material da mesma; a causa formal corresponderia àquilo que dá a cada coisa sua forma determinada, por exemplo, a idéia do escultor, do artista, no estabelecimento de uma obra de arte específica; a causa eficiente seria o antecedente imediato que provoca a mudança (espatuladas na argila pela mão do artista) e a causa final seria o objetivo visado na obra exemplificada (o ganho, o amor pela arte).

Em resumo, vemos que o dualismo platônico estabelecia um Cosmos composto de dois mundos, o Mundo do Ser e o Mundo do Vir-A-Ser. No primeiro mundo, que só seria alcançado pelo Homem através da Razão, as essências seriam imutáveis, as formas, conceitos e idéias eram eternas. No outro mundo, o Homem somente auferia aparências e ilusões. O corpo aqui é visto como uma prisão para a sua alma imortal. Aristóteles vai rejeitar o dualismo platônico, elegendo o corpo como instrumento para o conhecimento dos objetos da realidade: o Homem percebe e pensa e assim pode conhecer pela experiência, não necessariamente só do transcendente, do sobrenatural.(3)

Tendo delineado este panorama das tradições antigas procuraremos argumentar, em defesa da hipótese, que modernamente grande parte de posicionamentos sobre o problema mente-corpo se revelam como retratando ou se calcando, em maior ou menor grau, aspectos já discutidos anteriormente pelos diversos pensadores gregos. Dentro da ruptura que se observa do platonismo em relação ao aristotelismo, os teóricos posteriores fundamentaram suas considerações, relevando mais este ou aquele aspecto, segundo o grau de criatividade ou exigências acadêmicas da época.

No capítulo seguinte, iremos discutir a influência do trabalho de René Descartes para o tema do dualismo na relação entre a mente e o corpo.

NOTAS

(1) Este sistema de pensamento vai exercer sua influência na cultura ocidental até o século XI quando Aristóteles passa a ter precedência, ainda que restrita ao círculo de intelectuais da época (Santin, 1.990, p. 51). Ver também "Realism", in Hocking (1.939) e Ewing (1.951, 1.957).

(2) A Antigüidade atribuía a ele a elaboração de quatrocentas obras, das quais chegaram até nós quarenta e sete mais ou menos completas e fragmentos de aproximadamente cem outras. Para uma visão da notável contribuição aristotélica para a Ciência, ver a obra de Ferguson (1.972). Duas obras fornecem um quadro acessível do aristotelismo: Adler (1.978), e Veatch (1.974). Outras obras, todas nomeadas "Aristotle", podem ser consultadas: Laeger (1.948), Mure (1.964), Randall (1.960) e Ross (1.955).

(3) Para averiguar as diferanças básicas entre as filosofias de Platão e Aristóteles, os seguintes autores podem ser de utilidade: O'Connor (1.974), Cresswell (1.971) e Feibleman (1.973). Por outro lado, existem semelhanças de igual modo interessantíssimas. Por exemplo, in Feibleman (op. cit.) lemos:

"Looking back on the philosophies of Plato and Aristotle (...) we can see an important resemblance. Both had the highest ambition: they tried to construct systems of ideas more general than any other, metaphysical systems large enough to be all-inclusive. They differed on many minor points and even on some major ones, but not on the size of the problem. (...)

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The second way in which the philosophies of Plato and Aristotle had an important resemblance is that neither man was absolutely sure of his own position. Both proceeded gropingly, exploring their ground and making proposals which they themselves would not have been surprised to see wrong..." (Feibleman, 1.973, p. 63-64)

2. O Dualismo Cartesiano

Introdução

Neste capítulo, iremos expor o raciocínio de Descartes, analisando as obras Meditações (1.641, 1.973) e As Paixões da Alma (1.649, 1.973), tomando como itinerário básico as sugestões do prefácio de Costa (in Descartes, 1.637) e a introdução de Granger (in Descartes, 1.973b). Na Seção I vamos analisar sucintamente como Descartes erigiu o arcabouço filosófico básico de seu sistema. Na Seção II, averiguando a sexta Meditação, discutiremos mais detidamente como Descartes estabeleceu a distinção entre a alma e o corpo.

Seção I - O ideal cartesiano das verdades indubitáveis.

Pela primeira vez na História, a distinção mente-corpo foi tornada sistemática em sua linguagem por Descartes, cientista, matemático e filósofo francês, nascido em La Haye, em 1.596. Ele preocupava-se muito com as deficiências e incertezas daquilo que considerava objeto de seu conhecimento, tendo isto manifestado em muitas passagens de seus trabalhos (Discurso do Método, p. 49/50, 78/79, e a apresentação das Meditações).

Visando minorar esta situação, Descartes tentou fundamentar seu sistema filosófico em algumas verdades que ele julgara indubitáveis, com especial objetivo de estabelecer os alicerces da Ciência (Meditação primeira, p. 93, 96) e deduzindo delas grande variedade de conseqüências de longo alcance. Na Meditação segunda empenha-se em demonstrar que a proposição "penso, logo existo", não é passível de dúvida. Esta proposição será sempre verdadeira enquanto perdurar o ato de pensar. Desta afirmativa básica, Descartes estabelecerá conclusões sobre (a) a existência de Deus (Meditação terceira), (b) sobre a natureza e a existência de objetos materiais (Meditação quinta), e (c) sobre o dualismo entre o físico e o mental (Meditações segunda e sexta).

Não é nosso intuito analisar a obra filosófica de Descartes, mas situar como ele delimitou o problema mente-corpo, realizado no plano metafísico(1). Iremos identificar como Descartes erigiu o arcabouço que sustenta suas conclusões.

Descartes procura fundamentar o seu estudo filosófico sobre o conhecimento humano nas idéias claras e distintas, isto é, aquelas que podem ser reconhecidas através da intuição (Discurso do Método, p. 51); vai verificar se os fundamentos donde ele parte, para averiguar a verdade, são "bastante sólidos" (idem, p. 84/85). Como estratégia metodológica, Descartes começa por rejeitar, como falso, tudo aquilo acerca da qual pudesse imaginar a menor dúvida (Meditação primeira, par. 10 a 12, p. 95/97).

Descartes propõe o duvidar exageradamente como método: é a dúvida hiperbólica, sistemática e generalizada. Esta dúvida metódica é diferente da dúvida dos cépticos (no Discurso do Método, à p. 79 ele diz claramente "Não que nisto imitasse os cépticos que apenas duvidam por duvidar...") pois Descartes duvida intencionalmente para se chegar à verdade: esta dúvida é provisória, como se vê na Meditação primeira (par. 11, p. 96). A dúvida dos cépticos é definitiva; a dúvida cartesiana seria ainda diferente da dúvida vulgar, posto que é entabulada não pela experiência, mas por uma decisão metodológica(2).

Descartes rejeita, com sua dúvida metódica, o que os sentidos nos dão a conhecer, visto que já que uma ou algumas vezes nos enganaram, podem muitas outras nos enganarem. É o argumento do erro dos sentidos, que constitui o primeiro grau de dúvida. Neste âmbito, o corpo, através dos órgãos dos sentidos, tem importância, ainda que negativa, para a obtenção do conhecimento, pois, como no caso das ilusões de óptica, o que julgamos conhecer pode revelar-se falso. No entanto, este argumento é insuficiente para nos fazer duvidar sistematicamente de nossas percepções sensíveis.

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Descartes rejeita ainda, em sua linha de raciocínio, muitos outros fatos que poderiam ser reais mas que, por aparecerem muitas vezes em sonhos, levam-no a crer que inexistam indícios concludentes por onde se possa distinguir nitidamente a vigília do sono (Meditação primeira, par. 5, p. 94). Ainda, nesta primeira Meditação (par. 12), Descartes acrescenta a suposição de um Gênio Maligno ou malicioso, que teria prazer em nos levar a considerar as coisas de modo diverso do que elas são(3).

No entanto, quando aparentemente a dúvida hiperbólica atinge seu ponto culminante, chegando Descartes até a duvidar das verdades das proposições matemáticas, o mesmo vislumbra que, por mais que se engane, não se engana com o fato de que deve existir um sujeito a ser enganado, enquanto sujeito que duvida. Este fato a dúvida não atinge e o Gênio Maligno nada pode fazer (Meditação segunda, par. 4, p. 100). Esta ficção do Gênio Maligno, que Descartes imagina a fim de conduzir seu raciocínio, equivale a supor a existência de um deus mau que faz com que as pessoas se enganem o tempo todo (viabilizando, justificando assim a dúvida hiperbólica). No entanto, este Gênio Maligno não vai resistir à constatação cartesiana de que, enquanto sujeito que duvida, existe um sujeito a ser enganado. Surge então uma certeza "penso, logo existo" (cogito, ergo sum) que é sólida e indubitável e se evidencia com este primeiro princípio que a razão estabelece: à medida em que pensamos, existimos. Em outras palavras , só se apreende a existência pelo pensamento: é o primeiro princípio que podemos afirmar antes de podermos estar seguros de qualquer outro. O sujeito existente (não-psicológico) é o sujeito do conhecimento, aquele que duvida, que pensa, ou seja, possui a res cogitans.

Cabe aqui perguntarmos porque o Cógito não seria, para Descartes, suficiente para erigir a Ciência como ele desejava. Como vemos na Segunda Meditação, o Cógito estaria ligado à existência momentânea do ato de pensar, dependendo de um contexto específico, algo "local", a saber, o ato de pensar (enquanto penso, existo). Falta aí a universalidade, que é a base da Ciência, a esta certeza.

Seguindo com o seu método de análise, Descartes estabelece, neste momento do seu raciocínio, a existência de uma substância que, em essência ou natureza, não é outra coisa senão pensamento. Temos aqui a existência de uma alma, independente de qualquer substância material, a qual Descartes julga ser inteiramente distinta do corpo e, até, que é mais fácil de se conhecer que o corpo (Meditação segunda, par. 18, p. 106 , e Discurso do Método, p. 88).

Mas como saber firmemente da existência desta substância (pensamento)? O principal critério de verdade presente no sistema cartesiano é estabelecido pelas idéias claras e distintas (Meditação terceira, par. 2, p. 107 e 108). A existência do Cógito é o primeiro sinal da evidência, no sentido da clareza e distinção da idéia, que são os característicos da verdade. No entanto, para garantir a universalidade do Cógito, que até então fôra caracterizada apenas no ato "local" de pensar, Descartes vai precisar de uma base segura, sólida. Ele vai encontrar esta base na idéia de Deus. Mas em sua intenção de provar a existência de Deus (ou, como dissemos, para estabelecer uma base firme para a Ciência - Meditação primeira, final do par. 10, p. 96) tem Descartes obstáculos a remover em sua argumentação, como por exemplo, o estatuto epistemológico da dúvida.

Descartes acredita ser a dúvida uma imperfeição: "... pois via claramente que era maior perfeição o conhecer que o duvidar...(Discurso do Método, p. 89)" ; "...a dúvida, e outras coisas semelhantes não podiam existir em Deus...(idem, p. 91)". Os nossos sentidos também não nos dão perfeição, como vemos Descartes argumentar na Meditação primeira (par. 3, p. 93 e 94). Tanto os sentidos interiores quanto os exteriores nos levam ao erro e também quando se sonha pode-se julgar estar na mais "verossímil realidade" (Meditação sexta, p. 141). Mas, pergunta Descartes, de onde viria então a perfeição? Decerto não do Homem, que é imperfeito (Meditação sexta, par. 30, final), nem do nada, que seria manifestadamente impossível. Conclui Descartes que a idéia de perfeição foi-nos posta por uma natureza mais perfeita, ou seja, por Deus. A existência de Deus vem de algo além da razão: da intuição. Na Meditação terceira lemos:

"26. Esta mesma idéia ( de Deus ) é também mui clara e distinta porque tudo o que o meu espírito concebe clara e distintamente de real e de verdadeiro, e que contém em si alguma perfeição, está contido e encerrado inteiramente nesta idéia.

27. E isto não deixa de ser verdadeiro, ainda que eu não compreenda o infinito, ... pois é da natureza do infinito que minha natureza, que é finita e limitada, não possa compreendê-lo; ...". (Descartes, 1.641, 1.973, p. 116)

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A idéia de perfeição, portanto, vem de Deus. Descartes concebe pela razão a existência de Deus, em cujas provas de existência subjaz a idéia de perfeição. Ainda que Descartes não o diga, não seria necessariamente o Deus religioso; o deus que Descartes busca é o deus da razão, que irá garantir a universalidade das idéias.

Descartes, provando a existência divina, pode voltar agora seu pensamento para considerar as coisas acerca das quais duvidara anteriormente. Ele julga agora, com a certeza das idéias claras e distintas, poder discernir adequadamente o certo do errado, o falso do verdadeiro, grande preocupação em toda a sua obra, conforme se depreende na Meditação quarta e ressaltada também no Discurso do Método: "...sendo a atividade do pensamento pela qual se crê uma coisa, diferente daquela pela qual se conhece que se crê, elas andam muitas vezes uma sem a outra" (p. 72).

Dentre os fatos que Descartes doravante vai analisar, um deles é o estabelecimento da distinção entre o corpo e o espírito e, neste sentido, vai inaugurar a moderna discussão do problema mente-corpo. Veremos em seguida como ele analisou esta questão.

Seção II - Sobre a distinção cartesiana entre a alma e o corpo.

Vamos nessa seção discutir como Descartes(1.641/1.973) distingue, em especial na Sexta Meditação, a mente(4) do corpo. Ele possuía inúmeras razões pelas quais desenvolveria a tese da incorporeidade da mente, como por exemplo a existência da linguagem(5), mas embasou fundamentalmente o dualismo no Cógito. Vamos, inicialmente, identificar o roteiro básico seguido nas Meditações, discutindo então a sexta meditação, onde se encontra a distinção entre alma e corpo, apesar do autor admitir que as duas são conjugadas de modo tão estreito que compõem como que uma só coisa. Nesta seção iremos nos basear, principalmente, nos esclarecimentos sobre termos e conceitos cartesianos, contidos na obra de Cottingham (1.995).

Conforme mencionamos anteriormente, Descartes na segunda Meditação chega a um ponto de certeza, com o conhecimento indubitável quanto à sua própria existência, através do Cógito e prossegue examinando a natureza da "coisa pensante", argumentando que a mente pode ser melhor conhecida do que o corpo.

Na terceira Meditação, Descartes apresenta a regra geral, segundo a qual tudo o que muito clara e distintamente percebemos é verdadeiro (p. 107, fim par. 2) e infere a existência de Deus, explicando deste modo a presença desta idéia (de Deus, um ser perfeito e infinito) em sua mente (que é finita e imperfeita). Na quarta Meditação Descartes examina a relação entre o intelecto e a vontade e estabelece que nossos erros nascem do fato da vontade ser muito mais ampla e extensa do que o entendimento, não sendo contida dentro dos mesmos limites. No entanto, apresenta uma fórmula para se evitar o erro: abster-se de formular um juízo sobre uma coisa, quando não a conceber com suficiente clareza e distinção (p. 128, inicio par. 13). O erro redunda do mau uso do livre arbítrio, visto que "a luz natural nos ensina que o conhecimento deve sempre preceder a determinação da vontade (idem, ibidem)". A matéria vai ter sua natureza explicada como extensão na quinta Meditação (p. 131, par. 3 e 4), juntamente com a apresentação de um segundo argumento para a existência de Deus, fundamentada na idéia de que a existência não pode estar separada da essência de um ser de suprema perfeição (p. 132 e 133, par. 7; p. 134, par. 9).

Na sexta Meditação a existência do mundo externo é restabelecida, bem como apresentada a argumentação de que a natureza da mente é por completo diferente da do corpo, sendo mesmo duas substâncias inteiramente distintas, não obstante a mente estar jungida de forma íntima com o corpo.

Segundo Cottingham (op. cit.), existem três classes principais de problemas decorrentes da explicação cartesiana, sobre o problema da relação mente-corpo. O primeiro grupo envolve a validade de seus argumentos para a efetiva diferenciação entre corpo e mente; o segundo agregado compreende compatibilizar a natureza destas substâncias distintas com o fato das mesmas exibirem uma conjugação muito estreita. A terceira classe de problemas compreende a análise da estrutura da explicação cartesiana para esta união entre mente e corpo, em particular a natureza dos fenômenos psicofísicos decorrentes.

A primeira classe de problemas envolve as bases que efetivamente sustentam a diferenciação entre a mente e o corpo. Na segunda Meditação, exercitando a dúvida metódica, Descartes se pergunta "o que poderá ser considerado verdadeiro (p. 99, fim par. 30)", e chega à questão "Eu então, pelo menos, não serei alguma coisa? (ibidem, par. 4)". Respondendo à questão, ele coloca que "nada sou, pois, falando precisamente, senão uma coisa que pensa, isto é, um espírito, um entendimento, ou uma razão...(ibidem, p. 102, par. 7)".

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Logo adiante (no par. 9, p. 103), a definição de pensamento é ampliada no sentido de incluir, além da atividade intelectual, atividade volicional: "Mas o que sou eu, portanto? Uma coisa que pensa. Que é uma coisa que pensa? É uma coisa que duvida, que concebe, que afirma, que nega, que quer, que não quer, que imagina também e que sente".

Descartes classifica sob o rótulo de "pensamento" as atividades intelectuais e volitivas e conecta-as como pertencentes a uma substância que é inteiramente separada do corpo:

"...já que, de um lado, tenho uma idéia clara e distinta de mim mesmo, na medida em que sou apenas uma coisa pensante e inextensa, e que, de outro, tenho uma idéia distinta do corpo, na medida em que é apenas uma coisa extensa e que não pensa, é certo que este eu, isto é, minha alma, pela qual eu sou o que eu sou, é inteira e verdadeiramente distinta de meu corpo, e que ela pode ser ou existir sem ele". (Descartes, 1641/1973, p. 142, fim do par. 17)

A indivisibilidade do espírito é também mencionada no par. 33 desta sexta Meditação (p. 147), bem como certos aspectos corpóreos que manifestadamente sustentam, dentro do arcabouço cartesiano, a diferenciação do corpo em relação ao espírito (p. 147/149, par. 34 a 41). Descartes fundamenta ali a distinção entre alma e corpo na confrontação de suas naturezas, distinguidas em grande parte pela oposição entre parte (corpo: divisível) e todo (espírito: indivisível).

A distinção entre estas duas substâncias, e suas relações (posto que mutuamente excludentes), constituirão o segundo grupo de problemas dentro do sistema cartesiano. As dificuldades que Descartes enfrenta são inúmeras. Como dissemos, na sexta Meditação, Descartes assume uma conjugação estreita entre a mente e o corpo, os quais se apresentam de modo confundido e misturado (p. 144, par. 24). A noção de uma união entre mente e corpo foi colocada posteriormente por Descartes em sua correspondência com a Princesa Elisabeth, que indagara anteriormente como a alma podia mover o corpo.

Nas cartas de 21 de maio e 28 de junho de 1.643 (Descartes, 1.973a, p. 309/315), o autor deixa claro que, não obstante seus argumentos terem se concentrado em grande parte no estabelecimento da distinção entre a alma e o corpo, temos também uma noção da união entre alma e corpo. Esta noção seria uma das três noções primitivas (ou gênero de idéias), que conhecemos cada qual de maneira particular e não pela comparação de uma com a outra (6). No entanto, é na sua obra As Paixões da Alma (1.649, 1.973) que Descartes vai tentar fornecer uma explicação fisiológica e psicológica detalhada de como se processa esta união substancial entre mente e corpo, o que configura o terceiro grupo de problemas.

Na obra Paixões da Alma, Descartes sugere que: (I) a mente tem poderes causais sobre o corpo (ver na primeira parte, o art. 43, à p. 243), como quando faz com que o corpo se movimente e (II) que o corpo tem poderes causais em relação à alma (ver na terceira parte, art. 199, à p. 299), como no caso em que as paixões e sentimentos são "excitados" pelos acontecimentos corpóreos, no sistema nervoso e no sangue.

Descartes aponta, por um lado, um grande número de processos pelos quais os movimentos, uma vez iniciados na glândula pineal, podem ser comunicados a segmentos corporais distantes, mas não clarifica a questão central de como uma alma incorpórea pode influenciar a glândula pineal. Por outro lado, Descartes descreve mecanismos fisiológicos mediante os quais diversos estímulos produzem mudanças no sistema nervoso e no encéfalo, levando a alma a sentir emoções (ver nas Paixões da Alma, art. 38 e 39, p. 242), mas não explica, contudo, como eventos cerebrais, ainda que originalmente complexos, deteriam a capacidade de fazer surgir eventos na mente. A existência dos "espíritos animais", causando modificações na glândula pineal, não fornece clarificação adequada para o problema da relação entre o corpo e a alma. Pois estes não são conectados, segundo Descartes, por relações causais em sentido estrito, ficando seu entendimento sujeito à natureza das variações e acontecimentos determinados por Deus (Cottingham, 1.995).

Vemos assim que a concepção cartesiana das relações entre a mente e o corpo parece não seguir os próprios parâmetros cartesianos de Ciência, sujeitando-se a inúmeras dificuldades, que serão objeto de críticas entre seus conterrâneos e entre os estudiosos posteriores.

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Em resumo, Descartes pretendeu estabelecer os fundamentos da Ciência em bases sólidas, desenvolvendo para isto um sistema filosófico cuja influência se espraia até nossos dias. De posse de um sofisticado arsenal de argumentos, ele passa a discutir vários temas, entre os quais se coloca o problema mente-corpo, dedicando especial atenção. Apesar de apresentar um extenso e avançado trabalho sobre como a alma seria distinta do corpo, Descartes não consegue explicar, adequadamente, tanto a separabilidade quanto a maneira destas duas substâncias se relacionarem. Apesar de inaugurar a moderna discussão da relação entre mente e corpo, Descartes deixou irresolvido o problema.

NOTAS (1) Metafísica pode ser entendida como o estudo filosófico cujo objeto é determinar a real natureza das coisas:

precisar seu significado, estrutura e princípios de tudo o que é enquanto é. Ao homem comum representa que este estudo seja altamente sutil e teórico, o que o leva a sofrer muitas críticas, mas para os metafísicos significa o questionamento mais fundamental e abrangente, visto estar relacionada com a totalidade da Realidade. Sobre metafísica, ver a obra de Lacoste(1.992). Sobre a metafísica cartesiana, ver Tomlin(1.947) e Collins(1.959).

(2) Pelo exame superficial do significado comum das palavras, podemos entender que a dúvida pode se estabelecer quando (mas não necessariamente) se tem posicionamentos que mutuamente se contradizem. Em decorrência, surge impedimento para se decidir em favor de um ou de outro posicionamento. A dúvida é a hesitação de uma crença, a condição de não poder achegar-se a uma conclusão positiva contra ou a favor de uma certa afirmação. A dúvida difere assim da descrença, que parece, esta, tomar a forma de uma convicção positiva da falsidade. Descrença, por assim dizer, é uma forma de crença: um acreditar nalguma proposição que envolva a falsidade de outra proposição, com referência à qual tomamos a postura de descrer.

(3) Através deste artifício psicológico, Descartes procuraria tornar para si mais séria a dúvida, lembrando-se sempre dela e visaria, ao menos, suspender seu juízo, ainda que não conseguisse chegar ao conhecimento de qualquer verdade; no entanto, permitirá chegar às primeiras verdades, pela redução ao absurdo.

