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O TRABALHISMO E O NACIONALISMO NAS TELAS DE JOÃO CARRIÇO. UMA BIOGRAFIA DO AMIGO DO POVORenata Venise Vargas Pereira Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) [email protected] O final do século XIX e começo do século XX, corresponde a um período de grandes transformações na história brasileira. É neste contexto que nasce, em 27 de julho de 1886, em Juiz de Fora, Minas Gerais, João Gonçalves Carriço, filho da descendente de austríacos, Maria Schelghorn Carriço, e do português Manoel Gonçalves Carriço. O trabalho pretende apontar os primeiros levantamentos biográficos, ainda em fase inicial, caracterizada por mais dúvidas que incertezas, acerca da vida múltipla de João Carriço. Ele ficou conhecido como cinejornalista, mas também era cartazista, cenógrafo, fotógrafo, exibidor, produtor cinematográfico e proprietário do Cine Theatro Popular e da produtora Carriço Film, responsável nos anos 1930, 40 e 50, pela produção de cinejornais e documentários. Ele chegou a montar de um a dois cinejornais por mês, contabilizando cerca de mil edições no período, transformando-se em um dos pioneiros do cinema em Minas Gerais e no Brasil, descentralizando os jornais veiculados nos pólos do Rio de Janeiro e de São Paulo - sua produção local circulava pelo País. Na juventude, Carriço fez exibições cinematográficas ao ar livre, em carros de boi. Em 1910, inaugurou o Cine Theatro Moderno, que teve as atividades encerradas em dois anos. Depois do fracasso, adequou o negócio da família, uma empresa de carruagens e funerária para mais uma atividade: o cinema. A inauguração do Cine Theatro Popular aconteceu em 14 de agosto de 1927. O Jornal do Commércio retratou o acontecimento: “O Cinema está dotado de todos os requisitos, bem disposto, oferecendo comodidade ao público. O sr. Carriço promete manter preços populares para as sessões” (MEDEIROS, 2008, p.52). O público era formado por trabalhadores, operários e crianças. O Popular conferiu ao operariado de Juiz de Fora o direito à diversão barata e foi visto por todos como um lugar democrático, um cinema do povo que atraía negros, brancos, pobres, intelectuais, descalços, bem vestidos (SIRIMARCO, 2005, p.140). As primeiras sessões foram improvisadas, com o público sentado até em caixões. Seu outro empreendimento, a Carriço Film, fundada nos anos 1930, produzia materiais que se inserem dentro do projeto trabalhista da Era Vargas, considerando que o

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O TRABALHISMO E O NACIONALISMO NAS TELAS DE JOÃO CARRIÇO.

UMA BIOGRAFIA DO “AMIGO DO POVO”

Renata Venise Vargas Pereira

Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)

[email protected]

O final do século XIX e começo do século XX, corresponde a um período de

grandes transformações na história brasileira. É neste contexto que nasce, em 27 de julho

de 1886, em Juiz de Fora, Minas Gerais, João Gonçalves Carriço, filho da descendente

de austríacos, Maria Schelghorn Carriço, e do português Manoel Gonçalves Carriço.

O trabalho pretende apontar os primeiros levantamentos biográficos, ainda em

fase inicial, caracterizada por mais dúvidas que incertezas, acerca da vida múltipla de

João Carriço. Ele ficou conhecido como cinejornalista, mas também era cartazista,

cenógrafo, fotógrafo, exibidor, produtor cinematográfico e proprietário do Cine Theatro

Popular e da produtora Carriço Film, responsável nos anos 1930, 40 e 50, pela produção

de cinejornais e documentários. Ele chegou a montar de um a dois cinejornais por mês,

contabilizando cerca de mil edições no período, transformando-se em um dos pioneiros

do cinema em Minas Gerais e no Brasil, descentralizando os jornais veiculados nos pólos

do Rio de Janeiro e de São Paulo - sua produção local circulava pelo País.

Na juventude, Carriço fez exibições cinematográficas ao ar livre, em carros de

boi. Em 1910, inaugurou o Cine Theatro Moderno, que teve as atividades encerradas em

dois anos. Depois do fracasso, adequou o negócio da família, uma empresa de carruagens

e funerária para mais uma atividade: o cinema. A inauguração do Cine Theatro Popular

aconteceu em 14 de agosto de 1927. O Jornal do Commércio retratou o acontecimento:

“O Cinema está dotado de todos os requisitos, bem disposto, oferecendo comodidade ao

público. O sr. Carriço promete manter preços populares para as sessões” (MEDEIROS,

2008, p.52). O público era formado por trabalhadores, operários e crianças. O Popular

conferiu ao operariado de Juiz de Fora o direito à diversão barata e foi visto por todos

como um lugar democrático, um cinema do povo que atraía negros, brancos, pobres,

intelectuais, descalços, bem vestidos (SIRIMARCO, 2005, p.140). As primeiras sessões

foram improvisadas, com o público sentado até em caixões.

Seu outro empreendimento, a Carriço Film, fundada nos anos 1930, produzia

materiais que se inserem dentro do projeto trabalhista da Era Vargas, considerando que o

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próprio cinejornalista guardava tais características. Carriço acreditava que o acesso

democrático à diversão a preços populares representava direito à cidadania.

