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Caminhos de Curaçá Esmeraldo Lopes CAMINHOS DE CURAÇÁ Esmeraldo Lopes

Obra de um sociólogo Curaçaense

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Livro de Esmeraldo Lopes sobre o surgimento do município de Curaçá na Bahia.

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Caminhos de Curaçá Esmeraldo Lopes

CAMINHOSDE CURAÇÁ

Esmeraldo Lopes

Caminhos de Curaçá Esmeraldo Lopes

CAMINHOS DE CURAÇÁ

ESMERALDO LOPES

Caminhos de Curaçá Esmeraldo Lopes

GRÁFICA FRANCISCANAPetrolina

2000

Capa: José Alberto Lopes Goçalves

Projeto gráfico: Júlio Zinga Suzuki Lopes

Revisão: Marcelino Ribeiro e Elisabet Moreira.

Catalogação: Gerluce Guimarães Lustosa.

Caminhos de Curaçá Esmeraldo Lopes

Lopes, Esmeraldo. 1954 - Caminhos de Curaçá / Esmeraldo Lopes. Curaçá: Gráfica Franciscana, 2000

...p. 260.

1. Curaçá - história I. Título

CDD 981.42

TODOS OS DIREIROS RESERVADOS – É proibida a reprodução total ou parcial de qualquer forma ou por qualquer meio para fins comerciais ou uso público sem a autorização, por escrito, do autor.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço a todas as pessoas que, direta ou indiretamente, contribuíram para a realização desse trabalho, especialmente aos motoristas da Prefeitura Municipal de Curaçá, Ba, Augusto Gonçalves da Silva, que me conduziu pelos caminhos sem limite de hora e prestou informações preciosas, Jaime (Jailson Conceição dos Santos), Edmilson Dantas; à prefeitura daquele Município, na pessoa do prefeito Salvador Lopes; a Maita (Maria Rita do Amaral Assy) que realizou críticas aos primeiros textos, o que permitiu o redirecionamento do trabalho; a Babá (Omar Dias Torres), que leu e fez sugestões; a Júlio Zinga Suzuki Lopes, que prestou assessoria eletrônica; à professora Ivete Aparecida da Silva, que fez reparos gramaticais nos primeiros textos, a Marcelino Ribeiro e à professora Elisabet Moreira, que efetuaram a revisão; a meu pai, Luizinho, e à memória de minha mãe, Anita, que embalaram minha imaginação nos contados dos contos às noites ao aberto do céu no terreiro; aos meus filhos Amaranto e Bruno, por terem tolerado minhas ausências e me acompanhado em parte da trajetória desse trabalho, e a todos aqueles que nos ofereceram informações, citados nas notas do rodapé.

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DEDICATÓRIA

Esta obra é dedicada ao povo de Curaçá.

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SUMÁRIO

Dedicatória .............................................................................................................

Agradecimentos ................................................................................................... Apresentação ........................................................................................................

Prefácio..................................................................................................................

Sede

Curaçá .................................................................................................................

Distritos

Barro Vermelho .................................................................................................

Patamuté ...........................................................................................................

Poço de Fora .....................................................................................................

Riacho Seco ......................................................................................................

Povoados

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Pedra Branca ......................................................................................................

Mundo Novo .....................................................................................................

São Bento .....................................................................................................

Jatobá .....................................................................................................

Agrovilas .....................................................................................................

Outros escritos

As Eras ................................................................................................................

Índios ...................................................................................................................

Vaqueiros .............................................................................................................

Gruta de Patamuté ...............................................................................................

Vozes do Povo ....................................................................................................

São Gonçalo ........................................................................................................

Apêndice

Pambu ................................................................................................................

Mapas ...............................................................................................................

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APRESENTAÇÃO

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Como viver em um mundo, em um espaço cuja origem e contexto se desconhece? Esse tipo de preocupação sempre perturba aqueles que buscam conhecer suas origens, se situar no tempo, no espaço que ocupam. Mas ela se acentua na medida em que mudanças e novas formas de ser e viver, vão sepultando velhas práticas, costumes, histórias. E, de repente, toda a nossa história passa a jazer nos cemitérios. Nos cemitérios silenciosos que também vão sendo sepultados pelo tempo. E, quando um cemitério ou sepultura é sepultado pelo tempo, toda história se resume a uma frase: “É coisa do outro século. A gente não sabe”. E esse não saber nos distancia de nós. É o nascimento de um mundo erguido sobre outro que, com o correr do tempo, cada vez mais se desconhece.

Foi buscando esse desconhecido que procurei gravar em papel parte daquilo que estava e está sendo sepultado cada vez que um caixão desce à sepultura. Foi essa a preocupação que me conduziu a um esforço de conversar com os mortos, de desenterrar sepulturas, ao rastrear escassos papéis, os passos dos mortos através dos vivos que, de alguma forma, ainda os mantinham vivos em suas memórias. Mas, também segui passos dos vivos, que falaram sobre os tempos que já morreram, sobre os tempos em que vivem e sobre os tempos que virão. A matéria-prima: os velhos. Eles que são os principais depositários de nossa história.

Esse trabalho não foi iniciado por si mesmo. Preocupado com o vazio

que desune o passado do presente, elaborei uma proposta de criação de um museu, o Museu Zoo-Parque de Curaçá, e a entreguei ao Prefeito. Este, ao lê-la, queixou-se do fato de não possuir sequer registro fotográfico do distrito sede, das sedes dos demais distritos e povoados. Ansioso por conhecer o município, me propus a tal empreendimento e, logo na primeira viagem, percebi que era muito pouco efetuar apenas registro fotográfico. Sugeri, então, um trabalho mais amplo que compreendesse registro escrito sobre a memória de cada distrito e povoado.

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Com a concordância do Prefeito, iniciei o trabalho, desenvolvendo-o sempre nos finais de semana. Ponto zero: junho de 1998 e término em novembro de 1999. Evidentemente um trabalho agoniado pela escassez de tempo, uma vez que o desenvolvi nos finais de semana e nos meus raros horários vagos do correr da semana. Além da dificuldade de tempo e de algumas condições, nem sempre havia carro disponível - a área do município é imensa, o que prejudicava a velocidade de seu andamento, e também a dificuldade de obtenção de informações a respeito da origem de cada localidade. Em alguns casos foi mais fácil, mas em outros muita coisa já está bastante aprofundada nas distâncias do tempo, espatifadas pelo vento dos idos. Evidentemente que muitos detalhes não foram colhidos e nem era minha pretensão efetivar um trabalho definitivo, vez que este tipo de coisa não existe. Como era de se esperar, muita coisa, a maioria até, continua nos subterrâneos das memórias. Memórias que estão cada vez mais se debilitando e desaparecendo. De qualquer sorte o objetivo foi atingido, o de se produzir um material que viesse a possibilitar o conhecimento do município por parte de sua população, o que, acreditamos, contribui para integrá-la; de estruturar um acervo fotográfico; de proporcionar material para utilização em sala de aula; de contribuir para que visitantes e população chegante possa mais facilmente compreender a gente que aqui vive e viveu. Acredito também que, a partir desse trabalho, outros virão de forma até mais consistentes porque produzidos em cada localidade, por gente da localidade, com a vantagem de beneficiarem-se dos furos deixados por esse. Se isso acontecer, um outro objetivo será atingido: o de mostrar às pessoas e especialmente aos professores a importância de escrever sobre nossa gente e nossa história, para que, no futuro, os buracos, os vazios sejam menores. E é preciso urgência para que se colham mais dados, mais informações, mais registros. No percurso desse trabalho, pelo menos três informantes faleceram: o Sr. Piau, o Sr. Sindolfo e o Sr. João Fininho.

Esmeraldo Lopes.

Curaçá, BA, 19 de novembro de 1999.