(4) A título de esclarecimento, resumimos adiante uma Nota da tradução brasileira da obra de Cottingham (1.995, p. 9), onde as professoras Helena Martins e Ethel Alvarenga, comentando um problema enfrentado na tradução, expõem com clareza como o termo 'mente' deve ser entendido dentro do contexto cartesiano. Descartes designava a natureza da coisa pensante (res cogitans) pelo termo mens, dissociando esta noção do conceito escolástico de anima (ver Segunda Meditação, p. 103, par. 9; ver também nas Meditações, as Respostas do Autor às Segundas Objeções, p. 162/163 e 175, e Respostas do Autor às Quintas Objeções, p. 191/193, par. 507, 508 e 509). Menos freqüentemente, Descartes usava os termos latinos animus, ratio e intellectus para designar a res cogitans. Na versão francesa das Meditações, a natureza da coisa pensante foi designada pelos termos sprit, entendement, raison e ocasionalmente por âme. Nas traduções inglesas das obras cartesianas, mens é em geral traduzido por mind e sprit para spirits, evitando-se deste modo a confusão com o termo sprits animaux, que tem conotação diversa dentro do sistema cartesiano.

(5) Para Descartes, as produções lingüísticas realizadas pelo homem distinguem-se inteiramente de qualquer coisa que um animal ou um mecanismo possa efetuar. Na parte V do Discurso do Método, Descartes identifica dois meios para "conhecer a diferença que existe entre os homens e os animais" (p. 122 / 125). Um seria a capacidade do uso das palavras ou outros sinais, combinando-os como faz o homem para expressar aos outros seus pensamentos; outro seria o fato de se encontrarem feitos mais perfeitos realizados por máquinas ou animais, no entanto, estas máquinas e animais falham em outras realizações: descobre-se que não agem com conhecimento, mas sómente pela disposição de seus órgãos.

(6) As outras noções primitivas são as de alma e a de corpo. Ver Landim Filho (1.992), capítulo segundo, p. 37, para uma discussão sobre pensamento como sendo uma noção primitiva.

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Título: O Dualismo Mente-Corpo: Implicações Para a Prática da Atividade Física Autor: Lucas Vieira Dutra Editora: CopyMarket.com, 2000

O Problema Mente-Corpo na Visão Filosófica Científica Contemporânea

Lucas Vieira Dutra

"Ser capaz de colocar continuamente em questão as suas próprias

opiniões - esta é, para mim, a condição preliminar de qualquer inteligência."

Ítalo Calvino (1.923-1.985)

3. Crítica ao Cartesianismo: Gilbert Ryle

Introdução

Iremos neste capítulo discutir alguns argumentos contrários à tese do dualismo mente-corpo, com base na obra The Concept of Mind, do filósofo inglês Gilbert Ryle. Veremos que, segundo este autor, o dualismo resulta de um equívoco do tipo lingüístico, ou melhor, de uma coleção de equívocos não envolvendo apenas detalhes, mas, sim, princípios.

Na seção I, analisaremos os argumentos cartesianos identificados por Ryle a favor do dualismo. Na seção II discutiremos a proposta de Ryle para o estudo dos estados mentais e, na seção III, consideraremos alguns argumentos elencados por Ryle a favor de uma visão não dualista da conduta inteligente que envolve a prática de aquisição e alteração de hábitos.

Seção I - O Dogma do Fantasma na Máquina.

Em seu livro The Concept of Mind, Ryle vai analisar as origens e as implicações do que ele julga 'erros categoriais' na consideração do dualismo cartesiano. No capítulo I, intitulado O Mito Cartesiano (1), ele critica o que é nomeado "a doutrina oficial", a qual estabelece a natureza e o lugar das mentes na literatura vigente. Esta doutrina oficial, segundo ele, é aceita por psicólogos, filósofos e professores de religião, em maior ou menor grau e 'reza' que, com a exceção duvidosa dos idiotas e dos bebês de colo, todo ser humano possui uma mente e um corpo. Mesmo que se prefira dizer que o ser humano é constituído de corpo e mente, normalmente jungidos de modo íntimo, após a morte do corpo a mente poderia continuar a existir e funcionar.

Corpos humanos, como determina a doutrina oficial, segundo Ryle, ocupam um lugar no espaço e estão sujeitos a leis mecânicas que governam todos os seus movimentos e podem ser inspecionados em seus processos por observadores externos. Mentes não ocupam lugar no espaço, nem estão suas operações sujeitas a leis mecânicas, ou à observação de terceiros: seu curso é privado (ou seja, inacessível ao acesso de outrem). A pessoa viveria, no bojo da doutrina oficial, duas histórias concomitantes: uma que consiste nas ocorrências de seu corpo, situadas no mundo físico, e outra, a que compreende os acontecimentos de sua mente, que ocorre no mundo mental.

Ryle assevera que esta bifurcação de duas vidas e dois mundos é costumeiramente relatada de modo que as coisas e eventos que pertencem ao mundo físico, incluído aqui o corpo, são externos, enquanto que os trabalhos da mente são internos (pag. 12). Esta antítese interno/externo seria uma metáfora, visto que a "mente", como definida na doutrina oficial, por ser imaterial, não estaria situada no espaço, portanto não poderia ser descrita como existente dentro de coisa alguma (mesmo que de modo oculto), ou como tendo coisas ocorrendo espacialmente dentro delas.

Mesmo com esta metáfora (do nosso ponto de vista lingüisticamente enganosa), o problema de como a mente de alguém pode influenciar o corpo e vice-versa permanece, apresentando sérias dificuldades teóricas. Existe um mistério que envolve estas transações entre o mundo privado e o público, visto que as mesmas podem pertencer aos dois mundos. Observa-se aqui inclusive, segundo Ryle, um pressuposto filosófico ainda mais profundo. Este consiste em assumir a existência de dois tipos diferentes de status ou existência: o que existe ou acontece pode ter o status de existência física, ou de existência mental, como duas faces da mesma moeda.

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19

O que tem existência física está necessariamente no espaço e no tempo; o que existe no mental pode estar no tempo mas não no espaço. O que tem existência física é composto de matéria ou é função dela e o que tem existência mental consiste de consciência, ou é uma função dela.

Existiria então uma oposição polar entre matéria e mente, uma oposição identificada pelo modo de conexão observada isoladamente e entre eles. Objetos materiais, segundo Ryle, situam-se num campo comum, denominado "espaço", e o que sucede a um corpo, numa parte deste espaço, está conectado mecanicamente com o que acontece com outros corpos, em outras partes do espaço. Contudo, ocorrências mentais sucedem-se em campos isolados, protegidos, conhecidos como "mentes" e, como alerta Ryle ironicamente, a não ser 'talvez' o fenômeno da telepatia, não há conexão causal direta entre o que sucede numa mente e o que ocorre em outra mente. Somente através de um mediador do mundo físico público, pode a mente de alguém afetar a mente de outrem. No dizer de Ryle, a mente, segundo a doutrina cartesiana, possui o seu próprio lugar na existência íntima de cada um. Todos vivemos uma vida de Robinson Crusoé fantasmagórico, pois podemos ver, escutar outros corpos, mas somos irremediavelmente cegos e surdos aos trabalhos da mente de outrem e, além do mais, inoperantes perante elas.

Diante desta caracterização do mental, Ryle pergunta: Que tipo de conhecimento pode ser assegurado a partir da atividade da mente? Segundo a teoria oficial, podemos considerar dois casos. No primeiro, a pessoa teria um conhecimento direto dos trabalhos de sua própria mente. Estados e processos mentais seriam processos e estados conscientes e a consciência que os irradia não daria lugar a dúvidas ou ilusões. A pessoa pode exercitar inclusive um tipo especial de percepção, nomeada de introspecção, com a qual "veria", através de "olhos internos", o que se passa na mente, sendo esta operação de modo idêntico imune a enganos. Percepções sensoriais podem nos enganar mas, de acordo com a doutrina vigente, esta auto-observação, esta percepção interior não, desde que guiada pelos princípios da razão.

No segundo caso, ninguém tem acesso direto, de qualquer espécie, aos eventos da vida privada de outrem. Uma pessoa não pode fazer nada mais do que realizar inferências 'provisórias' (com base nas condutas públicas, que ele observa no corpo do outro) sobre os estados mentais de terceiros. Esta inferência é realizada através da analogia com as condutas que este mesmo observador poderia apresentar.

Este estado de coisas, estruturado segundo o cartesianismo, estabelece um esquema geral, um modo especial de construir conceitos gerais a respeito de operações e capacidades mentais. Segundo Ryle (p. 15) os verbos, nomes e adjetivos com os quais descrevemos os atos humanos são empregados como episódios significativos, especiais em suas histórias privadas, ou como tendo tendências significativas no sentido destes episódios ocorrerem. Quando alguém é descrito como sabendo, acreditando ou adivinhando algo, espera-se que estes verbos denotem ocorrências de modificações específicas no fluxo oculto de consciência deste alguém.

Ocorre que somente a própria pessoa, através do acesso privilegiado a sua consciência, ou seja, através da introspecção, poderia prover um testemunho autêntico de que estes verbos mentais-comportamentais estariam sendo correta ou incorretamente aplicados. Um espectador, seja ele um professor, um crítico, um biógrafo ou amigo, nunca poderia assegurar-se de que seus comentários tivessem qualquer vestígio de veracidade, além de suas possíveis inferências.

Ryle ressalta que este 'problema' não constitui, em geral, um problema real para o homem do senso comum, posto que as pessoas compartilham de hábitos e das maneiras de sobrevivência, podendo assim averiguar a correção geral das mesmas quando ocorrem enganos ou confusões. É unicamente no plano teórico que se crêem ser necessário construir teorias sobre a natureza e o lugar das mentes. Encontrar conceitos mentais-comportamentais que possam ser efetiva e regularmente utilizados é um objetivo importante para os teóricos, visto que, segundo Ryle (p. 15), a doutrina oficial não favorece um uso efetivo ou regular destes conceitos mentais-comportamentais em nossas descrições ou prescrições a respeito das mentes dos outros.

Ryle vai indicar o absurdo da doutrina oficial, que ele denomina como 'o dogma do Fantasma na Máquina', tentando demonstrar que a mesma é inteiramente falsa, não em detalhe mas em princípio. Este dogma não seria um arranjo de equívocos particulares, mas um grande engano e de um tipo especial, denominado erro-categorial. Neste tipo de erro, estaria o alicerce central da doutrina oficial, que representa os fatos da vida mental como pertencentes a um determinado tipo lógico ou categoria (ou a uma amplitude de tipos e categorias) quando, na realidade, pertencem a outro tipo.

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Vários exemplos do que Ryle retrata como erro-categorial são fornecidos pelo autor. O primeiro é o seguinte (p. 16): um estrangeiro, visitando uma certa Universidade pela primeira vez, toma contato com um número de prédios que abrigam faculdades, bibliotecas, ginásios, museus ou escritórios administrativos. Ocorre deste visitante perguntar, após verificar os edifícios: "Mas, onde está a Universidade?". Em seguida é explicado ao visitante que a Universidade não é uma instituição no mesmo sentido do museu ou ginásio, mas sim o modo no qual tudo o que ele viu (prédios, pessoas, burocracia, etc.) está organizado. Quando o visitante compreender esta co-ordenação entre elementos, a Universidade será então vista na sua totalidade dinâmica. Seu equívoco residiu na inocente pressuposição de que era correto falar da faculdade, do ginásio, do museu e da Universidade, como se esta fosse um membro extra da classe à qual os outros membros pertencem. O visitante alocou equivocadamente a Universidade na mesma categoria à qual as outras instituições realmente pertencem.

Este exemplo de erro-categorial exibe, na visão de Ryle (p. 17), uma característica comum: é realizado por pessoas que não conseguem, devido à inabilidade no uso correto de certos itens do vocabulário, compreender corretamente certos conceitos. Estas pessoas são ocasionalmente competentes em aplicar conceitos, ao menos em situações que lhes são familiares, mas estão sujeitos a alocar estes mesmos conceitos, mediante o seu raciocínio abstrato, a tipos lógicos aos quais eles não pertencem.

Segundo Ryle (p. 18), uma família de erros-categoriais radicais estaria na origem do dualismo mente-corpo. Contudo, certamente Ryle não está sugerindo que Descartes possuísse qualquer inabilidade na manipulação do vocabulário lingüístico. O erro categorial que Ryle atribui a Descartes tem raízes filosóficas mais profundas. A representação da mente como um fantasma misteriosamente escondido numa máquina segue este modelo, porque Descartes se encontrava em um dilema: se os pensamentos, sentimentos e intenções não podem ser descritos no idioma da física, da química ou da fisiologia, então devem ser descritos num outro idioma. Mas como estabelecer este idioma cientificamente? O raciocínio cartesiano parece ter se desenvolvido, segundo Ryle (p. 18-20), nos seguintes moldes. Se o corpo humano é uma unidade organizadamente complexa, também a mente deve ser outra unidade, só que composta de uma espécie 'diferente' de substancia ou estrutura. Se o corpo humano, tal qual outra parcela de matéria, é um campo de causas e efeitos, também a mente deve ser outro campo de causas e efeitos ainda que não causas e efeitos mecânicos.

Descartes, para Ryle, ainda que tivesse um gênio científico admirável, era um homem moral e religioso e não poderia aceitar que o ser humano fosse, em sua natureza, diferente de um relógio somente em grau de complexidade. A saída cartesiana para este dilema foi construir um vocabulário de palavras mentais-comportamentais que não significassem ocorrências de processos mecânicos e sim processos não-mecânicos. Este vocabulário mental-comportamental estabeleceria o idioma de outras leis (não-físicas) que explicariam as operações não-espaciais das mentes como os efeitos de outras operações não-espaciais de outras mentes.

A diferença entre o comportamento humano que denominamos "inteligente" e aqueles "não-inteligentes" deve ser uma diferença na sua causação. Assim, enquanto alguns movimentos de língua e membros são efeitos de causas mecânicas, outros movimentos devem ser efeitos de causas não-mecânicas. Os primeiros advém de movimentos de partículas de matéria, os segundos, de trabalhos da mente. As diferenças entre o físico e o mental foram representadas, segundo Ryle (p.19), como diferenças dentro do quadro de referência ('framework') comum das categorias de "coisa", "atributo", "estado", "processo", "mudança", "causa" e "efeito". Mentes são coisas, mas comparados aos corpos, diferentes espécies de coisas; processos mentais são causas e efeitos, mas diferentes tipos de causas e efeitos em relação aos movimentos corpóreos. Do mesmo modo como o visitante estrangeiro esperava ser a Universidade um edifício adicional à biblioteca, salas de aula, etc., também aqueles cartesianos que repudiavam o mecanicismo representaram mentes como centros 'extras' de processos causais. A teoria proposta desta maneira constitui uma hipótese para-mecânica, uma espécie de 'física virtual'.

Uma dificuldade óbvia, nesta pressuposição, consiste em explanar como mentes podem influenciar e ser influenciadas pelos corpos. De que modo um processo mental, indaga Ryle (p. 19), como o 'desejar', causa movimentos espaciais, como por exemplo os movimentos da língua? Ele sugere que Descartes, aderindo à linguagem da ciência, tentou superar esta dificuldade circunscrevendo a mente com um vocabulário "reverso": os trabalhos da mente eram descritos como meros negativos das descrições específicas relativos aos corpos. Assim, tais trabalhos mentais não estavam no espaço, não eram modificações de matéria, não eram acessíveis à observação pública. No dizer de Ryle (p. 20), mentes não eram pedaços de um mecanismo que funciona como um relógio e sim partes de um não-mecanismo.

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O corpo humano, na concepção cartesiana, é uma máquina com extraordinária capacidade, visto que alguns de seus trabalhos são, segundo a doutrina oficial, governados por outra substância muito especial (invisível, inaudível, sem extensão ou peso). Esta última, que corresponderia à mente, não é divisível e as leis que obedece não são as conhecidas pelos engenheiros comuns. Não fosse pelas noções de liberdade e discernimento, próprios do ser humano, o problema de diferenciar o homem da máquina apresenta sérias dificuldades na filosofia cartesiana.

Quando dois termos pertencem à mesma categoria, é apropriado, segundo Ryle (p. 22), construir proposições conjuntivas associando-os, incorporando-os. Assim, um consumidor pode, apropriadamente, dizer que comprou uma peça esquerda de luva e uma peça direita de luva, mas não pode corretamente dizer que comprou uma peça esquerda, uma peça direita e um par de luvas. Aqui fica patente o absurdo de se juntar termos de tipos lógicos diferentes. O dogma do Fantasma na Máquina faz isto, supondo que existem ambos mente e corpo, que ocorrem processos físicos e processos mentais, que existem causas mecânicas de movimentos corpóreos e causas mentais de movimentos corpóreos. Apesar de, como adverte Ryle, não considerarmos cada um dos termos, em si, absurdos, a sua conjunção o é. Ryle não nega que existam processos mentais. Mas as frases <ocorrem processos mentais> e <ocorrem processos físicos> não pertencem à mesma categoria lógica e, portanto, não faz sentido juntá-las (ou separá-las).

Assim, na perspectiva de Ryle, contrastar 'mente' e 'matéria' fica sem sentido, mas não porque o conceito de 'mente' seja absorvido pelo de 'matéria', ou que a matéria seja reduzida à mente, mas porque a crença numa oposição polar entre a substância mental e substância material representa a crença de que estes termos são do mesmo tipo lógico, ambos entendidos como substância. Neste âmbito, Ryle diz que tanto o Idealismo quanto o Materialismo são respostas a uma questão imprópria (p. 22)( ). O reducionismo do mundo material a estados e processos mentais, da mesma maneira que o reducionismo dos estados e processos mentais aos estados e processos físicos pressupõe a legitimidade de sua disjunção.

Em resumo, a doutrina oficial estabelece que o ser humano é composto de duas substâncias, uma corpórea e outra mental. Sem se aprofundar na análise destas duas instâncias em si, Ryle aponta erros lingüisticos na doutrina oficial, em especial o erro-categorial, que traz sérias dificuldades para o entendimento da relação entre corpo e mente.

Seção II - A Proposta de Ryle para o estudo dos estados mentais. Após criticar o dualismo mente-corpo, Ryle discute, através do exame da conduta inteligente e do intelecto,

a suposta existência da mente que, para ele, não deve ser entendida como uma entidade encoberta, oculta, subjacente às ações publicamente observadas. O autor argumenta (p. 25) que, quando alguém descreve uma pessoa exercendo qualidades da mente, não está se referindo a episódios ocultos dos quais os atos públicos são efeitos. Existem diferenças entre descrever uma ação realizada de modo 'impensado' e descrever esta mesma ação, fisiologicamente similar, efetuada com propósito, com cuidado ou 'destreza'. No entanto, tais diferenças de descrição não consistem na ausência ou presença de alguma entidade oculta subjacente à ação observada, e sim na ausência ou presença de certos tipos de assertivas explanatórias combinadas com assertivas preditivas testáveis.

Os conceitos mentais-comportamentais pertencendo à família de conceitos rotulada de 'inteligência' podem ser exemplificados com os seguintes adjetivos: 'sensível', 'cuidadoso', 'metódico', 'lógico', etc. Quando uma pessoa é deficiente em inteligência, ela é descrita como 'estúpida', 'descuidada', 'ametódica', 'ilógica'. No entanto, como aponta Ryle, 'estupidez' não é a mesma coisa ou mesmo tipo de coisa que 'ignorância'. Não há incompatibilidade entre ser bem informado e ser estúpido e uma pessoa que sabe argumentar pode ser pouco inteligente para fatos concretos.

Normalmente, tendemos a considerar que o âmago das condutas mentais é composto por operações intelectuais. Inclinamo-nos a definir todos os outros conceitos mentais-comportamentais em termos dos conceitos cognitivos, supondo, segundo Ryle (p. 26), que o exercício primário da mente consiste em encontrar respostas a problemas.

Quando se fala do intelecto, ou dos poderes intelectuais das pessoas, referimo-nos tradicionalmente a esta classe especial de operações que constitui o teorizar eventos, através de pressuposições (verdadeiras ou falsas). O objetivo destas operações é o conhecimento de proposições verdadeiras e a capacidade de obter conhecimento de verdades é a propriedade definitiva da mente. Outras capacidades humanas podem ser classificadas de mentais somente se demonstram, de alguma maneira, serem conduzidas pela captura intelectual de proposições verdadeiras. No entender de Ryle (p. 26), ser racional, segundo a doutrina intelectualista, é ser capaz de reconhecer verdades e as conexões entre elas.

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Sem negar a importância da capacidade, essencialmente representacional, de apreensão de verdades, Ryle argumenta que há muitas atividades que podem diretamente demonstrar qualidades da mente inteligente, ainda que não sejam operações intelectuais, representacionais ou efeitos de operações intelectuais. Ao contrário, teorizar, ou elaborar representações proposicionais verdadeiras ou falsas, é uma prática, entre outras e é, em si, conduzida inteligentemente ou de modo estúpido. Há outra razão alegada por Ryle (p. 27) que impele a que se corrija a doutrina intelectualista que tenta definir a inteligência em termos de verdades, ao invés da apreensão de verdades em termos de inteligência. Teorizar é normalmente uma atividade sofisticada que as pessoas levam a cabo em silêncio, em silencioso solilóquio ou monólogo interno.

A combinação destes dois aspectos, (I) que teorizar é a atividade primária da mente e (II) que teorizar é intrinsecamente uma operação interna, silenciosa, privativa, é que fornece, segundo Ryle, um dos suportes principais ao dogma do Fantasma na Máquina. As pessoas tendem a ver as suas mentes como o "local" onde levam a cabo seus pensamentos secretos.

Quando uma pessoa é descrita por outra através de rótulos tais como 'sabido' ou 'tolo', 'prudente' ou 'imprudente', estes adjetivos imputam à pessoa não o conhecimento ou ignorância desta ou daquela verdade, mas a habilidade ou inabilidade de fazer certos tipos de coisas. Quando julgamos as excelências e deficiências de alguém, estamos menos interessados na quantidade de verdade que a mesma adquire e retém do que nas suas capacidades de encontrar verdades por ela mesma e em sua habilidade de organizá-las e explorá-las, quando descobertas.

Uma distinção importante é sugerida por Ryle entre saber como fazer algo, e saber o quê fazer. Normalmente não falamos de alguém acreditando ou opinando como e, enquanto é apropriado perguntar sobre os fundamentos ou razões para alguém aceitar uma proposição, esta questão não se coloca sobre a habilidade de alguém jogar cartas, por exemplo. Pergunta Ryle: o que está envolvido em nossas descrições de pessoas, sabendo como fazer e apreciar brincadeiras, falando gramaticalmente, jogando xadrez, pescando? Quando estas pessoas realizam estas operações, elas tendem a realizá-las bem, isto é, correta, eficiente ou vitoriosamente. Suas performances surgem satisfazendo certos critérios ou padrões. Mas isto não é tudo. O relógio bem regulado informa a hora certa e nós não denominamos, diz Ryle, a máquina de 'inteligente'. Reservamos este título para as pessoas responsáveis pelas suas performances. Ser inteligente não é meramente satisfazer um critério, mas saber como aplicá-lo; saber regular a sua ação e não meramente ser bem-regulado. Uma performance de alguém é descrita como habilidosa se, em sua operação, a pessoa está pronta a detectar e corrigir erros, repetir e incrementar os sucessos auferidos, beneficiar-se dos exemplos de outros e assim por diante.