Dois lemas são adotados por ele para representar o trabalho de difusão

cultural desenvolvido no Cine Theatro Popular: ‘filme que passa para

um, passa para cem’ e ’Cinema do povo para o povo’ (um dos marcos

do pensamento empregado na revolução francesa). Este último acaba derivando para ‘Popular – o amigo do povo’. Mesmo quem estava sem

dinheiro não deixava de ver os filmes na sala de Carriço (MEDEIROS,

2008, p.54).

O espaço também foi escolhido para diversas convenções do Partido Trabalhista

Brasileiro (PTB). O cinejornalista esteve presente nas campanhas getulistas, apoiou os

vereadores e deputados do PTB, seu filho, Manoel Carriço, fez cartazes da propaganda

política de Vargas e foi candidato a vereador em Juiz de Fora pela legenda, em 1950 -

não venceu, mas tornou-se suplente. A família Carriço, os operários, o trabalhismo e o

PTB alinhavaram uma relação que perdurou até depois de sua morte, em 1959. Um fato

que marcou as vésperas do golpe de 64 foi a vinda a Juiz de Fora do governador de

Pernambuco, Miguel Arraes, a convite do líder sindical Clodsmidt Riani (SIRIMARCO,

2005). O Popular sediou o comício, em 15 de março, mas teve as portas fechadas para

evitar tumulto. Os registros da época apontam que a população saiu às ruas em protesto.

Na ocasião, assumiram o microfone o estudante Paulo de Tarso (UNE), José de Alencar

Medeiros (Movimento Nacionalista), alguns deputados e sindicalistas, entre eles,

Clodsmidt Riani, líder do PTB em Juiz de Fora, o último a ocupar o cargo antes do golpe.

Coincidência ou não, dois anos depois, o Popular encerrou as atividades na cidade de

onde partiram as tropas lideradas pelo General Olímpio Mourão Filho, da Quarta Região

Militar, que deram início a movimentação que desencadeou no golpe.

A biografia e a História do mediador como ator na vida social, política e cultural

Tentar compreender a história de vida de Carriço é conformar-se e atentar-se com

o que Pierre Bourdier (2006) chama de “ilusão biográfica”. O material disponível para

pesquisa historiográfica é vasto, composto por cinejornais, fotos, relatos de familiares e

jornais, entre outros documentos, sendo indispensável abordar o contexto, o aparato social

em que age o indivíduo, numa pluralidade de campos, a todo instante. O cuidado é

considerar o sentido e o valor deste conjunto em um espaço simbólico. Dada a

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importância do campo em que o personagem atuou, é necessário perceber as relações que

o unem ao conjunto de outros agentes envolvidos no mesmo ambiente histórico, político,

social e cultural.

A riqueza de um perfil e seus elementos contraditórios constituem o que Levi

(2006) considera sua identidade, diferentes representações de acordo com seus pontos de

vista e as épocas. Para trabalhar a vida e a obra do cinejornalista João Carriço há que se

fazer a reconstituição do contexto histórico e social em que se desenrolam os

acontecimentos. Assim, estaremos mais próximos da compreensão de seu caráter

individual. “A biografia é hoje certamente considerada uma fonte para se conhecer a

História. A razão mais evidente para se ler uma biografia é saber como uma pessoa, mas

também sobre a época sobre a sociedade em que ela viveu” (BORGES, 2006, p.215).

Jean-François Sirinelli (2003) discorre acerca dos intelectuais, atores de suas

épocas, que até a segunda metade da década de 1970 não recebiam grandes abordagens

por parte dos historiadores. Em pouco tempo, tornou-se um campo histórico aberto,

situado no cruzamento das histórias política, social e cultural. O autor justifica que a falta

de encorajamento para um olhar quantitativo acerca dos intelectuais dizia respeito aos

contornos vagos do grupo social a que pertenciam e a pergunta insistente acerca do

problema: “teriam esses intelectuais, em uma determinada data, influído no

acontecimento?” (SIRINELLI, 2003, p. 235). Os efeitos do renascimento da história

política, somados à nova respeitabilidade da história recente nas últimas décadas,

recaíram sobre o estudo dos intelectuais. Na perspectiva do autor, quem seriam estes

intelectuais? Sua defesa é por uma geometria variável, baseada em invariantes.

Estas podem desembocar em duas acepções do intelectual, uma ampla e sociocultural, englobando os criadores e os “mediadores” culturais, a

outra mais estreita, baseada na noção de engajamento. No primeiro

caso, estão abrangidos tanto o jornalista como o escritor, o professor secundário como o erudito. Nos degraus que levam a esse primeiro

conjunto postam-se uma parte dos estudantes, criadores ou

“mediadores” em potencial, e ainda outras categorias de “receptores” da cultura (SIRINELLI, 2003, p. 242).

Uma segunda definição proposta seria mais estreita e com base na noção de

engajamento como ator na vida da cidade. Esta participação seria mais específica, como

a assinatura de manifestos, como testemunha ou consciência. Sirinelli referenda que esta

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acepção é autônoma da anterior, por se tratar de elementos de natureza sociocultural. O

ator pesquisado, teria “sua notoriedade eventual ou sua ‘especialização’, reconhecida pela

sociedade em que ele vive”, legitimando ou privilegiando sua intervenção no debate da

cidade “que o intelectual põe a serviço da causa que defende” (p.243). Acreditamos que

o personagem João Gonçalves Carriço apresenta-se como um intelectual de seu tempo,

com influências em seu entorno e ainda pouco estudado na historiografia brasileira.