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"A memória é o segredo da história. É pela memória que se puxam os fios da história. Ela envolve a lembrança e o esquecimento, a obsessão e a amnésia, o sofrimento e o deslumbramento. De repente, um gesto, fala, som, cor, ritmo ou entonação desvendam o que estava escondido no passado, próximo ou remoto. O que se havia encoberto de névoa e sombra, fragmentado e disperso na paisagem pretérita, num instante explode em toda a vivacidade, como se fosse um milagre da criação artística.

Sim, a memória é o segredo da história, do modo pelo qual se articulam o presente e o passado, o indivíduo e a coletividade. Aos poucos, revelam-se os fios da história. O que parecia esquecido e perdido logo se revela presente, vivo, indispensável. Na memória escondem-se segredos e significados inócuos e indispensáveis, prosaicos e memoráveis, aterradores e deslumbrantes.

Lembrar É Resistir: “este é um magnífico e alucinado mergulho na memória e na história. Com um mínimo de elementos, resgata praticamente o acontecido. O que estava perdido ou proibido, encoberto pelo esquecimento, logo se revela vivo, tenso, contundente. Diz respeito ao indivíduo e à coletividade, à biografia e à história. Amarra o presente ao passado, pela audácia da imaginação e pelo talento da criação. Revela a estrada percorrida; alerta sobre a estrada que se percorre; prenuncia a lonjura da estrada seguindo lá longe."

Octávio Ianni – In: Caros Amigos, nº 32, p. 10.

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SEDE

CURAÇÁ

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Região de refúgio de índios. Nessas terras eles se asilavam, fugindo das perseguições dos portugueses. As terras não eram ricas mas eram o que sobrava e, acreditavam, nelas poderiam viver para o sempre, em paz. O rio, vasto em águas, farto em peixes, fazia nascer em suas margens um verde cheio de plantas de muitos tipos. No meio dessas plantas, bichos do chão e bichos do ar faziam a vida, no ritmo da natureza. No distante, as serras, despontando no azul do verde visto ao longe, também abrigo de animais e de uma gente que o português resolveu batizar com o nome de índio. Entre o rio e as serras, um tapete cinzento nos tempos de seca: a caatinga. Caatinga fechada, lugar difícil de ser penetrado1.

Dificuldades grandes, mas os portugueses tinham um sonho: o sonho do enriquecimento. Primeiro penetraram a caatinga para aprisionar os índios e transformá-los em escravos. Depois a percorreram procurando ouro. Não deixaram escapar uma serra e assim se encaminharam para os montes que avistavam, rasgando o mato, caminhando por dentro dos riachos. Belchior Dias Moréia, caçador de minas de metais preciosos, o primeiro a se saber, rastejou pelas terras das bandas das caatingas do sertão de corassá. Andou na Serra da Borracha, registrou que nela havia salitre, e caminhou pelo Riacho Curaçá. Isso no finalzinho do século XVI2. Muito depois, lá pelos anos de 1640, trouxeram

1 Nas caatingas as caminhadas eram penosas. A falta de água, o solo cheio de obstáculos, “as veredas falsas e múltiplas são um verdadeiro perigo. A vegetação espinhenta, as trincheiras quase intransponíveis (...) formam uma barreira que se sucede por dezenas de léguas, desafiando aos mais robustos picadores de mato. Só o gado pôde primeiro trilhar a caatinga; e naquelas regiões onde o europeu primeiro penetrou através dela, foi sem dúvida pela trilha do índio, e guiado pelo índio. Ajunte-se a tudo isso, a falta d'água por dezenas de léguas, a aridez do solo, a escassez das chuvas” (...) Teodoro Sampaio - In.: Caminhos Antigos e Povoamento do Brasil – J. Capistrano de Abreu – p.5l, Itatiaia, SP. 1989. Em alguns casos, para que a caatinga fosse rompida, utilizavam o expediente de atearem fogo nela e se protegiam até que o trabalho ficasse pronto. 2 É corrente, nos escritos sobre Curaçá, que o jesuíta Luiz de Gran andou, em 1563, nas terras do município. Apóiam-se, os que assim escrevem, no livro de João Matos, Descripção Histórica e Geográfica do Município de Curaçá. João Matos, entretanto, não fez tal insinuação. Ele simplesmente afirma que o jesuíta tentou efetuar os primeiros aldeamentos indígenas nas bandas do sertão. O referido padre, pelos escritos conhecidos, limitou a sua ação às proximidades do litoral, não se aprofundando muito no interior e, é remotíssima a possibilidade dele ter alcançado as terras do sertão de corassá .

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o boi. E o boi foi invadindo o mato. Os vaqueiros fazendo currais, levando o boi para mais longe, tomando conta de tudo, espantando o índio. Os índios se enfezando e matando bois e vaqueiros. Teve briga. Briga longa3. Fazendas foram nascendo, se multiplicando. E assim, indo e indo, até que todo o mato ficou adonado pelos criadores de gado4. Os índios, só com os cantinhos de terra, agoniados, sem jeito de vida.

Os padres, querendo a salvação das almas dos índios. O frei Martin de Nantes e frei Anastácio d’Audierne5 acorreram à região. O frei Martin de Nantes instalou uma missão em Pambu, para aldear os índios que viviam nas ilhas e às margens do rio São Francisco. A missão pegou fama. Era o único lugar onde havia padre, em toda a região do submédio São Francisco. Porque não achava certo o que os fazendeiros faziam com os índios, o frei foi duramente perseguido e depois mandado embora. Alguns anos mais tarde, vieram os missionários franciscanos e Pambu ficou mais famoso6. Até santo milagroso, lá apareceu. No resto desse mundão, só as caatingas e uns lugarzinhos sem vida, sem jeito de ser, as fazendinhas de vaqueiros solitários. Com o passar dos tempos, alguns fazendeiros foram se chegando, trazendo as famílias, morando no mato. Eram os ricos, donos de muitos currais, das terras, do gado, dos homens. Homens vaqueiros, homens agregados, homens escravos.

3 A esse propósito, ver o livro de Esmeraldo Lopes, Opara - Formação Histórica e Social do Submédio São Francisco.4 Por essa época as terras eram apropriadas sob a forma de sesmaria. Uma sesmaria, via de regra, possuía uma légua de frente por três léguas de fundo (base das atuais fazendas que, nos dias de hoje,possuem mais ou menos as mesmas dimensões, só que parceladas sob a forma de sítios - cada fazenda compreende vários sítios em seus domínios). Essas sesmarias eram obtidas da Casa da Torre (sede do morgadio da família D`Ávila, situada nas imediações de Salvador-Ba, subsistindo suas ruínas, nos dias atuais, no bairro de Itapoã), que historicamente havia se adonado de todas as terras abrangidas pelo atual município. Pobre não tinha a mínima condição de se tornar proprietário de uma faixa territorial, por pequena que fosse. 5 Ambos chegaram ao Brasil em 1671, ano em que frei Nantes instalou a Missão de

Pambu.6 Foi elevado a paróquia (1714), a distrito da Vila de Jacobina (1724), a julgado (1743), a Vila (1832).

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As caatingas do sertão do corassá 7sendo habitadas mais e mais. Os fazendeiros morando nas fazendas com suas famílias. Isolados, os moradores viviam: vaqueiros, fazendeiros, escravos. Mundos fechados. Pouco contato entre os habitantes da região. Pambu era o centro de tudo. Lá tinha padre e lá tinha juiz. Assim por tempos e tempos. Curaçá não existia.

7 Essa expressão é conhecida desde que Belchior Dias Moréia passou pelas terras hoje ocupadas pelo município de Curaçá. Querem alguns que a palavra curaçá signifique paus trançados, querem outros que signifique cruz. Entretanto, não há significação exata para ela hoje. Sabe-se apenas que é de origem indígena, podendo inclusive dizer respeito ao nome de algum grupo indígena que habitasse a região à época. Quanto a sua relação com cruz, acho bastante improvável, uma vez que os índios dessa região, na época em que ela foi visitada por Belchior Dias, ainda não haviam sido objeto de catequese.