Como coloca Ryle (p.29), segundo a linguagem do dia-a-dia, que incorporou o jargão cartesiano, uma ação exibe inteligência se e somente se o agente 'pensa' sobre o que está fazendo enquanto o faz, de um modo que julga que não faria tão bem o que faz se não pensasse durante a realização deste(s) ato(s). Este modo de dispor as coisas é colocado como evidência a favor da maneira intelectualista de se interpretar a inteligência, no sentido que esta envolveria a observância de regras, representações ou a aplicação de critérios. Segue-se então dessa abordagem que a operação que é caracterizada como inteligente deve ser precedida por um tratamento, um detalhamento intelectual de regras e critérios. Em outras palavras, o agente deve primeiro analisar os processos internos de admitir, representar, assegurar-se de certas proposições sobre o que deve ser feito (seja como 'máximas', 'imperativos' ou 'proposições reguladoras'). Somente depois o agente pode executar sua performance de acordo com o estabelecido. Portanto, segundo a caracterização ryleana da fábula intelectualista (2), fazer algo pensando no que se faz, implica em fazer duas coisas: considerar certas proposições apropriadas, ou prescrições, e colocar em prática o que estas regras determinam. Ou seja, um tanto de teoria e depois um tanto de prática.

Segundo Ryle, certamente não se raciocina somente antes de agir, mas raciocina-se de modo a agir apropriadamente (p. 29). Mas o ponto que Ryle coloca é que esta fábula intelectualista é falsa; quando se descreve uma performance como 'inteligente' isto não implica necessariamente a dupla operação de considerar-e-executar, por duas razões.

Primeiro, Ryle considera (p. 30) que há diferentes classes de condutas nas quais a inteligência é demonstrada, mas as suas regras ou critérios não estão claramente formulados. Os ditames da apreciação estética, das maneiras refinadas ou das técnicas criativas, inventivas, constituem para ele exemplos de ações que permanecem sem uma "receita", onde conste suas regras explícitas ou critérios. No entanto, qualquer um pode exercer inteligentemente estas habilidades. A hipótese central de Ryle é que a prática eficiente precede a sua teorização; é possível a alguém realizar inteligentemente alguns tipos de operações, mesmo quando este alguém não esteja apto a considerar ou se representar qualquer proposição, determinando como tais operações devam ser realizadas.

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Ryle insiste (p. 30) que sua objeção crucial à fábula intelectualista é que a consideração de proposições é em si uma operação cuja execução pode ser mais ou menos inteligente, mais ou menos estúpida. Mas se, para qualquer ato a ser inteligentemente executado, uma operação teórica prévia tiver primeiro que ser executada (e realizada de modo inteligente), surgirá uma impossibilidade lógica para se interromper um círculo, que se estenderá ad infinitum. Refletir inteligentemente como agir é, efetivamente, entre outras coisas, considerar o que é pertinente e descartar o que é inapropriado. Mas, para alguém refletir como agir inteligentemente deve primeiro refletir quão melhor refletir como agir? O recorrência 'eterna' deste regresso implícito mostra, segundo Ryle (p. 31), o absurdo da doutrina intelectualista.

Em segundo lugar, entende o autor, supondo que para agir racionalmente fosse necessário primeiro considerar-se a(s) razão(ões) para assim agir, como se poderia realizar uma aplicação adequada da razão à particular situação na qual a ação se enquadra? Uma razão, ou máxima é uma proposição geral e não se pode admitir que esta proposição geral incorpore instruções, especificações em detalhe, de modo que uma ou mais delas encaixe na situação particular onde a ação ocorre. A fábula intelectualista assume que a conduta de qualquer tipo herda em seu bojo o título de 'inteligente', desde que tenha sido efetuada a operação inteligente de planejamento. Por outro lado, é notoriamente possível planejar inteligentemente e atuar estupidamente, desrespeitando os preceitos e regras em nossa prática.

Ryle conclui então (p. 32) que muitas vezes, "inteligente" não pode ser definido em termos de atividade "intelectual", ou que o "saber como" não pode, em geral, ser definido em termos de "saber o quê". Para ele, "pensar o que estou fazendo" não denota "pensar ambos: o que fazer e fazê-lo". Quando penso inteligentemente, estou fazendo uma coisa e não duas: minha performance tem um procedimento ou maneira especial, que envolve habilidades aprendidas e não antecedentes especiais.

Seção III - Hábitos, Capacidades e Inteligência.

Desenvolvendo uma interessante discussão sobre habilidades, hábitos e inteligência, Ryle (1.949) propõe a análise destes últimos como uma abordagem alternativa à cartesiana, da entidade oculta conhecida como 'mente', para explicar a atividade mental inteligente (p. 42-50). Antes de introduzir as idéias de Ryle, faremos um esclarecimento de âmbito lingüistico, acerca de alguns termos aqui empregados(3).

Ryle utiliza o termo 'capacidade inteligente' (intelligent capacities), com o mesmo sentido de 'habilidade'(adquirida), significando poder de agir ou de realizar algo de modo inteligente; competência ou proficiência numa atividade ou ocupação, segundo uma destreza específica. Ainda que na linguagem comum habilidade e capacidade sejam por vezes associadas a talentos, ou uma aptidão especial herdada geneticamente, Ryle aparentemente não confunde os dois primeiros termos com os dois últimos. De fato, numa leitura atenta de sua obra The Concept of Mind auferimos que Ryle não junta necessariamente em sua argumentação condutas que teriam origens ou bases inatas com as condutas que são manifestadamente derivadas de treinamento, não-inatas.

No entanto, em nossa discussão sobre hábitos e habilidades ('capacidades inteligentes', para Ryle), estas ressalvas são importantes. Ryle publicou The Concept of Mind em 1.949 e, na linguagem moderna da aprendizagem motora, estes termos tem significados precisos. Em Schmidt (1.992), o termo capacidade (capacidade fundamental) designa "um traço inato, relativamente permanente, estável, do indivíduo, que é a base, ou sustenta vários tipos de atividades motoras ou cognitivas, ou habilidades (p. 129)". As capacidades seriam herdadas e não mudariam em sua essência, ainda que haja treinamento. No dizer de Schmidt, "as capacidades podem ser consideradas como o 'equipamento' básico com o qual as pessoas nascem, para executar diversas tarefas do mundo real (idem, p. 131). O termo habilidade refere-se, por sua vez, a um conjunto de condutas que seria modificável pela prática ou treinamento, constituindo uma destreza específica de realizar, executar uma atividade particular (idem, ibidem).

No que se segue, procuraremos utilizar os termos de Ryle, ressalvados os conteúdos divergentes que podem levar a equívocos. Na verdade, Ryle centraliza seus argumentos sobre o fato de 'hábitos' poderem ser confundidos com habilidades, o que ele procura mostrar que seria incorreto.(4)

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A habilidade em aplicar regras é produto da prática, sendo tentador, na visão do autor, julgar que competências e habilidades são nada mais do que hábitos. No entanto, as primeiras são disposições adquiridas, mas não se reduzem a meros 'hábitos'. Um hábito é um exemplo, mas não o único, do que poderíamos entender como uma disposição. É da essência das práticas habituais, segundo Ryle, que uma performance se torne uma réplica de performances anteriores. Por exemplo, o cestobolista que realiza um arremesso livre no garrafão. Por seu turno, é da essência das práticas inteligentes o fato de que uma performance seja modificada pelas performances antecedentes. Por exemplo, o atleta, treinando para aperfeiçoar salto em altura, repete vários comportamentos compreendidos no salto, mas varia outros, ajustando, calibrando sua performance. Nesta prática, o agente ainda está aprendendo. Podemos dizer até certo ponto que a sua performance depende do adequado gerenciamento de sua capacidade e não apenas do hábito.

A distinção entre hábitos e capacidades inteligentes pode ser ilustrada pela referência que Ryle faz à distinção paralela entre os métodos utilizados para construir estas duas espécies de disposições. Hábitos seriam inculcados essencialmente pela repetição, mas capacidades inteligentes seriam desenvolvidas pelo treinamento adequado. A repetição consistiria na imposição de práticas que, sob situações desencadeantes apropriadas (estímulos, "dicas" do ambiente), estabeleceriam certo automatismo nas respostas. O treinamento, ainda que envolvesse repetições, não se resumiria aos meros automatismos das repetições, visto envolver estimulação pelo criticismo, feed-back e capacidade de correções de erros. Cada operação realizada seria em si como que uma nova lição, de modo a executar melhor aquilo que se realiza.

Para aclarar outra importante diferença entre hábitos e inteligência, Ryle introduz a noção de conceitos disposicionais, através de vários exemplos (p. 43). Quando se descreve o vidro como 'frágil', ou o açúcar como 'solúvel', utilizamos conceitos disposicionais. A característica quebradiça do vidro não consiste no fato de que num dado momento este vidro esteja sendo estilhaçado. O vidro pode ser frágil sem nunca vir a partir-se. Dizer que algo é frágil é dizer que se algo for ou tiver sido golpeado, ele estilhaça em fragmentos. Dizer que algo é solúvel é dizer que se dissolverá se imerso em água.

Uma afirmativa atribuindo uma propriedade disposicional a algo tem muito, ainda que não tudo, em comum com uma proposição descrevendo o comportamento de algo regido por alguma lei. Ryle insiste que possuir uma propriedade disposicional não é estar num estado particular, ou sofrer uma mudança particular; é ter a tendência ou liame de vir a estar num estado particular ou sofrer uma mudança particular, quando uma condição particular é realizada. O mesmo é verdadeiro, segundo Ryle, sobre disposições especificamente humanas como as qualidades de caráter: "My being an habitual smoker does not entail that I am at this or that moment smoking; it is my permanent proneness to smoke when I am not eating, sleeping, lecturing or attending funerals, and have not quite recently been smoking" (Ryle, 1.949, p. 43).

Descreve-se uma disposição, desvelando a proposição hipotética implicitamente transmitida na atribuição da propriedade disposicional em questão. Ser frágil é justamente tender a fragmentar quando golpeado em tais e tais condições; ser um fumante é justamente inclinar-se a fumar em tais e tais situações. Estas são disposições simples, cujas atualizações são simples, quase uniformes, não apresentando grande variabilidade.

Considerando-se superficialmente estes modelos simples de disposições, pode-se cair, no entender de Ryle (p. 44), em pressuposições equivocadas. Há muitas disposições cuja atualização pode abarcar uma larga e talvez ilimitada variedade de perfis. Quando um objeto é descrito como 'duro', não significa somente que ele resistirá à deformação, mas também que emitirá certo som quando golpeado, que nos dará certo receio se nos aproximar de modo inseguro e assim indefinidamente. Nos termos de Ryle (idem, ibidem), se desejarmos desvelar tudo que é atribuível a um animal descrito como gregário, teríamos similarmente que produzir séries infinitas de proposições hipotéticas diferentes.

As disposições mais complexas são disposições cujo exercício é indefinidamente heterogêneo, não exibindo realizações uniformes, como as disposições de modelos simples. Se não atentarmos para isto, poderemos cair em armadilhas. Por exemplo, quando utilizamos os verbos 'saber' e 'acreditar', disposicionalmente, assumimos que deve existir um processo intelectual de padrão único nos quais estas disposições cognitivas são atualizadas.

O ponto fundamental, na argumentação de Ryle sobre a utilização de conceitos disposicionais no estudo da ação, consiste em lembrar-nos que, para julgar se a performance de alguém é ou não inteligente, teríamos que, de certa maneira, olhar além da conduta em si, no sentido de se observar a ação dentro de um contexto e por algum tempo. Mas isto não implica, na visão de Ryle (p. 45), em investigarmos uma performance colateral escondida, cuja representação residiria num suposto estágio secreto da vida privada do agente. Estaríamos, sim, considerando as propensões e habilidades do agente, em relação às quais uma particular ação seria uma atualização. Não se questiona aqui as causas (nem as ocultas), mas as capacidades, habilidades, hábitos, tendências.

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Utilizando um exemplo do autor, considere a situação de um soldado que, exercitando-se no tiro-ao-alvo, acerta exatamente no alvo. Foi sorte ou habilidade? Ser um bom atirador envolve um complexo de habilidades e a questão de saber se foi sorte ou boa pontaria pode ser respondida, inicialmente, investigando se o soldado tem ou não as habilidades e, se as tem, se ele as usou na tentativa para dar o tiro com cuidado, auto-controle, atenção às condições vigentes de vento, etc. Temos de averiguar também, além deste único caso bem sucedido, seus tiros posteriores, seus recordes passados, suas explicações ou desculpas e assim por diante.

Não há um sinal isolado que demonstre o saber de alguém sobre como atirar, mas um conjunto de performances heterogêneas é geralmente suficiente para estabelecer, além da dúvida razoável, se este alguém sabe ou não atirar. Sómente depois de todas estas providências pode-se decidir se foi sorte ou se o atirador era hábil o suficiente para ter o sucesso que obteve.

Ryle não despreza ou diminui o valor das operações intelectuais. O que ele questiona é a validade da suposição de que a execução de performance inteligente implica, necessariamente, a execução adicional de operações intelectuais. Realmente, a habilidade de fazer coisas de acordo com instruções necessita do entendimento destas instruções; em outras palavras, alguma competência proposicional é condição para adquirir outras competências. Mas disso não se segue que o exercício destas competências requeira o exercício de competências proposicionais. Posso nunca ter aprendido o nado 'borboleta', se não fui capaz de entender as lições que me foram dadas sobre este estilo, mas, por outro lado, não tenho que recitar estas lições, quando nado efetivamente o estilo 'borboleta'.

Em resumo, neste capítulo discutimos aquilo que Ryle irônicamente denomina "o Dogma do Fantasma na Máquina", através da análise do erro-categorial, o qual é, segundo Ryle (p. 50), cometido por teóricos, teólogos e leigos. Estes constróem constantemente adjetivos pelos quais se caracterizam performances como 'inteligentes', 'metódicas', 'cuidadosas', 'sábias', etc., e assim sinalizam em alguém a ocorrência de um fluxo oculto de consciência, de processos especiais de funcionamento, à moda de fantasmagóricos arautos. Postula-se, nesta visão, uma performance colateral interna portadora da inteligência em geral designada aos atos públicos. Descreve-se portanto, segundo a doutrina oficial, a conduta observável como o efeito de um acontecimento mental interno, não acessível a terceiros. Conforme ressaltamos, Ryle, contrapondo-se a esta 'visão de mundo', argumenta que ao descrever as atividades da mente de alguém, não descrevemos um conjunto secundário de operações espectrais e sim, certas fases de sua própria vida: descrevemos como são administrados e conduzidos suas condutas e disposições para agir.

Estas considerações acima, sobre hábitos e inteligência alertam, segundo nos parece, para o cuidado que devemos ter na trato das descrições de condutas públicas ou privadas. A linguagem utilizada, fortemente impregnada pelo modo tradicional de considerar-se os fatos mentais, pode conter vieses ao associar ocorrências observáveis com eventos encobertos, atribuídos a entidades internas, de problemática consideração.

NOTAS (1) Ryle (1.949, p. 23) não imputa somente às idéias de René Descartes a paternidade da teoria oficial, não

obstante o filósofo francês estar tentanto reformular as doutrinas teológicas vigentes da alma, dentro do novo prisma inaugurado por Galileu.

(2) Ryle usa a palavra 'legend', que pode ser também traduzida como 'lenda', numa referência talvez à escassa base de verdade que ele considera possuir a fábula intelectualista, assim como as lendas antigas dos grandes feitos de certos personagens.

(3) Agradecemos à Dra. Ana Maria Pelegrini os comentários e sugestões neste particular.

(4) Para uma análise crítica dos argumentos ryleanos, atacando a doutrina intelectualista através da discussão da ação, ver Parry (1.980). Sobre o argumento de Ryle a respeito do erro-categorial, ver a crítica de Callister (1.977).

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4. Materialismos, Funcionalismo e Ciência Cognitiva

Introdução

Discutiremos, neste capítulo, a interpretação materialista das entidades mentais, com base nas obras de Churchland (1.984), Priest (1.991) e Moravia (1.995). O posicionamento materialista possui muitos adeptos, tendo em vista sua tencionada simplicidade e a crítica ao dualismo que encerra em seu bojo. Por outro lado, a visão materialista é muito questionada pelas lacunas que deixa, segundo seus críticos, sem a adequada formulação, como por exemplo, sobre as qualidades intrínsecas das sensações, das imagens, percepções, emoções, memórias, desejos, crenças, pensamentos e intenções.

Materialismo, segundo Priest (1.991, p. 98) é a teoria segundo a qual, se algo existe, então este deve ser físico. Esta tese de que somente objetos e eventos físicos existem, constitui um dos pressupostos centrais do materialismo. Priest (idem, ibidem) aponta para o fato de que ainda não foi estabelecida uma definição não-controversa do que seja 'físico', mas é considerado que se algo é físico então possui características espaço-temporais. Adicionalmente, objetos físicos são aqueles que possuem essencialmente as propriedades de forma, extensão e dureza (solidez), sendo que alguns são suscetíveis de movimento e outros de auto-locomoção.

A tradição materialista remonta, em seus primórdios, às teses de Demócrito e Epicuro. Demócrito, o filósofo atomista grego, sustentava que tudo o que existe é composto de objetos físicos, denominados 'átomos' (etimológicamente, 'indivisível'), em número infinito e em movimento, tão diminutos de modo que são imperceptíveis. São também impenetráveis e localizados no que Demócrito denomina 'vácuo', ou 'vazio' - puro nada ou ausência do ser (Duvernoy, 1.993, p. 19, 23, 36-37, 135 ; Nietzche, in: Demócrito, 1.973, p. 354-357).

Várias outras versões materialistas foram propostas na história da Filosofia. Em especial, pela influência que mantiveram subseqüentemente, podemos ressaltar aquelas esposadas por Thomas Hobbes, de La Mettrie e Karl Marx. Este último, segundo Priest (1.991, p. 101) o mais famoso materialista da tradição intelectual ocidental, não era de todo um materialista. Apesar da tese de doutorado de Marx ser sobre o materialismo de Demócrito, Marx é chamado de 'materialista dialético' ou ainda, 'materialista histórico'. O que estas duas visões sustentam é que os fatos materiais, em especial, os econômicos de uma sociedade, determinam os outros aspectos desta mesma sociedade. Especificamente, as leis, religião e outros padrões de pensamento obtidos numa sociedade estão intimamente dependentes do modo pelo qual a sociedade está economicamente organizada. Aqui, segundo Priest (ibidem), a visão de que o físico determina o mental, não é a mesma do materialismo abarcado na filosofia da Mente. Nesta, o materialismo é a visão de que o mental é um estado do físico; é a teoria de que todos os fatos mentais não se sobressaem em relação aos fatos físicos e não há, nos escritos de Marx, nada que sugira que ele foi um materialista neste sentido. Seu materialismo é uma doutrina do determinismo materialista e não uma ontologia materialista.(1)

O materialismo, no contexto da filosofia da mente, tem sido muito questionado sobre sua plausibilidade. É razoável pressupor que somos somente (2) objetos físicos, ainda que amplamente complexos? Muitos dirão que pelo fato de pensarmos, termos percepções, emocionarmo-nos e assim por diante, não podemos ser meras máquinas físicas. Esta ponderação não tem peso científico aceitável. Os materialistas, em geral, não negam a existência do pensamento, emoções, percepções e imagens mentais. Eles apenas acreditam que nossa bem treinada vida mental é o resultado de séries de eventos físico-eletroquímicos que ocorrem no cérebro.

De acordo com este breve 'background' histórico, vamos neste capítulo discutir algumas das questões centrais da abordagem materialista da mente. Na seção I, duas visões materialistas tradicionais serão analisadas, a saber: o materialismo eliminativista e o materialismo reducionista.

Na seção II, analisaremos algumas críticas levantadas a estas tradições materialistas, tentando identificar seus pontos fracos, de modo a procedermos uma comparação posterior com o funcionalismo.

Na seção III discutiremos o Funcionalismo, com a abordagem histórica de William James, John Dewey e George H. Mead e, "mais recentemente", o funcionalismo de Hilary Putnan e Jerry Fodor. Vamos, nesta seção, diferenciar brevemente o funcionalismo das visões materialistas elencadas na seção anterior.

Na seção IV será analisada uma versão do problema mente-corpo, dentro da Ciência Cognitiva. E, finalmente, na seção V analisaremos duas questões (I) Podem os processos mentais serem entendidos como processos cerebrais? e (II) As hipóteses materialistas concernentes ao problema da relação mente-corpo possuem efetivamente status científico?

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Seção I - Materialismo Reducionista e Eliminativista.

a) Reducionismo.

Vamos, inicialmente, abordar as teses reducionistas de uma das mais controvertidas escolas materialistas, denominada Behaviorismo (3), a qual exerceu grande influência nos meios acadêmicos, em especial durante as duas décadas após a segunda guerra mundial. O mais conhecido behaviorista é o psicólogo americano B.F. Skinner. Sua visão behaviorista tentou realizar a idéia, oriunda dos Positivistas Lógicos, de que o significado de qualquer sentença estaria conectado ao exame das circunstâncias observáveis que levaria a verificar ou confirmar uma sentença proferida. Outro aspecto que ajudou a fortalecer a agenda behaviorista era a pressuposição corrente de que a maioria (ou até a totalidade) dos problemas filosóficos eram resultantes de equívocos lingüísticos ou conceituais, sendo passíveis de serem resolvidos, através de uma cuidadosa análise da linguagem na qual o problema era expresso.

Sob certo aspecto, como aponta Churchland (1.984, p. 23), o behaviorismo não seria tanto uma teoria dos estados mentais em sua natureza e sim uma teoria sobre como analisar ou entender o vocabulário utilizado, para se referenciar a estes estados mentais. Apesar de ter sido criticada por "negar" a existência de estados mentais, os behavioristas, na verdade, desejavam antes aplicar, em seu programa, os cânones da ciência na consideração dos eventos privados. Esta preocupação pode ser claramente percebida na seguinte passagem de Skinner:

"Inexistindo mundo externo para iniciar o conhecimento, não deveríamos dizer que o próprio conhecedor é o primeiro a agir? Este é, naturalmente, o campo da consciência ou da conscientização, que freqüentemente se acusa a análise científica do comportamento de ignorar. (...) Qualquer análise do comportamento humano que desprezasse tais fatos seria realmente imperfeita. (...) Mais do que ignorar a consciência, uma análise experimental do comportamento salientou certos problemas cruciantes. A questão não versa sobre a capacidade do homem de se conhecer a si mesmo, mas sobre o que ele conhece ao agir assim. O problema se origina em parte de um fato incontestável, isto é, a individualidade: uma pequena parte do universo está encerrada na pele de um homem. Seria tolice negar a existência desse mundo individual, mas também é tolice afirmar que, por ser individual, é de natureza diferente do mundo exterior. A diferença não está na matéria de que se compõe o mundo privado, mas em sua acessibilidade." Skinner (1.973), p. 149-150. (4)

Esta passagem encerra uma das críticas mais contundentes de Skinner àqueles que desejavam dar ao Homem e suas produções um status diferenciado perante a natureza, enquanto objeto de estudo científico. A questão mais importante era o enfoque prioritário da investigação científica a ser implementado, tendo em vista os ideais de previsibilidade e controlabilidade que era almejado, num projeto sistemático de pesquisa da conduta humana. Como o que é mais fidedignamente acessível é a conduta observável, e não existindo ainda ferramental adequado para o exame da consciência, esta não era prioridade. Mas nem por isso seria necessariamente negada sua existência. O que os behavioristas procuravam evitar eram as possíveis distorções do conhecimento subjetivo que o estudo da consciência presumivelmente traria.