Ao contar uma história de vida, como o que pretendemos fazer na tese de

doutoramento, devemos levar em consideração o ambiente em que Carriço viveu, suas

relações sociais, partindo do distanciamento típico das biografias. Para isso, deve-se

observar a circulação do ator intelectual entre os três níveis: posicionamento ideológico,

cultura política e “mentalidades coletivas”. Compreender esta circulação e fluidez pode

nos colocar um pouco mais próximos da história de vida do personagem que marcou o

cotidiano de uma cidade de porte médio como Juiz de Fora, ao registrar e exibir os

acontecimentos do dia-a-dia do município. Também será possível perceber sua influência

por todo o país, em função de sua produção cinematográfica, carregada de informações

materiais e simbólicas acerca de um tempo histórico, veiculada nos cinemas brasileiros.

Os cinejornais de Carriço: a legitimação e a intervenção no debate público da Era

Vargas

Neves (2017) reflete que cada tempo tem sua marca específica. Se focarmos na

história brasileira a partir dos anos 1930, percebemos a presença de uma marca especial:

a crença na transformação do tempo presente visando a construção de um futuro

alternativo ao que se via até então. Havia uma convergência de ações projetadas para esta

construção, “um forte sentido de esperança, caracterizado por uma marcante consciência

da capacidade de intervenção humana sobre a dinâmica da História, buscando-se

implementar um projeto de nação comprometido principalmente com o desenvolvimento

social” (NEVES, 2017, p.171).

Do ponto de vista dos trabalhadores, o Estado nos anos 1930 e 40 “tornou-se

produtor de bens materiais e simbólicos, a fim de obter deles a aceitação e o

consentimento do regime político” (FERREIRA, 1997, p.22). Patrocinou políticas

públicas voltadas para os operários, baseadas em uma legislação social e trabalhista, na

valorização do trabalhador elevando-o à condição de cidadão. A postura inaugurou novas

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relações entre a classe trabalhadora e o Estado, que desenvolveu a autoimagem de Getúlio

Vargas1 produzindo sentido nos trabalhadores que passaram a identificá-lo como

“guardião de seus interesses materiais e simbólicos” (FERREIRA, 1997, p.22).

Para Ferreira, a tessitura desses fundamentos político-ideológicos fica evidente

quando lança-se um olhar sobre os discursos, a propaganda do Estado, a produção dos

intelectuais, literária, radiofônica e cinematográfica da época. O governo Vargas seria a

síntese da justiça para pobres e trabalhadores. Gomes (2005) critica as teses que creditam

que o sucesso do trabalhismo2 teria motivações nas origens rurais dos operários, nas

dificuldades de integração nas fábricas e a renovação constante dos trabalhadores, além

de características peculiares do setor industrial brasileiro. Nos anos 30 e 40, o Estado e

os trabalhadores teriam estabelecido um pacto simbólico. De um lado, Vargas e sua

legislação trabalhista e, do outro, os cidadãos. A combinação estaria presente no discurso,

nas mensagens fundamentadas na ideologia trabalhista, nas crenças, valores e a

autoimagem construída pelos trabalhadores na República (GOMES, 2005). Como

resultado, a percepção que trabalhadores e populares tinham do governo Vargas de serem

tratados como seres humanos, reconhecidos politicamente e valorizados no âmbito social.

A propaganda elaborada sobre o personagem carismático Vargas foi, para Ferreira

(1997) exitosa.

1 Getúlio Vargas assumiu o Governo Provisório (1930-34) construído a partir de um golpe político-militar.

Ferreira (1997) argumenta que o governo era carente de legitimidade, por isso, o regime teria disseminado

por toda a sociedade uma produção de cunho político e cultural que afirmava a necessidade histórica do

novo governo. Para isso, Vargas deu início à estruturação do novo Estado brasileiro, com a nomeação de interventores para os governos estaduais, a criação do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio e a

promulgação das primeiras leis trabalhistas. 2 Sobre Trabalhismo e Populismo. Para Jorge Ferreira (2017), o populismo pode ser considerado uma

categoria explicativa acerca da política brasileira entre 1930 e 1964. A expressão surgiu como uma tentativa

de compreender as relações entre Estado e sociedade, no momento de transição dessa sociedade para a

moderna, marcada pelo deslocamento da população do campo para a cidade e a constituição de um novo

cenário urbano-industrial em substituição ao mundo agrário. A categoria populismo, ainda inserida em

livros didáticos, discorre acerca do populismo como postura manipuladora, repressiva e detentor de ações

demagógicas. Para o autor, “as relações entre Estado e sociedade não eram de mão única, de cima para

baixo, mas, sim, de interlocução, de cumplicidade” (FERREIRA, 2017, p.95). Por isso, Ferreira

compreende o fenômeno histórico como trabalhismo. “No trabalhismo, estavam presentes idéias, crenças,

valores e códigos comportamentais que circulavam entre os próprios trabalhadores muito antes de 1930. Compreendido como um conjunto de experiências políticas, econômicas, sociais, ideológicas e culturais, o

trabalhismo expressou uma consciência de classe, legítima porque histórica” (p.103).

