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Tradução em português comentada e anotada do texto “Die Welt als Phantom und Matrize. Philosophische Betrachtungen über Rundfunkund Fernsehen” (“O Mundo como Fantasma e como Matriz. Considerações Filosóficas sobre o Rádio e a Televisão”), realizada a partir de excertos selecionados do livro “Die Antiquiertheit des Menschen 1: Über die Seele im Zeitalter der zweiten industrielenRevolution” (“O Antiqüismo do Homem 1: Sobre a Alma na Era da Segunda Revolução Industrial”), considerado o principal trabalho do filósofo alemão Günther Stern Anders (1902-1992). Nos trechos dispostos aqui, Günther Anders – um dos primeiros pensadores a tomar por tema filosófico rigoroso a moderna comunicação-de-massa – argumenta contra a neutralidade da técnica e discute as conseqüências da existência do rádio e da televisão enquanto transmissores de notícias.
Citation preview
Universidade de So Paulo
Escola de Comunicaes e Artes
Departamento de Jornalismo e Editorao
O MUNDO COMO FANTASMA E MATRIZ
Consideraes Filosficas sobre o Rdio e a Televiso
Uma Traduo Crtica de O Antiqismo do Homem, de Gnther Anders
Thiago Scarelli
So Paulo
Dezembro de 2007
O MUNDO COMO FANTASMA E MATRIZ
Consideraes Filosficas sobre o Rdio e a Televiso
Uma Traduo Crtica de O Antiqismo do Homem, de Gnther Anders
Monografia apresentada Escola de Comunicaes e
Artes da Universidade de So Paulo como requisito
para a obteno do ttulo de Bacharel em Comunicao
Social pelo aluno Thiago Scarelli, sob a orientao do
Prof. Dr. Ciro Marcondes Filho.
So Paulo
Dezembro de 2007
Escrever textos sobre a moral, textos que apenas colegas acadmicos
leriam, parecia-me sem sentido, estranho, quando no mesmo imoral.
To sem sentido quanto um padeiro que assa pes apenas para outros
padeiros. Em suma: eu tentei formular a moral de tal forma que a
mensagem chegasse.
Gnther Anders (1902-1992)
Esse trabalho dedicado aos amigos Carolina de Oliveira e Victor Strazzeri,
pela sempre brilhante e carinhosa companhia.
E a Marilia Chaves,
que me traz para perto daquilo que sou.
Resumo
Esta monografia apresenta a primeira traduo em portugus comentada e anotada
do texto Die Welt als Phantom und Matrize. Philosophische Betrachtungen ber Rundfunk
und Fernsehen (O Mundo como Fantasma e como Matriz. Consideraes Filosficas sobre
o Rdio e a Televiso), realizada a partir de excertos selecionados do livro Die
Antiquiertheit des Menschen 1: ber die Seele im Zeitalter der zweiten industrielen
Revolution (O Antiqismo do Homem 1: Sobre a Alma na Era da Segunda Revoluo
Industrial), considerado o principal trabalho do filsofo alemo Gnther Stern Anders (1902-
1992). Nos trechos dispostos aqui, Gnther Anders um dos primeiros pensadores a tomar
por tema filosfico rigoroso a moderna comunicao-de-massa argumenta contra a
neutralidade da tcnica e discute as conseqncias da existncia do rdio e da televiso
enquanto transmissores de notcias.
Palavras-chave: Gnther Anders; Tcnica; Televiso; Rdio; Notcia; Traduo;
Teoria da Comunicao; Medienphilosophie.
Abstract
This paper presents the first commented Portuguese translation of the text Die
Welt als Phantom und Matrize. Philosophische Betrachtungen ber Rundfunk und
Fernsehen, made through selected excerpts from the book Die Antiquiertheit des
Menschen 1: ber die Seele im Zeitalter der zweiten industrielen Revolution, considered
the main work of the German philosopher Gnther Stern Anders (1902-1992). On the
passages at hand here, Gnther Anders one of the pioneering researchers to take modern
mass-media as a rigorous philosophical theme argues against the neutrality of technique and
debates the consequences of the existence of radio and television as news transmitters.
Keywords: Gnther Anders, Technique; Television; Radio, News, Translation,
Theory of Communication; Medienphilosophie.
NDICE
PREFCIO .......................................................................................................... 07
APRESENTAO BIOGRFICA DE GNTHER ANDERS ........................................... 09
NOTA DO TRADUTOR......................................................................................... 16
O MUNDO COMO FANTASMA E MATRIZ
Consideraes filosficas sobre o rdio e a televiso ........................................ 20
I. O MUNDO ENTREGUE EM DOMICLIO .............................................................. 22
1. Nenhum meio apenas um meio ................................................................. 22
2. O consumo-de-massa acontece hoje solisticamente
Cada consumidor um trabalhador domstico no-remunerado
na produo do homem-de-massa .................................................................... 24
3. Rdio e televiso tornam-se mesa familiar negativa; a famlia torna-se
pblico en miniature ......................................................................................... 27
4. Uma vez que os aparelhos nos tomam a fala, eles nos transformam
em dependentes e servos ................................................................................... 29
5. Os acontecimentos chegam a ns, no ns a eles ....................................... 32
II. O FANTASMA ................................................................................................ 38
11. A relao homem-mundo torna-se unilateral; o mundo, nem presente,
nem ausente, torna-se um fantasma ................................................................... 38
12. Imagem e reproduo na TV so sincrnicas. Sincronia a forma
de atrofia da presena ....................................................................................... 40
III. A NOTCIA .................................................................................................. 44
17. Pragmtica teoria do juzo: Aquele que recebe a notcia livre, uma
vez que ele dispe sobre o ausente; no-livre, uma vez que ele, ao invs da
coisa em si, conserva apenas seu predicado ...................................................... 45
18. Transmisses apagam a diferena entre coisa e notcia. Elas so
juzos ornamentados ........................................................................................ 49
19. Mercadorias so juzos camuflados. Fantasmas so mercadorias.
Fantasmas so juzos camuflados ..................................................................... 51
IV. A MATRIZ ................................................................................................... 54
20. O todo menos verdadeiro que a soma das verdades de seus
fragmentos Disfarce realista dos padres objetiva a padronizao
da experincia................................................................................................... 54
CONSIDERAES FINAIS:
Sobre a filosofia da notcia e a prtica do jornalismo ......................................... 62
BIBLIOGRAFIA ................................................................................................... 67
BIBLIOGRAFIA CRONOLGICA DE GNTHER ANDERS .......................................... 71
ANEXO: LOB DER STURHEIT ............................................................................... 75
7
PREFCIO
A definitiva inspirao para o presente trabalho se deve a um livro que me caiu
nas mos quase por acaso h cerca de sete meses; mais especificamente, deve-se a um texto
curto, de no mais que uma dezena de pginas, que se encontra nele. A incrvel atualidade de
Gnther Anders contava sobre um certo filsofo alemo, contemporneo de todas as
celebridades frankfurtianas, que tinha impressionado Jean-Paul Sartre mas nunca conquistou
nem mesmo um sorriso de Theodor Adorno. No demorou para que eu descobrisse que este
senhor Gnther Anders, autor de mais de trinta livros, entre obras filosficas e literrias,
continua ainda um pensador desconhecido no Brasil seu nico trabalho publicado por aqui
uma crtica literria sobre Franz Kafka, cuja sobrevivncia editorial depende muito mais de
Kafka do que de Anders. No surpreende, portanto, que mesmo nessa louvvel exceo a
biografia disponvel sobre o autor seja imprecisa.
Este trabalho, bastante ciente de suas restries, no tem a pretenso de resolver
essa lacuna. Limita-se apenas a oferecer um possvel caminho at um dos livros mais
importantes de Anders, a saber, O Antiqismo do Homem. Digo possvel porque j de
partida no d conta de toda a obra distribuda em dois volumes e 818 pginas , mas sim
apresenta uma seleo de 11 captulos entre aqueles que compem a seo O Mundo como
Fantasma e Matriz, no por acaso aqueles nos quais o filsofo se concentra na discusso
sobre o rdio, a televiso e a natureza da notcia.
Antes da traduo em si, esta monografia realiza uma breve introduo biogrfica
a respeito de Gnther Anders, baseada principalmente em um site assinado por Harold
Marcuse, neto de Herbert Marcuse e considerado por Anders como seu neto postio; e em
um texto do socilogo alemo Mathias Greffrath, que entrevistou o filsofo em 1977 como
uma das fontes de seu livro Die Zerstrung einer Zukunft. Em tempo: o texto original de
Greffrath em alemo est em anexo no final do trabalho.
Em seguida, na seo Nota do Tradutor, so apresentados os princpios gerais
da metodologia que orientou o trabalho de traduo. Aqui so discutidas as linhas tericas da
atividade, assim como so justificadas algumas das opes feitas na presente verso lusfona.
8
A parte central do trabalho consiste na traduo anotada e comentada de excertos
do livro Die Antiquiertheit des Menschen, os quais esto situados no intervalo entre as
pginas 97 e 170 da edio publicada em 2002 pela editora C.H. Beck, cujo texto corresponde
integralmente edio original de 1956, lanada pela mesma editora.
Finalmente, discute-se a pertinncia dos argumentos de Anders para o jornalismo
atual, em um texto que revisita concisamente a lgica do filsofo com o objetivo de apontar a
importncia transversal do autor para a atividade do jornalista. Depois disso, elenca-se a
bibliografia consultada na elaborao desta monografia, seguida por uma bibliografia
cronolgica de Gnther Anders, que lista as publicaes originais do autor de 1924 a 2002.
Aproveito a ocasio para agradecer a confiana e simpatia de Ciro Marcondes
Filho, autor do texto citado no incio deste prefcio e com quem tive a felicidade de levar a
cabo este trabalho; e o permanente apoio e a insubstituvel ateno de minha famlia durante
toda a minha graduao.
9
APRESENTAO BIOGRFICA DE GNTHER ANDERS
Gnther Stern Anders no gostava de ser chamado de filsofo. Ele assim como
Hannah Arendt, sua primeira esposa acreditava que a figura do filsofo profissional tinha
perdido o contato com o mundo das relaes sociais, com o mundo real, e no se dedicava a
outra coisa seno filosofar sobre a prpria filosofia. Os dois, ao contrrio, distanciaram-se
dessa figura tradicionalista e, munidos das ferramentas do mtodo filosfico, debruaram-se
sobre o mundo dos homens: ela, dedicando-se a um projeto eminentemente poltico de anlise
do totalitarismo; ele, a uma crtica ontolgica da tcnica que levaria a uma oposio militante
na questo atmica.