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O rio separando os lugares, fazendo barreira para o movimento do povo. Num ponto do rio o povo vai se chegando nas travessias. Nasce um porto. Lugar das pessoas atravessarem, lugar para onde os paquetes se dirigiam, lugar onde as pessoas, vez por outra, se encontravam. Porto do Capim Grosso. Terreno alto na beira do rio. Um padre8. Padre José Antônio de Carvalho Mattos, chegou por ali, viu graça naquele chão, resolveu se abarrancar. Comprou “uma casinha de taipa, coberta de palhas”, fundou residência9. Que ventos o trouxeram? Um padre no porto. Não demorou e surgiu um sítio junto. O Sítio do Senhor Bom Jesus da Boa Morte. A dona, Feliciana Maria de Santa Theresa de Jesus10. Com o padre morando ali, a proprietária do sítio deu providência, pediu ajuda a fazendeiros e mandou vir escravos para os trabalhos na construção da capela. Capela do Senhor Bom Jesus da Boa Morte11. Bem perto, construiu sua casa também12. Porto, padre e capela. Dois nomes para o mesmo lugar: Porto do Capim Grosso, Sítio Bom Jesus.

8 Padre José Antônio de Carvalho Mattos, no ano de 1809. Esse, realmente peça fundamental na formação da aglomeração - In: Matos, p.82. 9 Aqui subsiste uma dúvida. Segundo João Matos, o terreno onde se situou o porto pertencia a Florêncio dos Santos, esposo de Feliciana Maria de Santa Theresa de Jesus, que lhe fora doado pelo pai, capitão-mor João Francisco dos Santos. Isto em 1809. No entanto, é de conhecimento que existe uma escritura pública de compra e venda, datada de 1842, através da qual Dona Feliciana adquire, do Visconde da Torre, um terreno no mesmo local. Por outro lado, como venderiam a casa ao padre em 1809 se ainda não eram proprietários do terreno? Sabe-se também que, bem antes da data da escritura, Dona Feliciana era proprietária de um sítio na mesma localidade e que, inclusive, chegou a ser uma das enfrentantes da construção da igreja. Será que tinha o seu sogro e depois seu esposo se adonando da terra e só muito depois a havido por compra? 10 Essa senhora era proprietária de fazenda na caatinga e interessou-se por estabelecer sítio e construir uma casa próxima ao rio, após a chegada do padre.11 Provavelmente fosse esse o santo de sua devoção. A construção da capela foi iniciada por volta de 1819 e sua inauguração ocorreu em 1835, sendo nesta data celebrada a 1ª Missa (In: Revista do Centenário do Município – 1953). Carrega em suas paredes gemidos de escravos. In: Matos, p. 82. Originariamente, a capela só possuía a nave central e a parte que fica por detrás do altar era bem baixinha. Informação do Sr. Ângelo Alves dos Santos.12 A casa de D. Feliciana foi construída ao lado da Igreja. Segundo informações, em uma área de uns 30x30 m. Possuía um mirante de onde, segundo a memória oral, ela acompanhava o trabalho de construção da capela e também contemplava a paisagem oferecida pelo rio. Há também uma história que diz que ela só bebia da água recolhida no meio do rio e, do mirante, observava o trabalho dos escravos ao recolherem-na.

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Padre atraía gente. Padre, capela e porto, então! O povo se chegando nas adorações das coisas de Deus, nas travessias do rio, nos aconselhamentos do padre, levantando casinhas13. Lugarzinho acanhado, sem vida. A caatinga precisava do rio. No rio tinha plantação: abóbora, batata. Tinha água, tinha capim, refrigério para os animais. Um comerciozinho: as barcas passando, levando as coisas do mato, trazendo coisas de longe; os beiradeiros, os caatingueiros vindo se abastecer e o porto vivendo. Beiradeiros, caatingueiros: encontro de mundos. Pambu lá, o mundo todo em um longe sem fim.

Os fazendeiros nas caatingas, com seus vaqueiros, com seus agregados, com seus escravos, fazendo seus mundos, impondo suas normas, mantendo seus impérios. Perdidos no mato, na beira do rio, alguns grupos de homens sem nada, vivendo do mato, do que o rio dava.

Arraial do Capim Grosso, uma festa de gente se encontrando, sabendo dos assuntos do mundo, vendo coisas que só aí se via: rio, barcos, paquetes, gente diferente. Os caatingueiros gostavam, os beiradeiros se admiravam. Uma casinha, mais outra casinha. O povo começou a chamar o lugar de povoação do Curaçá14. Agora três nomes: Porto do Capim Grosso, Sítio do Bom Jesus, Curaçá.15

Pambu, elevado a vila, ganhou área territorial, município enorme. 183216. Não crescia, não podia ser porto. A vida morta, morta. Comunicações 13 É provável que as casas que construíam, com raríssimas exceções e por longo tempo, só se prestassem para abrigos periódicos, por ocasião de algumas solenidades religiosas, tendo-se em vista que a vida era eminentemente rural. 14 Por essa época, (década de 1840), o lugar era chamado também de povoação. No avançar do tempo a expressão porto foi sendo abandonada, conforme evolução dos escritos históricos.15 Pelo menos é o que nos cientificamos a partir da leitura da carta do frei Paulo Maria de Genoveva, padre da freguesia do Pambu, escrita em 1846 e reproduzida no livro de João Matos, p.35. Nesta mesma carta, o referido frei assinala que a capela era pobríssima, nada possuindo, e nem reboco em suas partes externas. Por que Curaçá? Provavelmente o nome esteja ligado à expressão “sertão de corassá”. 16 Pelo Decreto de 6 de julho de 1832, Pambu foi elevado à condição de vila, abrangendo a área que ia do riacho Curaçá até Santo Antônio da Glória, próximo à cachoeira de Paulo Afonso. Caatinga adentro, divisava-se com Geremoabo e Monte Santo. Nesta mesma oportunidade, Pambu ganhou também uma escola pelo Decreto de 16 de junho – In: Mattos, p. 33 e 47. A instalação do município só foi efetivada a 17 de maio de 1834 – In: IBGE, Sinopse Estatística, 1948.

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difíceis, longe de tudo. Os políticos influentes morando fora, o povo ao Deus dará, a igrejinha em ruínas. Demorou pouco tempo como sede de vila. Capim Grosso também fraquinho, fraquinho, mas Pambu estava minguando, se arruinando. 1853. Levaram a sede da vila para Capim Grosso. A sede da freguesia foi junto17. Pronto: o fim. capela do Senhor Bom Jesus da Boa Morte se elevou a matriz, a matriz de Pambu acabou sendo capela filial. A povoação virou sede, a sede virou povoação. Os fazendeiros deram mais importância ao lugar, foram construindo, formando o quadro das casas dos ricos, abandonando o mato, se juntando na fidalguia da rua18. Os pobres se abrigando em casinhas que faziam no derredor das casas dos ricos, de seca a verde aí, que não tinham outro assento, vivendo como dava para ser: sendo serviçal, caçando, pegando peixe, fazendo alguma plantaçãozinha nas terras dos outros, de favor. Assunto de vida: mais gente se vendo. Nesse sem novidade, o tempo, se levando, se levando.