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Jornais, panfletos, biografias (para alunos e crianças), livros,

cinejornais, entre outros veículos, criaram conceitos como “construtor

do Brasil novo”, “líder que prevê o futuro”, e outros. Sistematicamente comparado aos grandes vultos da história, dos títulos que recebeu os

mais usuais foram os de “Guia da Juventude Brasileira”, “Grande Pai”,

“Reformador”, “Pacifista”, “Pai dos Pobres” e “Apóstolo Nacional”

(p.47).

Nos anos 1950, o país registrou o surgimento de uma geração que partilhava de

ideias, crenças e representações (FERREIRA, 1999). Esses homens e mulheres

acreditavam no nacionalismo e na defesa da soberania nacional. Para eles, as reformas

das estruturas sócio-econômicas, a ampliação dos direitos dos trabalhadores do campo e

da cidade, ao lado das demandas materiais e simbólicas, seriam os meios para atingir e

contemplar o desenvolvimento do país e do bem-estar da sociedade.

Lucília de Almeida Neves (2017) discorre que expressivos segmentos da

sociedade acreditavam que a modernidade só seria alcançada se estivesse apoiada em um

programa de governo sustentado pela industrialização, pelas políticas sociais distributivas

e pela defesa do patrimônio econômico e cultural do país. Ela acrescenta que estes

segmentos sociais foram contagiados pela proposta de modernização desenvolvimentista.

As manifestações coletivas da cidadania tornaram-se frequentes e conformaram este

tempo em que o imaginário social recebeu incentivo de um projeto trabalhista que se

insinuara antes dos anos 30 e se consolidou com a criação do Partido Trabalhista

Brasileiro (PTB), em 1945. Neves acrescenta que o trabalhismo tinha a figura paternalista

getulista como sua semente e virou sua marca registrada desde os primeiros tempos,

marca que se relacionava diretamente às reformas sociais, nacionalistas e

desenvolvimentistas, e também “constituiu-se em uma doutrina caracterizada por

apresentar um projeto de cidadania bastante específico, no qual se mesclaram elementos

da social-democracia e do assistencialismo estatal” (NEVES, 2017, p.172).

Para que este projeto fosse exitoso, seria necessário cultivar o carisma de Getúlio

Vargas como instrumento de mobilização política e social. A tessitura desta autoimagem

foi, para Ferreira (1997), uma construção que levou os trabalhadores a identificarem o

Estado como o guardião de seus interesses materiais e simbólicos. João Carriço está

inserido neste contexto, sendo um importante ator do jogo político e cultural neste

segmento, produzindo as referências simbólicas a partir da cidade de Juiz de Fora, interior

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de Minas3. Sua produtora, a Carriço Film, registrou a gênese e a ascensão do trabalhismo

nos limites de uma cidade de porte médio, mas os cinejornais adquiriram contornos

nacionais com apreensão de sentido ao circularem por todo o país, contribuindo, através

da sua produção, para o fortalecimento do trabalhismo de Getúlio Vargas.

De acordo com os arquivos digitalizados do CPDOC4, no Governo Provisório de

Vargas, foram dados os primeiros passos em direção à organização da propaganda política

no plano nacional. A criação do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) foi

precedida por outros três órgãos, que trabalharam na divulgação das iniciativas

governamentais: o Departamento Oficial de Publicidade (DOP), vinculado ao Ministério

da Justiça e Negócios Interiores, o Departamento de Propaganda e Difusão Cultural

(DPDC), e o Departamento Nacional de Propaganda (DNP), que se sucederam a partir de

1931.

Em 1932, Vargas regulamentou a produção cinematográfica, como compensação

aos favores fiscais solicitados pelo setor e concedidos pelo governo, tais como redução

dos direitos de importação dos filmes e facilidade para importação da matéria-prima para

a produção. Em contrapartida, a indústria e o comércio cinematográfico deveriam

incrementar o aspecto cultural das produções. O decreto considerou que o filme

documentário, de caráter científico, histórico, artístico, literário e industrial, representava

um instrumento para instrução do público e propaganda do país, baseando-se no fato de

que os filmes têm especial atuação sobre grandes massas populares, composta, inclusive,

por analfabetos. Vargas instituiu a censura, cujo controle seria por meio do Ministério da

Educação e Saúde Pública, responsável pela emissão do certificado contendo a

3 A crescente industrialização, modernização e urbanização de Juiz de Fora neste recorte temporal vai ao

encontro do processo histórico pelo qual o Brasil passava. Os empreendimentos de João Carriço se

entrelaçam com a história da cidade e seus registros são uma influência política na época. O município se

destacava no setor industrial. Em 1889, Juiz de Fora viveu a experiência da iluminação pública, por meio

da Primeira Usina Hidrelétrica da América Latina (OLIVEIRA, 1987, p.83-85), que proporcionou a expansão industrial na cidade alcançando posição de destaque no cenário nacional. Juiz de Fora no início

do século XX atraía a população rural do entorno e, em 1915, contava com 70 fábricas e 2.860 operários,

configurando-se em uma cidade operária. Nos anos de 1920, era o maior centro industrial de Minas com

concentração no setor têxtil, ficando conhecida como Manchester Mineira (MEDEIROS, 2008). A cidade

tinha perfil operário e sindical. Os movimentos sociais iam ao encontro do projeto trabalhista de Vargas e

as ações políticas do PTB (FERREIRA, 2017). Talvez estes tenham sido os elementos que promoveram a

aproximação da produção de Carriço com o projeto nacionalista getulista. 4 Disponível em: https://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/AEraVargas1/anos37-

45/EducacaoCulturaPropaganda/DIP Acesso em 06/08/2019.