Para o behaviorismo, falar sobre emoções, sensações, desejos e crenças não é falar sobre episódios internos fantasmagóricos. Segundo Churchland (1.984, p. 23) trata-se de um modo de falar, como que tomando um atalho, sobre padrões atuais e potenciais de comportamento. Em sua forma mais forte, segundo Churchland (ibidem), o behaviorismo estabelece que qualquer sentença sobre um estado mental pode ser parafraseada, sem perder significado, em longas e complexas sentenças sobre que comportamento observável iria resultar se a pessoa em questão estivesse nesta, naquela ou outra circunstância observável.

Exemplificando com uma analogia, temos a propriedade disposicional (5) ser solúvel. Dizer que açúcar é solúvel não é dizer que o açúcar possui em si algum estado interno fantasmagórico. Seria dizer, ao invés, que se o açúcar fosse posto na água, então o mesmo iria se dissolver. Esquematicamente, temos:

x é solúvel = Se x for colocado em água não-saturada, x se dissolverá

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O braço direito deste esquema é um exemplo do que é denominado uma "definição operacional". O termo "solúvel" é definido de maneira a satisfazer certas operações ou testes, que revelarão de que modo o termo atualmente se aplica ou não, no caso a ser testado. Uma análise similar pode ser efetuada para os estados mentais, ainda que estes, diferentemente da solubilidade, tenham muitas disposições. Para o behaviorismo, segundo Churchland (ibidem, p. 24), não há ponto de preocupação sobre a 'relação' entre a mente e o corpo. Falar sobre a mente de Madame Curie, por exemplo, não é falar sobre alguma 'coisa' que ela 'possui' e sim sobre algumas de suas disposições e extraordinárias capacidades.

Neste sentido, Ryle poderia ser classificado como behaviorista, uma vez que, conforme vimos anteriormente na discussão de capacidades inteligentes versus hábitos (Parte II, Capítulo III, seção II desta tese; Ryle, 1.949, p. 42/44) o mesmo aloca, naquele âmbito, papel importante para os conceitos disposicionais. No entanto, Ryle assume muitas outras posições que, a rigor, nos impedem de considerá-lo um behaviorista típico, mesmo que estes muitas vezes tenham incluído o destacado filósofo inglês entre seus pares.

Resumindo, para os behavioristas, o problema mente-corpo é um pseudoproblema, ou seja, abarca dificuldades originadas, em grande medida, por uso inapropriado da linguagem, identificado principalmente na apreciação dos objetos do mundo e o conhecimento que o homem obtém sobre os mesmos. Objetos materiais podem ter propriedades disposicionais, mesmo que multifacetadas, não sendo necessário abraçar o dualismo no intento de fazer sentido o nosso vocabulário psicológico. O significado de qualquer termo mental é fixado através das muitas relações que ele estabelece com outros termos, sendo estes empregados para condutas e circunstâncias observáveis. Utilizam-se termos disposicionais (por ex. 'solúvel') como análogos semânticos para os termos mentais e definições operacionais como estruturas nas quais os significados dos termos mentais podem ser explicitados.

Outra visão reducionista (6) é a sustentada pela Teoria da Identidade, ou Teoria do Estado Central (7), que postula que os estados mentais são estados físicos do cérebro. De acordo com Popper & Eccles (1.991, p. 81), existiria segundo esta teoria, da qual eles são críticos, uma certa 'identidade' entre os processos mentais e certos processos cerebrais, não uma identidade no sentido lógico, mas sim uma identidade como a que existe entre "a estrela vespertina" e a "estrela matutina", denominações alternativas para o mesmo planeta Vênus, embora indiquem diferentes aparências do mesmo.

Até o presente, não se sabe muito sobre o intrincado funcionamento do cérebro, de modo a estabelecer as identidades relevantes entre estados mentais e estados cerebrais. Contudo, espera-se que a pesquisa neurológica eventualmente traga alguma luz sobre tal identidade.

Para elucidar como isto se daria, Churchland (1.984, p. 26) apresenta a idéia da redução interteórica: uma nova e poderosa teoria surge e estabelece um esquema de proposições e princípios que espelha perfeitamente (ou quase perfeitamente) as proposições e princípios de alguma antiga teoria ou 'framework' conceitual. Os princípios relevantes estabelecidos pela nova teoria teriam a mesma estrutura dos princípios correspondentes do antigo 'framework' e se aplicariam exatamente para os mesmos casos. Se o novo 'framework', no dizer de Churchland (1.984, p. 27), for bem melhor que o antigo no ato de explicar e predizer fenômenos, temos então boas razões para acreditar que os termos teóricos do novo 'framework' são os termos que descrevem corretamente a realidade. Mas se o antigo 'framework' trabalhou adequadamente até onde pôde e se abarca, paralelamente, uma porção da nova teoria (através da redução interteórica) podemos, segundo Churchland (ibidem), concluir que os termos antigos e os novos referem-se às mesmas coisas, ou expressam as mesmas propriedades. Conclui-se que está em análise a mesma realidade que foi descrita de modo incompleto pelo nosso 'framework', mas agora com um novo e mais penetrante 'framework' conceitual.

A redução interteórica não ocorre somente entre 'frameworks' conceituais na estratosfera teórica: observáveis do senso comum também podem ser reduzidos entre si. Considerando assim, Churchland pondera que não seria particularmente surpreendente ocorrer a redução de nossos familiares estados mentais introspectivos a estados físicos do cérebro. Para que isto sucedesse, seria unicamente requerido o desenvolvimento de uma neurociência que tivesse sucesso explanatório, até o ponto de estabelecer uma 'imagem espelhada' adequada dos pressupostos e princípios que constituem nosso 'framework' conceitual do senso comum para os estados mentais. Nesta 'imagem', os termos relativos aos estados cerebrais ocupariam as posições preenchidas pelos termos vigentes dos estados mentais.

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Resumindo, a teoria da identidade considera que os eventos, estados e processos mentais são idênticos aos eventos neurofisiológicos, no cérebro. Além disso, considera-se que a propriedade de se estar em certo estado mental é idêntico à propriedade de estar-se em certo estado neurofisiológico.

b) Materialismo Eliminativista.

Uma postura contrária aos teóricos da identidade é defendida por Feyerabend (1.963) e Rorty (1.970), entre outros. Os primeiros pressupõem que ocorra uma identidade satisfatória 'um-a-um' entre os conceitos da psicologia do senso comum e os conceitos da neurociência teórica, como requer a redução interteórica. O materialista eliminativista duvida que tal redução vá ocorrer, como aponta Churchland (1.984, p. 43), porque nosso 'framework' psicológico do senso comum funda-se numa concepção falsa e radicalmente equivocada das causas da conduta humana e da natureza da atividade cognitiva, qual seja, àquelas entidades mentais tais como desejos, emoções e assim por diante. Deste modo, não se pode esperar um adequado e verdadeiro levantamento neurocientífico de nossa vida interior, de modo a prover categorias teóricas que irão se parear, otimamente, com as categorias de nosso 'framework' do senso comum. Deveria, em decorrência, ser esperado que o 'framework' antigo simplesmente fosse eliminado e não reduzido, por meio de uma neurociência amadurecida.

Do mesmo modo que o teórico da identidade aponta casos históricos de redução interteórica de sucesso, o materialista eliminativista aponta casos de eliminação pura e simples da ontologia de uma teoria antiga, em favor da ontologia de uma teoria nova e superior. Como exemplos análogos, eles sugerem os casos das entidades 'phlogiston' e 'feitiçaria' que eram utilizados para explanar, respectivamente, porque as madeiras queimavam e porque as pessoas tinham possessão demoníaca. Com o tempo, sob as explicações da ação do oxigênio atmosférico na combustão da madeira e da ocorrência de psicose e outras desordens mentais, 'phlogiston' e 'feitiçaria' foram banidos, não porque eram descrições incompletas da realidade, mas porque eram descrições completamente equivocadas, não podendo ser aproveitadas num processo de redução interteórica.

De acordo com o materialismo eliminativista, os conceitos da psicologia do senso comum - crença, desejo, medo, alegria e assim por diante esperam por um desenlace semelhante. Segundo Churchland (ibidem, p. 45), assim que a neurociência estiver amadurecida a um ponto, onde as limitações de nossas concepções vigentes forem manifestas a todos e, deste modo, a superioridade de um novo 'framework' se estabelecer, poderemos reconceber nossas atividades e estados internos, no sentido de descrevê-los em termos de nossos estados neurofarmacológicos, típicos de atividades neurais próprios de áreas anatômicas especializadas.

Feyerabend, segundo Moravia (1.995, p. 118), assume uma visão materialista radical não só do mental, mas do humano em geral. No seu importante ensaio Materialism and the mind-body problem (Feyerabend, 1.963; Borst (Ed.), 1.983) ele escreve: "Materialism, as it will be discussed here, assumes that the only entities existing in the world are atoms, aggregates of atoms and that the only properties and relations are the properties of, and the relations between such aggregates. A simple atomism such as the theory of Democritus will be sufficient for our purpose (p. 142)".

Rorty (Moravia, 1.995, p. 119), por seu turno, critica entre outros a teoria da identidade tomando o fato de que, quando abordamos o problema mente-corpo, não podemos falar ontologicamente, ou seja, sobre entidades, no senso realista do termo. Para ele a mente não é algo que possa ser identificado com algum outro algo. Nesse sentido, tanto o mental como o corpóreo são meras expressões lingüísticas, partes de um mundo conceitual definido no âmbito da linguagem.

Resumindo, o materialismo eliminativista, diferentemente da teoria da identidade ortodoxa, não propõe uma identificação do mental com o corpóreo, mas a eliminação dos termos da psicologia do senso comum correspondentes ao mental. Com isso, pretende resolver ou ao menos evitar certas dificuldades inerentes à teoria da identidade.

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Seção II - Críticas ao Materialismo.

O grande apelo do Materialismo reside em sua crítica ao Dualismo, fornecendo uma interpretação alternativa para a natureza real dos estados e processos mentais. Nas palavras de Churchland (1.984, p. 2), existem várias versões radicalmente diferentes do dualismo e um número comparável de teorias materialistas, todas elas bem diferentes uma das outras. Não há, portanto, uma polarização entre uma teoria dualista "contra" uma teoria materialista. Relataremos adiante, baseados neste mesmo autor, que é também materialista, alguns pontos fracos atribuídos ao Materialismo.

As críticas efetuadas ao Materialismo advém, em parte e principalmente, de seus pressupostos ontológicos. Outras críticas revelam um problema semântico, subjacente à terminologia utilizada no tratamento da questão da relação entre processos e estados mentais com o corpo e, em especial, o cérebro.

O Behaviorismo ignora e, segundo alguns críticos, nega os aspectos 'internos' subjetivos dos estados mentais. Contudo, na visão dos críticos, sentir dor, p. ex., não parece constituir somente uma tendência a gemer, a retrair-se, a tomar um analgésico e assim por diante. Dores também possuem uma natureza qualitativa intrínseca (por vezes horrível) a qual é revelada pela introspecção. E, quando os behavioristas tentam especificar em detalhe as multifacetadas disposições que são ditas constituírem qualquer estado mental, a relação de condicionais necessários para uma adequada análise tende a se revelar 'infinita'.

No que diz respeito à Teoria da Identidade, o aspecto da introspecção também pode ser questionado para levantar seus pontos fracos. A introspecção, pode-se argumentar, desvela um domínio de pensamentos, sensações e emoções, não um domínio de impulsos eletroquímicos numa rede neural. Os estados e propriedades mentais, do modo como são aludidos pela introspecção, parecem ser radicalmente diferentes dos estados e propriedades neurofisiológicos.

Outra objeção diz que a identificação de estados mentais com estados cerebrais nos compromete com afirmativas que são literalmente ininteligíveis (Churchland, 1.984, p. 29). Esta identificação seria um caso de pura confusão conceitual, ou , no dizer dos filósofos (p. ex. Ryle), erros categoriais.

Esta objeção faz referência à Lei de Leibniz, já mencionada no capítulo I, seção I, como a Lei de Identidade. Lembrando esta lei, a mesma estabelece que dois itens são numericamente idênticos, justamente no caso de uma propriedade que qualquer um deles detenha, o outro também detém. Esta lei sugere um caminho para a refutação da teoria da identidade, ao encontrarmos uma propriedade que seja verdadeira para os estados cerebrais, mas não para os estados mentais (ou vice-versa). Por exemplo, as propriedades espaciais: estados e processos cerebrais devem, obviamente, ter alguma localização espacial, seja no cérebro como um todo, ou em alguma parte dele. E, se estados mentais são idênticos com estados cerebrais, eles também devem ter o mesmo endereço, a mesma localização espacial. Mas não tem sentido, segundo Churchland (1.984, p. 30), dizer que minha sensação de dor está localizada no meu tálamo, ou que minha crença que o sol é uma estrela está alocada no lobo temporal do meu hemisfério cerebral esquerdo. Tais argumentos são tão sem sentido quanto afirmar que o numero cinco é verde ou que amor pesa vinte gramas.

Uma crítica que se faz à postura radical do materialismo eliminativista, é que seu posicionamento é incoerente. Consideremos que os estados mentais (familiares a todos nós, inclusive porque inspecionados via nossa introspecção) não existem. Este argumento, como afirma este materialismo, somente pode ser verdadeiro se o mesmo for a expressão de (a) certas crenças, (b) uma intenção de se comunicar este mesmo argumento, (c) um conhecimento da língua, e assim por diante. Novamente, se esta hipótese da inexistência dos estados mentais for verdadeira, o estado mental que lhe corresponde não existe, segundo o eliminativismo e a hipótese em si é uma cadeia sem sentido de sinais e ruídos e não pode ser verdadeira.

O materialismo eliminativista estaria também, segundo seus críticos, fazendo tempestade em copo d'água, exagerando os defeitos da psicologia do senso comum e menosprezando seus sucessos. Talvez a chegada de uma neurociência amadurecida vá requerer o expurgo ocasional de conceitos da psicologia do senso comum, bem como ajustes em seus princípios. Mas a eliminação dos estados mentais em larga escala, preconizada pelo materialismo eliminativista parece ser uma preocupação alarmista. Mesmo que se desenvolva uma linguagem mais adequada, a transição do uso dos vocabulários e termos utilizados pelas pessoas seria outro problema.

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Em resumo, o materialismo é, a grosso modo, criticado por seus pressupostos ontológicos e também pelas implicações oriúndas da terminologia utilizada para retratar as relações entre processos e estados mentais com o corpo em geral e com o cérebro em particular. Cada modalidade de materialismo, privilegiando mais um ou outro aspecto com o qual julga explanar melhor como se processa a relação mente-corpo, inadvertidamente abre, no nosso entender, novos flancos para o questionamento desta relação, ampliando o debate ao invés de trazer soluções convincentes. A seguir veremos um movimento, conhecido como Funcionalismo, que obteve grande projeção entre os teóricos que examinaram o problema mente-corpo. Este movimento focaliza algumas das dificuldades enfrentadas pelos materialistas elencadas acima.

Seção III - O Funcionalismo

O Funcionalismo, numa abordagem contemporânea, estabelece que estar num estado mental é estar num estado funcional, que é um estado definido pelas relações causais entre estados mentais. Um estado mental é um estado com um tipo especial de causa, um 'input' sensório e com um tipo especial de efeito, um 'output' comportamental (Priest, 1.991, p. 133). Os estados mentais estão relacionados causalmente uns aos outros e à totalidade das relações causais. Esta totalidade desempenha um 'papel causal' nestes estados, ou alternativamente, um 'papel funcional'.

A visão da mente, em termos de categoria de função, foi inicialmente uma abordagem distintiva do movimento pragmático ou instrumentalista, desenvolvida desde William James até John Dewey e George H. Mead (Morris, 1.932, p. 274). Recentemente, até o final da década de 80, o funcionalismo tem como seus mais expoentes representantes Hilary Putnam e Jerry Fodor (Moravia, 1.995, p. 130).

O termo 'função' tem uma variedade de significados e, ao que parece, os fatores subjacentes a estes significados são as conotações de processo, atividade e relação (Morris, idem, ibidem). O termo 'função' é utilizado para: (a) denotar o modo normal de atuação de um órgão ou instrumento, como quando duma máquina ou do coração dizemos 'estar funcionando bem'. Temos outro modo de emprego do termo 'função', no caso de: (b) indicar o propósito que algo preenche, como quando dizemos que a função do coração é a distribuição (bombeamento) do sangue. Um terceiro uso do termo indica que: (c) algo realiza, exerce, pratica um certo papel, como quando se diz, por exemplo, que um ator específico representa Hamlet. E uma quarta acepção: (d) nos remete ao fato de uma variável ser uma função de outra se, quando um valor é conectado a uma, a outra variável recebe em decorrência um valor específico.

Destes usos do termo 'função', (b) e (c) - propósito e papel - se aplicam, na anterior interpretação pragmatista, ao tópico da filosofia da mente. Ambas as acepções do termo 'função' eram utilizados: a teoria era duplamente funcional. Ou seja, a mente, de um lado, serviria ao propósito de promover a ação orgânica, enquanto que, por outro lado, a mente abarcaria, compreenderia, representaria o papel do funcionamento de eventos que não são intrinsecamente mentais.

O status de 'mente' pode ser comparado, metaforicamente, àquele de um peso de segurar papel, ou ainda, de um ator: quando um objeto material específico é ou não um peso de papel depende do papel que exerce; um ator é Hamlet numa certa situação, sem ser sempre Hamlet. A mesma pedra pode ser ou não um peso de papel; a mesma pessoa pode ou não ser Hamlet. Do mesmo modo, uma parte da realidade pode ser mental ou estar "na mente" num momento e não-mental noutro momento. A insistência na natureza instrumental e simbólica da mente é característica das visões de Dewey e Mead e, em menor grau, de James (Morris, 1.932, p. 277).

Modernamente, o aspecto definidor de qualquer tipo de estado mental enfatizado pelo funcionalismo de Putnam, na sua primeira fase e Fodor é o do papel da estrutura de relações causais que este estado mental sustenta com (a) os efeitos ambientais no corpo, (b) outros tipos de estados mentais e (c) comportamento corpóreo (Churchland, 1.984, p. 36).

Funcionalismo é uma tentativa de suplantar o problema mente-corpo. Segundo esta perspectiva, estar num estado mental é estar num estado funcional, donde se segue que qualquer ente capaz de estar num estado funcional é capaz de estar num estado mental, não importando do que este ser é feito, desde que ele, ela ou esta coisa seja capaz de realizar tal estado.

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Obviamente, funcionalismo e materialismo não são a mesma teoria. Materialismo defende a teoria de que estado mental é idêntico a um estado físico, um estado do cérebro ou do resto do sistema nervoso central. Um funcionalista pode ser 'tentado' a endossar adicionalmente uma perspectiva materialista, visto os estados cerebrais serem bons candidatos para configurarem os efeitos dos 'inputs' sensórios e as causas dos 'outputs' comportamentais. E, ainda, estados cerebrais mantêm relações causais uns com os outros. Entretanto, o funcionalismo em si não implica logicamente o materialismo: do fato de existir estados mentais (que possuem um tipo particular de papel causal), não se segue logicamente que estes estados mentais sejam estados físicos. Que eles sejam estados físicos (p. ex., estados cerebrais), é uma hipótese científica, não uma conseqüência necessária do funcionalismo.

O funcionalismo implicaria o materialismo se fosse adicionado uma premissa extra, qual seja, que todas as causas e efeitos são causas e efeitos físicos (Priest, 1.991, p. 134). A adição desta premissa teria o mérito de resolver o problema metafísico da interação entre substâncias qualitativamente distintas, como dispõe a visão dualista.

Em vista disto, funcionalistas se classificam entre aqueles que são materialistas e aqueles que não se comprometem com uma particular ontologia da mente. Todos concordam que um tipo particular de estado mental pode ser realizado por diferentes modos, como no caso da dor: ter dor é estar num estado funcional, resultante de 'inputs' sensórios que causam condutas de dor. Esta visão é verdadeira para qualquer entidade capaz de estar com dor, sejam humanos, cães, gatos, marcianos, ainda que o modo no qual a realização de se estar no estado de dor possa diferir radicalmente, de acordo com a estrutura destas entidades.

O funcionalismo difere, por outro lado, do behaviorismo, porque este intenta definir cada tipo de estado mental somente em termos de 'input' ambiental e 'output' comportamental. Para o funcionalismo, a adequada caracterização de qualquer estado mental envolve a inafastável referência a uma variedade de outros estados mentais com os quais está causalmente conectado, portanto uma definição redutiva do mental somente em termos de 'inputs' publicamente observáveis é impossível. Visto sob este prisma, o funcionalismo se torna imune a uma das principais objeções contra o behaviorismo (Priest, 1.991, p. 36).

Dito de outra forma, o funcionalismo é incompatível com o behaviorismo visto que, para este, estar num estado mental é estar num estado comportamental. Ter uma mente é tanto comportar-se quanto ter a propensão para se comportar de certas maneiras. Isto é incompatível com os cânones do funcionalismo: este define o mental não como conduta, mas como causa de condutas (Priest, 1.991, p. 135).

Sintetizando, o funcionalismo considera que estar num estado mental é estar num estado funcional, estado este definido pelas relações causais entre estados mentais. O funcionalismo endereça temas e questões da maior importância dentro da filosofia da mente, entre elas a natureza dos estados mentais e a estrutura das explanações psicológicas, não se confundindo, enquanto teoria, com o materialismo. Sua investigação, executada em níveis diferentes, abarca questões epistemológicas e metapsicológicas (Moravia, 1.995, p. 130).

Veremos, na seção seguinte, a proposta funcionalista para a discussão do problema mente-corpo, dentro da Ciência Cognitiva.

Seção IV - A Ciência Cognitiva.

A Ciência Cognitiva é uma área interdisciplinar contemporânea de investigação, com fundamentação empírica, que se esforça para "responder questões epistemológicas de longa data - principalmente aquelas relativas à natureza do conhecimento, seus componentes, suas origens, seu desenvolvimento e seu emprego" (Gardner, 1.995, p. 19). O livro de Gardner procura retratar a história da ciência cognitiva, que teve seu maior desenvolvimento a partir da década de setenta. O campo de trabalho da ciência cognitiva recebe contribuições da física, filosofia, psicologia, inteligência artificial e ciências da computação, lingüística, antropologia e neurociência.

A ciência cognitiva retoma, reciclando e ampliando, a antiga proposta grega de averiguar a natureza do conhecimento humano. Através do avanço da ciência, novos horizontes de investigação foram descortinados, em especial pelo surgimento de máquinas sofisticadas, como o computador. Gardner (1.995, p. 20) elenca cinco aspectos geralmente associados com os esforços cognitivo-científicos, que considera de maior importância:

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O primeiro deles seria que, ao se discutir a atividade cognitiva humana, é necessário falar de representações mentais, criando um nível de análise totalmente separado do biológico ou do neurológico de um lado e, de outro, um nível de análise separado do sociológico ou cultural.

O segundo aspecto seria a necessidade do uso da ferramenta 'computador eletrônico', não só para a realização de vários tipos de estudo mas também como o modelo mais viável do modo como funciona a mente humana. Estes dois primeiros aspectos abarcam as crenças centrais da ciência cognitiva e os três seguintes se referem a características estratégicas ou metodológicas.