O governo botou escola19. Os meninos vindo para a rua estudar. Uns pouquinhos, só. Escola só para gente que podia. Os pobres no seu, vendo, sem saber para que aquilo prestava. Por certo que tinha valor, à gente importante importava... Os filhos dos fazendeiros estudavam, depois se iam embora,

17 A transferência da sede da vila e da freguesia para Capim Grosso se deu em decorrência da Resolução de 6 de junho de 1853. A transferência da sede da vila não implicou na alteração da área territorial do município. Qual terá sido o motivo dessa transferência se Capim Grosso também era uma insignificância? Provavelmente o fato de, para aí, acorrerem alguns fazendeiros de maior prestígio na área do município e também por estar situado em uma área de maior possibilidade de comunicação. Essa é a hipótese mais provável. O engenheiro Henrique Guilherme Fernando Hafeld, que percorreu todo o rio São Francisco, em missão de estudo, registrou a existência de 59 casas e cerca de 300 habitantes no povoado de Capim Grosso ou síto do Bom Jesus, no ano de 1853. De acordo com suas anotações, em Pambu, nessa mesma ocasião, havia "cerca de 30 casas, que quasi todas em péssimo estado e a Vila parece despovoada de seus habitantes, dos quais conta-se em mais ou menos 140 que vivem aparentemente em pobreza e miséria". Nesta mesma época, Petrolina contava com 48 casas e Juazeiro com 287 casas cobertas de telha e 1.328 habitantes - In: Atlas e Relatório do Rio São Francisco - Levantado por Ordem do Governo de S.M.I. o Senhor Dom Pedro II, pag. 283. Rio de Janeiro, 1860.

18 O que concluímos a partir dos estudos efetuados a respeito da formação regional, os fazendeiros só passaram a fixar residências na “rua” a partir de 1850. 19 A primeira escola foi criada em 1874, só para meninos, e a segunda, só para meninas, foi criada em 1876 – In João Matos, p.84.

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estudar mais, virar doutor nas capitais. Por lá ficavam, o povo, de cá, ouvia o zunzum do sucesso dos bichos20. Os pobres também se iam, na busca da sorte do mundo21. Mato Grosso, terras de Goiás, levando a vida tangendo tropas, conduzindo boiadas, empurrando barcas pelo rio, a andar nesse mundo sem fim. Uns voltavam, outros sem rastro, sem notícia de nunca mais. No mais, não tinha mais. De tempos em tempos uma notícia: Capim Grosso virou comarca22; Capim Grosso agora muda de nome, o nome é Curaçá23; Curaçá perde comarca; Curaçá tem Intendente para governar24. E tudo a mesma coisa, o 20 Os jovens, filhos, dos fazendeiros, dirigiam-se às capitais para estudos mais adiantados e, uma vez se formando, com raras exceções, nunca voltavam, a não ser para algum passeio rápido de visita a familiares. O destino mais freqüente que tomavam era Salvador e Rio de Janeiro, onde ocuparam cargos de destaque. Os poucos que voltavam à região se abrigavam em Juazeiro. Em finais do século XIX, Curaçá configurou-se como um tipo de centro civilizador. 21 No relato que fez a respeito da viagem pelo S. Francisco, em 1879, o engenheiro Teodoro Sampaio anotou, ao percorrer o trecho Boa Vista-Juazeiro: “Daqui pra cima, em ambas as margens do Rio São Francisco não faltam moradores. A população é mesmo numerosa, bem que pouco produtiva. Vive alheia às leis econômicas. Produz apenas o preciso para viver. Não importa, porque não produz para trocar, nem troca ou permuta, porque não tem mercado onde fazê-lo. (...) Nas estradas que margeiam o rio ou dele partem em direções diversas, as habitações se sucedem a miúdo, formando pequenas povoações, lugarejos insignificantes, e algumas vilas e cidades. Nas povoações ribeirinhas, o aspecto de pobreza e de atraso é extremo. Vive-se aí sem se saber de que... – In: O Rio São Francisco e a Chapada Diamantina - Teodoro Sampaio. P. 70. Nos relatos orais dos mais velhos, é interessante notar como a gente viajava. Viagens a Mato Grosso, Goiás, sertão de Pernambuco, Salvador, rio de cima, rio de baixo, Amazonas, etc. 22 De acordo com o ato de 3 de julho de 1890, o governador do estado eleva Capim Grosso à categoria de comarca, desanexando-a da comarca de Juazeiro. Dois anos depois, entretanto, a comarca é extinta e Curaçá volta a ser termo da comarca de Juazeiro In: IBGE – Sinopse Estatística e João Matos, p.83.23 Em 10 de julho de 1890, pelo Ato nº 59, a sede da vila e o município passam a denominar-se Curaçá. O porquê da mudança, hoje, não se sabe – In: IBGE – Sinopse Estatística, 1948. 24 Logo no início do período republicano, em decorrência da lei orgânica dos municípios, criou-se a figura do intendente que tinha a função de dirigir o poder executivo nos municípios (o equivalente a prefeito) . Pela ordem, os intendentes e prefeitos de Curaçá, a partir do momento em que o município se tornou autônomo, foram os seguintes: 1892 a 1895, Scipião Gonçalves Torres; 1896 a 1899, Benedito Jácome Brandão; 1900 a 1901, Scipião Gonçalves Torres;1902 a 1903, Possídio Nascimento; 1904 a 1907, Jerônimo Coelho Aquino; 1908 a 1911, Epaminondas dos Santos Torres; 1912 a 1915, Rui Gonçalves Torres; 1916 a 1917, Benevides José do Nascimento; 1918 a 1919, José Gonçalves de Oliveira Costa; 1920 a 1923, José dos Santos Torres; 1924 a 1927, Raul Chrispiniano Coelho; 1928 a 1930, Benevides José do Nascimento; 1931, José dos Santos Torres; 1932 a 1933, Angelo José Gonzaga Filho; 1934, Scipião Torres; 1935, José Jácome Brandão; 1936 a 1939, Aníbal Lustosa Cantareli; 1940 a

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mundo parado.

Antônio Conselheiro deixando rastro nas terras de Curaçá. O povo sabendo, se devotando. Aquele homem puro, cheio de santidade, em peregrinação, acudindo as almas viventes, se sacrificando pela salvação do mundo. Fez cemitério em Riacho Seco, fez igreja em Chorrochó25. A notícia dele, de seus feitos, de seus ditos correndo pelo mato. As mulheres se agarrando aos terços, os homens fazendo consideração: preparação para o GRANDE DIA26.

O porto trazia vida, mais gente vindo comprar, vindo vender, vindo vender e comprar. O povo vindo do longe de outros lugares da beira do rio, das distâncias das caatingas. A feira na beira do porto, os feirantes se agasalhando do sol debaixo dos pés de tamarineiro. Farinha27, rapadura, feijão, toucinho, milho: coisas de comprar. Penas de ema, cordas, algodão, pele de criação: coisas de vender. Os beiradeiros marcavam praça. Traziam suas coisas: chapéus-de-palha, boca-pius, cestos, esteiras, abóboras, batatas, farinha, peixes. E a Igreja? As festas do Bom Jesus, o dia do festejo a São Benedito, os marujos dançando, o povo na devoção da fé. Aquele horror de gente acompanhando as coisas da santidade, ouvindo o padre, pagando promessa, batizando os filhos, se casando, dançando marujo. À noite, feixes de candeias acesos em tochas, iluminando a festa. Uma alegria danada, tudo no claro28.

1942, Raul Chrispiniano Coelho; 1943 a 1945, Ten. Manoel Cordeiro de Matos (interventor); 1945 a 1946, Jayme da Silveira Coelho; 1946, Jovino Ribeiro; 1947 a 1950, Pompílio de Possídio Coelho - In: Revista de Comemoração do Centenário de Curaçá, 1953. De 1951 a 1955, Jayme da Silveira Coelho; 1955 a 1959, Virgílio Ribeiro; 1959 a 1963, Gilberto da Silveira Bahia; 1963 a 1967 José Félix Filho; 1967 a 1971, Pompílio Possídio Coelho; 1971 a 1973, José Félix Filho; 1973 a 1977, Theodomiro Mendes; 1977 a 1983, Aristóteles Loureiro; 1983 a 1988, Theodomiro Mendes; 1989 a 1992, Aristóteles Loureiro; 1993 a 1996, Gilberto Bahia Filho; 1997... Salvador Lopes Gonsalves. 25 O cemitério de Riacho Seco foi terminado em 1887. A igreja de Chorrochó também foi construída em torno de 1845. 26 Grande Dia: o dia da ressurreição de Cirsto, quando todos prestariam contas de seus atos.27 Farinha era a base alimentar do povo de toda a região, mais importante que qualquer outro alimento. Depois dela, a rapadura. Em verdade o comércio era feito mais à base de troca que de venda, uma vez que o dinheiro era quase inexistente. Dona Cecília da Conceição Lopes (*1913) lembra-se que, em tempo de mocinha, alcançou comerciantes vendendo fósforo por palito, ou seja, de retalho.