***
O pensador nasceu Gnther Stern, filho do casal judeu Willian e Clara Stern, em
12 de julho de 1902, na cidade de Breslau, na poca pertencente Alemanha, hoje Wrocaw,
na Polnia. Sobre seu pai, o psiclogo Willian Stern, sabe-se que foi o criador do conceito de
QI e autor dos livros Person und Sache e Psychologie des frhen Kindheit, este ltimo
inspirado nas observaes sobre o jovem Gnther e sua irm Hilde.1 Ao senhor Stern que o
filho vai recorrer mais tarde, nos momentos de dificuldades financeiras, e ao senhor Stern
que o pensador vai dedicar, cinco dcadas depois, o seu livro mais importante2.
Aos quinze anos de idade, Gnther enviado junto com outros estudantes para
destruir plantaes de frutas na Frana, a um ano do final da Primeira Guerra Mundial. De
acordo com o que ele mesmo contava em sua vida adulta, as principais lembranas da
campanha militar que seriam tambm mais tarde as razes de seu pacifismo militante
foram duas: a imagem dos soldados mutilados nas estaes de trem, espera de voltar para
casa; e um mapa da Europa cujas fronteiras tinham sido apagadas por ele com tinta branca.
Europa Unita era como ele chamava o projeto.
1 Cf. GREFFRATH, 2002. 2 Em memria dele, que plantou de modo inextinguvel em seu filho o conceito de dignidade humana, foram escritas estas tristes pginas sobre a devastao do homem, escreve Gnther Anders nas primeiras pginas de Die Antiquiertheit des Menschen, de 1956.
10
Cinco anos aps o final da guerra, Gnther Stern se forma em filosofia sob a
orientao de Edmund Husserl em Freiburg. O estudante freqentou tambm o crculo de
influncia ntimo de Martin Heidegger sem cultivar, no entanto, muita simpatia pelo
filsofo que uma dcada mais tarde se tornaria reitor durante o governo nazista. Gnther Stern
criticava em Heidegger sua provinciana viso de mundo e suas iluses antropocntricas3 e
afirmava que sua filosofia reduzia o homem a uma existncia vegetal4.
Depois de formado, Gnther Stern trabalhou alguns anos com ensaios, crticas e
pequenas reportagens para jornais franceses e alemes, at escrever seu primeiro trabalho
filosfico independente: ber das Haben. Sieben Kapital zur Ontologie der Erkenntnis,
publicado em 1928. J nessa poca, estava entre seus planos seguir uma carreira acadmica
em Frankfurt, onde tentou estudar filosofia da msica com Theodor Adorno. Este, no entanto,
nunca aceitou acolh-lo no grupo formado ao redor do Instituto de Pesquisas Sociais,
afirmando que ele no era suficientemente marxista.5
Em Berlim, no ano de 1929, o filsofo desprestigiado Gnther Stern se casa com
uma senhorita judia de nome Johana Arendt, inteligente e charmosa, que na poca se dedicava
a estudar o conceito de amor em Augustinus, orientada por Karl Jaspers. No ano seguinte, a
partir de uma indicao de Bertolt Brecht, ele passa a escrever para o jornal Berliner Brsen-
Courier, onde seria definitivamente rebatizado com o nome que lhe adjetivo.
Eu escrevia sobre tudo. De crianas delinqentes a um Congresso
Hegeliano ou um suspense policial. A cada dia deveria haver alguma coisa
l, de modo que pudssemos viver, at que um dia [o chefe de redao
Herbert] Ihering me chamou: no podemos assinar a metade de nossos
artigos com Gnther Stern!. Ento me chame de um nome diferente, eu
propus. Muito bem, disse ele, a partir de agora o senhor se chama
Gnther Diferente [em alemo, Anders]. 6
3 MARCONDES FILHO, 1998:50. 4 Cf. GREFFRATH, 2002. Traduo nossa. 5 Segundo a bigrafa de Hannah Arendt, Elisabeth Young-Bruehl, Adorno teria sido contrrio ao trabalho de Gnther Anders sobre msica no concurso de professor agregado em Frankfurt, em 1929, porque este ignorara sua recm publicada sociologia da msica (ap. MARCONDES FILHO, 2006:30). 6 Cf. GREFFRATH, 2002. Traduo nossa.
11
Com a ascenso do nazismo e a conseqente perseguio aos judeus, ele a esposa
fugiram para a Frana j nos primeiros meses de 1933. Durante os trs anos de exlio em
Paris, Anders veicula dois textos na publicao francesa Recherches Philosophiques: Une
interprtation de laposteriori e Pathologie de la libert, este ltimo recebido por Jean-
Paul Sartre como uma das fontes de inspirao para o desenvolvimento do seu
existencialismo, na medida em que aponta o homem como vtima de sua prpria liberdade7.
Na mesma poca, Anders trabalha sobre o romance Die molussische
Katakombe, no qual descreve um pas imaginrio de nome Molssia a partir das vrias
histrias contadas por presos polticos confinados em uma catacumba. O livro, que escrito
segundo o esprito da referencialidade mltipla de Mil e uma noites, no tem outro objeto
diante de si seno o totalitarismo e a vida depois dele. No entanto, a editora do Partido
Comunista, que publicava textos em alemo na Frana, recusou o livro alegando que ele no
seguia risca a linha do partido e Anders se encontrou novamente em apertos financeiros
situao que contribuiria para o iminente rompimento com sua esposa. Ainda assim,
perceptvel o carinho com o qual ele carrega a obra por toda a vida, citando-a diversas vezes
em seus outros textos. A edio definitiva de sua Catacumba Molssica, no entanto, s ser
publicada no ano de sua morte, seis dcadas depois.
***
Em 1936, Anders se separa de Hannah Arendt que achava seu pessimismo
difcil de aturar, como ele mesmo contaria depois8 e parte para o exlio nos Estados
Unidos. Depois de morar em Los Angeles, trabalha por um curto perodo no Escritrio para
Informaes de Guerra em Nova York um dos poucos empregos bem-remunerados que
Anders teria na vida e que ele recusou alegando que a propaganda de guerra norte-americana
era to fascista quanto a alem.
O escritor volta ento para a Costa Oeste, para Hollywood, onde morou na mesma
casa de Herbert Marcuse, vizinho de seu amigo Brecht, a alguns quarteires dos irmos Mann
e a uma distncia elegante de Horkheimer e Adorno.9 Diferente do que aconteceu com eles,
Anders no dispunha de uma fama que lhe permitisse capitalizar a reputao de exilado e, ao 7 MARCONDES FILHO, 1998:49. 8 Cf. MARCUSE, 2007. 9 Cf. GREFFRATH, 2002.
12
mesmo tempo, no se sentia em casa nessa Outra Alemanha. Ao contrrio, foi um dos
poucos a criticar severamente a postura da intelectualidade alem na Califrnia, julgando-os
demasiado ausentes do que de fato ocorria na chacina hitlerista10. Anders abdica desta
postura e assume aquela que ele julgava mais tica: at 1950, quando volta para a Europa, ele
trabalhou como empregado na linha de montagem de uma fbrica norte-americana.
Nessas condies, Anders dedicou-se sua chamada filosofia casual. Durante
todo o tempo em que esteve nos Estados Unidos, anotava em um dirio as manifestaes da
chamada segunda revoluo industrial: a inveja e a vergonha humana diante do
desenvolvimento tcnico, a passividade diante dos novos meios de comunicao eletrnicos, a
padronizao do mundo, a hegemonia do comportamento em srie, a destruio do nico. Sua
concluso radical era que o homem havia se tornado antiquado.
Em 1950, o filsofo volta Europa, recusa uma vaga como professor em Berlim
Oriental oferecida por Ernst Bloch e se muda definitivamente para Viena. Um ano depois vem
publicado aquele que seria seu mais conhecido trabalho em crtica literria (e tambm o
primeiro livro assinado com o sobrenome Anders): Kafka: Pro und Contra, que logo
traduzido para o francs, italiano e ingls. justamente esse o nico trabalho de Anders
conhecido no Brasil, em uma traduo de Modesto Carone de 1968, revisada e relanada em
2007.
Mas a despeito do reconhecimento de seus ensaios sobre Esttica alm do texto
sobre Kafka, existem registros de seminrios de Filosofia da Arte realizados por Anders na
New School for Social Research, em Nova York em 1949 e 1950 , o seu projeto filosfico
tinha outras ambies e outros compromissos.
A mais slida realizao desse projeto se deu em 1956, com a publicao do
primeiro volume de Die Antiquiertheit des Menschen, livro que considerado a sua obra-
prima. Aqui ele finalmente levaria s ltimas conseqncias, em primeiro lugar, a crtica
tcnica colecionada nos anos anteriores em seus dirios norte-americanos; e, em seguida, o
trauma fsico-intelectual experimentado por ele com a exploso da bomba atmica em
Hiroshima e Nagasaki.
10 Cf. MARCONDES FILHO, 1998:50.
13
Anders relata que aps 6 de agosto de 1945 ele ficou calado por anos, sem poder
escrever ou falar nada, porque o entendimento daquele fenmeno era sobreliminar11. Ao
contrrio das sensaes subliminares, que no so entendidas por estar abaixo do nvel de
percepo humana, a possibilidade tcnica da autodestruio nuclear ultrapassava os limites
da sensibilidade. Esse o precisamente o princpio daquilo que ele chamaria cegueira
apocalptica e motivo pelo qual Anders afirma que somos incapazes de temer de fato a
devastao atmica. A possibilidade de nossa aniquilao definitiva , ainda que esta nunca
se realize, a definitiva aniquilao de nossas possibilidades12, resumiria o filsofo.
A questo atmica torna-se ento uma constante em suas atividades. Ele foi um
dos iniciadores do movimento mundial contra as armas nucleares ao lado de Robert Jungk,
Primo Levi e Bertrand Russell e em 1958 decidiu-se por uma visita ao Japo. As anotaes
feitas durante sua estadia seriam publicadas no ano seguinte em Der Mann auf der Brcke.
Tagebuch aus Hiroshima und Nagasaki.
Ainda em 1959, Anders comea um intercmbio de cartas com o piloto norte-
americano Claude Eatherly, membro da esquadra que lanara as ogivas atmicas. A
correspondncia entre o piloto e o filsofo compe o livro Off limits fr das Gewissen
(Burning conscience, no original em ingls) a mais popular obra de Gnther Anders,
lanada em 1961 e traduzida em 18 idiomas.
Nesta poca, Anders j trabalhava sobre os textos que formariam o segundo
volume de Die Antiquiertheit des Menschen; sua publicao, no entanto, acontece apenas
duas dcadas depois. Esse intervalo de tempo entre o primeiro e o segundo volume, segundo o
prprio Anders explica no prefcio do livro, no significa que ele tivesse renunciado ao seu
maior argumento filosfico, mas sim que havia a necessidade mais urgente de aes prticas.
Ser perguntado a mim porque eu prossigo com esse segundo volume
apenas agora, quase um quarto de sculo depois. A pergunta ainda mais
justa se levado em conta que muitos dos ensaios aqui reunidos j tinham
sido preparados mesmo antes de 1960, alguns at impressos; h tempos,
portanto, eu teria como ter publicado uma continuao.