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autorização para veiculação, emitida após a projeção do material perante a comissão de

censura e pagamento da “Taxa Cinematográfica para a educação popular”.

Em 1934, visando a sistematização e a organização da veiculação da propaganda

oficial, abrangendo outros veículos de comunicação, foi criado o Departamento de

Propaganda e Difusão Cultural (DPDC). Aos poucos, as atualidades passaram a ser

utilizadas como propaganda política. Durante o Estado Novo, o presidente Vargas

expandiu a máquina de propaganda com o controle das informações. O período foi

marcado pela produção de filmes para difundir sua imagem carismática, “caracterizando-

o como onipresente e onisciente, mas também simples e acessível” (SIMIS, 1996, p.46).

Os cinejornais de João Carriço, conforme o assunto abordado, eram reproduzidos em até

15 cópias, com distribuição nacional, através da Distribuidora de Filmes Brasileiros

(DFB) e, mais tarde, pela UCB. Carriço também possuía o registro profissional da Divisão

de Cinema e Teatro do Departamento de Imprensa e Propaganda, como produtor

cinematográfico (SIRIMARCO, 2005).

No Catálogo da Cinemateca Brasileira, de São Paulo, publicada em 2001, consta

o registro de 236 cinejornais do juiz-forano. Parte da produção de Carriço, que acredita-

se ter chegado a mil cinejornais, foi perdida ao longo dos anos ou destruída em incêndios

na Cinemateca. Nesta fase inicial da pesquisa, a primeira ação foi categorizar os

conteúdos filmados. Foram analisados os materiais disponibilizados no Catálogo e os

assuntos listados, um a um. Sabemos que os cinejornais guardam informações materiais

simbólicas e são a principal fonte da biografia do personagem.

O levantamento apontou que cada cinejornal contém de um a 13 assuntos

abordados, somando um total de 675 conteúdos. Entre os temas mais abordados, a

categoria Juiz de Fora protagoniza os materiais, presente em 207, do total de 675

conteúdos. Carriço retratou a cidade por meio das obras urbanas, como inauguração de

serviços públicos, pedras fundamentais, abertura de lojas, construção de edifícios,

imagens de progresso e expansão do município - uma abordagem convergente com o

contexto econômico e social do país, um Brasil em constante progresso, que deixava o

ambiente rural para trás para investir no cenário urbano, corroborando com a tônica do

discurso nacionalista vigente. As festas populares, desfiles nas ruas, bailes, aniversário da

cidade, homenagens a figuras públicas, o cotidiano da cidade também foram registros do

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cinejornalista. A população sempre ganhou destaque nas telas, principalmente, porque

atraía a atenção dos cidadãos a presença de uma câmera em uma época em que não existia

outra opção audiovisual, como a televisão. O povo era filmado e depois comparecia ao

Cine Popular para assistir à própria imagem, contribuindo para o sentimento de conquista

do público formado pelo cinejornalista.

Temas como política (82 materiais), Forças Armadas (58), esporte (51), religião

(40), trabalhadores (38), outras cidades (27), carnaval (26), Cine Popular/Carriço

Film/Família Carriço (25), desfiles militares (23), Getúlio Vargas (22), ensino (21), arte

e cultura (19), municípios vizinhos na Zona da Mata Mineira e região das Vertentes (18)

e Prefeitura de Juiz de Fora (18) figuram entre outras categorias listadas neste

levantamento preliminar, num total de 15 categorias5.

O ex-presidente Getúlio Vargas aparece em 22 materiais, de 1934 a 1951. É

possível que ele figure em outras produções que não existem mais. Seu personalismo é

um dos destaques dos cinejornais, que entre as místicas getulistas, reforçaram e

reproduziram os elementos que seriam fundamentais para a consolidação da base

trabalhista que culminou com a criação do PTB, em 1945. Era importante estabelecer uma

rede de sustentação para implementação do projeto nacionalista. Em Juiz de Fora, Vargas

mantinha contato com as oligarquias mineiras, em especial, com a família Tostes,

proprietária da Fazenda São Matheus, uma das maiores produtoras de café de Minas

Gerais. A propriedade hospedou Vargas por várias vezes e virou sede do governo em suas

visitas. Delgado (1989, p.34) reforça que Vargas já tinha “um pé no PSD”, o Partido

Social Democrático. Por isso, era importante para o líder trabalhista outra fonte de

sustentação política e social, além das oligarquias. Esse novo sustentáculo seria a classe

operária que vinha adquirindo crescente importância social e econômica, em função do

processo de industrialização das cidades. Juiz de Fora era um desses municípios.

Delgado comenta que, para Vargas, a mentalidade dos trabalhadores era

incompatível à dos políticos do passado. Como precisava se fortalecer politicamente,

buscou sustentação nas camadas populares urbanas. A estratégia mostrou seu poder de

articulação junto aos grupos políticos oligárquicos e aos oposicionistas da casse média.

5 A análise dos cinejornais gerou uma listagem de categorias – temas mais presentes na produção

audiovisual de João Gonçalves Carriço. O processo foi criado e elaborado pela autora do presente trabalho

e revela apenas os passos iniciais da biografia do cinejornalista juiz-forano.