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Povo religioso. O padre achando a igreja pequena, apertada, com altarzinho feio. Deu sinal de contrariedade de Deus, com sua casa tão assim. O povo acudiu. Houve colaboração. A igrejinha só tinha a nave central. O padre dirigiu os trabalhos. A reforma foi feita. Nasceu altar, construiu as laterais. Igreja maior, folgada, altar bonito. Deus contente29.

Em 1912, uma festa de santificação. As Santas Missões. Os missionários chegaram fazendo pregações, falando de alma, de céu, de inferno, de pragas, de castigos, de pecado, da vida pura das virtudes divinas, da necessidade da santidade e o povo se arrumou na rua para ouvir a palavra sagrada daqueles homens de oração forte, na maior devoção. O povo ansioso por ser purificado de suas faltas e os pregadores apressados nos trabalhos da salvação. Casamentos, batizados, ninguém poderia ficar pagão, ninguém poderia ficar na vida de amigação, que esses caminhos levavam o diabo a se alegrar, a sacudir o rabo. Reza, reza, reza. No encerramento foi levantado um Cruzeiro, fora da cidade, no lugar mais alto de perto30. E aquele lugar ganhou santidade, virou ponto de adoração e de enterramento de anjinhos31.

28 Esta informação, da iluminação com feixes de candeia, nos foi dada pelo Sr. Ângelo Alves dos Santos – 1923 -, que a ouviu da boca de D. Carlota (Maria Carlota de Possídio Coelho). 29 Esta reforma foi realizada em torno do ano de 1891, sendo o vigário o Monsenhor Elpídio Tapiranga. No final da década de 1940 foi realizada uma segunda reforma, que consistiu no alteamento do fundo da igreja - que era bem baixinho - e - arquitetada pelo engenheiro Dirceu de Possídio Coêlho. Só havia o altar-mor, onde todas as imagens de santos eram concentradas. A igreja não tinha mobiliário. Cada fiel levava suas cadeiras. Cadeiras para ajoelhar e cadeiras para sentar. Quem não as levava, assistia a missa de pé. O padre José Luna, entre finais dos anos 50 e início dos anos 60, fez campanha e conseguiu mobiliar a igreja com a contribuição do povo - In: Revista do Centenário do Município, 1953, e depoimentos de idosos. 30 Trata-se do cruzeiro existente na roça do Sr. Juraci Gonçalves, contígua a Curaçá.31 Segundo a crença da época, não era de bom grado enterrar crianças em cemitérios, uma vez que elas eram inocentes e não tinham pecados. Por isso, as crianças que morriam eram chamadas de anjos e o enterro não era carregado de sentimentos. Eu mesmo cheguei a presenciar um enterro de anjo onde as pessoas que faziam o acompanhamento cantavam e algumas crianças que acompanhavam o cortejo o faziam vestidas com roupas brancas.

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Marujada, festa de escravos, homenagem a São Benedito32. Coisa que vem de muito tempo. Nesse dia, escravos “livres”, com o “direito” de suas coisas, se paramentavam, viravam “senhores”, no conforme do consentimento de seus donos, que ficavam assuntando, com atenção, cuidando para não haver desrespeito. Cantavam, dançavam, bebiam, homenageavam o Santo, dando homenagem aos Senhores. O outro dia?

“Ô Sinhô Rei “O mistério, ô mistérioLá no seu reinado Ô da Virgem Mãe de DeusÔ Sinhô Rei E que vamo-nos embora Lá no seu reinado Que eu não sou escravo seu”.Hoje na Igreja Amanhã no machado ................

Ó Sinhá Rainha “Rei, Rainha Rabo de tainha Seu Tenente e GeneráÓ Sinhá Rainha Rei, Rainha Rabo de tainha Seu Tenente e GeneráHoje na Igreja Quero que me dê licença Amanhã na cozinha” 33. Rei de Congo vadiá”.

32 São Benedito nasceu por volta de 1526, em São Filadelfo, na Silícia (Itália). Era negro, filho de escravos e analfabeto. Foi alforriado ainda bem jovem. Trabalhou como pastor de rebanhos e desde jovem ajudava os pobres. Aos 21 anos tornou-se eremita. A convite, ingressou em uma ordem religiosa onde exerceu o ofício de cozinheiro e em 1578 foi nomeado guardião do convento no qual vivia. Morreu no dia 4 de abril de 1589 – In: Os Santos de Cada Dia, J. Alves, Edições Paulina, SP, 1990, 4ª Edição. Segundo o pesquisador Joaquim Maria Botelho, um dos fatores que chamou a atenção dos religiosos, com relação a São Benedito, foi sua capacidade de resignação, tendo em vista que era muito humilhado por ser negro e também o seu espírito conformista e a benevolência. Segundo ele, o aparecimento desse santo pode ter sido uma invenção de Roma para apaziguar os escravos negros do Brasil. As datas comemorativas oficiais são 4 de abril ou 5 de outubro, sendo que, no Brasil, as comemorações são realizadas sem a observância a essas datas - In: Anuário do Festival Nacional do Folclore da Cidade de Olímpia – SP, 1996. 33 Esta festa sempre foi controlada e dirigida pelos mesmos que faziam o domínio sobre os escravos. Não temos certeza se na origem da festa era assim mas, no passar dos tempos, a elite tomou para si o direito de escolher entre seus membros aqueles que fariam o papel de rei e de rainha.

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Escravos, Senhores. Uma história com dor. Tinham de fazer de um tudo por tudo e em tudo dar agrado. Carregar pedra para construir barragem, fazer casas, capelas, tanques, cercas, carregar água... e chamar o dono de meu Senhor. Fazenda Boa Esperança. Um escravo fez revolta. Não chamou seu dono de Senhor. O senhor o mandou amarrar em uma baraúna. O chicote comendo e ele lá, resmungando, xingando. O senhor se revoltando com o desaforo: “Me chama de meu Senhor, negro!”. O negro: “Num chamo”. Os outros escravos assistindo aquilo. O senhor, espumando, ordenou capação. O negro gemendo e xingando, xingando, não se dobrou: foi capado34. 1888: fim da escravidão. Os escravos libertos fizeram festa. A festa foi no Tijuco, em frente a Santa Maria da Boa Vista. Estava lá a animação, os batuques, aquela alegria. Um senhor mandou ordem: “Diga a fulano, meu negro, que venha aqui”. O negro ouviu o recado. Fez despacho: “Diga a ele que a distância de lá pra cá é a mesma daqui pra lá”35.