11 Cf. MARCONDES FILHO, 1998:50. 12 Cf. ANDERS, 1972.
14
O que me teria levado a abandonar meu principal tema: a destruio da
humanidade e a possvel auto-aniquilao fsica do gnero humano? (...)
Quais temas mais agradveis me teriam levado desero?
A resposta : eu no desloquei o tema principal (apesar de que s vezes
apenas com dificuldades eu podia me opor tentativa de desloc-lo), eu no
cedi a vez a nenhum outro tema, eu no tinha desertado. (...)
Um filsofo, moralmente medocre tanto quanto grandssimo especulador,
desses que se tornaram mundialmente famosos, alertou-me h mais de
cinqenta anos seguindo seu bel-prazer quanto a desertar para a prtica.
Esta palavra eu no pude esquecer; j naquela poca me parecia essa
moralizante advertncia sobre a moral profundamente indizvel. Seja como
for: eu fiz exatamente isso. 13
Anders se refere aqui precisamente aos anos em que manteve a militncia na
questo atmica (cujos argumentos seriam reunidos em Endzeit und Zeitende, de 1972);
quando se dedicou a revisitar o holocausto (nos livros Wir Eichmannshne, de 1964, e Die
Schrift na der Wand, de 1967, onde narrada a visita a Auschwitz e Breslau) e o posterior
envolvimento com as crticas Guerra do Vietn (Visit beautiful Vietnam, de 1968). Nesse
contexto, Anders participa tambm do Tribunal de Russel a respeito dos crimes norte-
americanos nesta guerra.
***
Nas duas dcadas seguintes, o mundo experimentava uma Guerra Fria e as idias
de Anders ganhariam relevo. Ele lanaria pelo menos outros 20 livros, entre trabalhos
filosficos e literrios, mas a despeito de sua produo teimosamente ininterrupta o escritor
no chega a alcanar uma situao financeira estvel. Ele casou-se ainda outras duas vezes
(com a escritora austraca Elizabeth Freundlich, em 1945, e com a pianista norte-americana
Charlotte Louis Zelka, em 1957), mas manteve-se o resto da vida como um homem de raros
amigos e de hbitos austeros.
13 ANDERS, 1980:11-13. Traduo nossa.
15
Entre os mveis de uma pequena casa alugada em Lackierergasse, na capital
austraca, onde Anders passou seus ltimos 40 anos, encontravam-se duas estantes, um sof e
uma escrivaninha, sobre a qual uma mquina de escrever cujas teclas ele podia apertar apenas
com a ajuda de uma caneta entre seus dedos curvados em funo da artrite. Nas paredes, um
papel escrito em japons, uma toalha de seda branca trazida de Hiroshima, uma foto de seu
pai e uma litografia com as figuras de Sancho Pansa e Dom Quixote14.
Gnther Stern Anders morreu em Viena, em 17 de dezembro de 1992.
14 Cf. GREFFRATH, 2002.
16
NOTA DO TRADUTOR
O tradutor um personagem, por definio, arrogante: ele decide sozinho em que
medida teremos acesso a um discurso que no nos compreensvel em seu idioma original;
ele julga sozinho qual interpretao a pertinente e de que modo isso pode ser dito em uma
segunda lngua.
Justamente em funo desse carter que a presente nota se justifica. Se o leitor
estar refm das minhas interpretaes, legtimo que ele saiba, ainda que de modo conciso,
o que me motivou a tom-las. Sero expostos aqui, portanto, os princpios tericos que o
presente tradutor toma enquanto concepo da atividade em si e, em seguida, os parmetros
aplicados nesta traduo especfica.
***
No momento em que um autor escreve, realiza ele uma srie de escolhas dentro
daquilo que em seu idioma necessrio e/ou possvel. No momento em que um tradutor
traduz, realiza ele, a partir das decises do autor, uma nova srie de escolhas que obedecem a
um segundo campo lingstico do necessrio e/ou do possvel.15 Uma vez que o conjunto das
novas decises extrapola o conjunto das decises originais ou seja, que elas nem foram nem
podiam ter sido tomadas pelo autor em seu idioma original , conclui-se de imediato que
nesse desnvel reside o trabalho e a responsabilidade do tradutor; justamente a onde cada
escolha tradutria no necessria e unvoca, mas sim apenas contingente.
Tomemos a unidade mnima do discurso. A palavra do idioma A dentro de
um contexto x carrega um valor fontico, um valor semntico, um valor sinttico, uma
histria etimolgica, uma consagrao pragmtica especfica, etc.16 Na hipottica traduo
15 Quando classifico as decises da composio do discurso em uma lngua dada em necessrias e/ou possveis, tenho como ponto de partida a definio de Roman Jakobson: As lnguas diferem essencialmente naquilo que devem expressar, e no naquilo que podem expressar. Numa lngua dada, cada verbo implica necessariamente um conjunto de escolhas binrias especficas, como por exemplo: o evento anunciado concebido com ou sem a referncia sua concluso; o evento apresentado ou no como anterior ao processo de enunciao? Naturalmente, a ateno dos enunciadores e ouvintes estar constantemente concentrada nas rubricas que sejam obrigatrias em seu cdigo verbal (JAKOBSON, 1969:70). 16 Essa lista pode ser enxugada ou aumentada de acordo com o conjunto de premissas ou divises de cada corrente da lingstica; o objetivo aqui no dar conta de modo exaustivo de todas as tonalidades dessas classificaes, mas sim demonstrar que cada elemento do discurso concentra uma pletora de variveis.
17
para um idioma B, a equivalncia ideal se daria com a palavra de mesmo valor fontico,
valor semntico, etc.17 Diante desta (impossvel) palavra , a tarefa do tradutor , portanto,
decidir quais dos valores originais de ele vai buscar no idioma B, e quais ele vai omitir
por isso o ato tradutrio incompleto; por isso a escolha tradutria contingente. 18 Estenda-
se a mesma lgica aplicada palavra para o texto como um todo e estaremos diante de
uma complexa atividade criativa.
Afirmar que cada escolha tradutria contingente no significa, no entanto,
admitir que ela seja aleatria. Uma traduo coerente deve orientar cada deciso particular a
partir de um horizonte comum, a saber, constitudo segundo pressupostos, mtodos e
finalidades especficas. Exemplo: um tradutor que tome a construo fontica de uma poesia
como seu elemento fundamental ter como preocupao levar rimas anlogas para um outro
idioma, tomar o valor fontico do discurso como lastro, em detrimento de outros valores.
Exemplo de contraste: a traduo de um manual de instrues de um rdio se orientar por
outros valores.19
Nesse ponto fica claro que, admitindo esses pressupostos, a questo da fidelidade
no pode ser analisada em si, de modo absoluto, mas antes a partir de referenciais dados, de
seu prprio horizonte. A traduo infiel , a rigor, infiel a ela mesma.
***
17 Rosemary Arrojo aponta que a crena nessa substituio est presente, por exemplo, no lingista J. C. Catford, segundo o qual a traduo seria substituio do material textual de uma lngua pelo material textual equivalente de outra lngua (ap. ARROJO, 2005:12). 18 Umberto Eco trata da prtica da traduo seguindo uma abordagem semelhante. Ele a define como o ato de dizer quase a mesma coisa, em um procedimento que se d mediante um processo de negociao: Di qui lidea che la traduzione si fondi su alcuni processi di negoziazione, la negoziazione essendo appunto um processo in base al quale, per ottenere qualcosa, si rinuncia a qualcosa daltro e alla fine le parti in gioco dovrebero uscirne con un senso di ragionevole e reciproca soddisfazione alla luce dellaureo principio per cui non si pu avere tutto (ECO, 2003:18). 19 Radegundis Stolze prope uma diviso das categorias lingsticas do compreender e do formular no traduzir que cataloga de modo metdico os diferentes vetores aos quais eu me refiro aqui. Em Stolze, a partir das cinco categorias-chave (Thematik, Semantik, Lexik, Pragmatik, Stilistik) as questes da traduo podem ser formuladas e fundamentadas, o que permitiria uma resoluo responsvel e crtica por parte do tradutor (STOLZE, 1994:196-206). Outra proposta de classificao, mais recente e menos abrangente, pode ser encontrada Amparo Hurtado Albir, que prope uma classificao da traduo a partir de quatro eixos: Mtodos de Traduccin (segn el mtodo traductor empleado); Clases de Traduccin (segn la naturaleza del proceso traductor en el individuo); Tipos de Traduccin (segn el mbito socioprofesional); Modalidades de Traduccin (segn el modo traductor) (HURTADO ALBIR, 2001:94).
18
Assim, elenco os critrios maiores que guiaram a prtica da presente traduo:
a) O texto traduzido tem carter eminentemente filosfico, o que demanda um
rigor lexical bastante especfico, a saber, um rigor que leve em conta o uso consagrado das
expresses e argumentos que o autor retoma. Isso significa que a deciso por traduzir
Vorstellung por representao em todos os momentos em que o autor tem em mente o
conceito consagrado pelos textos schopenhauerianos orienta-se necessariamente pelas
tradues de Schopenhauer que antecedem este trabalho.
b) Rigor filosfico anlogo me obriga a traduzir os conceitos centrais na
argumentao de Gnther Anders de modo idntico em todos os momentos em que ele os
retoma durante o texto. Nesse sentido, Bild est presente sempre como imagem; aber, por
sua vez, aparece como mas, no entanto ou todavia, de acordo com a convenincia
estilstica do momento. A mesma preocupao vale nas construes de paralelismos: nos
trocadilhos que Anders constri aproximando duas palavras de mesma raiz, efeito anlogo
ensaiado em portugus, por vezes recorrendo a uma nota de rodap. Um exemplo desse caso
a nota de nmero 100, que trata de um paralelismo em torno de betrachten.
c) Anders emprega outros quatro idiomas estrangeiros ao alemo ao longo do
texto (ingls, francs, latim e grego antigo). Nada justificaria incorporar inadvertidamente em
texto corrido todas essas intervenes no-casuais. A expresso estrangeira foi, assim, grifada
e acompanhada de breve nota de rodap que explicita sua origem e seu sentido no contexto
dado. Nos casos em que a expresso aparece no texto original sem destaque, a nota denuncia a
interferncia com os dizeres grifo nosso.
d) Em alguns casos, existe a tentativa de reproduzir em portugus o carter
sinttico de substantivos compostos e neologismos, cuja formao na lngua alem
incentivada por sua gramtica. Nesses casos, recorreu-se justaposio acompanhada de
hfen, como em consumo-de-massa e rao-para-ouvido. A esse respeito, vale notar que
a traduo francesa de Christophe David (Lobsolescence de lhomme. Sur lme lpoque
de la deuxime rvolution industrielle. Paris: Ivrea, 2002) opta, ao contrrio, pela traduo
analtica e reconstri Bilderbuch-Effekt, por exemplo, em cet effet analogue celui que
produit un livre illustr. Embora mais imediata ao leitor, a expresso perde seu destaque ao
ser diluda, passa a exigir menos ateno e tem suas possibilidades de interpretao
restringidas. A opo por efeito-livro-de-figuras, portanto, aceita a desvantagem de no soar
19
espontnea em portugus em troca de manter a abrangncia original. Outro exemplo:
Unfreiheit servitude no-liberdade.
e) Anders raramente usa uma figura de expresso, uma frase feita, uma construo
consagrada da fala, de modo inadvertido ou meramente metafrico. Esse uso consciente e
engenhoso das expresses prontas impede uma escolha exclusiva entre traduo literal ou
expresso de sentido anlogo um dilema clssico das teorizaes sobre traduo e me
obriga, ao contrrio, a desdobr-las sempre, na maior parte das vezes em notas de rodap.