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Além disso, a divulgação pragmática de sua obra trabalhista e seu programa nacionalista,

que ocorreu em diversas frentes, incluindo a propaganda por meio dos cinejornais

reforçaram sua imagem junto às camadas populares.

Maria Celina Soares d’Araújo (1996) corrobora com Delgado (1989) ao avaliar

que o projeto que culminaria na criação do PTB necessitava de mudanças estruturais. O

partido se tornou a primeira legenda de massas do país e o principal fórum de debate do

ideário nacionalista e das reformas de base. Foi em torno do partido e da figura de Vargas,

que o imaginário popular foi construído, assim como a nacionalidade brasileira. Para

promover a penetração territorial do PTB, foi necessária a criação de estruturas partidárias

locais. Outros fatores que podem ter influenciado a gênese do partido foi a aproximação

com as instituições de apoio, como igreja, órgãos econômicos e grupos políticos

regionais. Ao analisar as categorias presentes nos cinejornais de Carriço, identificamos

as presenças constantes nos filmes de instituições como a Igreja e as Forças Armadas

contribuições simbólicas capazes de promover lealdade dos ativistas e eleitores.

Ferreira (1997) avalia que os fundamentos deste projeto político-ideológico

podem ser analisados por meio da produção dos intelectuais, os discursos e a propaganda

política, literária, radiofônica e cinematográfica da época. Os cinejornais de Carriço

tornam-se um registro das ideias e representações sociais da época e a abordagem das

categorias levantadas pode nos levar a indagar a maneira pela qual os espectadores e os

indivíduos comuns organizaram a realidade social em suas mentes, a partir destas

produções.

O carnaval é um dos temas recorrentes nas telas de Carriço. Esta categoria foi

escolhida para ser analisada neste trabalho por revelar a importância das manifestações

populares como parte do projeto nacionalista de Vargas. A intenção política da época era

valorizar a cultura nacional e as raízes brasileiras. O carnaval ocupou as telas dos

cinejornais de Carriço de 1934 a 1954. Por 20 anos, entre os materiais intactos

preservados do cinejornalista, a categoria ganha 26 produções. Só em 1935, o tema foi

abordado por cinco vezes.

Em 1951, o material intitulado “O Carnaval em Juiz de Fóra” (sic) tem duração

de seis minutos e 38 segundos, com produção e direção de João Gonçalves Carriço, a

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narração de Waldemar Galvão6 e as imagens dos cinegrafistas Carriço Filho e Carlos

Alberto. O cinejornal só aborda as festas, não dividindo espaço com outros temas,

tamanha a importância do evento no contexto da época. A exibição começa com os selos

da U.C.B. e da Carriço Film. No material, a produtora mostra a homenagem das escolas

de samba aos políticos brasileiros, entre eles, o presidente Getúlio Vargas, e o governador

de Minas, Juscelino Kubitschek, além do prefeito da cidade, Olavo Costa. Também

mostra um dos salões de Juiz de Fora ornamentado com pinturas de Manoel Carriço,

conhecido artisticamente como Carriço Filho, o mesmo que se candidatara no ano anterior

a vereador pelo PTB, ficando com a vaga de suplente.

O cinejornal começa com a narração informando que Juiz de Fora tinha vivido

mais um animado carnaval e que o carnaval da Manchester Mineira era o mais alegre e

espirituoso de todo o estado montanhês. “De fato, em todo o estado de Minas não se faz

um carnaval tão animado quanto o de Juiz de Fora. Quer nos clubes, onde se diverte a

sociedade, como nas ruas onde o fogo se confunde ao som das músicas carnavalescas, o

tríduo de Momo foi bem vivido pelos juiz-foranos”. O texto narrado pela voz marcante

do radialista Waldemar Galvão traz informações simbólicas da importância de Juiz de

Fora, o apelido que a cidade ganhou em função de sua posição industrial e a sensação de

que a harmonia se encontra nas ruas da cidade - um município “feliz” que prospera com

seus empreendimentos e agrega um povo alegre e satisfeito. A utilização da conhecida

voz de Waldemar Galvão também reforça o “status” que o material adquire. A Rádio

Nacional7 era a “queridinha” do país na época de ouro do rádio e conquistou a população

6 Waldemar Galvão dividia sua atividade profissional entre o rádio e o cinema. Era radioator e locutor de

vários programas da Rádio Nacional, como “Obrigado, Doutor!”, “Tancredo e Trancado”, “Gente que

brilha”, “Noite de Estrêlas”, “Nossa família”, “Canta, Brasil” e outros. No cinema era narrador de

cinejornais como os de Carriço, “Notícias da Semana”, de “Atualidades Atlântica” e “Jornal da Tela”. O

jornal “A Noite”, edição 15803, de 23 de dezembro de 1957, 2º Caderno, página 5, traz a informação de

que ele foi eleito o melhor locutor do rádio carioca em 1957. A comissão, composta por cronistas

radiofônicos e publicitários, foi formada para apontar os maiores artistas do rádio carioca daquele ano.

Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/Hotpage/HotpageBN.aspx?bib=348970_05&pagfis=3242&url=http://me

moria.bn.br/docreader# Acesso em 8/09/2019. 7A Rádio Nacional foi inaugurada em setembro de 1936, pertencente à empresa A Noite, que editava os

jornais A manhã e A noite, além de revistas Carioca e Vamos ler. Em março de 1940, foi encampada ao

patrimônio da União, assim como todo o grupo A Noite, pelo presidente Getúlio Vargas (FERRARETO,

2000). O Decreto-Lei nº 2.073 informava que a incorporação teve como principais alegações as dívidas da

companhia junto ao Patrimônio Nacional. As empresas foram consideradas, segundo o decreto, relevantes

para a utilidade pública e para o interesse do país. Disponível em:

http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-tematico/radio-nacional Acesso em 08/09/2019.

Page 12: O TRABALHISMO E O NACIONALISMO NAS TELAS DE JOÃO …

com a programação formada por programas de auditório, apresentação de artistas ao vivo,

radionovelas, esporte e informação. Utilizar uma narração conhecida seria uma estratégia

para tornar o conteúdo intimista ao espectador.

As imagens do cinejornal mostram pessoas nas ruas fantasiadas: homens,

mulheres de todas as idades e crianças. Há grupos que se vestem com as mesmas roupas,

dando a sensação de que são parte de um bloco ou uma combinação entre amigos. Os

rapazes também não se importaram de usar roupas femininas. Muitos adotaram a

transformação no carnaval de 1951. O material também ressaltou um ponto central do

município que ainda é considerado o coração da cidade, o cruzamento da rua Halfeld com

a avenida Rio Branco, citado na narração como o reduto dos foliões.

A câmera testemunha a festa e faz sucesso entre os carnavalescos de rua. Muitos

deles passam na frente do equipamento, pulam e fazem “graça” para a câmera. O riso é

constante no rosto dos populares que circulam até mesmo entre os carros. Não há registros

de bebidas alcóolicas nas cenas de rua. Apenas em alguns momentos verifica-se a

presença dos famosos lança perfumes da época. O material é embalado por marchinhas

de carnaval, canções presentes na programação do rádio brasileiro.

As crianças também receberam atenção nas lentes da Carriço Film, que fez a

cobertura da matinê, no Cine Theatro Central e no Círculo Militar. No roteiro de Carriço,

o texto reforça: “Pelo jeito, o carnaval do futuro em Juiz de Fora será mais sensacional

ainda”. A área em frente ao Central estava lotada de gente dançando no meio da rua. Não

havia apenas crianças. Muitos adultos festejavam durante o dia, se divertiam com suas

fantasias e até sem elas e pulavam na frente das câmeras. No ambiente interno, uma banda

animava a festa infantil e as crianças dançavam em frente às câmeras com seus figurinos

de carnaval. Os adultos também estavam presentes no baile, sempre animados

À noite, a cobertura ficou por conta dos clubes da cidade. No Círculo Militar,

pessoas dançavam no salão, outras permaneceram sentadas à mesa, mas todos rindo e

cobertos por confetes jogados entre os foliões. A narrativa reforça o que era visto na tela:

“Os marmanjos divertiam-se à sua moda. Dando expansão à alegria que sua majestade o

Rei Momo permite”. Pela primeira vez, apareceu bebida em cena e também um microfone

– nesta época, era comum a cobertura radiofônica das festas de carnaval da cidade. A

Page 13: O TRABALHISMO E O NACIONALISMO NAS TELAS DE JOÃO …

câmera era um ícone que chamava atenção das pessoas nas imagens e todos queriam

circular diante dela.

As bandas eram as responsáveis pela música nos bailes. Os músicos estavam no

palco ou no meio do povo com a mesma alegria contagiante dos foliões. “Na boate do

Palace Hotel, ornamentada por Carriço Filho, divertiram-se figuras de destaque da

sociedade juiz-forana. O carnaval interno teve mais brilho este ano na Manchester

Mineira”, reforçou a narrativa enquanto as pinturas apareciam na tela, em meio à

diversão. Apesar da festa ser em Juiz de Fora, a ornamentação trouxe pinturas com

referência à capital federal, Rio de Janeiro. Entre rostos e poses de homens e mulheres,

Carriço Filho pintou nas paredes a Baía de Guanabara, imagens icônicas da beleza

nacional formada pelas praias e vegetação brasileiras. Outra pintura de destaque é de uma

mulher em pose sensual, de biquíni, em uma praia do Rio. O relevo, ao fundo, revelou

que o cenário era o litoral carioca em função da referência imagética do Pão de Açúcar.

As mulheres eram as principais inspirações para a pintura. Em outra cena, uma mulher

passeava de barco pela Baía de Guanabara. Os traços revelam sensualidade e assim como

a anterior, a modelo está com uma máscara de carnaval.

O destaque de Juiz de Fora no setor industrial ganhou reforço informacional no

texto do cinejornal: “Cada vez ganha mais destaque no estado montanhês o carnaval da

sua importante cidade industrial. Na boate do Palace, brincaram vários foliões de outras

cidades”. As imagens das pinturas de Carriço Filho vão e voltam na sequência e o detalhe

é que há muitos registros do Rio de Janeiro assim como as mulheres, sempre chamativas

e sensuais. Suas imagens com roupas de banho, na praia, se repetem. O registro também

chamou atenção sobre a leveza que se deve buscar nos dias de carnaval. “Nada de contas

correntes, descontos, cheques e redescontos. Somente sambas, marchas e muita alegria”.