O terceiro aspecto envolve a decisão de afastar do programa de trabalho certos fatores que, não obstante serem importantes para o funcionamento cognitivo, sua inclusão nesta altura iria complicar, talvez desnecessariamente, o empreendimento cognitivo-científico. Estes seriam, p. ex., a influência de fatores afetivos ou emocionais, fatores históricos e culturais e o papel de contexto de fundo no qual ocorrem atitudes ou pensamentos particulares (Gardner, 1.995, p. 20).

Endossamos a idéia de que estes fatores acima, em que pese a grande literatura existente, guardam escasso consenso, necessário no sentido de fornecer contribuição vantajosa, dentro do que preconiza a proposta da ciência cognitiva. Mesmo que no futuro seja auferido que estes fatores afetivo/emocionais ou históricos/culturais poderiam estar presentes nas considerações atuais da ciência cognitiva, somos de opinião de que os benefícios obtidos em termos de clarificação do vocabulário, identificação de objetivos e metas de trabalho, etc. permitirão a 'recuperação do tempo perdido' com muito mais proveito.

Como quarto aspecto, os cientistas cognitivos acreditam que os estudos interdisciplinares são bastante frutíferos e, no futuro, as fronteiras das disciplinas específicas que atualmente contribuem como "ciências cognitivas" serão esmaecidas ou até retiradas, levando à constituição de uma só ciência cognitiva unificada.

O quinto aspecto seria a hipótese de que um componente fundamental da ciência cognitiva contemporânea é a existência de uma agenda de questões e o conjunto de preocupações que, de há muito, ocupam os epistemologistas da tradição filosófica ocidental.

O funcionalismo foi incorporado à ciência cognitiva durante as décadas de 70 e 80, ao mesmo tempo que prosperava a construção de modelos de Inteligência Artificial, como uma proposta de solução do problema da relação mente-corpo. De um lado temos o 'hardware', análogo ao corpo, matéria de especificação da engenharia; de outro, o 'software', análogo à mente, objeto de contribuição, entre outros, dos lógicos, filósofos, psicólogos e lingüistas. No âmbito da ciência cognitiva, a hipótese funcionalista sugere (gonzales, 1.991, p. 95-96):

1. Os estados mentais são estados funcionais que desempenham um papel, dentro de certas estruturas que caracterizam os sistemas inteligentes.

2. Os computadores possuem, em comum com o homem, a capacidade de processar informação. Eles constituem bons instrumentos para se estudar o problema mente-corpo.

É inegável os progressos que os estudos abarcados pela Ciência da Computação vêm apresentando. A miniaturização dos componentes, por exemplo, permitiu o desenvolvimento de ferramentas de 'hardware' e 'software' impensáveis há poucas décadas atrás e desenham um futuro com recursos ainda mais poderosos.

O problema da relação mente-corpo, em que pese os esforços dos estudiosos em estabelecer a interface 'software/hardware', permanece irresolvido. Uma área promissora de investigação surge com a visão conexionista de redes neurais artificiais, aplicada ao estudo da percepção/ação, a qual não será objeto de nossa investigação aqui.

Resumindo, a ciência cognitiva compreende um programa de trabalho muito promissor, no sentido de compatibilizar uma agenda de pesquisa que reúne, de um lado, contribuições interdisciplinares, além de utilizar intensivamente a ferramenta computador e, de outro, a deliberada investigação de questões epistemológicas, não se levando em conta fatores afetivos/emocionais ou histórico/culturais.

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Seção V - Análise de duas questões centrais dentro da agenda materialista.

Segundo nosso ponto de vista, a proposta intrínseca subjacente ao moderno materialismo é o endosso de uma pauta de trabalho que satisfaça os cânones da Ciência. O problema mente-corpo, apesar de seu tratamento dentro da tradição filosófica, é objeto da pesquisa e, como tal, deve sujeitar-se à aplicação de ferramental lógico e de procedimentos já consagrados, no âmbito da Metodologia de pesquisa científica. Os obstáculos sobre a plausibilidade, a viabilidade e a conveniência deste projeto ligam-se, essencialmente, aos problemas de se definir que eventos ou fatos (isolados ou em conjunto) podem ser alcançados nesta empreitada. Em outras palavras, origina-se uma discussão sobre os limites e amplitude da Ciência, quanto aos seus atos e resultados aplicados, nesta particular área de inquirição.

As duas questões adiante [(a) e (b)] endereçam basicamente questionamentos como os delineados acima. Para que, de uma perspectiva científica, se progrida na investigação da relação entre a mente e o corpo, duas necessidades se fazem presentes. Uma, obtermos mais e mais o aperfeiçoamento de instrumentos científicos que sejam adequados para a pesquisa do tecido cerebral (em especial na Neurociência). Outra, desenvolvermos e amadurecermos um idioma, um vocabulário que aproxime as fronteiras de áreas que se julgam díspares (por exemplo, entre o que retrata a Psicologia do senso comum e a fisiologia dos estados cerebrais, em geral, e da emoção, em particular). Se estas duas providências forem apropriadamente satisfeitas, acreditamos que chegaremos, num momento, a unificar as visões alternativas sobre os mesmos acontecimentos. Adicionalmente, não temos, em princípio, elementos conclusivos para acreditar que os não-materialistas tenham, efetivamente, demonstrado efetuar uma 'melhor' Ciência sobre o problema mente-corpo do que os materialistas. Iremos brevemente considerar alguns aspectos desafiadores, pertencentes ao materialismo.

(a) Podem os processos mentais serem entendidos como processos cerebrais?

Este tipo de colocação, sob nosso ponto de vista, apresenta uma simplicidade, enquanto pergunta, inversamente proporcional à magnitude da dificuldade que se interpõe no sentido de respondê-la. Como vimos, o problema mente-corpo é o problema de estabelecer adequadamente a relação entre a mente e o corpo, cuja solução depende da consideração de inúmeras questões inter-relacionadas. Entre elas, 'o que são mentes?'; 'o que é matéria?'; 'o que significa dizermos de algo ser 'mental' ou 'físico''?; 'o que é pensamento?'; 'o que é consciência'; 'o que é subjetividade?', e assim por diante.

Como vimos, pode-se considerar que processos mentais sejam a mesma coisa que certos processos cerebrais, mas inúmeras dificuldades surgem com esta consideração, requerendo ressalvas específicas. Pode-se entender, com igual complexidade de análise, que exista alguma espécie de relação causal entre estes processos. O debate, neste âmbito, segue sem que seja indicado preponderância de qualquer espécie de uma explicação, em relação a outra. Sabemos que, se ocorrem acontecimentos fora do cérebro, mas não nele, não haverá acontecimentos mentais, do mesmo modo que sabemos que drogas, agindo no tecido neurológico, influenciam acontecimentos mentais. No entanto, as bases para quaisquer conclusões, abarcando processos mentais e sua contraparte, processos cerebrais, são por demais escassas e restritivas, seja para reduzir uma a outra, ou para estabelecer-se algum tipo de identidade entre eles.

(b) As hipóteses materialistas concernentes ao problema da relação mente-corpo possuem efetivamente status científico?

Sim, se ressalvarmos que os fenômenos abarcados devam satisfazer os critérios afeitos aos fatos físicos, materiais, já de tratamento consagrado pela Ciência. Parece que atribuir-se 'status' diferenciado aos acontecimentos mentais, limita sua acessibilidade ao alcance da Ciência, em especial à relação que possuam com os fatos manifestadamente físicos. Identificar, convenientemente, o que faz do fenômeno mental, diverso do físico envolve considerar aspectos complexos e aqui muitas dificuldades permanecem.

O que queremos dizer com uma hipótese ser 'científica'? Uma hipótese assim caracterizada é uma afirmação sugerida como uma proposta de explicação ou solução, a qual está aberta para testar-se sua falsidade ou veracidade. Ela é apresentada para ser refutada ou confirmada, sob diversas condições. Neste sentido, a construção de uma teoria, materialista ou não, satisfatoriamente formulada depende de um trabalho ininterrupto de consideração de inúmeros obstáculos.

Muitas vezes o debate do problema da relação mente-corpo recai mais nos defeitos de propostas alternativas e no ressaltar das virtudes de determinada explicação, sem com isso estabelecer um claro panorama que autorize um entendimento mais amplo do fenômeno. Dentro de um continum, para alguns, o problema mente-corpo é, num extremo, um pseudo-problema, inexistente; para outros, no extremo oposto um domínio intrigante, um enigma a ser mais e mais desvendado.

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Em resumo, neste capítulo discutimos a interpretação materialista do problema da relação mente-corpo, que estabelece que o mental é um estado do físico. Os materialistas não negam, em geral, que existam pensamentos, percepções ou emoções, mas consideram que o fenômeno mental resulta de eventos físico-eletroquímicos que sucedem no tecido neurológico. Analisamos alguns pontos fortes e fracos da visão materialista e tecemos considerações sobre as confluências e divergências desta posição com as do Funcionalismo e da Ciência Cognitiva. Apesar desta última oferecer novas perspectivas para a compreensão do problema da relação mente-corpo, muitas nuanças da mesma ainda exigem adequada clarificação.

N O T A S

(1) Sobre o Materialismo Dialético, consultamos a obra de MALAGODI (1.988). (2) A respeito deste emprego do termo 'somente', um dos pais do materialismo, Smart (1.991), à p. 105-106,

escreve sobre Fisicalismo: "Neste capítulo, vou procurar argumentar que não existe nada no mundo além das entidades da física e que tudo funciona de acordo com suas leis. De acordo com este ponto de vista, os organismos vivos (incluindo os seres humanos) são mecanismos vivos muito complicados e nada mais. Sem dúvida pode haver um certo mal entendido se dissermos que "os seres humanos são somente mecanismos físicos muitos complicados." A ênfase dada ao "somente" pode desviar a nossa platéia, levando-a da contemplação metafísica para questões irrelevantes de julgamentos de valores. Ao dizer que os seres humanos são somente mecanismos físicos muito complicados, estou pretendendo apenas provar um ponto de vista ontológico, ou seja, um ponto de vista relacionado com a formação do universo. Algumas pessoas escreveram sinfonias, outras erigiram catedrais góticas, outras penetraram nos segredos dos átomos e outras, por sua vez, erigiram lindos edifícios de matemática pura. Certamente uma metafísica não nega nada disso. Na verdade, dizer que uma folha de árvore ou mesmo uma célula viva é somente um mecanismo pode ser interpretado de maneira errada. Um fisicalista tem noção da complexidade extraordinária de uma célula viva e mais ainda de uma folha de árvore; são ordens de uma complexidade assombrosa que fica além da complexidade de qualquer artefato humano desse gênero que tanto entusiasmam os nossos colegas estéticos. O 'somente' da frase <"somente um mecanismo físico muito complexo"> é um 'somente' ontológico que é neutro em relação a valores. Não toma partido quanto ao que achamos mais admirável: algumas pessoas talvez prefiram mergulhar na contemplação da folha e outras na da catedral ou da sinfonia."

(3) Nosso interesse central é pelo Behaviorismo Filosófico, também chamado de Behaviorismo Radical ou Behaviorismo Lógico. Em geral este se diferencia do Behaviorismo em psicologia ou Behaviorismo Metodológico, que é um método para o estudo do comportamento dos seres humanos a partir das causas ambientais, visando a predição e controle de condutas. Apesar de, segundo Priest (1.991, p. 36), psicólogos behavioristas emitirem pronunciamentos de cunho filosófico (Watson, p. ex. diz não existir a consciência), estes pronunciamentos usualmente não fazem parte do exercício de sua metodologia. Ressaltada esta diferenciação, cabe lembrar que no trabalho de Skinner estes domínios encontram-se muitas vezes mesclados.

(4) O behaviorismo proposto, principalmente, por Skinner tinha como ideal a construção de uma ciência da conduta humana, privilegiando a predição e o controle deste objeto de estudo. Tendo isto em vista, é compreensível que tal proposta encontrasse muitas resistências. Intentando dirimir alguns equívocos existentes em certas críticas, Lopes Jr (1.994) sugere que se deva proceder à leitura dos trabalhos skinnerianos como um todo, visto este entender que o programa behaviorista representa uma epistemologia que "procurou delinear estratégias de investigação das relações organismo-ambiente que viessem a satisfazer, de um lado, os critérios de sustentação e validação empírica de qualquer empreendimento científico e, por outro, às características básicas de um projeto essencialmente humanista: proporcionar conhecimentos que permitiram analisar e modificar os tipos de controle geradores de inúmeros conflitos e problemas aos quais nós - humanos - estamos submetidos e em permanente contato." (p. 39)

(5) Ver nesta tese os conceitos disposicionais de Gilbert Ryle, no capítulo III, seção II. (6) "o fisicalismo pode ser caracterizado como uma tese reducionista. No entanto, é uma redução num sentido

ontológico, não como uma tese que diz que todas as afirmações podem ser traduzidas em afirmações relativas a partículas físicas e assim por diante." (Smart 1.991, p. 107). [itálicos do autor]. O fisicalismo é mais amplo em sua abrangência que o materialismo reducionista.

(7) Seus expoentes principais são U.T. Place, J.J.C. Smart e D.M. Armstrong, pertencentes à escola Australiana de materialistas, que exibe grande proeminência no debate contemporâneo do problema da relação mente-corpo.

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Título: O Dualismo Mente-Corpo: Implicações Para a Prática da Atividade Física Autor: Lucas Vieira Dutra Editora: CopyMarket.com, 2000

A Relação Mente-Corpo na Prática da Atividade Física Lucas Vieira Dutra

"Existir, para um ser consciente, consiste em mudar, mudar para amadurecer, amadurecer para se criar indefinidamente."

Henri Bergson (1.859-1.941)

5. O Dualismo e a Prática da Atividade Física

Introdução

Iremos discutir, neste capítulo, alguns aspectos do pensar dualista para a prática da atividade física, tomando como fio condutor a análise de algumas implicações do problema mente-corpo, identificadas em alguns trabalhos recentemente publicados na área. Os autores exemplificados aqui, apesar de não serem necessariamente representativos de tradições ou escolas de Educação Física, nos auxiliam, em sua argumentação, a delinear tendências ainda recorrentes na explanação de acontecimentos que envolvem a atividade física.

A visão da vida, da existência que uma pessoa mantém, baseia-se na constatação de um "eu", no sentido em que esta pessoa afirma "eu sou eu". Temos aqui o princípio da identidade, sustentando o ato de se estar objetivamente cônscio, consciente da realidade na qual a pessoa está imersa. Quando a pessoa pensa em si mesma, pensa em algo que identifica consigo mesma, como que permanente e fincado no fluxo dos acontecimentos, em especial no momento em que pensa neste algo. Quando pensa em algo "fora" de si mesmo, o indivíduo vê aquilo que o rodeia a partir do contexto deste "eu" ancorado nele mesmo (Popper e Eccles, 1.992, p.57).

Segundo a tradição do Idealismo (ver nesta Tese, Parte I, capítulo I, seções I e II), a visão consciente deste "eu" determina e fixa os objetos: o homem indaga "o que é isto?" e responde, constatando, "isto é tal coisa". A consciência determina este eu, que define os objetos que dela se acercam. Pelo modo do eu definir-se como algo idêntico a si mesmo, tende a ver o resto, simultaneamente, como algo como que excludente a este eu, em outras palavras algo "não-eu", dando lugar assim ao antagonismo característico da dualidade sujeito-objeto. Só em relação a esta consciência determinante existiria um aqui e um ali, um "isto" que não é "aquilo", um antes e um depois, um acima e um abaixo (Popper e Eccles, 1.992, p. 66, 75, 136; Hegenberg, 1.983).

Segundo nosso ponto de vista, o profissional e o estudiosoem geral da atividade física deparam-se, mesmo que não o saibam, com estas questões afeitas ao sujeito que define dualisticamente a sua existência durante a sua prática profissional. Pela polarização tradicional que se estabeleceu na área da atividade física em termos do dualismo mente-corpo, o professor, treinador ou acadêmico necessita muitas vezes posicionar-se. (1) Este posicionamento implica, no que diz respeito ao seu âmbito de intervenção, estabelecer onde ele vai atuar: numa mente ou num corpo. É sob este pano de fundo que tentaremos explanar, neste capítulo, alguns tópicos, envolvendo dualismo e a atividade física.

Na seção I abordaremos, com base nos trabalhos de Weiss (1.969), Harman (1.986), e Meier (1.979), a questão da possibilidade de mudança da imagem do Homem tradicional, buscando identificar os seus sinais denotativos. Tentaremos salientar o papel do dualismo no endereçamento desta questão dentro da atividade física.

A seguir, na seção II, analisando os trabalhos de Ross (1.986), discutiremos a tese do autor sobre a possibilidade de existir uma incompatibilidade epistemológica entre o dualismo cartesiano e a prática da Educação Física.

Na seção III, apresentaremos, com base no trabalho de Balkam (1.986) uma discussão sobre os conceito de 'fitness' e saúde. Iremos considerá-los em suas implicações para o profissional de atividade física, contrastando com outras contribuições mais recentes sobre o assunto.

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Finalmente, na seção IV, discutindo os trabalhos de Brunner (1.986) e Hanna (1.986), analisaremos as possíveis contribuições das abordagens orientais de atividade física, para o alargamento de nossa visão, em torno das tendências futuras para a prática da atividade física no ocidente.

Seção I - Sinais de mudança da imagem do Homem tradicional?

Neste final de século, assistimos à importância crescente da prática esportiva como veículo para a promoção do bem estar global do Homem. A própria visão da Educação Física tem se alterado (2) para atender a estes novos desafios, fazendo parte de um movimento amplo de transformações sociais, marcadas, entre outros, pela diminuição das fronteiras e distâncias entre os indivíduos e grupos sociais e mesmo entre as nações.

A nova compreensão do Homem passa por redefinições de sua identidade, com contribuições de vários campos de estudo, que exibem cada vez mais áreas correlatas, interpenetradas e superpostas, cada qual emitindo seus pareceres. Examinando textos de profissionais de atividade física sobre o tema, averiguamos que a discussão está apenas no início, demandando ainda muito amadurecimento sobre o que estaria ocorrendo com esta nova visão do Homem.

Iremos discutir, inicialmente, algumas afirmações de Weiss (1.988), um representante do posicionamento tradicional dentro da atividade física, no que tange à relação entre a mente e o corpo. Segundo esta visão, está implícito nos procedimentos do campo da atividade física a idéia de sujeição do corpo às demandas da mente. De uma perspectiva histórica, a mente sempre foi considerada mais "nobre" do que o corpo e vista como meio ou instrumento para se conseguir resultados almejados, em especial os do âmbito esportivo.

Um exemplo típico de um dualista pode ser visto em Weiss, que explicita de modo claro a necessidade de colocar o corpo como um servo da mente: "To be fully a master of its body, a being must make it act in consonance with what that body not only tends to, but what it should, do". (Weiss, 1.988, p.91)

Diz ele, nas frases seguintes (p. 91), que somente homens podem impor mentes aos corpos e que os mesmos usam suas mentes para ditarem o que o corpo tem que fazer.

Este autor usa uma analogia, emprestada dos matemáticos, para ilustrar a relevância da mente para o corpo. A mente seria um vetor, indicando direção e magnitude (objetivos) para o corpo atuar, agir. Treinamento, segundo Weiss, seria a arte de corrigir desequilíbrios entre mente e corpo, seja pela alteração do vetor ou pelo ajuste do caminho no qual o corpo funciona, até que o corpo siga a rota provida pelo vetor. Eis como poderia um atleta, por exemplo, harmonizar seu corpo e mente: "To function properly as a body, it is necessary for the athlete to correct the vectorial thrust, or to alter the body so that it realizes the prospect at which the vector terminates. Correction of the vectorial thrust is one with a change in attitude and aim, themselves presupposing some change in what the mind does. Alteration of the body demands a change in the bodily organization and activity". (Weiss, 1.988, p. 91)

Fica claro, nesta passagem, que para o autor, a mente, entendida como uma substância imaterial, determina em que medida o corpo deve funcionar, em especial na preparação de um atleta. Hierarquicamente, o corpo subjaz à preponderância do papel que se atribui à mente. Em nosso ponto de vista, traduzir esta postura dualista em vocabulário comunicável, que faculte ao usuário efetivamente instrumentalizar-se (no nível de conceitos, procedimentos e táticas) a aplicar os achados científicos auferidos pela atividade física, nos parece empreitada fadada a limitado sucesso. Pois, acreditamos que incutir posturas, modos de ação, sem uma discussão cuidadosa sobre os valores subjacentes aos elementos envolvidos nestas ações, em geral, pressupõe que tal discussão esteja já suficientemente amadurecida, perante todos os envolvidos no processo (o que nem sempre é o caso).

Mas, em que base(s) repousa o pressuposto da necessidade do corpo ser sujeito à mente? Mesmo que tal suposição fosse acordada entre todos em sua veracidade, em que extensão poderia ser efetiva e pessoalmente aplicada? Muitas questões certamente emergem sob esta configuração, que necessitam de reflexão por parte dos profissionais, acadêmicos e usuários.

Nesta mesma obra, Weiss argumenta que se está revivendo, atualmente, a idéia de De La Mettrie de que o corpo humano seria somente uma máquina. Na sua linha de raciocínio, ele nos dá a entender que De La Mettrie exclui a existência de uma alma. Contudo, analisando a obra deste médico e filósofo francês, julgamos que o mesmo (1.747, 1.983) nunca negou a existência da alma, uma vez que chega mesmo a afirmar (p. 211) que a alma e o corpo dormem juntas, que o cérebro é a matriz do espírito (p. 213) e que os diversos estados da alma são sempre correlativos aos do corpo (p. 215).

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Ao que tudo indica Weiss, neste particular, não apreciou os demais argumentos elencados por De La Mettrie, no intuito de explicitar sua teoria do homem-máquina, pois ele entende que De La Mettrie concebe o homem somente como uma máquina meramente física. Contudo, o que De La Mettrie efetivamente afirma (De La Mettrie, 1.747, 1.983, p. 241) é que o corpo não é mais que um relógio que possui mecanismos sofisticados. Entretanto, o fato de ser um mecanismo sofisticado não impede o Homem de possuir algo que se convencione denominar por exemplo, de "alma". Um aspecto fundamental da tese de La Mettrie (e nisto antecedeu séculos aos teóricos modernos da Auto-Organização) é que o nível da organização (ibidem, p. 244) da matéria existente no Homem, o faz exibir enorme diferenciação em relação aos demais animais. Da dinâmica do corpo, emergem estados mentais, que não são coisas existentes (materiais), mas nem por isso são fantasmagóricas. O que De La Mettrie quer é criticar a concepção tradicional do homem, introduzindo novos pontos de vista que ampliam a visão do que realmente o mesmo seria. O paradigma da Auto-Organização (Atlan, 1.992) apresenta sugestões para a solução do problema da relação mente-corpo, as quais parecem não ter sido apreciadas por dualistas, como Weiss.

Discutiremos agora outra visão dualista, representada pelo trabalho de Harman (1.986), a qual parece ser comum dentro da literatura sobre atividade física. Harman (op. cit., p. 04) identifica um dos achados centrais que caracterizaria o entendimento da mente: a suposição de que a maior porção da atividade mental se processaria na mente inconsciente, fora do alcance da consciência.