Os fazendeiros abandonando as caatingas. Saindo da solidão das fazendas, entrando na solidão da rua. Fazendo moradas na rua, botando as datas da construção nas fachadas. A rua do quadro crescendo. As mulheres, em casa, sem motivo de saída. Os homens se fazendo respeito à distância, nas cerimônias do sem muito aprochego, sem permissão de uma prosa de gracejo. Evitando o contato dos filhos com o povo, que mistura arruína, traz degeneração. As moças sem licença de visitas de ninguém. Assim na purificação da nobreza, dos costumes, da raça36. Solidão. Quebravam a solidão 34 Esta história nos foi contada na Fazenda Boa Esperança, próxima à serra da Borracha, pela Senhora Maria Antera e confirmada pelo Sr. Didi (João Pedro Cunha - *1917), descendente direto do autor da façanha. Segundo ela, o nome do senhor era Paulo da Cunha.35 Esta informação nos foi prestada pelo Sr. Ângelo Alves dos Santos, que ouviu do pai e de outros mais velhos.36 Uma mulher da elite, que viveu sua infância na década de 1940, informou que foi repreendida com certo rigor, por parentes, pelo fato de ter sido flagrada circulando na rua do quadro, no mesmo espaço habitado por seus pares. Que não era permitido, aos membros da elite, nem mesmo a uma criança ser levada ao rio para tomar banho, embora suas casas fossem todas próximas do S. Francisco. Ela contou que um dos membros da elite chegou a construir um jardim interno como forma de evitar que seus filhos tivessem contato com o povo. Segundo ela, mesmo entre vizinhos, as visitas tinham que ser comunicadas com certa antecedência para que fossem providenciadas as formalidades de praxe, tanto da parte do visitante como da parte do visitado. Isso incluía comidas, maneiras e vestimentas. Segundo ela, as visitas eram uma troca de cortesia para haver entrosamento entre os membros da sociedade. Disse também que era de hábito as famílias disporem de cartões de apresentação para serem enviados àqueles que

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fazendo festas, “de tempos em tempos, quando um cego perdia um vintém”. A orquestra “A Furiosa” animava nos seus toques, no salão da prefeitura, que era lá que as festas aconteciam. O povo ia olhar. Ficava na janela, pegando sereno que o salão era de gente fina. Um teatro, uma escola de artes dramáticas: grande idéia37. Preparação dos dramas. Os ensaios, a apresentação. A elite se encontrava, se via, se aplaudia, se elogiava. O povo podia espiar, e tinha orgulho de ver, de fazer correr a notícia do tido. O Sr. Raul Coelho dava ordenamento aos dramas, escolhia as peças, dirigia os ensaios, organizava o que era para ser organizado, fazia a animação. Uma filarmônica e outra filarmônica38. O toque no teatro, na rua. Os músicos entusiasmados, satisfeitos. O povo apreciando no atrás, que na frente tinha a elite com suas cadeiras.

Os pobres na rua39, nas roças, nos sítios, no rio, nas cozinhas, procurando jeito de vida. Atenciosos com os senhores, na prontidão do atendimento das solicitações que eles fizessem. Coronel Napoleão40, sem pena de pobre, fazia o respeito na base de cabroeira. Pegou as escrituras das terras do povo da Barra Grande e se fez proprietário de tudo. Seus protegidos tinham a coberta de sua defesa, sem conversa de razão. O povo tremia com o ouvir do nome dele. Se ele achasse mal feito na obra de alguém, mandava chamar o sujeito. O sujeito vinha acudir sua ordem na precisão da hora dita. Chegando, o coronel ditava o castigo mandando executar. O castigo, no comum do costume era bolo, com a palmatória cantando nas mãos do coitado. Fogoso, mandava que os moradores das terras de suas bandas, lhe entregassem filhas e esposas para prazeres sexuais41. O povo acanhadinho, amedrontado, não botava

visitassem a cidade e que fossem considerados ilustres. 37 O Teatro Raul Coelho foi fundado em 1895, segundo João Matos. A Escola de Artes Dramáticas, ao que parece, foi fundada na mesma época.38 Segundo contam os mais velhos, foram criadas duas filarmônicas, a XV de novembro e a Minerva, esta última, de longa duração, sobreviveu até os anos de 1930. 39 Pelos idos da cidade, até os anos de 1940, grande parte das casas era de palha. 40 Coronel Napoleão Carlos Augusto de Moron (*1855 +1917) - como os demais mencionados através de patentes, era coronel de patente comprada, ou como dizia o povo posteriormente “oficial da guarda não sois nada” - proprietário da Fazenda Genipapo e do sítio Prazeres. Dominava, submetendo os seus moradores, as terras que vão do sítio Santa Cruz (onde construiu uma capela e foi enterrado) até a Barra Grande, subindo daí até a Fazenda Cajueiro. 41 Várias pessoas de idade avançada, e que ainda estão vivas hoje, dizem terem ouvido falar de muitas histórias nesse sentido, sendo que algumas delas conheceram algumas das vítimas do coronel. Há apenas o registro de um sujeito ( o Sr. José Preto) que, recebendo o recado para

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resistência. Só se conhece a história de um que fincou pé e o desafiou, se entrincheirando e mandando dizer ao coronel que viesse ele mesmo buscar sua esposa. O coronel se afrouxou, não foi. Uma mulher se perfumou, se enfeitou e foi se oferecer a ele. Ele corrigiu o corpo dela com os olhos. Mandou seus cabras a moerem de pancada por motivo de safadeza. O coronel arredava o que tivesse pela frente. Os cachorros42 não se quedavam na obediência de ninguém. Moravam em ajuntamento de magote, habitando em umas casinhas de palha, para as bandas do Barra Grande. De noite samba, batuque; de dia sono, pegar a criação dos outros para comer. O coronel Napoleão decidiu: tocou fogo nas casas deles no sentido de escurraçá-los. Ia à rua e só andava por um caminho. Um sujeito construiu uma casa tapando um beco por onde ele passava. No que foi, viu o beco tapado. Voltou fungando. Deixou recado: “Diga a quem construiu essa casa que volto semana que vem e quero passar aqui que é o meu caminho”. O pobre do dono da construção fez obediência: derrubou a casa e mandou pedir desculpas43. Os outros grandolas não faziam imitação. Ficavam no quieto de suas reprovações, sem intromissão de palpites, e o povo se tremendo sem valia. Botavam o respeito de outras maneiras, exigindo as distâncias devidas do cada um no seu cada qual. O povo se salvando pela humilhação do tudo suportar, tendo que calar, que obedecer, que se conformar. Sonho de respeito, longe, em poucos, escondido.

A pobreza procurando a riqueza. Arranjar um pedacinho de terra para plantar, licença para fazer um sitiozinho, morada de favor, agasalho para um

levar sua mulher ao coronel, mandou a resposta pelo mesmo mensageiro: “Diga a ele que venha buscar” – e se entrincheirou esperando. O coronel não foi. Esse senhor era metido a fogoso, a dispor de todas as mulheres que caíssem em sua graça, independente de idade ou estado civil. Tinha vários filhos, sendo que só reconheceu uns três ou quatro. Informante: Dona Olímpia do Nascimento Souza, *1911, moradora do Barra Grande; Luiz Lopes Filho; Nezinho da Salobra (Manoel Lima dos Santos, *1924); Ascendino Duarte.42 Cachorros era um povo que habitava nas proximidades do riacho Barra Grande e que, provavelmente fosse originário de agrupamentos indígenas e negros. Por não se enquadrar nas ordens e exigências dos senhores, foi colocado à margem. Esse nome, certamente pejorativo, devido aos seus hábitos de vida. No correr do tempo, pouco a pouco, os remanescentes foram sendo incorporados e se desfizeram como agrupamento. O fato mencionado ocorreu na década de 1910. 43 Essa história nos foi contada pelo Sr. Antero Caçote, nascido no início do século XX.

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filho em troca de sua serventia pela gratidão do senhor . Apadrinhar filho com alguém rico, maneira de compromisso de proteção44.