Quando Anders escreve lgen wie gedruckt, no posso escolher entre mentir como se
estivesse impresso ou mentir descaradamente, mas sim devo registrar os dois, porque o
autor explicitamente se refere aos dois.
f) O mesmo acontece nos momentos em que Anders leva a cabo raciocnios que se
baseiam na etimologia alem de um conceito; nesses casos, diante da impossibilidade rigorosa
de produzir mesmo efeito com os recursos oferecidos pela lngua portuguesa, as notas so
necessariamente mais detalhadas. Nos casos em que o argumento no pontual, mas se
desenvolve em uma rede de referncias mais extensa, os conceitos originais foram inseridos
no texto corrido em itlico e entre colchetes ao lado da traduo.
g) Anders recorre a um conjunto de referncias externas com uma familiaridade
que pode nos ser estranha, seja quando ele retoma um fato da histria contempornea alem,
seja quando ele se refere a uma passagem clssica de Goethe, seja quando ele cita um autor da
filosofia ou da antropologia apenas por seu sobrenome. Em todos esses casos, a interferncia
do tradutor tem o objetivo de apenas apontar com maior individuao a referncia feita pelo
autor. Diante de um texto rico como este, no entanto, seria pretenso exagerada imaginar que
as notas de rodap possam esgot-las. O tradutor responde sozinho por eventuais omisses.
h) A diviso estrutural dos pargrafos foi rigorosamente mantida com o objetivo
de permitir o cotejamento direto com o texto original. Assim, por exemplo, o leitor pode
encontrar correspondncia imediata entre o terceiro pargrafo do 5 no texto em alemo e no
texto em portugus.
i) A traduo foi realizada integralmente a partir da edio publicada em 2002
pela editora C.H. Beck, cujo texto corresponde sua primeira edio, publicada em 1956 pela
mesma editora.
20
O MUNDO COMO FANTASMA E MATRIZ:
Consideraes filosficas sobre o rdio e a televiso
21
Como ao rei pouco agradava que seu filho, deixando as
ruas controladas, por entre o campo vagasse, para um
prprio juzo sobre o mundo formar, presenteou-o carroa
e cavalo. Agora no precisas mais ir a p, foram suas
palavras. Agora no deves mais faz-lo, seu sentido.
Agora no conseguirs mais, seu efeito.
De: Histrias Infantis
22
I. O MUNDO ENTREGUE EM DOMICLIO
1. Nenhum meio apenas um meio
A primeira reao crtica, qual se submetem aqui o rdio e a televiso, dir: tal
generalizao proibida; isso depende de modo exclusivo daquilo que ns fazemos desses
equipamentos; de como nos servimos deles; com qual finalidade o empregamos como meio:
se para o bem ou para o mal, para o humano ou para o desumano, para o social ou para o anti-
social.
Nascido na primeira revoluo industrial, este otimista argumento at onde se
pode chamar assim uma frase feita conhecido; e sobrevive em todos os espaos com a
mesma despreocupao.
Sua validade mais do que duvidosa. A liberdade em dispor da tcnica que ele
supe, sua crena em que existam pedaos de nosso mundo que no sejam nada alm de
meios, que podem servir ad libitum20 para justos fins, pura iluso. Os equipamentos em
si so fatos; e, em verdade, tais que nos marcam. E o fato de que eles nos marcam,
independente da finalidade para qual os utilizamos, no destrudo quando verbalmente os
degradamos a meios. Com efeito, a tosca separao de nossa vida entre meio e fim,
como consumada neste argumento, no tem nada a ver com a realidade. Nosso existir 21
repleto de tcnica no se desagrega em caminhos individuais, por mgica um do outro
separados, que por meio de placas de rua se identificam: um como meio e o outro como
fim. Legtima esta partio apenas em aes individuais e em isolados procedimentos
maquinais. L, onde se trata do todo, na poltica ou na filosofia, no. Quem articula nossa
vida como todo com ajuda dessas duas categorias, entende-o segundo o modelo do agir
funcional j como fenmeno tcnico: o que de imediato testemunho de barbaridades de
modo particular se elas surgem como a mxima os fins justificam os meios contra as
quais to solicitamente o homem se revolta. A negao dessa frmula atesta tanta grosseria
como sua (muito raramente expressa) afirmao: pois tambm quem nega, afirma, mesmo
sem pronunci-lo, a justeza das duas categorias; tambm este admite que sua aplicao na 20 Do latim, vontade, segundo o desejo. (Nota do Tradutor) 21 Dasein traduzido em portugus tambm por ser-a ou estar-no-mundo. (N.d.T.)
23
vida seja totalmente legtima. De fato a humanidade comea apenas a onde essa
diferenciao perde o sentido: onde o meio tanto quanto o fim esto to impregnados de
hbito e moral que os fragmentos individuais da vida ou do mundo no podem sequer ser
reconhecidos, onde no cabe sequer perguntar se se trata de meio ou de fim; apenas a,
onde o caminho fonte
to bom quanto o beber.
claro que podemos utilizar a televiso com o objetivo de participar de uma
missa. Todavia aquilo que, queiramos ou no, precisamente nos marca ou nos transforma,
tanto quanto a missa em si, o fato de que no participamos dela de modo imediato, mas sim
consumimos apenas sua imagem. Este efeito-livro-de-figuras , no entanto, nitidamente no
apenas diferente do intencionado, mas o seu contrrio. O que justamente nos marca e
desmarca, o que nos forma e deforma, so no apenas os objetos atravs dos meios
mediados, mas os meios em si, os aparelhos em si: os quais no so apenas objetos de
aplicaes possveis, mas j determinam sua aplicao atravs de suas determinadas estruturas
e funes e com isso determinam tambm o estilo de nossa atividade e de nossa vida, em
suma: determinam a ns.
Como leitor das prximas pginas tenho eu em vista os consumidores, ou seja, os
ouvintes e telespectadores. Filsofos profissionais e tcnicos em rdio e televiso apenas na
segunda fileira. Aos filsofos ser estranha a matria; aos tcnicos, o modo como eu a trato.
Decerto no me dirijo a todos os consumidores, mas apenas aos quais j aconteceu alguma
vez de, durante uma transmisso ou depois dela, depararem-se perplexos com a pergunta: E
o que eu estou fazendo aqui exatamente? E o que feito de mim aqui exatamente? Aos assim
perplexos devem ser dados alguns esclarecimentos no que se segue.
24
2. O consumo-de-massa22 acontece hoje solisticamente Cada consumidor um
trabalhador domstico no-remunerado na produo do homem-de-massa
Antes de terem sido instaladas as torneiras culturais dos rdios em cada um de
seus domiclios, aglomeravam-se no cinema os Schmids e Mllers, os Smiths e Millers, para
consumir coletivamente, ou seja, enquanto massa, as mercadorias que para eles em massa e
esteretipo tinham sido produzidas. Poderia ser vista nessa situao uma certa unidade de
estilo: a congruncia entre produo-de-massa e o consumo-de-massa; mas isso seria
equivocado. Nada contradiz mais grosseiramente a inteno da produo-de-massa do que
uma situao de consumo na qual um e o mesmo exemplar (ou uma e a mesma reproduo)
de uma mercadoria desfrutado por muitos ou mesmos inmeros consumidores ao mesmo
tempo. Para o interesse do produtor-em-massa permanece indiferente se este consumo em
conjunto representa uma verdadeira vivncia social ou apenas a soma de muitas
experincias individuais. Para ele, trata-se no da massificada massa como tal, mas da massa
destrinchada no maior nmero possvel de compradores; no da chance de que todos
consumam o mesmo, mas de que cada um compre a mesma coisa motivado pela mesma
necessidade (cuja produo igualmente providenciada). Em inmeras indstrias esse ideal
foi alcanado integralmente, ou ao menos est prximo disso. Que isso possa ser atingido pela
indstria cinematogrfica, parece-me questionvel. E talvez justamente porque esta, que segue
a tradio do teatro, serve sua mercadoria ainda como uma exibio simultnea para muitos.
Isso representa sem dvida uma herana arcaica. Nenhuma surpresa que a indstria do rdio e
da televiso, a despeito da gigantesca evoluo do filme, tenha podido competir com este:
ambas as indstrias tiveram inclusive a chance extra de vender enquanto mercadoria, alm das
mercadorias para consumo, o aparelho requisitado para este consumo; e de fato, diferente do
filme, a quase todas as pessoas. E tambm pouco excepcional que quase todas as pessoas
tenham aproveitado que a mercadoria, diferente do filme, atravs do aparelho podia ser
entregue em domiclio. Logo se sentaram em casa os Schmids e os Smiths, os Mllers e os
Millers, em tantos os finais de tarde que eles antes passavam no cinema, para captar as
peas radiofnicas ou o mundo. No cinema, a situao evidente o consumo da mercadoria-
de-massa por uma massa foi aqui abolida, o que claramente no significou uma minorao
da produo-de-massa; ao contrrio, a produo-de-massa entrega ao homem-de-massa esta 22 Com o objetivo de nos aproximar dos conceitos originais, os termos Massenkonsum, Massenmenschen, Massenproduktion, Massenproduzenten, Massenwaren e anlogos foram traduzidos respectivamente para consumo-de-massa, homem-de-massa, produo-de-massa, produtores-de-massa, mecadorias-de-massa, etc. (N.d.T.)
25
que a produo do prprio homem-de-massa em diariamente mais altas excurses. A
milhes de ouvintes foi servida a mesma rao-para-ouvido; cada um deles foi, atravs deste
produto en masse23, tratado como homem-de-massa, como artigo indefinido; cada um deles
foi na sua caracterstica, ou na sua falta de caracterstica, fixado. Apenas o consumo coletivo,
justamente atravs da produo-de-massa dos aparelhos de recepo, foi tornado suprfluo.