Fica claro, na obra de Harman, a caracterização de uma instância separada (o inconsciente), dentro de uma entidade não corpórea (não-física), a mente, que centralizaria as ocorrências mais nobres no que tange às relações entre o corpo e a mente. Segundo esta caracterização, temos crenças que são facilmente acessíveis à mente consciente e outras que são mantidas inconscientemente, como por exemplo o complexo de inferioridade. Para Harman, escolhemos e tomamos conhecimento de objetos, tanto consciente quanto inconscientemente. Assim, como exemplo, ele discute o fenômeno da repressão: há uma decisão inconsciente de esconder-se memórias e sentimentos. O superego identificado por Freud escolhe certos comportamentos e metas e pune os desvios com sentimentos de culpa.

Harman (1.986) aponta a necessidade de adotarmos as novas fronteiras da Ciência em nossos esforços, para entender a natureza integral do sistema mente-corpo. Ele aponta para o fato de que a sociedade está presentemente confusa em termos de valores, em especial depois da crítica da religião efetuada pelo conhecimento científico.

Advogando a necessidade de abertura à discussão de práticas alternativas de saúde, como terapia herbal ou acupuntura, Harman apresenta de modo idêntico a sugestão de se averiguar a contribuição da yoga, tai-chi e outras práticas orientais para o adequado entendimento das mudanças, na prática da atividade física. Subsidiariamente, o autor lança mão da teoria analítica de Freud para justificar a existência de fenômenos que seriam denotativos da emergência de um novo paradigma que levaria ao entendimento correto da mente. Tal empreitada implica que a Ciência deve achegar-se ao mundo da experiência interior, como uma nova fronteira a ser conquistada para novos entendimentos das potencialidades humanas. Segundo este posicionamento francamente dualista, muito entendimento poderia ser auferido, com o auxílio das ferramentas da Ciência, sobre o modo como o inconsciente interage no funcionamento da mente consciente, de maneira a fornecer um retrato do que é realmente a mente, relacionando-se com o corpo.

Finalizando esta seção, iremos discutir um posicionamento que intenta apresentar um panorama atual das dificuldades relacionadas, principalmente, ao tema da relação entre a corporeidade e o esporte que, segundo nos parece, guarda interdependência com o problema mente-corpo.

Meier (1.988) inicia seu trabalho, asseverando que a tarefa significante de elucidar e resolver o problema mente-corpo apresenta inúmeras dificuldades. Prossegue, dizendo que os esforços de pesquisa filosóficos relacionados com o problema da corporeidade e esporte muitas vezes tem oferecido exposições "...replete with imprecise statements, contestable assertions and, at times, unsupported or simply erroneous conclusions". (p. 93)

Meier, após apresentar algumas das dificuldades da tradição cartesiana, as quais já comentamos nos capítulos anteriores, desenvolve uma análise da visão fenomenológica do homem, a partir dos trabalhos de Maurice Merleau-Ponty. Este filósofo vê o homem como uma consciência corporificada (embodied consciousness) ou seja, um sujeito encarnado, uma unidade (mas não união) de eventos físicos, biológicos e psicológicos, todos partícipes em relacionamentos dialéticos. A existência de uma mente distinta, separada ou desencarnada é descartada nesta abordagem, sendo "corpo" e "mente" noções limitadoras do corpo-como-objeto, visto esta ser uma entidade singular, nem simplesmente mental nem meramente corporal (p. 95/96).

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Na visão fenomenológica, através de sua corporeidade, o homem é provido de um fundamento no mundo e, ao mesmo tempo, abre-se a si mesmo a este mesmo mundo. Para este homem, situado num espaço-e-tempo, surge então o sentido, que é precisamente criado e constituído pela interação do sujeito-corpóreo com o mundo, através do poder de expressão do corpo.

Meier (1.988) constata que a filosofia do esporte é repleta, na teoria e na prática, de colocações e afirmações explícitas e implícitas do dualismo cartesiano, apesar de asserções ocasionais em contrário (ibidem, p. 97). Aponta o autor que a luta do arcabouço científico natural, em torno dos valores de respeitabilidade e aceitabilidade e a existência do esquema behaviorista, com seu estímulo-resposta, ainda estão muito em evidência. O resultado seria que o ser encarnado do homem é, na maioria das vezes, mais objetificado e reduzido do que vivenciado.

Em nossa opinião, a visão do Homem, como uma consciência incorporada, pressupõe uma tomada de posição pelo praticante da atividade física que afasta, em princípio, a idéia de dualidade. A pessoa é levada a questionar-se sobre sua corporeidade, situada num mundo de relações onde todos os viventes estão imersos. Tal disposição, segundo nos parece, pode favorecer o estabelecimento de uma linguagem que intenta (I) evitar a polaridade mente-corpo e (II) viabilizar o adequado entendimento das necessidades humanas, às quais as práticas da atividade física procuram abarcar.

Referindo-se à obra de Weiss (1.988) citada anteriormente, Meier alude às dificuldades do tema e lamenta que Weiss não tenha aproveitado a oportunidade para elaborar e clarificar os relacionamentos entre mente, corpo, as emoções e "self". Aduz ainda sobre o texto de Weiss que "The inevitable result is a rather bewildering and confusing portrait of man in general and the athlete in particular". (p.98)

O objetivo de Meier, com estas observações, é analisar o embasamento ativo e extensivo de Weiss de uma concepção hierárquica, dualista do homem. Este último evidencia o dualismo consistentemente, em inúmeras passagens do trabalho em referência, através de expressões do tipo: a mente usa, altera, direciona, controla, restringe, reestrutura, disciplina e conquista o corpo. Segundo observa Meier, a terminologia utilizada denota que, para Weiss, o atleta usa o corpo precisamente como objeto, devendo subjugar e controlar seus aspectos corporais. Esta orientação assume que o atleta "possui" um corpo ao invés de plenamente "ser" um corpo.

Sob este 'framework', na visão de Meier, as Ciências anatômicas, cinestésicas, bio-mecânicas e psicológicas limitam-se a analisar, escrutinizar e manipular a natureza corporal do homem e sua participação no esporte. O atleta seria, nesta perspectiva, considerado capaz de ser completamente compreendido através do condicionamento estímulo-resposta, leis de aprendizagem, transferência de treinamento e análise de ondas neurológicas cerebrais. No entanto, o que Meier sugere, baseado nos estudos da fenomenologia do corpo, é que estas abordagens "objetivas" seriam insuficientes e muitas vezes inadequadas para a plena compreensão da natureza do ser corporificado do homem.

Meier propõe uma rejeição destas noções discretas e hierárquicas da interação mente-corpo, transcendendo suas orientações limitadoras: "The rejection of Cartesian conceptions and dichotomies permits man to rescue the objectified, maligned, and mistreated body to attain an increasing awareness of the depth and richness of his "lived-body" and to approach it as a diverse and dynamic reality". (Meier, 1.988, p. 99)

Se as abordagens reducionistas são alteradas e as polaridades mente-físico eliminadas, é possível, segundo Meier, integrar os atributos físicos do homem como facetas integrais da natureza humana e, subseqüentemente, integrá-las nos aspectos totais do corpo consciente. O homem está ancorado e centrado no mundo através do seu corpo. Este provê a ele um foco orientador da ação, entendida não como movimentos despersonalizados (acessíveis através de quantificações externas), mas como configurações repletas de qualidades expressivas do ser.

Neste âmbito, Meier vê a atividade física como uma forma vibrante da aventura humana, capaz de manifestar e transmitir estados afetivos e significados. O atleta que se mostra aberto e completo experiencia e apreende seu corpo não como objeto ou instrumento a ser manipulado, interna ou externamente (segundo a visão de terceiros), mas como consciência incorporada, um algo único e, ao mesmo tempo, multifacetado.

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A conclusão de Meier é que, se for realizada uma mudança radical das concepções cartesianas para as concepções fenomenológicas da natureza do homem, as suas potencialidades distintivas, dentro da participação esportiva, poderão ser vigorosa e proficuamente exploradas. "Rather than concentrating solely on the objectified, treadmill image of sport, predominantly centered upon the development and attainment of physical strenght, motor skills, and technical efficiency, it appears to be legitimate, fruitful, and imperative to focus upon the full range of dynamic, lived experiences avaiable therein". (Meier, 1.988, p. 99-100)

Em resumo, nesta primeira seção averiguamos os sinais denotativos da possível mudança da imagem do homem, bem como o papel do dualismo no encaminhamento desta questão, no campo da EF. Vimos como a tradição que opõe mente e corpo ainda se mostra presente (aberta ou disfarçadamente), em muitos trabalhos na área, ensejando uma sujeição do corpo às demandas da mente, esta encarada, entre outros, como sendo constituída de algo diferente do que constitui o corpo e, porque não dizer, mais nobre. Ainda que não se saiba adequadamente o que seria esta mente, o corpo ser-lhe-ia sujeito. Vimos que a reação a esta tradição dualista se concentra, principalmente, em duas vertentes, uma advinda da filosofia, mais precisamente da escola fenomenológica, que caracteriza o homem como uma consciência incorporada e não dividida. A outra vertente advoga a integração, na concepção ocidental do homem, dos achados holistas originários do Oriente, praticados principalmente pelas artes marciais. Estas concepções tratam o Homem como uma totalidade, situado num universo dinâmico no qual ele é parte indissociável.

Observamos também que a linguagem pode determinar a manutenção de equívocos, pelo simples fato dos usos e costumes implicarem o retratar da realidade em termos tradicionalmente dualistas. Visto que, ao que parece, os usuários da EF se mostram atualmente insatisfeitos em sua prática, necessário se faz repensar o modelo vigente em termos de sua adequação e, segundo nos parece também, este questionamento poderia passar eficientemente por uma discussão lingüística.

Iremos, na seção seguinte, apreciar mais alguns argumentos sobre a questão da adequação da concepção dualista do homem, fundada na abordagem do seu maior defensor, René Descartes.

Seção II - Dualismo cartesiano e a prática da atividade física: alguma incompatibilidade epistemológica?

Tomamos até o momento o cuidado de discutir a atividade física sem referência à expressão "educação física". No entanto, utilizaremos a nomenclatura, adotada por Ross (1.986) em sua análise sobre a contribuição da atividade física na obtenção do conhecimento humano (3) Este autor é um dos pesquisadores da atividade física que possui interesse nos seus aspectos filosóficos e, neste trabalho (Ross, 1.986) desenvolve proveitosa discussão sobre o dualismo cartesiano e a aquisição de conhecimento.

Ross (1.986) discute a concepção de "Educação Física" (EF) frente ao dualismo, considerando se esta educação seria educação-do-físico ou educação-através-do-físico. Critica o fato dos acadêmicos não se ocuparem com este aspecto da Educação Física como educação "do" ou "através do" físico, seja de uma perspectiva metafísica ou epistemológica, creditando esta omissão ao fato da EF envolver pessoas. Ele julga que enquanto não se entender claramente o que é uma pessoa, não se pode ser realmente efetivo como educador (p. 16).

De modo a entender a posição de Ross acerca da distinção acima mencionada entre 'do' e 'através do' físico, faz-se necessário um breve comentário sobre o desenvolvimento da prática da atividade física a partir dos anos 60.

Resumidamente, pode-se considerar que, na década de 60, as atividades físicas, destinadas ao provimento e manutenção da saúde, eram baseadas na utilização do exercício puro, trabalhando o corpo, quase sem referência à mente. De acordo com esta perspectiva, a educação física, na terminologia de Ross, enfatizava a educação 'do' físico. Na década de 70, observa-se uma mudança neste modelo, com o indivíduo sendo paulatinamente encarado como pessoa que, consciente ou inconscientemente, processa informação e, através do seu corpo, vai obter conhecimento. Após os anos 70, esta tendência se fortalece com a teoria do processamento de informação, na qual o cérebro assume papel relevante.

Atualmente a teoria do processamento de informação perdeu seu lugar central nas investigações dos teóricos da prática da atividade física, tomando, em parte, o seu lugar a teoria dos sistemas dinâmicos A visão da educação física passa a ser entendida como educação 'através do' físico, onde a atividade física realizada pelo sujeito é integral - com seu corpo e mente - e desempenha papel fundamental na obtenção do conhecimento. É nesse contexto que se situa a argumentação de Ross (1.986), que discutiremos a seguir.

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Comentando o sistema cartesiano, Ross investiga as implicações do dualismo. Segundo ele, Descartes transfere ao homem individual a primazia na identificação daquilo que pode ser conhecido. Em outras palavras, o problema de se ter uma abordagem geral do conhecimento passa a ser um problema de um ser racional individual que se questiona sobre o que pode ser conhecido. O local da fonte de conhecimento muda de externo, do mundo, para interno, o individual (4).

De acordo com a perspectiva cartesiana, o conhecimento passaria a ser derivado dos processos internos de pensamento. A ação física, executada pelo corpo, não é considerada como manifestação de conhecimento. O conhecimento, para Descartes, deve ser indubitável e a certeza não vem dos órgãos dos sentidos, que enganam ou podem enganar (ver nesta Dissertação, no capítulo II, o argumento do erro dos sentidos).

Ross nos lembra que, para Descartes, o homem é um ser cuja marca essencial é o pensar e a substância que pensa é ontologicamente diferente e exclusiva da substância corporal, sendo mesmo irredutíveis uma em relação à outra. Ross ressalta que a mente, para Descartes, ganha conhecimento através da reflexão sobre si e não do que possa vir do corpo, ou de uma ocorrência física, seja do corpo ou do exterior. O corpo, na concepção cartesiana, enquanto substância física, não pode ser educado (Ross, 1.986, p. 20-21). Além disso, o que vem de fora pode dar ensejo ao engano, visto que nossos órgãos dos sentidos nos enganam. Portanto, nesta constelação de fatos, o termo Educação Física, seja entendido como educação-do-físico ou, diferentemente, educação-através-do-físico não teria, segundo Ross, sentido dentro da concepção cartesiana. Denominaremos tal conclusão de 'hipótese da incompatibilidade epistemológica'.

Nas referências bibliográficas mencionadas por Ross (1.986) averiguamos que ele fez uso das obras Discurso do Método (Descartes, 1.637), e Meditações (Descartes, 1.641). Neste contexto, a hipótese da incompatibilidade epistemológica parece ser pertinente, uma vez que a preocupação central de Descartes, nestas obras, era com a fundamentação racional do conhecimento e não com o ser ativo, que é objeto da análise de Ross (1.986).

Contudo, Descartes deixou em sua obra As Paixões da Alma (1.649/1.973), uma discussão provisória de como se processaria a união íntima da alma com o corpo. Neste trabalho, Descartes indica que a alma pode alterar o corpo, através de um processo educativo:

"Art. 41. Qual é o poder da alma com respeito ao corpo. (...) E toda a ação da alma consiste em que, simplesmente por querer alguma coisa, leva a pequena glândula, à qual está estreitamente unida, a mover-se da maneira necessária a fim de produzir o efeito que se relaciona com esta vontade.

Art. 42. Como encontramos em nossa memória as coisas de que nos queremos lembrar. Assim, quando a alma quer lembrar-se de algo, essa vontade faz com que a glândula, inclinando-se sucessivamente para diversos lados, impila os espíritos para diversos lugares do cérebro, (...)

Art. 43. Como a alma pode imaginar, estar atenta e mover o corpo. (...) ; assim, enfim, quando se quer andar ou mover o próprio corpo de alguma maneira, essa vontade faz com que a glândula impila os espíritos para os músculos que servem para tal efeito". (Descartes, 1.649/1.973, p. 242/243)

Nesta e em outras passagens fica claro que, para Descartes, é a alma o motor, o engenho principal da aquisição do conhecimento. No entanto o corpo tem, apesar da sua ligação 'obscura' com a alma, uma certa importãncia. É através do exercício da vontade que o corpo e o sujeito, na sua totalidade, podem ser aprimorados. Ao que parece, uma análise detalhada das Paixões da Alma poderia dissolver, parcialmente, a incompatibilidade epistemológica que Ross identifica.

Resumindo, nesta seção, discutimos a possível incompatibilidade epistemológica entre o dualismo cartesiano e a prática da educação física, segundo Ross (1.986). Este autor critica o dualismo e, sob este fundamento, conclui não ser viável, na ótica cartesiana, nem uma educação do físico nem uma educação através do físico. Sob nossa óptica, Ross parece interpretar erroneamente os argumentos cartesianos, realizando uma leitura parcial dos mesmos. Não obstante, Ross pretende indicar um caminho para a EF que eduque a pessoa enquanto ser holístico. Sua assertiva de que é necessário definir adequadamente o que se entende como pessoa, nos parece encorajador, ainda que, infelizmente, não auferimos, no texto, suficiente esclarecimento neste sentido. Ao menos, nos parece, neste particular, fica colocada a importância de um trabalho de definição, de entendimento de um termo central ('pessoa'), que envolve cuidadoso tratamento do modo como se fala, se retrata a realidade humana.

Outro aspecto que pode contribuir para o estabelecimento e manutenção de uma visão inapropriada do homem, enquanto engajado em atividades esportivas, é a questão do 'fitness' versus saúde, que abordaremos a seguir. Veremos se ocorrem discrepâncias efetivas entre as idéias abarcadas sob estes dois termos e em que extensão elas se dão.

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Seção III - 'fitness' e saúde: valores divergentes.

Este tópico tem atraído muito interesse, inclusive para o grande público, além da área médica (ver, respectivamente, Amoedo, 1.995, e Mion Jr, 1.996). Existem muitos pontos de vista e, apesar de citarmos aqui alguns, não necessariamente representativos, os mesmos parecem remeter à relação presumida entre corpo e mente, conforme veremos.

Balkam (1.986) aponta para a existência, atualmente, de uma grande quantidade de reflexões em torno da experiência do exercício orientado para o 'fitness', em relação a tempos atrás. Até recentemente, segundo o autor, a responsabilidade pelo estudo e reflexão sobre o exercício e seu produto, o 'fitness', era dividido entre dois grupos: um, composto no mais das vezes por atletas estudantes, preocupados, junto a times esportivos, mais em perseguir vitórias do que com o significado destas atividades e outro, os fisiologistas do exercício, que com suas curvas e mensurações, asseguravam que seu campo de estudo fosse compreendido por poucos além deles mesmos. Atualmente, este quadro mudou e as demandas para o questionamento do que seria o 'fitness' aumentou, em especial por causa da explosão da necessidade de exercitar-se.

O status do exercício, em especial do exercício orientado para o 'fitness', constitui um foco de interesse para vários estudiosos da EF, em especial para Balkam. Este assevera que esta modalidade de atividade é uma experiência especificamente humana, com todas as dimensões de humanidade que levam os filósofos, teólogos e poetas a refletirem sobre ela: corpo e mente, emoções, psicologia humana, a procura de significado, derrota e vitória, o indivíduo e o grupo, bem como a tarefa de auto-integração.

Circunscrevendo as definições de 'fitness' e de saúde, Balkam lança mão das noções aristotélicas das quatro causas (material, formal, eficiente e final), no intuito de demonstrar um ocasional conflito entre elas. Nota o autor que Aristóteles não entendia "causas" somente da maneira que nós entendemos atualmente, como uma força ou entidade provocando uma mudança ou um efeito. Antes, eram as causas os princípios que facultavam a uma determinada entidade existir ou mudar de uma condição de existência a outra. Entender algo para Aristóteles era entender suas causas; entender um processo de mudança ocorrendo em uma coisa era entender suas causas (ver nesta Tese a Parte I, Capítulo I, seção II).

Comentando a causa final - ou dos processos dirigidos para um fim (que seria a realização das possibilidades implícitas na causa formal) - Balkam identifica que a mesma é facilmente captada, quando se consideram atividades humanas ou objetos feitos pelo homem. Temos dificuldade em compreender quando a causa final é aplicada a causas naturais, como Aristóteles faz. Pois, segundo Balkam (p. 33), parece que Aristóteles, ao assumir um entendimento teleológico da natureza, ou orientado-para-um-fim, imputa à natureza a intencionalidade que atualmente somente se atribui às entidades inteligentes.

A visão moderna da Ciência afastou a explicação teleológica aristotélica, em favor da abordagem que permite identificar a ordem e a previsibilidade dos fenômenos, através de outro nível de explicação, baseado em achados precisos e acurados, mediante a aplicação rigorosa do método científico. Nota o autor, no entanto, que a Ciência, apesar destes achados todos, não tem elementos para responder à questão "What does this exercice mean to me, as an intelligent embodied person?" (ibidem, p. 34). Neste âmbito, julga Balkam que a noção aristotélica de uma teleologia natural pode ser frutífera, ainda que não rigorosamente científica, no sentido de servir como ferramenta, numa tentativa particularmente humana de descobrir a inteligibilidade do exercitar-se para o 'fitness'.

Na colocação de Balkam, um esforço de entendimento de inspiração aristotélica que, por um lado, investigue os propósitos das funções corpóreas humanas e, de outro, permita integrar os dados necessários e úteis, originados da investigação científica, no sentido de se estabelecer modelos de saúde e de 'fitness', poderia ser disposto como segue:

"What are the purposes of these organs and systems which function within scientifically defined parameters for me, an intelligent, embodied person who makes choises about how I live my bodily life? This question acknowledges that are purposes inherent in the design or structure of bodily organs and systems, and that these can be described in detail by physiologists. But there is more to the question. (...) Physiological integrity and absence of injury or disease are not health per se, but the necessary conditions for health. Given these, health emerges from the relationship of human purposes expressed in behavior and bodily purposes inherent in the design and function of human organs and systems. Optimal or normative health consists in a harmonious relationship between behavior and bodily function. Put in more teleological terms, health consists of a congruence between human purposes and the purposes implicit in how our bodies are designed and function. Conversely, ill-health consists in a poor match or conflit between behavior and bodily function". (Balkam, 1.986, p.35)

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Para o autor, enquanto as funções de nossos órgãos e sistemas são dados pela herança genética, o que é feito destas funções é matéria de comportamento, que em si são escolhas, implícitas nos hábitos que se acumulam. As condições para se conseguir saúde são dadas (p. ex. integridade física, ausência de doença), mas a saúde em si é algo que se conquista e isto só acontece, na medida em que ocorrem condutas inteligentes de escolha compatíveis com os propósitos imbuídos, no corpo humano. A conquista da saúde é um resultado de se responder à questão "Qual é o propósito destes órgãos e sistemas para mim?" (p. 35).

'Fitness', segundo Balkam, parece ser, à primeira vista, diferente de saúde em grau, mas não no tipo. 'Fitness' representaria um ponto mais avançado, ao longo de um continum de funcionamento corporal, em relação àquele ocupado por uma pessoa saudável qualquer. No entanto, aponta o autor (ibidem, p. 36), existem duas razões pelas quais este modelo seria errado, forçando-nos a conceber 'fitness' diferindo de saúde no tipo, não em grau.