A imagem que ilustrou esta narração foi a de um homem vestido de Carmem Miranda,

com a ornamentação do salão ao fundo. Ele dançou e cantou para a câmera enquanto o

público acompanhou o movimento. Outras pessoas passaram diante do cinegrafista e

jogaram beijos para a lente. Enquanto as mulheres ganharam protagonismo nas paredes,

no salão, houve um equilíbrio entre homens e mulheres que dividiram o espaço com

alegria e muita dança. Outro grupo musical apareceu com os rostos pintados de palhaço.

Page 14: O TRABALHISMO E O NACIONALISMO NAS TELAS DE JOÃO …

Uma criança vestida de odalisca protagonizou a cena diante da câmera. Ela não sorriu,

mas dançou. Um grupo permaneceu à sua volta assistindo.

O próximo ponto da cobertura do noticiário foi o desfile das escolas de samba

pelas ruas de Juiz de Fora. A Feliz Lembrança, uma das mais tradicionais da cidade, abriu

a festa com uma homenagem ao presidente Getúlio Vargas, que teve seu rosto estampado

em um dos estandartes empunhados por um carnavalesco. O texto assinalou que a escola

promoveu um grande espetáculo de carnaval. Um dos carros alegóricos trouxe nova

homenagem a Vargas: uma esfinge do líder trabalhista, ao lado de fotos do prefeito de

Juiz de Fora, Olavo Costa, e do governador de Minas, Juscelino Kubitschek.

Outras escolas também ganharam destaque nas imagens da Carriço Film, a Castelo

de Ouro, com “suas evoluções extraordinárias” e os homens fantasiados de malandro,

“evoluções impecáveis e ritmo contagiante”. A marchinha de carnaval era Lili, de

Haroldo Lobo: “No mundo hei de amar alguém. Podes crer. Viver sem teu amor, Lili, não

pode ser. O que será de mim se o nosso amor morrer? Lili, se o nosso amor morrer”.

Os Granfinos do samba foram referenciados no cinejornal pelo “belo guarda-

roupa apresentado pelos jovens foliões grã-finos”. A locução ressaltou que eram “ricas

fantasias, ricos coloridos, ricas melodias. Coisas de grã-finos, amigos”. A Turunas do

Riachuelo mereceu destaque no texto pelo duelo com a Feliz Lembrança, ambas, segundo

o cinejornal, as mais antigas de Juiz de Fora e com referenciada torcida. “Aí vão os

Turunas arrancando aplausos dos seus adeptos competindo no desfile em que seus rivais

também fizeram sucesso. A minha opinião aqui não vale nada com respeito qual é o

melhor, pois eu não sou daqui e nem de Niterói”. O cinejornal terminou com as imagens

do mestre sala e da porta-bandeira do Turunas, os carnavalescos dançando e homens e

mulheres de Carmem Miranda. A última imagem na tela é o selo da Carriço Film.

Considerações finais

O presente trabalho é uma demonstração inicial da pesquisa biográfica do

personagem, mediador intelectual e ator social juiz-forano João Carriço. Os cinejornais,

fonte preciosa dos registros históricos, se perderam ao longo das décadas e parte dos

materiais permanece disponível para estudo. Mesmo diante das limitações, estamos certos

de que o acervo é vasto em elementos materiais e simbólicos que vão permitir

compreender o passado por meio das construções imagéticas de Carriço. Entre as fontes,

Page 15: O TRABALHISMO E O NACIONALISMO NAS TELAS DE JOÃO …

ainda há fotos de Carriço feitas durante a produção dos cinejornais, as histórias de quem

frequentou o Cine Popular, depoimentos da família e pessoas que trabalharam com o

personagem, além de jornais que referendam a vida do cinejornalista.

O levantamento dos cinejornais e a criação de categorias já nos revelam traços do

carisma pessoal de Vargas impresso nos materiais. O tema Getúlio Vargas é presente,

assim como outros conteúdos que circundam o discurso nacionalista, acoplado ao

desenvolvimento, com grande apelo popular e de enorme eficácia junto aos trabalhadores.

Estas mensagens podem ser vistas por meio dos flagrantes do cotidiano de uma cidade de

porte médio do interior de Minas Gerais, suas relações políticas e a abordagem de temas

relativos às forças armadas, à igreja católica, à expansão urbana, às festas populares e os

desfiles de rua. Acredita-se que Juiz de Fora pode ser considerada a síntese do modelo de

urbanização ao qual o projeto varguista almejava: um município em desenvolvimento,

industrializado e com forte inspiração operária. As manifestações sociais, culturais e

esportivas contemplavam o anseio da população por reconhecimento e valorização.

Os cinejornais eram produzidos e exibidos dando ênfase à importância dos laços

pessoais entre os cidadãos e o líder carismático Vargas. Sua conexão com Juiz de Fora

indica que a cidade fazia parte do projeto de expansão de sua base de apoio nos estados e

municípios brasileiros. O esforço em direção ao crescimento levou consigo sua

mensagem social trabalhista, responsável pelo apelo emocional junto aos trabalhadores e,

no caso de Juiz de Fora, ainda contou com o “adicional” relativo à propaganda feita por

meio dos cinejornais. Este recurso ajudava a mobilizar e buscava a legitimação do

governante junto ao povo brasileiro que ansiava por um país que caminhasse rumo à

modernização, ao desenvolvimento com distribuição igualitária de oportunidades e

empregos. Neste aspecto, João Carriço e sua produtora, a Carriço Film, surgem como

parceiros em um projeto que alcançou todo o território nacional.

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