Os Schmids e os Smiths ento consumiam os produtos-de-massa apenas en famille24 ou
mesmo sozinhos; quanto mais solitrios eles eram, tanto mais rendosos: era nascido o tipo do
eremita-de-massa; que em milhes de exemplares senta-se, apenas um do outro separado e
ainda assim um igual ao outro, reclusamente em seu casulo no para renunciar ao mundo,
mas para, se Deus quiser, no perder nenhum fragmento de mundo em effigie25.
sabido que a indstria abriu mo do fundamento da centralizao que seguia
inclume ainda na ltima era , em grande parte por motivos estratgicos, a favor do princpio
da disperso. Menos sabido , ao contrrio, que este princpio da disperso hoje tambm j
vale para a produo do homem-de-massa. Eu digo: para sua produo, a despeito de termos
falado apenas de disperso do consumo. Mas este salto do consumo para a produo aqui
legtimo, uma vez que ambos coincidem de modo particular; uma vez que (num sentido no-
materialista) o homem o que o ele come26: o homem-de-massa produzido ao se permitir
que ele consuma mercadoria-de-massa; o que ao mesmo tempo significa que o consumidor de
mercadoria-de-massa se faz, por meio de seu consumo, co-trabalhador na produo do
homem-em-massa (ou co-trabalhador na reformao de si mesmo em um homem-em-massa).
Assim consumo e produo aqui coincidem. Seja dado o consumo disperso, idem a
produo do homem-de-massa. E de fato em qualquer lugar onde acontea o consumo: diante
de cada aparelho de rdio, diante de cada aparelho de televiso. Cada um de certa maneira
empregado e ocupado como trabalhador domstico. Certamente como um trabalhador
domstico de um tipo bastante incomum, pois ele realiza seu trabalho a metamorfose de si
mesmo em um homem-de-massa por meio de seu consumo de mercadoria-de-massa, ou
seja, por meio do lazer. Enquanto o clssico trabalhador domstico produzia mercadorias
para garantir para si o mnimo de bens de consumo e lazer, consome ele hoje o mximo de 23 Do francs, em massa. Grifo nosso. (N.d.T.) 24 Do francs, em famlia. Grifo nosso. (N.d.T.) 25 Do francs, representao (em pintura, escultura) de uma pessoa, representao da figura convencional de uma personagem, imagem, figura, retrato. Grifo nosso. (N.d.T.) 26 Der Mensch ist was er it: provrbio alemo que se constri a partir do trocadilho entre ist, do verbo ser, e it (l-se isst), do verbo comer. (N.d.T.)
26
produtos de lazer para co-produzir o homem-de-massa. Completamente paradoxal se torna
este fenmeno uma vez que o trabalhador domstico, ao invs de receber pela sua
colaborao, tem de pagar por ela; a saber, pelo meio de produo (o aparelho e, em muitos
pases, tambm pela emisso), cuja utilizao lhe permite transformar-se em homem-de-
massa. Ele paga, portanto, para vender a si mesmo; e inclusive sua prpria no-liberdade,
justamente esta que ele mesmo co-produz, ele deve adquirir por compra, uma vez que esta se
transformou em mercadoria.
No entanto, mesmo se recusada essa etapa estranha enxergar nos consumidores
das mercadorias-de-massa co-trabalhadores na produo do homem-de-massa , no se
poder questionar que para a produo do hoje desejado tipo de homem-de-massa no mais
necessria a efetiva massificao em forma de reunio-de-massa. As observaes de Le Bon27
sobre as situaes-de-massa enquanto modificadoras do homem se tornaram ultrapassadas,
uma vez que a desformao da individualidade e o nivelamento da racionalidade podem
realizar-se em casa. A encenao-de-massa no estilo de Hitler desnecessria: para fazer do
homem um ningum (at mesmo orgulhoso de ser um ningum), no mais necessrio afog-
lo na mar da massa; no mais necessrio chumb-lo na construo massiamente produzida
da massa. Nenhum ato de desformar, de desapossar o homem enquanto homem mais
eficiente do que aquele que aparentemente valoriza a liberdade da personalidade e o direito
individualidade. O procedimento do conditioning28 acontece com cada um separadamente:
no casulo do indivduo, no isolamento, nos milhes de isolamentos; tanto melhor funciona ele
ento. Uma vez que o tratamento se d enquanto fun29; uma vez que no ele denuncia ao
sacrificado que solicita dele sacrifcio; uma vez que ele no interfere na iluso de sua
privacidade, ao menos na iluso de seu espao privado, permanece ele integralmente discreto.
De fato, o antigo ditado fogo prprio vale ouro30 se tornou novamente verdade; mesmo
que em um sentido completamente novo. Pois ora ele vale ouro no para o proprietrio, que
d colheradas na sopa conditioning31; mas sim para os proprietrios do proprietrio do fogo:
os cozinheiros e os entregadores, que servem a sopa como marmita.
27 Gustav Le Bon (1841-1931), psiclogo francs considerado o fundador da psicologia social, discute o comportamento dos indivduos enquanto membros de uma massa (cf. LE BON, 1954). (N.d.T.) 28 Do ingls, condicionamento. (N.d.T.) 29 Do ingls, diverso, lazer. (N.d.T.) 30 Traduo literal do ditado alemo eigner Herd ist Goldes wert, onde fogo metonmia para lar. (N.d.T.) 31 Grifo nosso. (N.d.T.)
27
3. Rdio e televiso tornam-se mesa familiar negativa;
a famlia torna-se pblico en miniature32
compreensvel que este consumo-de-massa habitualmente no seja chamado
pelo seu nome correto. Ao contrrio, ele apresentado como chance para um renascimento da
famlia e da privacidade o que de fato compreensvel, mas compreensivelmente hipcrita:
as novas invenes recorrem de bom grado aos velhos ideais como a nenhuma outra coisa,
ideais que sob certas circunstncias podem aparecer como foras inibidoras de consumo. A
famlia francesa descobriu, afirma-se no jornal vienense Presse 33 de 24.12.54, que a
televiso um meio extraordinrio de afastar os jovens de passatempos caros, de prender as
crianas em casa... e de dar um novo estmulo aos encontros familiares. A chance contida de
fato nesta forma de consumo consiste, ao contrrio, em dissolver integralmente a famlia de
modo to natural que essa dissoluo mantm ou mesmo adota a aparncia da prezada
vida familiar. Mas ela dissolvida, pois aquilo que ento reina em casa atravs da TV o
transmitido real ou fictcio mundo exterior; e este reina to ilimitado que torna invlida e
fantasmagrica a realidade do lar no apenas aquele das quatro paredes e da moblia, mas
justamente aquele da vida em comum. Quando o distante se aproxima, aquilo que est
prximo se distancia ou se dissipa. Quando o fantasmagrico se torna verdadeiro, o
verdadeiro se torna fantasmagrico. O lar real se degrada condio de container, sua
funo se esgota em conter a tela para o mundo exterior. Assistentes sociais, afirma um
relatrio policial de 2.10.54, em Londres, retiraram de um apartamento no oeste de Londres
duas crianas abandonadas com um e trs anos de idade. O quarto no qual elas brincavam
estava mobiliado com apenas algumas cadeiras quebradas. Em um canto, porm, havia um
pomposo novo aparelho de televiso. Os nicos alimentos disponveis na casa eram uma fatia
de po, um pedao de manteiga e uma lata de leite condensado. Foram com isso liquidados
os ltimos restos daquilo que mesmo nos pases mais padronizados persistia de ambiente
caseiro, de vida em comum, de atmosfera familiar. Sem que com isso fosse desencadeado um
confronto entre o reino do lar e o reino dos fantasmas, mesmo sem que sequer fosse
necessrio declarar tal confronto, estes j foram vitoriosos no instante em que o aparelho entra
na casa: ele veio, fez ver e venceu. Assim que eles gotejam sobre os muros, as paredes se
32 Do francs, em miniatura. Grifo nosso. (N.d.T.) 33 Jornal austraco Die Presse, fundado em 1848. (N.d.T.)
28
tornam translcidas, a argamassa entre os membros da famlia se esfacela, a privacidade em
comum est destruda.
H dcadas se pode perceber que o mvel-cone-social da famlia a mesa macia
situada no meio da sala com a famlia reunida sua volta comea a perder sua fora
gravitacional, tornar-se obsoleto e ser excludo das novas configuraes domsticas. Apenas
agora, justamente com o aparelho de televiso, ele encontrou um verdadeiro sucessor; apenas
agora ele foi substitudo por um mvel, cujo poder simblico e coercitivo pode ser comparado
ao da mesa; o que certamente no significa que a TV tenha se tornado o centro familiar. Ao
contrrio: o que o aparelho representa e encarna justamente sua descentralizao, seu ex-
centro; a televiso a mesa familiar negativa. Ela no traz o ponto central comum da famlia,
ela o substitui pelo ponto de fuga comum. Enquanto a mesa fizera centrpeta a famlia e a
contivera sentada ao seu redor para permitir os movimentos dos interesses, dos olhares, das
conversas, para l e para c, como lanadeiras de tear que seguem tecendo o tecido familiar, a
tela da televiso orienta a famlia de modo centrfugo. De fato, agora os membros da famlia
no se sentam um diante do outro, a organizao das cadeiras diante da tela mera
justaposio; a possibilidade de que um enxergue o outro, de que um olhe para o outro,
consiste ainda somente no engano34; a possibilidade de que um fale com o outro (quando isso
absolutamente ainda se quer ou se pode), somente no acaso. Eles no esto mais juntos, esto
um com o outro, ou melhor, um ao lado do outro, meros espectadores. No se pode mais falar
em uma toalha na qual eles tecem juntos, de um mundo que eles constroem juntos, ou no qual
eles participam juntos. O que acontece que os membros da famlia simultaneamente (juntos,
na melhor hiptese, mas nunca coletivamente) escapam rumo a um ponto de fuga para um
reino de irrealidade ou para um mundo que eles de fato no compartilham com ningum, uma
vez que dele nem eles mesmos participam; ou, quando compartilham, o fazem com cada um
dos milhes de solistas do consumo-de-massa que, como eles e simultneos a eles, esto
vidrados em seus televisores. A famlia assim reestruturada em um pblico en miniature e o
cinema feito modelo do lar. Se existe algo que a famlia ainda vivencia ou realiza no
apenas ao mesmo tempo, no apenas um ao lado do outro, mas realmente em coletividade, a
esperana de que o trabalho para que em um momento estejam pagas todas as prestaes
do aparelho e a coletividade familiar seja encerrada de uma vez por todas. O objetivo
inconsciente de sua ltima coletividade , portanto, sua prpria extino. 34 Anders faz aqui um jogo entre os verbos sehen (ver, enxergar) e zusehen (olhar para) e o substantivo Versehen (engano, equvoco). (N.d.T.)