No rio as barcas. Barcas pesadas vencendo as corredeiras, os remansos. Os remeiros gemendo nas varas, nas cordas, assoviando, pedindo a clemência do vento45. Transportavam mercadorias e gente. Curaçá-Juazeiro: cinco dias. Os beiradeiros as viam passar, olhavam as novidades que iam nelas, ofereciam o que tinham para vender, comprovam o que podiam comprar, e lá se iam elas, sumindo devagarinho, desaparecendo na curva do rio. Os beiradeiros não gostavam das barcas. Os remeiros, no puxado das cordas, no pisado dos pés, quebravam cercas, destruíam as plantações. Os meninos se vingavam: botavam espinhos no caminho que eles pisavam. Quando os avistavam, se escondiam para ouvir o “HUMMM!” do homem que suspirava a dor do espinho no pé, sem poder parar46. Palavrões, esturros e os meninos escondidos, sorrindo.

44 As pessoas sem condições costumavam oferecer seus filhos àqueles de posse para que estes os “criassem”. As mulheres eram utilizadas para os trabalhos domésticos e os homens nos trabalhos de roça e de campo. Não havia nenhum tipo de remuneração pelo trabalho deles. Ao contrário. Tanto os pais como os “criados” sentiam-se eternamente gratos pela bondade do senhor. Em alguns casos, os senhores (que não eram senhores, mas apenas pessoas com alguma condição), na fase adulta dos meninos, davam-lhes alguma vantagem como a licença para estabelecer morada em suas terras, licença para criarem enjeitados, alguma coisinha assim. Dessa forma até o final da década de 1950. Após a ampliação das vagas escolares, iniciada no final da década de 1950, era interesse dos pais pobres que os guardiões de seus filhos propiciassem algum estudo e, no caso das mulheres, além de algum estudo, o aprendizado de alguma habilidade como costura ou outra arte qualquer. Também carapinas, ferreiros, etc., costumavam receber adolescentes que trabalhariam gratuitamente na condição de aprendizes. 45 As barcas eram impulsionadas pela força humana dos remeiros. Quando era possível, estes caminhavam pelas margens puxando as barcas por cordas que trançavam no peito. Quando não era possível, valiam-se de enormes varas que, apoiadas nos peitos, eram metidas na água até que alcançassem o fundo do rio e, pendendo o corpo sobre elas, caminhavam pelas coxias, fazendo a barca andar. De vez em quando, quando o vento batia, soltavam as velas e tinham uma fugazinha.46 Se em uma dessas o remeiro parasse, a barca perdia a carreira e o sofrimento seria ainda maior ou, em certas circunstâncias, ela poderia voltar, empurrada pela correnteza, o que implicava em uma grande perda de serviço. Por isso, seu único recurso era aguentar a dor e xingar. Os meninos faziam isso porque, quando as cercas eram quebradas, os animais invadiam as plantações e era função deles vigiar. Note-se que, por essa época, a plantação era toda feita no molhado do rio, exatamente por onde o remeiro fazia caminho. Informações, entre outros, dos Srs. Bráulio Braulino da Conceição, Donizete Nunes Francos e Ângelo Alves dos Santos.

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A rua era pequenininha. No dia de feira se enchia de gente. A feira na beira do rio47. O rio cheio de paquetes, carregados com capim, produtos de palha, abóboras, batatas, peixes, farinha, beiju... Muitos e muitos animais de carga, de montaria dos caatingueiros, dos tropeiros à procura de mantimento, de mercadorias. Os tropeiros vinham do longe dos distritos e de outras cidades. Alguns chegavam trazendo suas mercadorias das lonjuras da serra do Araripe48, que era lá onde mais se produzia. No rio ficavam as barcas grandes que ligavam o “rio de baixo” com o “rio de cima” e que traziam e levavam mercadorias49. Também transportavam gente para Juazeiro. Um movimento de dar agonia. Depois que ela findava, o silêncio da rua se misturava com o escuro da noite e só o de todo dia acontecia.

Um curaçaense tinha barca. Fazia linha para Juazeiro. Era Seu Lino Paqueteiro. Ele encostava a barca no porto de Juazeiro e ficava por ali, comendo pão, sentado sobre sacos de farinha. Quando alguém lhe perguntava: “Seu Lino, que hora vai?” - ele respondia: “Só quem sabe é aquele ali” e apontava para o céu50.

A rua não podia crescer. Estava amaldiçoada por praga de padre. Um padre que fora esfaqueado caíra sobre uma pedra deixando manchas de sangue nela. Antes de morrer ele decretou espraguejamento: “Esta cidade vai crescer que nem rabo de égua. Só ficará livre no dia em que meu sangue nessa pedra for lavada pelo rio”51. Maldição. Por isso a cidade não ia, mas se tentava 47 A feira era realizada nas proximidades do rio, mais ou menos ali perto de onde hoje é a SCAB - Sociedade Curaçarense Artística Beneficente). Ali construíram um barracão onde os feirantes agasalhavam suas mercadorias. Havia também uns pés de tamarineiros que serviam de abrigo. 48 Araripina, Serra Branca, Bodocó, Barbalha, Juazeiro do Norte, em distância que chegavam a 300 km. Mercadorias: feijão, milho, farinha-de-mandioca, toucinho e carne de porco. A rapadura que era consumida em Curaçá, quando não vinha dos engenhos locais, que tinham pequena capacidade de produção, provinha do “rio de cima” (Alto São Francisco). As tropas iam de 5 a 20 animais para transporte em surrões e caixões. Informação, entre outros, do Sr. Donizete Nunes Franco, *1912. 49 As mercadorias que essas barcas transportavam: de subida: sal, carro-de-boi, penas, algodão, seda-de-algodão(bofó), peles. De descida: rapadura, querosene, tecidos, quinquilharias. Informações fornecidas pelo Sr. Donizete Nunes Franco. 50 José Acendino Duarte (Zezé), *1910. 51 Esta é uma história que até pouco tempo era muito dita. Entretanto, ninguém sabe afirmar ao certo se tal fato aconteceu e nem se conhece o nome e a data dele. O certo é que até pouco

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alguma coisa, com muita dificuldade. Resolveram botar iluminação. Era iluminação de lampião. Aquela luzinha fraca, com a lavareda tremendo no vento, soltando fumaça até nove horas da noite, todo dia. Um aqui, outro ali, sinalizando os pontos, que não clareavam quase nada. Uns oito, só, mas era progresso52. Progresso mesmo era o vapor chegando. Os marinheiros saudando o povo com os chapéus e depois o espetáculo de um deles que pulava na vara para fazer o atracamento do navio. A beira do rio cheia de gente, que todo o povo ia assistir, ver, curiar, que não era coisa de acontecimento do normal53. Os que desembarcavam se orgulhavam. Eram motivo de inveja daquela multidão que estufava os olhos, atenta a tudo.

Campo Santo. Enterrar os mortos só nele para proteger as suas almas, que enterro fora de cemitério dá pasto ao Cão, na atentação das almas dos finados. Os que morriam longe eram trazidos nos esquifes até o cemitério. Os defuntos eram embrulhados em esteiras ou enrolados em redes e depois com uma armação de varas grossas fazia-se a arrumação para o transporte, que caixão era coisa de fineza. Os familiares dos finados ficavam lá nos seus lugares, lamentando, pondo imaginação do trajeto na cabeça. Era dever de obrigação dos vizinhos, dos conhecidos, fazerem o carregamento dos que morriam. A população de Curaçá acompanhava, queria saber, perguntava e os homens carregando o esquife, sérios, meio chorosos, rumavam silenciosamente até o Campo Santo para o enterro. No quieto de palavras, abriam a cova, enterravam o finado. Acabou-se. Jogavam as armações de pau na porta do cemitério, respondiam às perguntas com tristeza e se iam54. Os paus na porta do cemitério, com o ir dos homens, o povo os apanhava para fazer lenha.

tempo havia uma pedra, em frente à casa do Sr. Joatan Nunes Franco, que possuía umas manchas com coloração avermelhada e que o povo dizia ser o sangue do padre. Um prefeito, ao fazer o calçamento da rua onde ela ficava, a mandou arrancar e dar sumiço. 52 A iluminação por lampiões foi utilizada nas eras dos anos 20 e 30, mais ou menos. Havia um funcionário encarregado de acender e apagar os lampiões e estes ficavam acesos do escurecer até às nove horas da noite. Ficava um de cada lado da igreja, outro na casa do Sr. Inácio Pereira, na esquina da prefeitura, na rua do Luar do Sertão havia dois e dois na rua de baixo. 53 Somente em certas épocas do ano, quando as águas do rio estavam altas, o vapor descia até após Curaçá. 54 Informações do Sr. Luiz Lopes Filho, *1919, e de Dna. Cecília da Conceição Lopes, *1913.