Em primeiro lugar, saúde seria o funcionamento ótimo do ser humano, uma realização apropriada e inteligente das potencialidades implícitas, nas funções e arquitetura corpóreas, baseada nas opções que este ser humano de modo cônscio escolheu. Em outras palavras, saúde seria o harmonioso estado de ser resultante dos propósitos existentes na mente-que-escolhe, expressos via condutas, comportamentos, que são consistentes com os propósitos inerentes das funções corporais. É o feliz estado de celebrar, regozijar a existência corporal. 'fitness', por seu turno, segundo Balkam, é o estado corpóreo do ser que possui algum objetivo extrínseco, usualmente uma meta de performance como seu objeto. A pessoa, lutando por atingir 'fitness', não tem o estado de 'fitness' ou capacidade física como um fim. Antes, o objetivo seria a habilidade de possuir, adquirir, ou obter algum resultado "físico", tal como correr uma certa distância em tanto tempo, bater um oponente em uma disputa, vencer uma competição de dança. Portanto, saúde determina um estado harmonioso de bem-estar; 'fitness' consiste em condicionar-se a um certo estado de capacidade física, objetivando atingir alguma atividade ou meta de performance, normalmente competitiva. Saúde e 'fitness' diferem em sua orientação para um fim, ou nas escolhas efetuadas pelos indivíduos que os buscam.

Em segundo lugar, saúde e 'fitness' vão se diferenciar no tipo do estado físico vigente que se almeja: enquanto saúde visa o relacionamento harmonioso entre os propósitos humanos e as suas funções corpóreas, o alcançar de 'fitness' pode introduzir desarmonia e conflito neste relacionamento. Isto se deve ao mutante caráter das metas extrínsecas subjacentes, na busca do 'fitness'. Em outras palavras, segundo o autor (ibidem, p. 36), perseguir os objetivos extrínsecos do 'fitness' faz o corpo e suas condições serem um meio para um fim. Isto vai contrastar com o estado de saúde, onde o harmonioso relacionamento das funções corpóreas e as condutas inteligentes de escolha são um fim em si mesmo.

Para o atleta que persegue 'fitness', a excelência, para Balkan, tem seu preço: normalmente se põe a saúde em risco para alcançar-se esta condição. É comum o atleta competitivo contundir-se durante o treinamento ou no curso mesmo da competição, como resultado da exigência excessiva imposta sobre um órgão, uma estrutura ou um sistema físico. Exercitar-se para 'fitness' excede em geral o uso apropriado que normalmente se faz do corpo, quando se visa somente saúde. Existem atletas competitivos em ótimas condições de saúde, mas isto é algo quase acidental, tendo em vista os objetivos principais. Quando livre de contusão, o atleta competitivo aparentemente está em melhores condições de saúde do que uma pessoa comum saudável, mas sua saúde está sob risco constante, a não ser que não esteja treinando duramente ou não esteja competindo vigorosamente. (5)

Por outro lado, ao considerarmos a pessoa comum, que não seja atleta competitivo, vemos outros problemas que se associam com os temas de 'fitness' e saúde, onde os valores pessoais podem estar subjacentes. Por exemplo, problemas ligados à obsessão com o peso corporal, com desordens do comportamento de comer (bulimia ou anorexia) e com o exercício compulsivo. Neste contexto complexo, é necessário tornar preciso o entendimento destas noções de saúde e de 'fitness'.

No intuito de averiguar a possibilidade de resolver estes problemas, Norton (1.986) propõe que se faça uma revisão no conceito holístico de 'fitness', de modo a se criar um ambiente que suporte práticas positivas de saúde. Norton não diferencia como Balkan 'fitness' e saúde e sugere os seguintes passos para se alcançar uma concepção holística de 'fitness':

"1. Promote self-integration and not fragmentation. Search for meaning and a sense of unity and well-being. Engage in theory-pratice relationships in a more personalized and autobiographical manner. 'Science cannot deal with ultimate meaning' (Macdonald, 1.981, p.135).

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2. Emphasize wellness and strength. Focus on more than the prevention of coronary heart disease, low-back syndrome and obesity. More people have died in our culture from trying to get thin than from being fat.

3. Create an environment for fitness which supports long-term involvement and positive health practices, as well as systematic adherence. Focus on skills and support systems as well knowledge.

4. Modify current behavior from a cultural rather than individual basis. Focus on family, work, and social organizations". (Norton, 1.986, p. 44)

Segundo Norton, é possível estabelecer parâmetros no sentido de se evitar os perigos apontados por Balkam. Não existe, segundo nosso ponto de vista, contradição necessária entre as duas visões acima: se for averiguado , tanto para o aspecto de saúde quanto de 'fitness', a prioridade que é dada ao exercício, poderemos ter a chave para compatibilizá-los. Dependendo se maior valor ao exercício é demandado de agências exteriores (p. ex. a sociedade: a mídia, os pais e treinadores, o clube ou academia) ou dos valores pessoais intrínsecos daquele que se exercita, haverá menor ou maior congruência entre o que a pessoa pode realizar com seu corpo e o que se realiza, para se auferir um estado ótimo, adequado de saúde para esta pessoa. O conceito de saúde envolve aspectos físicos e psicológicos e, neste âmbito, dentro de certos limites, as pessoas vão variar extremamente em suas definições pessoais do que seja 'fitness' e saúde. (Para averiguar posicionamentos mais recentes sobre o tema da atividade física, 'fitness' e saúde, ver Shephard, 1.995; Pate, 1.995, e Dishman, 1.995)

Aqui temos também, segundo nos parece, aspectos lingüísticos determinando o estabelecimento e manutenção de valores, subjacentes à tomada de decisão, construção e gerenciamento de condutas, envolvidos nos comportamentos abarcados sob os títulos de atividade física, saúde, 'fitness'. Na medida em que identificarmos estas implicações para a prática da atividade física, poderemos construir um vocabulário que contemple eficazmente as necessidades dos usuários e estudiosos.

Sumariando, nesta seção, discutimos a oposição de enfoque que parece estar subjacente nos conceitos de saúde e de 'fitness', como sendo uma diferença não de grau, mas de tipo. Conforme observamos, estes conceitos referem-se, segundo Balkam, a domínios de consideração que, pelos seus objetivos implícitos, podem levar a resultados muito diferentes para os praticantes de atividade física, dependendo de cada situação. Uma tentativa de solucionar estes diferentes enfoques será examinada na seção seguinte, a qual considerará a possibilidade de se aproveitar os achados dos praticantes e pesquisadores orientais de EF no estabelecimento de um posicionamento que resolva estas contradições.

Seção IV - A visão oriental e a concepção unitária do homem.

Nesta última seção, iremos analisar posicionamentos que advogam a erradicação da visão dualista tradicional, visando ao sucedâneo da visão holística, unitária do homem. Nossa maneira de ver cientificamente a realidade, moldada por séculos da doutrina dualista, influencia nossos novos valores à medida que são adquiridos. Nas palavras de Johnson (1.986):

"...philophical techniques have developed over the years including categorizing, characterizing, classifying, identifying, judging, and selecting. These techniques provides a means to understanding, clarifying, and learning, but serve also as form of dichotomizing things as separate and independently identifiable. It appears that an inordinate amount of time and effort has been spent noting distinctions rather than similarities. Dwelling on differences spawns separatism, fortifies nationalism, nurtures religious pride and self-righteousness, fosters racism, and encourages chauvinistic attitudes and behavior. Emphasizing similarities, on the other hand, promotes harmony, singleness of purpose, mutual respect, camaraderie, cohesiveness, cooperation, and balance". (Johnson, 1.986, p. 150)

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Este estado de coisas vem tornando difícil pensar a realidade, em geral e a nós mesmos, em particular, em bases alternativas, especialmente sob as idéias que vêm do Oriente sobre movimento e totalidade. Por extensão, esta configuração vai dificultar, segundo nos parece, a criação e manutenção de um vocabulário não-dualista que faculte a acadêmicos de Educação Física, alunos, esportistas e treinadores o adequado raciocinar dos acontecimentos abrangidos na interface mente-corpo.

Uma contribuição, no sentido de se estabelecer um vocabulário não-dualista, pode ser visto em Brunner (1.986). Ela aponta o fato de que, apesar de tentar fazer nossas vidas mais convenientes, o rápido avanço tecnológico tende a remover-nos de nossa natureza orgânica, ligada ao pleno cultivo de nossas potencialidades. Pondera ainda que as pessoas, em favor dos benefícios obtidos ou a obter do pensamento racional linear ou da precisão mecânica da tecnologia, não estão necessariamente dispostas a abandonar a dimensão global do ser. Temos que redescobrir e aprender, segundo Brunner (p. 168), novas maneiras de viver plenamente, como seres humanos, espirituais, mesmo porque não podemos mais prescindir de nossas ferramentas modernas, auferidas pelo conhecimento científico.

A autora identifica que o fato de se estabelecer distinções entre EF e educação plena da mente, já, em si, é um sinal da intenção de promover uma cisão no todo orgânico do ser. Em vista deste estado de coisas, ela assevera (p. 168) que há, hoje em dia, educadores que orientam efetivamente os professores a que façam da educação uma experiência plena de significado. De um ponto de vista existencial, reconhecem a realidade subjetiva como primordial e colocam a responsabilidade nas mãos de cada um dos envolvidos no processo. Dentro de um contexto onde as pessoas anseiam por um sentido em geral e um sentido de totalidade, holista, em particular, pondera a autora (ibidem) que os professores devem estar preparados para aceitarem a responsabilidade de educar, de acordo com os novos requisitos de nossa cultura.

As experiências infantis, segundo Brunner (1.986, p. 170), provêem um fundamento para o que vamos nos tornar quando adultos. Na infância, nossos sentidos estão mais despertos e o todo do organismo é um vivente pleno, explorando os caminhos do universo e de nós próprios, enquanto fazendo parte dele. O movimento, segundo a autora, é fundamental às descobertas que fazemos e mesmo essencial para o aprendizado de nós mesmos. No campo da Educação Física, a descoberta dos princípios do movimento, através da experiência, é fundamental para o ensino e requer um pensamento multidimensional, ou como chama a autora, pensamento orgânico (idem, p. 171), que precede e transcende o modo lingüístico. Os professores da arte do movimento deveriam, eles mesmos, se prepararem para compartilhar seus sentidos e significados do ser em movimento bem como suas habilidades. Continuando, sugere que (idem, ibidem) comunicar este conhecimento se torna então um desafio que somente pode ser realizado, abrindo-se novas perspectivas; procurando-se novos modos de consciência e desenvolvendo uma linguagem que captura a essência da experiência percebida do movimento.

As atitudes e conceitos orientais, em torno do eu-em-movimento, moldam uma experiência de totalidade que os ocidentais agora estão começando a valorizar e a incorporar em suas vidas. No entender de Brunner (idem, ibidem), um paradigma holístico para a Educação Física deve abarcar as formas de movimento oriental que nos forneçam novas imagens e novos caminhos para descrever nossas experiências, bem como novas técnicas que revelem os princípios universais do movimento. Segundo nos parece, a construção de um vocabulário adequado é condição sine qua non nesta empreitada e poderá ser auferido, segundo pensamos, sob o amadurecimento da discussão facilitada com as contribuições cumulativas de todas as tradições. Isto porque, segundo a visão de Daolio (1.995), endossada por nós,

"O Corpo é uma síntese da cultura, porque expressa elementos específicos da sociedade da qual faz parte. O homem, através do seu corpo, vai assimilando e se apropriando dos valores, normas e costumes sociais, num processo de inCORPOração (a palavra é significativa). Mais do que um aprendizado intelectual, o indivíduo adquire um conteúdo cultural, que se instala no seu corpo, no conjunto de suas expressões". (p.25)

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Neste mesmo sentido, Siebert (1.994) afirma que "Nenhuma cultura lida, com as questões do corpo/movimento como um fato natural bruto, mas o vive e compreende simbolicamente, dando-lhe sentidos, valores, criando normas e permissões"(p. 189). Em nossa opinião, a linguagem, o idioma, o vocabulário por meio do qual são construídos e comunicados estes conteúdos terminam induzindo, determinando rumos e modos de compreensão destes mesmos meios e conteúdos. Em outra passagem do trabalho, a autora diz "O corpo/movimento humano não possui uma única linguagem. A expressão do ser humano concretiza a sua vida e as suas ações utilizando para isso de uma multiplicidade de dialetos". (Siebert, op. cit., p. 188).

Hanna (1.986) vem adicionar a estas reflexões alguns aspectos complementares que parecem auxiliar, no sentido de viabilizar os caminhos identificados acima por Brunner. O autor ressalta a multifacetada mudança cultural ocorrida nos Estados Unidos, a partir dos anos 60, analisando principalmente os conceitos de "estilo de vida" e refletindo sobre o que seria a "vida boa". As mudanças ocorreram no modo como se pensa sobre o namoro, casamento, sexualidade, educação infantil, relações interpessoais e responsabilidade política (p. 175). (ver também a seção II neste capítulo)

No entanto, segundo Hanna, a mais profunda destas mudanças culturais ocorreu no modo de pensarmos sobre nós mesmos: quem somos como entes humanos, quais são nossas capacidades e como nós, enquanto indivíduos, cremos que podemos experienciar e realizar proficuamente nossas vidas. Neste nível de concepção individual do eu, dois desenvolvimentos cruciais convergiram após o início dos anos 60, advindos de duas diferentes fontes, uma moral e outra oriunda da Ciência.

A primeira convergência, prossegue o autor, seria a ética da auto-responsabilidade. As pessoas descobriram (6) que podem ter suas próprias opiniões, em vez de seguirem os papéis tradicionais, os estilos de vida e as vocações vigentes, transmitidos de pai para filho. Os americanos da nova geração descobriram que não necessitam ter alguém que lhes digam o que ser, o que pensar e o que fazer. No pensamento de Hanna, eles puderam fazer estas coisas por eles mesmos e para eles mesmos (p. 176).

No entanto, continua o autor, independência seria o lado abrasivo da moeda cujo lado oposto seria a auto-responsabilidade e a moralidade desta implica que os indivíduos não somente devem determinar seu destino, mas que efetivamente podem fazê-lo. A tarefa de decidir o seu papel pessoal, seu destino, vai implicar para o homem e a mulher da nova geração a decisão de determinar a sua experiência e, por extensão, a sua própria consciência individual.

A despeito de muitos terem inclusive aderido, nestes anos pós-60, a drogas, sexo e rock n'roll como instrumentos para alterarem, experimentarem suas consciências, o que ficou patente é que a consciência deve ser fluida, adaptável, sem o ranço de rigidez herdado de séculos de educação monolítica, imposta pela cultura. E, nesse âmbito de consciência maleável, está subentendido, na visão de Hanna (p. 177) o reconhecimento que os estados corporais e os estados mentais são inseparavelmente interconectados. O autor visualiza, aqui, termos testemunhado a solução do problema mente-corpo, não por debate filosófico, mas por transformação cultural.

Argumentando sua concepção de uma natureza humana somática, Hanna (1.986) coloca, inicialmente, que a separação teórica, entre corpo e mente, foi transmutada num reconhecimento de uma unidade "somática". Apesar de nos separarmos em compartimentos mentais, corpóreos e emocionais, experienciamos, por ex. a consciência da meditação e a quietude do corpo como algo indissolúvel, o êxtase do amor e o orgasmo sexual como uma coisa só. A consciência transcendente da corrida de maratona e a ritmicidade do corpo podem ser considerados da mesma maneira. O grande legado, nas palavras de Hanna (p. 177), neste ciclo de transformações iniciado nos anos 60, foi o conhecimento prático de que a grande riqueza da experiência consciente caminha passo a passo com a grande diversidade de atividades corporais. A cultura da nova geração é explicitamente somática e isto implica, na visão do autor, que reconhecemos francamente a responsabilidade pelos nossos estados psicológicos e fisiológicos. O que sucede ao nosso corpo não fica separado de nossa mente, emoções e performance, mas está sim poderosa e diretamente conectada a ela.

Resumindo, a ética da auto-responsabilidade é uma ética somática e surge de uma concepção de nós mesmos de um modo profundo e mais amplo do que a concepção anterior de natureza humana, visto revisar nosso entendimento da raça humana e das capacidades da pessoa.

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Paralelamente a esta revolução cultural, houve o desenvolvimento de uma Ciência somática, englobando entre outros, a tecnologia do 'biofeedback'. Desde que foi demonstrado que a consciência não era simplesmente um efeito ilusório de causas neurais, mas que podia ser ela mesma causa de efeitos neurais, outras investigações mensuraram a capacidade humana de exercer controle voluntário sobre o batimento cardíaco, taxa de secreção gástrica, pressão arterial, temperatura da pele e mesmo o domínio dos sistemas nervosos simpático e parassimpático. Não se considera mais, na visão de Hanna (1.986, p. 178), a consciência humana como "epifenômeno" do corpo, mas como função superintendente dos processos corpóreos. Agora é uma questão aberta saber em que grau as pessoas podem controlar e modificar seus próprios estados fisiológicos.

Ilustrando a surpreendente evolução da Ciência somática, Hanna cita, à p. 179 de sua obra, uma passagem do psicólogo americano Roger Sperry quando este recebia o seu prêmio Nobel de 1.981: "The events of inner experience, as emergent properties of brain processes, become themselves explanatory causal constructs in their own right, interacting at their own level with their own laws and dynamics. The whole world of inner experience (the world of the humanities) long rejected by 20th century scientific materialism thus becomes recognized and included with the domain of science". (Sperry, 1.982, p. 1.226)

Sperry aqui, nas palavras de Hanna (idem, p. 179), lança os fundamentos para uma autêntica Ciência da auto-responsabilidade que, como diz Sperry, envolve um conceito revisado da natureza da consciência e de sua relação fundamental com o processamento cerebral. Devemos averiguar, de modo mais aprofundado, o caminho no qual a consciência adquire controle sobre o corpo: em todas as instâncias, desde 'feedback' até a yoga, um aprendizado toma lugar. Em outras palavras, ganhar controle voluntário sobre funções outrora involuntárias é um processo de aprendizagem. Como aponta Hanna (idem, p. 179), este processo de auto-educação somente tomará lugar, se focarmos nossa consciência internamente sobre nossas funções corpóreas; devemos atentar para as sensações proprioceptivas com as quais nosso sistema nervoso, liberalmente, supre o nosso cérebro.

Vamos fazer um parêntese aqui para introduzir um aspecto que julgamos importante. Se atentarmos para a argumentação acima utilizada por Hanna, verificamos que o termo "controle" é empregado no sentido de tentar descrever uma operação onde algo, uma substância (no caso, uma mente) exerce uma ação sobre outra substância (o corpo). Aqui, apesar de Hanna apregoar que a separação entre mente e corpo é inadequada para a explicação do funcionamento da pessoa integral, sua forma de expressão dá margem, ao utilizar termos como "controle", ao entendimento das suas palavras em termos da existência das duas substâncias. Assim, mesmo advogando uma educação "somática", Hanna parece lançar mão do jargão dualista para criticar o Dualismo.

Sob nosso ponto de vista, por uma armadilha lingüística, mesmo teóricos 'não-dualistas' como Hanna são levados a encarar a mente como substância, mesmo que sem matéria. De acordo com a concepção não-dualista, a mente não é uma substância imaterial; ela representa uma dinâmica ou processo "colado" ao corpo, sendo mesmo os processos corpóreos que se observam durante o funcionamento do corpo. O que se aufere como processo mental é uma dinâmica que existe em diferentes níveis de organização da matéria, conforme sugerido por De La Mettrie (ver a seção I, neste capítulo V), e defendido, atualmente, pelos teóricos da Auto-Organização.

Tentando evitar o uso inadequado do termo "controle", que denota implicitamente um dualismo opondo (e subordinando) mente e corpo, iremos doravante entender a palavra não como implicando ação de substância mental sobre uma substância corporal, mas como um tipo de 'feedback' existente através de variados níveis de processos corporais, de modo a lhe permitir um funcionamento adequado.

Voltando à linha de raciocínio de Hanna (1.986), o que deve ser aprendido, no entender do autor, é o reconhecer de padrões de sensações que anteriormente não eram vislumbrados, identificados, conscientemente discriminados. O 'feedback' sensorial existe, mas para nossa consciência, representa um conjunto de informações como uma mensagem cifrada, criptografada. Aprender a reconhecer a informação proveniente de um padrão proprioceptivo interno, não seria essencialmente diferente de reconhecer os limites visuais de um mapa ou a estrutura auditiva de uma melodia. As sensações proprioceptivas dos movimentos corporais internos são diferentes das sensações externas dos olhos ou do ouvido, ainda que a tarefa cerebral de reconhecer padrões seja a mesma.

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A consciência deve, inicialmente, aprender a reconhecer os padrões entrantes de informação sensória antes de ser capaz de fornecer comandos que irão controlar processos involuntários. Em outras palavras, um novo 'input' sensorial é necessário para criar-se um novo 'output' motor. Como nota o autor, hoje em dia nos referimos ao sistema sensório motor como um "feedback loop" (idem, p. 179) e descrevemos muitas de suas funções informacionais, no mesmo sentido em que falamos sobre o funcionamento dos computadores. A Ciência somática é a Ciência da auto-consciência, um auto-conhecimento que leva, segundo Hanna, diretamente ao auto-controle, que é um tipo diferente de conhecimento daquele que existe no conhecimento visual ou auditivo. Reconhecer um padrão visual ou auditivo existente fora de nós, em si não leva a controlar o que está a se ver ou ouvir; mas auto-conhecimento de sensações proprioceptivas internas leva diretamente ao nosso controle interno.

Abro mais um parêntese, aqui, para identificar outra dificuldade de cunho lingüístico, agora associado ao uso da palavra 'consciência'. Este termo muitas vezes é associado de modo íntimo com o termo 'mente', como constituindo uma de suas características mais distintivas, tanto como processo ou atividade ou até como sinônimo, denotando a mesma instância ou entidade, nomeada 'mental'. O uso inapropriado ou impreciso deste termo 'consciência', de igual modo parece ser mais um dos exemplos do porquê das dificuldades encontradas, dentro do âmbito do problema da relação entre a mente e corpo. Vejamos a citação:

"One of the peculiarities of the mind-body problem is the difficulty of formulating it in a rigorous way. We have a sense of the problem that outruns our capacity to articulate it clearly. Thus we quickly find ourselves resorting to invitations to look inward, instead of specifying precisely what it is about consciousness that makes it explicable in terms of ordinary physical properties. (..) I think an adequate treatment of the mind-body problem should explain why it is so hard to state the problem explicitly. My treatment locates our difficulty in our inadequate conceptions of the nature of the brain and consciousness. In fact, if we knew their natures fully we would already have solved the problem." (McGinn, 1.991, p. 2)

Do ponto de vista do autor, a dificuldade de verbalizarmos, de tratarmos adequadamente os conceitos de 'cérebro' e 'consciência', implicam dificuldades no entendimento e tratamento do problema mente-corpo. Ao que parece, somos de opinião de que outras dificuldades de cunho lingüístico, abarcando o uso de conceitos e termos imprecisos, tenderiam a tornar mais complexos os obstáculos teóricos identificados, nas mais diversas tradições e visões sobre o problema da relação mente-corpo.

Retornando à linha de pensamento de Hanna, as artes marciais e as disciplinas ascéticas orientais parecem mostrar o grau extraordinário de monitoramento interno que o homem pode auferir. Já é fato demonstrado que o desempenho atlético pode ser dramaticamente expandido em seus limites, quando a performance externa é alavancada com a conscientização interna. Esta conscientização praticada há muito no oriente, reflexo de um pensar holístico sobre o corpo e os processos ditos mentais, é que se nomeia "somático" ou "orgânico", aqui no ocidente. Ao invés de opor, na maioria das vezes, antagonicamente a realidade em termos de e/ou, branco/preto, mente/corpo(cérebro), os asiáticos vislumbram gradações entre a mente e o corpo, lidando com uma concepção integrada, unitária da natureza humana. Por outro lado, os ocidentais, em geral, vêem a pessoa como uma dualidade desintegrada, não-harmônica, portadora ao mesmo tempo de um corpo com sentido obscuro (quando não ausente) e de um "espírito (ou alma)" fantasmagórico, quase-incorpóreo, em suma, sem potência.