29
4. Uma vez que os aparelhos nos tomam a fala,
eles nos transformam em dependentes e servos35
Dizamos: aqueles que se sentam diante da tela falariam uns com os outros, na
medida em que ainda quisessem ou pudessem, apenas por acaso.
Isso vale tambm para os ouvintes de rdio. Tambm eles falam apenas
enganadamente. E de fato querem e podem faz-lo menos a cada dia o que naturalmente no
significa que eles se calem em sentido positivo; apenas que seu papear adquire uma forma
passiva. Se, na fbula de nossa epgrafe, as palavras do rei agora no precisas mais ir a p
significavam finalmente agora no conseguirs mais, desse modo tambm para ns o agora
vocs no precisam falar por conta prpria seria um agora vocs no conseguem mais faz-
lo. Uma vez que os aparelhos nos tomam o falar, nos levam tambm a linguagem; eles nos
roubam nossa capacidade de expresso, nossa oportunidade de fala, nosso desejo de fala
exatamente como a msica do gramofone e do rdio nos rouba nossa msica domstica.
Os apaixonados que com seu falante portable 36 passeiam s margens do
Hudson, do Tmisa ou do Danbio no falam um com o outro, eles escutam a uma terceira
pessoa: a pblica, em geral annima, voz do programa, que eles levam para passear como um
cachorrinho; ou melhor: que os leva para passear. Seu passeio eles fazem no a dois, mas a
trs, uma vez que eles so apenas o pblico-miniatura, que segue a voz do programa. No se
pode falar aqui em uma conversa ntima, essa est desde o comeo descartada; e se eles
mesmo assim chegam a alguma intimidade, eles devem atribuir a instruo e o impulso para
isso e mesmo a prpria excitao no a eles prprios, mas a uma terceira pessoa: o
programa de fala quente ou sensual ou de voz estridente, que prescreve pois que outro
significado tem programa? o que e como eles devem sentir e o que se tem a fazer, na
ordem do dia, ou da noite. Uma vez que eles fazem aquilo que prescrito na presena do
35 Da die Gerte uns das Sprechen abnehmen, verwandeln sie uns in Unmndige und Hrige. O ttulo antecipa um dos jogos etimolgicos que Anders vai desenvolver neste trecho, a saber: de um lado, a relao entre os conceitos jurdicos de emancipao, maioridade, e a idia de ter boca, falar por si prprio, responder por si, que coincidem no termo alemo mndig, adjetivo ligado a Mund (boca); e, por outro lado, hrig, adjetivo ligado ao verbo hren (ouvir), que significa servo, dependente de um senhor e cuja origem no idioma alemo, especula-se, derivar-se-ia da traduo do latim cliens (vassalo, cliente, em oposio a patronus), que por sua vez se ligaria ao verbo latino cluere (ouvir, ouvir-se chamar de). A tese de Anders aqui : uma vez que os aparelhos falam por ns, a nossa fala prpria atrofia, nos tornamos dependentes, perdemos a voz (Unmndige); diante do aparelho que domina a fala, ns somos aquele que ouve, ns somos os servos (Hrige) (cf. KLUGE, 2002; cf. FARIA, 1975). (N.d.T.) 36 Do ingls, porttil, aqui em referncia ao rdio porttil. (N.d.T.)
30
terceiro, fazem-no em uma situao acusticamente indiscreta. No importa quo agradvel*
essa sua submisso possa parecer aos dois, no se pode mais afirmar que eles se distraiam*
um ao outro. Muito mais eles so distrados*, justamente por aquele terceiro que sozinho
dono da voz: e este conversa* em nome deles no apenas no sentido de converser 37;
tampouco apenas no sentido de amuser38 ; mas tambm uma vez que este enquanto
terceiro na reunio oferece todo apoio e incentivo que eles, no sabendo o que devem
comear um com o outro, no poderiam dar no sentido de soutenir39.40 Em um mundo que
no apenas o sabe, como tambm o pratica enquanto obviedade, no preciso esconder
timidamente que o faire amour 41 de hoje na maior parte das vezes acontece com
acompanhamento do rdio (e no apenas do swooning42 musical). De fato, o rdio hoje
permitido ou requisitado em qualquer situao corresponde quela governanta munida de
uma tocha que os antigos ocupavam como testemunha de suas alegrias amorosas; e a
diferena entre ambos consiste apenas no fato de que a governanta de hoje uma mecanizada
public utility43; no fato de que ela com sua tocha deve no apenas iluminar como tambm
aquecer; e no fato de que, pelo amor de Deus, no se espera que ela se cale, ao contrrio, que
seja tagarela de tal modo a, enquanto barulho de fundo, sobrepor-se com msicas e com
palavras quele horror vacui 44 que no os abandona nem mesmo in actu 45 . Este
background46 to fundamentalmente importante que desde 1954 foi incorporado s ento
nascentes voicepondences47, ou seja, nas fitas cassetes que as pessoas enviavam umas para
as outras. Se um apaixonado declama uma tal analfabeta carta de amor, ento ele declama
sobre um fundo acstico, a saber, musicalmente j preparado, porque um nada alm de sua
37 Do francs, conversar. (N.d.T.) 38 Do francs, divertir, entreter. (N.d.T.) 39 Do francs, sustentar, apoiar. (N.d.T.) 40 Estes dois ltimos perodos so construdos ao redor das tonalidades do verbo unterhalten, cujos trs principais sentidos Anders explora de modo explcito, tomando o francs como referncia. As trs acepes trabalhadas so: a) unterhalten como converser: conversar, dialogar; b) unterhalten como amuser: divertir, distrair; e c) unterhalten como soutenir: sustentar, amparar, apoiar. (N.d.T.) 41 Do francs, fazer amor, namorar. Grifo nosso. (N.d.T.) 42 Do ingls, desfalecimento lnguido. (N.d.T.) 43 Do ingls, utilidade pblica. (N.d.T.) 44 Do latim, horror ao vazio, horror desocupao. Grifo nosso. (N.d.T.) 45 Do latim, em ato, em ao. Grifo nosso. (N.d.T.)
* Tradues distintas para o mesmo verbo unterhalten , cf. nota 40. (N.d.T.) 46 Do ingls, pano de fundo. (N.d.T.) 47 Neologismo ingls formado entre voice (voz) e correspondence (correspondncia). (N.d.T.)
31
voz para sua adorada destinatria provavelmente permaneceria um presente demasiado nu.
Aquilo que deve falar com ou se dirigir destinatria, de certa forma enquanto coisa
transformada em aquele-que-pede-a-mo-da-noiva, novamente a terceira voz.
Mas a situao amorosa apenas um exemplo, o mais crasso. Em sentido
semelhante eles se deixam distrair em qualquer situao, em qualquer atividade; e mesmo
quando eles inadvertidamente falam um com o outro, fala atrs deles, enquanto pessoa
principal, enquanto tenor, a voz do rdio e oferece a eles o confivel e seguro sentimento de
que ela ainda o far mesmo se for encerrada a conversa deles. Mesmo depois da morte deles.
Em verdade, uma vez que o falar lhes apenas assegurado e entregue pronto
gotejado no ouvido, eles deixaram de ser 48; do mesmo modo que ao se
tornar aquele que come o po eles deixaram de ser homines fabri49: pois eles formam sua
prpria nutrio lxica to pouco quanto ainda assam seu prprio po. Palavras so para eles
no mais algo que se fala, mas algo que apenas se ouve; falar para eles no mais algo que se
faz, mas apenas algo que se recebe. evidente que eles tm, assim, um sentido para logos
completamente diferente daquilo que Aristteles queria dizer em sua definio; do mesmo
modo que eles com isso se tornaram seres infantis no sentido etimolgico da palavra ,
justamente: dependentes, no-falantes.50 Assim tambm, em qualquer espao civilizatrio-
poltico no qual este desenvolvimento de d em direo a 51, o efeito final no
qual ele desemboca deve ser o mesmo: a saber, consistir em um tipo de homem que, por no
falar por si s, no tem mais nada a dizer; aquele que, por apenas ouvir, cada vez mais
servo52. O primeiro efeito desta limitao sobre o apenas-ouvir j est claro. Ele consiste,
em todas as culturas lingsticas, no embrutecimento, empobrecimento e perda de interesse da
fala.53 E no consiste apenas nisso, mas tambm no embrutecimento e empobrecimento da
48 Do grego, animal dotado de razo e ser vivente que governa a palavra; expresso usada por Aristteles no livro Poltica. (N.d.T.) 49 Do latim, operrios. Grifo nosso. (N.d.T.) 50 De fato, o sentido prprio do termo latino infans : a) aquele que no fala, incapaz de falar. Da decorre: b) que no tem o dom da palavra e c) criana (cf. FARIA, 1975). (N.d.T.) 51 Do grego, ente desprovido de palavras. (N.d.T.) 52 Hriger: vassalo e aquele que ouve, cf. nota 35. (N.d.T.) 53 Um antecedente deste definhamento da fala, que agora se torna universal, ns j experimentamos uma vez: a saber, o definhamento da cultura da carta, realizado em 50 anos de telefone; e de fato de modo to exitoso que ns atuais tomamos as cartas que as pessoas de cultura mediana de um sculo atrs escreviam umas s outras enquanto obras-primas de exata aplicao e de exata informao. O que se atrofia com isso uma vez que o
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vivncia, ou seja, do prprio homem. E de fato porque o interior do homem, sua riqueza e
sutileza, no tem nenhuma existncia sem a riqueza e a sutileza do discurso; pois no vlido
apenas que a lngua a expresso do homem, mas tambm que o homem produto de sua
fala; em suma: porque o homem assim articulado, assim como ele mesmo articula; e assim
desarticulado, assim como ele no articula.54
5. Os acontecimentos chegam a ns, no ns a eles
O tratamento do homem se d enquanto entrega em domiclio, no diferente do
que acontece com o gs ou a eletricidade. O que emitido, porm, no so apenas produtos
artsticos, no apenas algo como msica ou radionovelas, mas tambm os acontecimentos
reais, justamente estes. Pelo menos aqueles que enquanto realidade ou no lugar desta so
para ns escolhidos, quimicamente purificados e preparados. Quem quer estar por dentro55,
quem quer saber o que existe l fora, precisa se dirigir at sua casa, onde os acontecimentos
encomendados para contemplao j esperam por ele como a gua encanada na torneira.
Como poderia ele do lado de fora, no caos da realidade, estar em condies de extrair alguma
coisa real com mais do que um significado local? Pois o mundo exterior encobre o mundo
exterior. Apenas se a porta atrs de ns se fecha torna-se visvel o externo; apenas se nos
tornamos mnadas sem janelas56, reflete-se nos o universo; apenas quando nos abjuramos da
homem assim articulado, assim como ele mesmo articula no apenas a sutilidade de sua expresso, mas a sutilidade do prprio homem. (Nota do Autor) 54 Nada est hoje mais fora de lugar do que a chorosa e soberba demanda dos irracionalistas de que nossa fala no alcanaria a abundncia e a profundidade de nossa experincia. Os grandes do passado, com cuja abundncia e profundidade ns pouco podemos nos medir, estavam lingisticamente bem altura de suas experincias; o poder de seu discurso alcanou at a situao mais extrema, e a incompetncia da fala, a insuficincia no dizer, apresentavam eles sempre apenas muito tarde, apenas entre os ltimos. Quanto menos o homem tem a dizer, tanto mais precipitado o homem faz da misria um fanatismo e da pobreza uma riqueza; tanto antes o homem se ostenta para com isso provar a condio efusiva de sua prpria vivncia, com a falncia da fala. Rapidamente a juventude abandona o indizvel. A verdadeira misria e embarao de hoje no consiste no fato de que ns podemos destruir-pela-fala nossa suposta abundncia e nossa suposta profundidade; ao contrrio, consiste no fato de que ns podemos levar nossa abundncia diluio, na medida em que ns ainda a temos, e podemos levar nossa profundidade expedio, pois nascidos com a linguagem, comeamos a desaprender o falar. (N.d.A) 55 Im Bilde sein: literalmente, estar na imagem; seu uso corrente, porm, estar informado, estar por dentro. A (pertinente) oposio entre estar por dentro e acontece l fora, portanto, no est presente no texto original; a referncia de Anders seria antes em relao questo da imagem. (N.d.T.) 56 Referncias idia de mnada segundo o filsofo alemo Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716): substncia simples, inesgotvel, indivisvel, ativa, que constitui o elemento ltimo das coisas. A mnada leibniziana espelha em si o universo todo; representa a si mesma; tende a fugir da dor e desejar o prazer; e desprovida de porta e
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torre de tal forma que ao invs de sentarmo-nos sobre ela, sentamo-nos dentro dela, o mundo
se torna nossa propriedade, o mundo nosso gosto, tornamo-nos Linceu57.58 No lugar da
antiga garantia: veja, o bem se encontra to perto com a qual nosso pai nos deve ter
tranqilizado sobre a pergunta por que vagar no distante?, hoje a garantia teria de surgir
como: veja, o distante se encontra to perto; quando no mesmo: veja, apenas as coisas
distantes ainda se encontram perto. E com isso estamos no tema. Pois os acontecimentos
eles mesmos, no as notcias sobre eles as partidas de futebol, as missas, as exploses
atmicas nos visitam; a montanha vai at o profeta. E o fato de que o mundo vai at o homem,
ao invs do homem ir at ao mundo, , ao lado da produo do eremita-de-massa e da
metamorfose da famlia em um pblico-miniatura, o verdadeiro efeito transformador que o
rdio e a T.V. trouxeram.59
Esta terceira transformao agora o verdadeiro objeto de nossa investigao.
Pois esta se ocupa quase exclusivamente das mudanas caractersticas que perfazem o homem
enquanto ser abastecido de mundo; e das no menos caractersticas conseqncias que a
entrega-do-mundo levam consigo sobre o conceito de mundo e sobre o mundo em si. Para
mostrar que aqui existem perguntas verdadeiramente filosficas, esto nomeadas, primeiro em
uma ordem ainda pouco sistemtica, algumas das conseqncias que devem ser discutidas no
decorrer da investigao.
janelas, no recebe os conhecimentos de fora, mas pode exprimir o universo a partir de si mesma (cf. ROBERT, 1967; cf. LEIBNIZ, 2000). (N.d.T.) 57 Linceu, (do grego antigo, , aquele que enxerga como um lince) personagem da mitologia grega, foi um dos argonautas. Famoso por sua viso apurada, conta-se que ele podia ver atravs das paredes e enxergar o subterrneo. Anders se refere aqui diretamente citao do personagem mitolgico em Fausto, livro do escritor alemo Johann von Wolfgang Goethe (1749-1832). No quinto ato da segunda parte, Goethe dedica um canto a Linceu, o vigia, cujos primeiros versos so: Zum Sehen geboren, / zum Schauen bestellt, / dem Turme geschworen, / gefllt mir die Welt (em traduo de Jenny Klabin Segall: A ver destinado, / torre preposto, / vigia jurado, / o mundo meu gosto) (GOETHE, 1986:195; GOETHE, 2002:426). (N.d.T.) 58 A representao das torres de marfim, que o homem ergue para si e nas quais ele se recolhe para no mirar a realidade nos olhos, est mais e mais ultrapassada. A construo das torres h muito levada a cabo pela realidade em si; ela sua feitora e senhora. No nos sentamos diante delas como exilados, mas sim somos encerrados nelas como inquilinos compulsrios. Mas quando elas nos alojam, o fazem no para que ento ns nos proporcionemos uma fantstica, totalmente nova imagem de mundo, mas sim para que ns vivamos em imagens suas. Certamente no em suas verdadeiras imagens, mas sim naquelas falsas, as quais elas pretendem, por interesses reais, que sejam tomadas por elas prprias. Elas nos trancam para que ao se mostrar aparente ela no desvie de si. Mas esse desvio elas realizam por certo segundo o bastante realista interesse de nos marcar realmente por meio de sua imagem falsa, para nos trabalhar de tal maneira que ento nossa realidade humana se torne utilizvel para elas em nvel timo. queles que apresentam resistncia, elas nomeiam introvertidos; s suas vtimas submissas, extrovertidos. (N.d.A.) 59 A idia do mundo que vem at ns tornou-se de tal forma familiar que ns tomamos por visitantes tudo aquilo que passa por nosso caminho telrico: ontem discos voadores marcianos, hoje super-homens de Srio. (N.d.A.)
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1. Se o mundo chega a ns, ao invs de ns a ele, ento no estamos mais no
mundo; somos exclusivamente seus consumidores como no pas das maravilhas.
2. Se ele chega a ns, mas apenas enquanto imagem, ele meio presente e meio
ausente, ou seja, fantasmagrico.
3. Se podemos evoc-lo a qualquer hora (de fato, no administramos, mas
podemos lig-lo e deslig-lo), somos possuidores de poderes semelhantes aos poderes
divinos.
4. Se o mundo fala conosco sem que ns possamos falar com ele, estamos
condenados a ser mudos, ou seja, no-livres.
5. Se ele nos perceptvel, mas apenas isso, ou seja, se ele no passvel de
interferncia, ns somos transformados em espies ou voyeurs.
6. Se um acontecimento que se d em um determinado local pode ser emitido e
enquanto emisso pode ser gerado para entrar em cena em qualquer outro lugar, ento ele
transformado em um bem mvel, quase onipresente, e perdeu o espao enquanto principium
individuationis60.
7. Se ele mvel e surge em virtualmente inmeros exemplares, ento ele
pertence, segundo sua classe de objeto, aos produtos em srie; se se paga pela emisso dos
produtos em srie, o acontecimento uma mercadoria.
8. Se ele socialmente relevante antes em sua forma de reproduo, est
suprimida a diferena entre ser e parecer, entre realidade e imagem.
9. Se o acontecimento socialmente mais importante em sua forma de reproduo
do que em sua forma original, ento deve o original orientar-se por suas reprodues, o
acontecimento se torna mera matriz de suas reprodues.
10. Se a dominante experincia com o mundo se alimenta de tais produtos em
srie, ento o conceito de mundo (na medida em que por mundo se entende onde
60 Do latim, fundamento de identificao, princpio de individuao. Grifo nosso. (N.d.T.)
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estamos) est destrudo, o valor do mundo foi perdido e a postura do homem produzida por
meio das emisses foi feita idealista.
Est claro o bastante, portanto, que no faltam problemas filosficos. Todos esses
aqui nomeados sero discutidos no decorrer da investigao. At o ltimo ponto: o estranho
emprego da expresso idealista. Este deve, por isso, ser imediatamente esclarecido.
Que para ns enquanto consumidores de rdio e televiso o mundo no aparece
mais como mundo exterior, no qual estamos, mas sim como nosso, j foi formulado no ponto
1. De fato, o mundo est sim de um modo particular transladado: ele no se encontra, como
na frmula trivial do idealismo, na nossa conscincia ou mesmo no nosso crebro; no
entanto, uma vez que ele est sim deslocado de fora para dentro, uma vez que ele, ao invs de
se encontrar l fora, agora encontrou no meu quarto seu lugar, e de fato enquanto imagem a
consumir, enquanto mero eidos61, ele se assemelha sim ao deslocamento do idealismo clssico
no modo mais evidente. O mundo tornou-se agora meu, minha representao; ele se tornou
se estamos prontos para entender a palavra representao de uma s vez em dois sentidos:
no apenas no sentido schopenhaueriano 62 , mas tambm no sentido teatral em uma
representao para mim. Neste para mim consiste o elemento idealista. Pois idealista,
no mais amplo sentido, qualquer atitude que transforma o mundo em algo meu, em algo
nosso, em algo sob o qual se pode dispor, em suma, em uma possesso, justamente em minha
representao ou em meu (fichteano 63) produto do pr. Se o termo idealista aqui
61 A expresso em grego eidos foi incorporada no alemo culto por isso ela aparece aqui grafada em letras latinas mantendo seu significado do grego antigo, a saber: figura, imagem, representao, ou, em Plato, idia (cf. KNAUR, 1985). (N.d.T.) 62 Referente tese do filsofo alemo Arthur Schopenhauer (1788-1860), para quem o mundo existe em relao ao sujeito apenas enquanto representao. Nas palavras do filsofo: Es wird ihm dann deutlich und gewi, da er keine Sonne kennt und keine Erde; sondern immer nur ein Auge, das eine Sonne sieht, eine Hand, die eine Erde fhlt; da die Welt, welche ihn umgiebt, nur als Vorstellung da ist, d.h. durchweg nur in Beziehung auf ein Anderes, das Vortellende, welcher er selbst ist (em traduo de M. F. S Correia, Possui ento a inteira certeza de no conhecer nem um sol nem uma terra, mas apenas os olhos que vem este sol, mos que tocam esta terra; em uma palavra, ele [o homem] sabe que o mundo que o cerca existe apenas como representao, na sua relao com um ser que percebe, que o prprio homem) (SCHOPENHAUER, 1988:31; SCHOPENHAUER, 2001:9). (N.d.T.) 63 Filsofo alemo Johann Gottlieb Fichte (1762-1814), representante do idealismo alemo ps-kantiano, entende o ser enquanto produto de uma atividade intelectual, produto de um agir do esprito. Em Grundrechte der Gesammten Wissenschaftlehre, Fichte afirma: Und dies macht es denn vllig klar, in welchem Sinne wir
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surpreende, somente porque ele assevera habitualmente o ser-meu apenas de modo
especulativo, enquanto aqui ele marca uma situao na qual a metamorfose do mundo em algo
sobre o qual eu disponho realmente realizada de modo tcnico. evidente que tambm a
mera asseverao se origina de um imensurvel direito de liberdade, uma vez que nela o
mundo justamente reclamado enquanto propriedade. Hegel empregou a expresso
idealismo neste mais amplo sentido e no receou, na sua Filosofia do Direito64, em
chamar de idealista ao animal que se alimenta, na medida em que na forma do bote ele se
apropria do mundo, incorpora o mundo e pensa o mundo, ou seja, dispe dele como seu65.