Como coloca Hanna (1.986, p. 180), a proposta de uma educação somática leva a considerarmos uma nova visão da possibilidade do ente humano: a auto-responsabilidade se expande em proporção direta no sentido da capacidade humana, capacidades tanto fisiológicas quanto psicológicas. Se capacidade significa (neste contexto de educação somática) responsabilidade, esta vai significar por sua vez que temos que fazer algo por nós mesmos. Este fazer nada mais é, nas palavras do autor (idem, p. 181), que aprender, um processo educativo de nos educarmos a fazermos mais, conosco mesmos, através de e para nós mesmos. Este aprendizado é somático e holístico, envolvendo o desenvolvimento de faculdades corpóreas amplas e sutis, ao mesmo tempo do desenvolvimento das faculdades mentais.

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Numa visão um tanto pessimista, Hanna coloca que a tradição educacional ocidental seccionou e empobreceu a educação corporal e mental, ao diminuir o 'status' do primeiro e tornar incorpórea a última. Um sistema educacional que provê auto-responsabilidade sustém que um educar do físico tem exatamente a mesma importância que um educar da mente, no sentido de que o atingimento de novas habilidades físicas vai implicar novas habilidades mentais e vice-versa, mesmo que seja controlar sutilmente ondas cerebrais para implementar performances intelectuais, quanto controlar a emoção de modo a fortalecer a performance atlética.

O autor conclui asseverando que o estabelecimento e manutenção de um sistema somático de educação pode alargar a visão do que seja o potencial humano, pois, além de factível, facilitará em muito a libertação da indigna e dispensável dependência humana, facultando o atingir de uma das mais profundas necessidades do homem que é a sua liberdade individual.

Em resumo, uma nova possibilidade de ser é divisada pelos teóricos da EF que aconselham assimilar as lições advindas do oriente. Estes ensinamentos baseiam-se em valores que, até então, não haviam sido encarados como prioritários no ocidente, mas que agora surgem como resposta às indagações das pessoas, em geral, e dos usuários da Educação Física, em particular. Atualmente, as pessoas assumiram-se mais responsáveis pelo seu destino e isto implica um questionamento das atividades que se propõem a realizar. Neste âmbito, a prática de atividade física surge como grande meio para configurar sentido e facultar a realização do indivíduo, enquanto pessoa. Segundo delineado acima, o oriente pode contribuir em muito para que a concepção do homem seja estabelecida, em sua natureza, como unitária, integrada, orgânica, somática, holística.

Acreditamos que tal empreitada requeira a discussão de uma linguagem interdisciplinar que harmonize os aspectos humanos, pessoais, carregados de sentido, de um lado e os requisitos de rigor e sistematicidade que devem presidir a investigação criteriosa do movimento humano, de outro. Todos os envolvidos na EF são, em certa medida, usuários da mesma e o vocabulário utilizado nos parece ser, como veremos adiante, um grande empecilho entre o que se objetiva como área do saber a ser expandida e o que efetivamente se traduz em aproveitamento humano deste questionamento.

Iremos esboçar sucintamente aqui como vemos a importância de se considerar a linguagem, no estudo da atividade física. Veremos que a tentativa do uso correto de um vocabulário adequado, pode tornar-se uma estratégia disponível para prevenirmos, de um lado, impropriedades no entendimento do que é a atividade física e, de outro, facultarmos a apropriada comunicação dos conteúdos entre os vários estudiosos e usuários .

Como em toda área de investigação humana, observa-se também, no âmbito da linguagem, incontáveis posicionamentos teóricos, enfocando-se conforme a escola ou tradição, um ou outro aspecto que se deseja enfatizar. Vejamos como 'linguagem' é definida por Georges Gusdorf:

"A linguagem é uma função psicológica correspondente à entrada em funcionamento de um conjunto de dispositivos anatómicos e fisiológicos, prolongando-se em montagens intelectuais, para se sistematizar num complexo exercício de conjunto, característico, entre todas as espécies animais, apenas da espécie humana.

A língua é o sistema de expressão falada próprio de tal ou tal comunidade humana. O exercício da língua produz, com a sua continuação, uma espécie de depósito sedimentar, o qual ganha valor de instituição e se impõe ao falar individual, sob as espécies de um vocabulário e de uma gramática. (...)

A linguagem e a língua são dados abstratos, condições de possibilidade da palavra, que as encarna, ao assumi-las, para as fazer passar ao acto. Existem apenas homens falantes, quer dizer, capazes de linguagem e situados no horizonte de uma língua. Há assim uma hierarquia de graus de significação, desde o simples som vocal, que se estiliza em palavras, pela imposição de um sentido social, até a palavra humana efetiva, carregada de intenções particulares, portadoras de valores pessoais". (Gusdorf, 1.970, p. 05)

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Outra tentativa de definir-se o que seria a linguagem, encontramos em Terwilliger (1.974): "(1) Linguagem é um sistema de comportamentos e de comportamentos potenciais; (2) esses comportamentos lingüísticos podem exercer influência sobre o comportamento de outras pessoas; (3) comportamentos lingüísticos são relevantes ou adequados à situação-ambiente, mas, em parte, dela independem; (4) comportamentos lingüísticos podem revelar-se inapropriados ou errôneos". (Terwilliger, 1.974, p. 27)

De certo modo, estas duas definições, originadas de tradições diversas, parecem espelhar maneiras divergentes de explanar sobre o que seria o fenômeno lingüístico. A primeira retrata linguagem como o sinal denotativo da humanidade, alçando o Homem-que-fala como superior sobre os demais animais e estabelecendo o meio de afirmação da pessoa. O valor da linguagem vai permitir estender ao homem um valor do mundo. Este se torna acessível via estabelecimento de uma consciência de si como ser situado, possuidor de uma ferramenta de conhecimento. "A virtude da linguagem...é a de constituir...um universo à medida da humanidade" (Gusdorf, 1.970, p. 12).

A segunda definição assume um compromisso científico, na consideração do que é denominado comportamento lingüístico. "Todo estudo científico deve partir de fenômenos observáveis ou tangíveis para o cientista. Assim, a linguagem não pode ser vista como um conjunto de significados ou essências a que se referem as palavras ou sentenças; nem pode ser identificada aos estados de coisas a que se referem as palavras ou sentenças" (Terwilliger, 1.974, p. 29). Apesar do autor em seguida reconhecer que as palavras ou sentenças podem ser providas de significado, assevera que estes 'significados' não residem num mundo à parte, como que, devendo ser levadas em conta, para se compreender o que seja a linguagem.

À parte os aspectos doutrinários de cada escola subjacentes a estas duas abordagens, o fenômeno lingüístico que elas remetem ocorre em grupos sociais, em comunidades. Dentre uma ampla gama de aspectos que o fenômeno lingüístico pode denotar, o fato do mesmo ocorrer no seio de agrupamentos humanos confere a ele o caráter de mutabilidade. Cassirer(1.972) escreve à p. 181 do seu clássico Antropologia Filosófica que "...a linguagem humana, desde o princípio, esteve sujeita à mudança e à decadência". Mais adiante, coloca que "A mudança -- a mudança fonética, analógica, semântica -- é elemento essencial da linguagem"(p. 189). Em suma, o uso da linguagem carrega em si o germe da mudança e, por extensão, da imprecisão, da redundância, da incorreção. O uso da linguagem deveria ser cercado de cuidado constante, visto a tendência ao erro ser-lhe como que intrínseco.

A questão do correto uso da linguagem se interpõe ao estudioso, mas não é, segundo nos parece, preocupação basilar para o homem comum. Para este, a crença de pertencer a uma comunidade lingüística comum o induz à crença acessória de compartilhar os mesmos conteúdos que, se não idênticos, ao menos seriam suficientemente assemelhados, o quanto favoreça o entendimento presumido entre os demais falantes.

No âmbito da atividade física, a fronteira entre (I)a linguagem utilizada pelos estudiosos, no esforço sistemático de investigação do movimento (e também, por extensão, a aplicação dos resultados científicos durante a prática desportiva ou docência) e (II)a linguagem do usuário, do praticante da atividade física revela-se um grande hiato. Aqui repete-se o problema do uso de vocabulários afeitos a domínios (como que) distintos, como observou Cassirer:

"Os termos da linguagem comum não se medem pelos mesmos padrões daqueles com que expressamos conceitos científicos. Confrontadas com a terminologia científica, as palavras da linguagem comum revelam sempre certa vagueza; quase sem exceção, são tão indistintas e mal definidas que não suportam a prova da análise lógica". (Cassirer, 1.972, p. 214)

O uso da linguagem, inevitavelmente, traz a tendência de sermos imprecisos, não só por causa da mutabilidade, mas da maleabilidade do seu emprego. Como ferramenta, a linguagem é a melhor criação do homem, mesmo o que o distingue perante todos os demais animais; no entanto, possui vícios ocultos. Frege(1.974) fornece um exemplo de como isto ocorre:

"A linguagem não é regida por leis lógicas, de modo que a obediência à gramática já garantisse a correção formal do curso do pensamento. As formas em que se exprime a dedução são tão variadas, tão frouxas e flexíveis que facilmente podem insinuar, sem que se perceba, premissas que, em seguida, são ignoradas, no momento de enumerar as condições necessárias de validade da conclusão. (...) Não existe na linguagem um conjunto rigorosamente delimitado de formas de raciocínio, de modo a não se poder distinguir, pela forma lingüística, uma passagem sem lacunas de uma que omite membros intermediários". (Frege, 1.974, p. 196)

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Por um lado, a maleabilidade da linguagem é marca distintiva de sua utilidade. Por outro, invariavelmente induz à imprecisão, se não formos atentos ao seu correto emprego. Neste capítulo, vimos, com Weiss e seu vocabulário francamente dualista, como aparentemente soa correto que o corpo seja sujeito à mente. Este autor utiliza, por exemplo a analogia da mente como um 'vetor' para o corpo e somos inclinados, sob o uso desta figura de argumentação, a julgar que assim ocorre. Mas o uso deste artifício lingüístico não é suficiente para sustentar, efetivamente, a descrição oferecida.

Vimos também em Ross como a leitura parcial de um autor como Descartes pode induzir a interpretações equivocadas, determinando impropriedades no uso de idéias dualistas e implicando conclusões inadvertidas. Weiss também parece cometer esta impropriedade, ao interpretar parcialmente os escritos de De La Mettrie. Autores como Brunner e Hanna, p. ex., advogam a volta ao entendimento não-dualista do Homem, e lançam mão de termos tais como 'vida plena', 'seres espirituais', 'global', 'holista', 'somático', 'orgânico', todos definidos em seus contextos quase como sinônimos, mas guardando sutis diferenças. Este último, mesmo pregando a necessidade de uma 'educação somática', advoga que a mente (consciência) adquira 'controle' sobre o corpo, o que remete a um uso dualista do termo. Muitas são as armadilhas do uso da linguagem e o estudioso deve estar atento, no sentido de expurgar as incorreções dos modos de falar.

NOTAS (1) O profissional e o estudioso fazem saber aos outros, de um modo ou de outro, este posicionamento. E,

segundo nosso entendimento realizam isto, primordialmente, através da linguagem.

(2) Vários textos de renomados profissionais discutem os fatos assinalados, como por exemplo: CUNHA, M.S.V. e (1.991), FELTZ, D.L. (1.987), GAYA, A. (1.991), GREENDORFER, S.L. (1.987), HARRIS, J.C. (1.983), NEWELL, K.M. (1.990), RAZOR, J.E. & BRASSIE, P.S. (1.990), TANI, G. (1.989), ULRICH, C. & NIXON, J.E. (1.978). O Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte - CBCE - fez publicar em 1.995, através da Editora Autores Associados, o livro As Ciências do Esporte no Brasil, cujos organizadores são os professores Amarílio Ferreira Neto, Silvana V. Goellner e Valter Bracht, que traz importantes contribuições sobre o debate em questão.

(3) Segundo a Dra. Ana M. Pelegrini (comunicação pessoal) o profissional de Educação Física atua no ensino de primeiro e segundo graus. O profissional da atividade física atua fora do sistema de ensino. Esta distinção é relevante para o nosso trabalho que focaliza, essencialmente, a prática da atividade física. Ver também nesta dissertação na Introdução, nota 2

(4) É importante lembrar, ainda que Ross não o faça explicitamente, que Descartes estava preocupado com a res cogitans, com o ser enquanto ser racional. A res cogitans não se refere a um sujeito histórico ou psicológico, mas sim ao sujeito epistêmico, racional do conhecimento. Ver nessa dissertação o Dualismo Cartesiano, capítulo II, seção I.

(5) Ver a reportagem de Harazim, D. e Cardoso, M. na revista VEJA de 10 de Abril 1.996, intitulada 'Olimpíada - Sangue, dor e suor'. Após o título, lemos: "Esporte é saúde, diz a ciência e confirma a prática. Mas o esporte praticado por atletas de ponta treinados para vencer ou vencer, como os que irão para Atlanta, pode moer o corpo humano" p. 48-57. Ver ainda na Folha de São Paulo, ano 76, nro. 24.497, de 28 de abril de 1.996 à p. 4-14 a reportagem de Kraselis, S. 'VOLEI - Lesões preocupam Atlanta: Seleção cura as "bicheiras" dos atletas'. E, como era esperado nesta Olimpíada de Atlanta, vários danos ocorreram em atletas, apesar de seu extremo preparo. Veja por ex. o texto de Nunes, J.P. 'Contusões tiraram várias estrelas da competição', no O Estado de São Paulo de 05 de Agosto de 1.996, Caderno de Esportes, p. E-11. Por fim, mais recentemente, ver reportagem de Brasil, U. 'Esforço excessivo reduz vida útil de atletas', no O Estado de São Paulo de 14 de setembro de 1.996, caderno de Esportes, pag. E-8

(6) O autor menciona, em sua obra, as pessoas dos Estados Unidos, mas podemos estender seu raciocínio de modo idêntico às pessoas (em especial os jovens) de outros países, notadamente onde a influência cultural americana é bastante acentuada, como o Brasil.

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Título: O Dualismo Mente-Corpo: Implicações Para a Prática da Atividade Física Autor: Lucas Vieira Dutra Editora: CopyMarket.com, 2000

Conclusão Lucas Vieira Dutra

"Erros iludem o ser humano porque vivem na vizinhança da verdade."

Rabindranath Tagore (1.861-1.941)

Vimos que o problema da relação mente-corpo tem um lugar de destaque nas preocupações científicas contemporâneas, notadamente nas ciências do Homem. Apesar de ser originalmente um tema de interesse filosófico, recebe atualmente enorme contribuição da Ciência, em especial pelo desenvolvimento de uma neurociência sofisticada.

Em que pese o surgimento de inúmeras escolas, correntes e tendências sobre como seria a relação entre os processos corpóreos e os processos mentais, os grandes desafios sobre o problema mente-corpo que surgiram na Grécia clássica ainda permanecem irresolvidos. Origina-se lá a polarização que se observa, quando se privilegia mais o 'mental' ou mais o 'corpóreo', para se explicar o problema da relação mente- corpo.

Conforme vimos no Capítulo I, a concepção mentalista compreende a tradição Idealista, representada por Parmênides e Platão. O enfoque 'corpóreo' compreende a tradição Materialista, que teve como representantes Heráclito e Aristóteles. Sugerimos, no decorrer deste trabalho, que, a grosso modo, os posicionamentos modernos podem ser entendidos, em grande medida, como 'recorrências' atualizadas que se situam, em termos de tentativas de explicação do problema mente-corpo, dentro de um continuum que passa por estes dois extremos Idealista e Materialista.

Procuramos mostrar, principalmente no Capítulo II, que o problema da relação mente-corpo, sob o ponto de vista dualista, vai encontrar seu maior sistematizador em René Descartes, que propõe o debate amparado em suas obras de grande alcance filosófico, notadamente as Meditações e As Paixões da Alma. Tão vasta é a influência cartesiana, que seu eco ainda hoje encontra defensores de peso, como (em parte) Popper & Eccles. No entanto, com igual força, o dualismo é criticado por teóricos que vislumbram, no sistema cartesiano, deficiências que permanecem sem solução.

No Capítulo III apresentamos as idéias de um dos maiores críticos de Descartes, o filósofo inglês Gilbert Ryle, que aponta erros categoriais, no arcabouço dualista, calcados no uso inapropriado da linguagem. Através de certa inadequação no emprego de conceitos, os fenômenos corpóreos e mentais resultam serem tratados como pertencentes à mesma categoria (ou tipo lógico).

Consideramos também, agora no Capítulo IV, que uma área promissora de investigação do problema da relação mente-corpo é aquela representada pelo materialismo, que preconiza os achados científicos como primordiais, na definição do que seja esta relação mente-corpo. Em que pese as dificuldades de algumas escolas, como a behaviorista, em fornecer definições plausíveis sobre o fenômeno, outras abordagens, como a funcionalista, intentam circunscrever o problema em bases que afastam, em princípio, as limitações que a interação entre a mente e o corpo condicionam.

No Capítulo V, argumentamos que a influência dualista espraiou-se nas áreas que envolvem a prática da atividade física humana, moldando boa parte das maneiras de ver o fenômeno do movimento e suas manifestações. Consideramos que o vocabulário empregado, pelos estudiosos e praticantes, parece ser fortemente impregnado pelo jargão dualista. Sugerimos que uma tentativa de limitar a abrangência de tal influência é a oriúnda das práticas orientais de atividade física, que procuram averiguar uma expressão mais 'holista' do movimento.

Hoje se sabe que a atividade física está intimamente interconectada na cultura e na sociedade onde existe. Paralelamente, constatamos que, ao que parece, a linguagem, como expressão cultural por excelência, constitui um componente importante na delimitação do que seria o problema da relação mente-corpo. Um dos sub produtos da linguagem, a terminologia, acaba sendo um grande coadjuvante, tanto nos aspectos facilitador quanto complicador para o entendimento da questão.

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Julgamos que pouco progresso será realizado, enquanto não houver uma depuração dos vícios ocultos que o uso inapropriado da linguagem implica, na discussão do problema da relação mente-corpo. Assim, como vimos, dependendo do ponto de vista (por ex., o filosófico-lingüista, de Ryle), considera-se resolvido o problema mente-corpo, simplesmente por configurar-se em um pseudo problema. Por outro lado, a partir do ponto de vista materialista, o problema parece ter complexa amplitude de resolução, pois as diferenças de vocabulário nos diversos domínios que abrangem de um lado o mental e, de outro, o corpóreo, se aprofundam mais e mais, em grande parte pelo avanço da Ciência.

De uma certa maneira os estudiosos intentaram clarificar os idiomas utilizados, através do debate acadêmico. No entanto, ao que parece, as tentativas anteriores sempre sofriam impedimentos visto existirem, entre outras causas, barreiras quase que intransponíveis pelas dificuldades, em especial as lingüísticas, determinadas pelos paradigmas subjacentes em cada tradição. Ryle identificou este tipo de dificuldade dentro da visão dualista; nós acreditamos que estas dificuldades parecem existir também para várias outras abordagens. Como vimos, por exemplo, mesmo teóricos que advogam uma abordagem 'holista', 'somática', 'orgânica', têm problemas em se desvencilhar do jargão dualista.

Recentemente, em nosso ponto de vista e, em parte pelo notável progresso da Ciência, foram removidos certos obstáculos do diálogo entre as várias escolas e enfoques sobre o problema mente-corpo e algumas fronteiras foram esmaecidas. Hoje em dia, parece haver maior boa vontade em unir interdisciplinariamente as forças, permitindo mais e mais progresso na compreensão do Homem, em particular da sua atividade física.

Neste compasso, a promessa da ciência cognitiva é a que mais entusiasma os acadêmicos, em diversas áreas. Observamos um avanço considerável, no sentido de possibilitar-se chegar a um consenso sobre a agenda de trabalho, de um lado, e sobre uma metodologia, de outro, que permita averiguar melhor os limites da pessoa humana. O Homem foi, didaticamente, mais e mais fragmentado em suas expressões, desde os primórdios da Grécia clássica e, nesta multidimensionalidade de análise, os vocabulários se tornaram intraduzíveis uns aos outros, acarretando percalços no diálogo entre os diversos estudiosos.

Temos atualmente, segundo nosso ponto de vista, parte do instrumental e a maturidade suficientes, no sentido de materializar a promessa da construção de um vocabulário unificado, para o tratamento do problema da relação mente-corpo, onde, julgamos, a Motricidade Humana poderia desempenhar um papel relevante. Com base neste cenário, teríamos os elementos essenciais para, efetivamente, erigir uma abordagem holista do Homem, onde a atividade física não seria mero produto de uma entidade oculta superveniente, mas uma das mais belas expressões onde o sentido do Ser poderia ser manifesto.

Outra constatação que realizamos em nosso trabalho e uma das mais gratificantes, foi em relação à metodologia que empregamos. Havíamos colocado, na introdução, que encontramos uma anomalia, uma desarmonia no sentido de haver várias correntes, tradições e visões, muitas vezes antagônicas, sobre o problema da relação mente-corpo. Pretendíamos utilizar o método abdutivo, visto que outros métodos (por exemplo, o fenomenológico ou o dialético) nos pareciam por demais determinantes ou comprometidos com escolas ou visões do problema da relação mente-corpo.

Em nosso trabalho teórico, o método abdutivo mostrou-se adequado, no sentido de direcionar a maturação da atividade de pesquisa, concomitantemente com as demais atividades acadêmicas e de elaboração da Tese. Tínhamos um problema, um ponto de partida e porfiamos para identificar adequadamente o porquê da anormalidade, da divergência. Com a assistência do raciocínio abdutivo, tivemos a serenidade para identificar as tensões e as várias concepções envolvidas em nosso problema. A cada etapa do trabalho, nossa idéia de que havia um componente lingüístico subjacente à discussão do problema mente-corpo foi ganhando consistência, ainda que não conclusiva.

Sobre o problema da relação entre mente e corpo, terminamos esta Tese sem a idéia de que esta ou aquela tradição, visão ou abordagem é a mais (ou menos) 'certa', 'adequada', 'preferida', ou possui qualquer supremacia que se possa alegar. Todos os posicionamentos que versam sobre o problema da relação mente-corpo têm seus 'prós' e 'contras' e a nossa conclusão principal é que parece existir um obstáculo de cunho lingüístico, subjacente aos vários idiomas empregados. Com a assistência do método abdutivo, a exploração de diversos caminhos foi facilitada e, antes destes tornarem-se pedras de tropeço, redundaram em componentes harmônicos de um entendimento holístico do fenômeno da atividade física, no contexto do ser humano.

Apesar de não termos nos proposto a 'resolver' o problema da relação entre a mente e o corpo e sim a analisar algumas de suas implicações (em particular, a da visão dualista) para a prática da atividade física humana, encerramos nosso trabalho convencidos do peso da linguagem, no estabelecimento e manutenção deste problema.

Nosso próximo trabalho se encaminha, amadurecido pelo estudo do que seria a mente, o corpo e suas relações, para a discussão, dentro da filosofia da ação, de alguns aspectos lingüísticos envolvidos nos motivos ou intenções que levam o agente a atuar de certa maneira.

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