Fichte foi idealista porque via o mundo como algo por ele posto, como produto da ao de
seu eu66, ou seja, como seu produto. Comum a todos os idealismos no sentido mais amplo
o pressuposto que o mundo est l para o homem, seja como algo dado, seja como algo
produzido na liberdade de tal forma que o homem em si no realmente pertence ao mundo;
ele representa o plo contrrio do mundo, no um pedao do mundo. A interpretao dessa
coisa dada, deste datum 67 , enquanto datum-sensvel apenas um tipo de jogo do
idealismo entre vrios, e no dos mais graves.68
hier das Wort Ich brauchen, und fhrt uns auf eine bestimmte Erklrung des Ich, als absoluten Subjects. Dasjenige, dessen Seyen (Wesen) bloss darin besteht, dass es sich selbst als seyend setzt, ist das Ich, als absolute Subject. So wie es sich setzt, ist es; und so wie es ist, setzt es sich; und das Ich ist demnach fr das Ich schlechthin und nothwendig. Was fr sich selbst nicht ist, ist kein Ich (em traduo nossa: E isto esclarece integralmente em que sentido precisamos aqui da palavra Eu, enquanto sujeito absoluto. Aquele cujo ser (essncia) consiste meramente em por a si mesmo enquanto ente o Eu, enquanto sujeito absoluto. Assim como ele se pe, ele ; e assim como ele , ele se pe; e o Eu ento, para o Eu, de modo simples e necessrio. O que para si mesmo no , no nenhum Eu) (FICHTE, 1971:97). (N.d.T.) 64 No ttulo integral, Grundlinien der Philosophie des Rechts ou Princpios da Filosofia do Direito. (N.d.T.) 65 Anders se refere s anotaes (Zusatz) do 44 do livro Grundlinien der Philosophie des Rechts (no traduzidas nas verses em portugus), onde Hegel afirma: Der freie Wille ist somit der Idealismus, der die Dinge nicht, wie sie sind, fr an und fr sich hlt, whrend der Realismus dieselben fr absolut erklrt, wenn sie sich auch nur in der Form der Endlichkeit befinden. Schon das Tier hat nicht mehr diese realistiche Philosophie, denn es zehrt die Dinge auf und beweist dadurch, da sie nicht absolut selbstntig sind. (em traduo nossa: A vontade livre assim o Idealismo, que no considera as coisas, como elas so, em si e por si, enquanto o Realismo explica as mesmas como absolutas, mesmo se elas s se encontrem na forma de finitude. Mesmo o animal j no tem mais essa filosofia realista, pois ele consome as coisas e comprova com isto que elas no so absolutamente autnomas) (HEGEL, 1970a:106-7). (N.d.T.) 66 O termo fichteano original Tathandlung, formado a partir das palavras Tat (fato) e Handlung (o agir, ao). (N.d.T.) 67 Do latim, dom, ddiva, presente, coisa dada. (N.d.T.) 68 A formulao clssica do mundo como ddiva se encontra na histria da criao que apresenta o mundo como criado para o homem. No nenhum acaso que os idealismos modernos sejam ps-copernicanos: em determinado sentido, eles todos representam a tentativa de ainda salvar este bblico para ns, que se entendia com a imagem de mundo pr-copernicana, mas no concordava com a ps-copernicana; ou seja, a tentativa de manter firme um geocentrismo e/ou um antropocentrismo em um universo descentralizado. (N.d.A.)
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Se isso vale para todos os tipos de jogos do idealismo que ele reimprime o
mundo em uma possesso: em um reino (Gnesis); em uma imagem de percepo
(sensualismo); em um bem de consumo (o animal hegeliano); em um produto do pr ou do
criar ([Johann Gottlieb] Fichte); em propriedade ([Max] Stirner) ento no nosso caso a
expresso de fato pode com a melhor das intenes ser cognata, uma vez que todas as
possveis nuances da possesso esto aqui reunidas.
At onde os aparelhos de rdio e de televiso tambm queiram escancarar a janela
para o mundo, ao mesmo tempo eles fazem idealistas aos consumidores de mundo.
Evidentemente essa afirmao soa, depois que falamos da vitria do mundo
exterior sobre o mundo interior, estranha e contraditria. A mim tambm. O fato de que se
pode estabelecer ambas as afirmaes parece mostrar uma antinomia no comportamento
homem-mundo. Esta antinomia no se resolve de golpe. Fosse isso possvel, tornar-se-ia
nossa investigao suprflua. Pois esta posta em marcha por meio do paradoxo; e apresenta
in toto69 nada alm do que a tentativa de esclarecer situaes paradoxais.
69 Do latim, integralmente, na completude. Grifo nosso. (N.d.T.)
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II. O FANTASMA
O mundo nos entregue em domiclio. Os acontecimentos nos so servidos.
Mas como eles so servidos? Enquanto acontecimentos? Ou apenas como suas
representaes? Ou apenas como notcias sobre os acontecimentos?
Para poder responder essas perguntas, que guiam os prximos pargrafos,
traduzamo-nas em um primeiro momento em alguma outra lngua; e perguntemos: Como so
os enviados acontecimentos em relao a quem recebe? Como quem recebe em relao a
eles? Realmente presente70? Apenas aparentemente presente? Ausente? De que modo presente
ou ausente?
11. A relao homemmundo torna-se unilateral;
o mundo, nem presente, nem ausente, torna-se um fantasma
Por um lado, eles parecem realmente estar presentes: quando escutamos a
transmisso de rdio de uma cena de guerra ou de uma sesso do parlamento, ento ouvimos
no apenas a notcia sobre as exploses ou sobre os oradores, mas eles prprios. No
significaria isso que os acontecimentos, dos quais ns antes no conseguamos, nem podamos
(nem devamos) participar, agora esto realmente conosco? E ns com eles?
E, novamente, no. Pois seria isso presena viva? Se, ainda que de fato o acesso
a ns esteja livre s vozes do mundo, ainda que estas de fato tenham direito a estar conosco,
ns, por outro lado, permanecemos sem direitos e sem voz diante dos acontecimentos
entregues? Se no podemos responder a ningum, a quem quer que esteja falando, mesmo
quele que parece falar conosco; e se no podemos intervir em nenhum acontecimento, cujo
barulho ruge em nosso entorno? No seria parte da presena verdadeira que a relao homem-
mundo fosse recproca? No estaria aqui esta relao amputada? No teria se tornado
unilateral, de modo tal que para o mundo o ouvinte, ao contrrio, imperceptvel? No
70 Gegenwrtig: adjetivo presente tambm no sentido de contemporneo. (N.d.T.)
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permaneceria ele fundamentalmente pr-concebido no dont talk back71? Essa mudez no
significaria impotncia? No seria a onipresena, com a qual somos agraciados, a presena da
no-liberdade? E no seria o no-livre uma vez que ele tratado como no-ser, como vento,
e no pode ter nada a comunicar ausente?
Pois nitidamente ausente. E ainda assim seria de novo possvel interpretar a
unilateralidade ao contrrio, a saber, enquanto garantia da liberdade e enquanto presena: no
significaria liberdade, se pudssemos participar de cada acontecimento distncia, ou seja,
intocveis e invulnerveis, em funo da unilateralidade? Com o privilgio de utiliz-lo
enquanto deleite e bem de distrao? No seria verdadeiramente presente este, que no pode
ser caado por nenhum dos acontecimentos, dos quais ele testemunha, na fuga, ou seja, na
ausncia?
Tambm isso soa, de novo, plausvel. E seria completamente compreensvel que
uma voz interrompesse essas perguntas e explicasse como descabido esse vai-e-vem sobre a
presena ou a ausncia daquilo que transmitido. Aquilo que o rdio ou a TV nos entrega,
escuto-a, so imagens72. Representaes, no presena! E que os smbolos no permitem
interveno e que nos tratam como vento, isso bvio e um fato h tempos conhecido sob o
ttulo de aparncia esttica.
Mesmo to esclarecedor, seu argumento falso. Pois e esta uma constatao
fenomenolgica fundamental no existem aqui imagens acsticas: o gramofone no nos
apresenta a imagem da sinfonia, mas sim ela prpria. Chega-nos pelo rdio uma manifestao
social, ento o que temos para ouvir no nenhuma imagem da multido barulhenta, mas os
seus barulhos, mesmo quando a multido em si no nos alcana fisicamente. Alm disso, no
entanto, tomamos uma atitude enquanto ouvintes a no ser que seja transmitida uma obra de
arte (algo como um drama), que leva em conta seu carter de aparncia que no poderia ser
menos esttica: quem escuta uma partida de futebol, o faz como torcedor excitado, considera
que ela realmente acontece e no sabe nada a respeito do como se da arte.
71 Do ingls, no responda. Grifo nosso. (N.d.T.) 72 Imagem aqui (e em todo este captulo) no se restringe ao sentido ptico, visual, do termo, mas sim traduz Bild em seu sentido extenso: apresentao figurativa, ilustrao, figura, idia, noo, representao, smbolo, metfora. (N.d.T.)
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No, a voz que nos interrompeu est errada. O que recebemos no so puras
imagens. Mas, do mesmo modo, tambm no estamos realmente presentes na realidade. A
pergunta: estamos presente ou ausentes? de fato descabida; no porque a resposta
imagem (e com isso ausente) seja bvia; mas porque a particularidade da situao criada
por meio da transmisso consiste em sua ambigidade ontolgica; porque os acontecimentos
enviados so ao mesmo tempo presentes e ausentes, ao mesmo tempo so verdadeiros e
aparentes, ao mesmo tempo esto l e no esto l, em suma: porque so fantasmas.
12. Imagem e reproduo na TV so sincrnicas.
Sincronia a forma de atrofia da presena
Mas, continuar a voz, aquilo que vale para o ouvinte de rdio no vale
assim, sem mais, para a televiso. Que ela nos entrega imagens no se pode discutir.
No. Mas elas tampouco so imagens em seu sentido original. essncia da
imagem, ou seja, na histria das imagens feitas pelo ser humano at hoje, fundamentalmente
pertenceu que entre ela e objeto que ela reproduz houvesse, mesmo se no-expressamente,
uma diferena de tempo, um desnvel temporal. Em alemo, esse desnvel
pertinentemente expresso por meio da partcula nach73: ou se pinta uma imagem segundo
um modelo, ou um verdadeiro estabelecido segundo um modelo.