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Coisa de doido, sem lua de gente ajuizada. Os grandes falando em comemoração de festejo. O telégrafo, correio55. Como pode? Recado andando pendurado em fio? E os fios estirados, amarrados nos postes. Zummmmm, direto. Negócio de governo. Os funcionários vigiando os fios, os postes e o povo na incutição de mandar telegrama. Um homem foi tirar a prova. Mandou um telegrama e correu para a linha, na espera do papel, com um gancho bem enganchado no fio. Provou. Os estafetas carregando as malas em lombo de burro, a pé. Lampião não gostava de correio, de telégrafo. Saía cortando os postes, os fios, dando carreira nos estafetas. Os estafetas andando pelas estradas, assombrados, na atenção dos cuidados.

Os fazendeiros velhos morrendo. Os filhos herdando, dividindo as

terras, as fazendas, indo embora. As fazendas nos cuidados dos vaqueiros o tempo todo. Os rebanhos repartidos, diminuídos por venda, por morte. Os vaqueiros sozinhos fazendo o trabalho às próprias custas, se pagando com os bichos. Os donos perdendo o interesse, caindo em pobreza. Deram a vender as terras. Os vaqueiros comprando pedaços de chão, montando sítios, virando fazendeiros, que a semente de bicho adquiriam por partilha. Os moradores de favor se fincando no costume do direito de morada nas terras que ocupavam, ficando por ali. O número de donos aumentando56.

Houve uma praga de febre. Ela matava o povo na maior ligeireza. Nas bandas da Barra Grande um sujeito pegou uma febre e capotou. Depois de algum choro, os vizinhos se juntaram. Tomaram as providências do enterro para logo, antes que a febre se alastrasse. Determinaram que dois rapazes deveriam transportar o finado de canoa para sepultamento no cemitério da Santa Cruz57. Os rapazes não se negaram. Colocaram o morto na canoa, seguiram viagem. A uma certa altura da andança, já sem medo da carga, numa curva do rio, viram o morto se levantar e perguntar: “Pra onde estão me levando?”. Agoniaram-se, pularam da canoa e o “morto” gritando: “Esperem por mim!”. Corrida sem parada até chegarem na casa do “finado”. Os

55 Segundo o Sr. Doniezete Nunes Franco, o correio e o telégrafo foram instalados em Curaçá na década de 1910, por iniciativa do Sr. Gerônimo Coelho, então chefe político da cidade. 56 A decadência econômica da pecuária, a partilha de terra por herança e também o parcelamento das terras por venda propiciou o surgimento de um tipo de reforma agrária natural que se estendeu até a década de 1950.57 15 km de distância, aproximadamente.

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familiares dele se lamentavam em lágrimas. Quando estes viram os rapazes perguntaram espantados: “Já enterraram?”. Os rapazes responderam: “O morto vem ai, vem aí atrás”. O povo se esbandalhou pelo meio do mato, assombrado58.

Eras de 1940. Outra febre apareceu, matando gente59. O governo mandou seu funcionários tirar um pedaço do fígado de cada pessoa que morresse e que tivesse febre para enviar para exame. Uma confusão. Os familiares dos mortos não deixavam. “Coisa do diabo!” Gente presa por causa disso. Funcionário escorraçado, se agoniando em funeral, em beira de cova de defunto.

Na rua, só ruinha, o mato era logo aí. O alto cheiroso60 na beira da rua. O povo indo lá fazer cocô, jogar entulho. Construíram a Engolideira nesse lugar. Engolideira era a prisão, era cadeia. Ela engolia os homens que entravam lá. Os presos aí, agoniados pelos soldados. Os soldados olhando, se enfezando, criando raiva. Os presos só olhando, sem poder nada, adivinhando. Os soldados se riam. Apostavam: “Vamos ver quem faz o cabra gritar mais?”. A palmatória cantando. Os presos sofrendo. Os soldados cansando. “Quem entrava ali, não saía homem direito, se saísse vivo61”. O vencedor feliz, os outros aumentando a admiração, o respeito. Os presos não podendo se amolecer. Aguentando, garantir o respeito de ser homem, da honra da família botada neles. Ficavam amuados, enfezados. Apanhar de soldado não fazia lá essas vergonhas. Era coisa do ofício. O povo botava fé em soldado. Soldado se orgulhava. Homem sem medo, sem direito a amofinamento, garantindo o cumprimento da lei do certo. Podia fazer tudo. Tinha muito cabra brabo nesses meios de mato. Os mais valentes, de Chorrochó. Os soldados procurando criminoso a pé. Viajona danada. Quando iam atrás de um tinham que prender, evitar outro sofrimento.

O sem assunto de novidade. Uma pessoa, outra pessoa caminhando devagar pela rua. O sol esquentando, os meninos brincando. Com pouco, a

58 Estas informações são do Sr. Luiz Lopes Filho (Luizinho, *1919), e o caso é verídico. 59 Segundo o Sr. Milton Araújo, tratava-se do tifo. 60 Chamava-se alto cheiroso o arredor, porque, não dispondo de privadas em casa, era nos arredores da rua que o povo satisfazia suas necessidades fisiológicas e ficava aquele cheirinho encardido no ar.61 Frase do Sr. Espedito Bin.

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novidade: Arqueleu está chegando. Os soldados arredaram, estabanados, sem destino de carreira. Cavalos fungando, barulhando com os cascos no chão, em compasso de pressa. Homens montados, com armas nas mãos. Arqueleu na frente. Seus cabras atrás. Eles indo, se indo no rumo da prisão. Foram e foram. Cercaram a cadeia, arrombaram as portas, depois as grades de pau. Soltaram os presos, criminosos de Chorrochó. Acenderam um fogo e o chefe mandou apanhar todos os processos de dentro da delegacia. Arqueleu pegando de um por um, gritando : “Esse é o processo de fulano”... Rasgando-o e lançando-o ao fogo. Cadê os processos dos homens? Arqueleu deixou recado pro chefe de Curaçá: “Diga a ele que mande os processos pra Chorrochó”62.

Correram notícias: “os revoltosos vão atacar Curaçá”. Soldado se tremeu: “eles não dão moleza”. Chegou reforço de tropa. Homens e homens do governo fazendo barreira contra a Coluna Prestes63. Prestes não veio. As forças do governo se aliviaram. Cochilo pequeno. Em 1930 outra revolta64. Os revolucionários tomaram a cidade, de susto. Eles vinham que vinham, tomando cidade por cidade na direção do Rio de Janeiro. O povo não sabia, não entendia o que era. Os soldados do governo não esperaram.65 Quando tiveram a notícia correram sem rumo, caatinga adentro, amedrontados. Um dos chefes políticos da cidade, homem do governo, fugiu. Foi se esconder na roça Santa Cruz. Agoniado, se amoitou por dias, em um mufumbo de calumbi. Os revolucionários cercaram a cidade: ninguém entrava, ninguém saía. Acamparam. Casas fechadas foram ocupadas. O povo fazia acolhimento em suas casas, sem entendimento de razão política. Eles não davam amolecimento a inimigo. Queriam saber cada coisa de cada um. Iam ao mato, matavam gado,

62 Fato ocorrido na década de 1910, pelos idos de 1914/15. Arqueleu era um dos chefes de Chorrochó e, segundo informações, se fazia acompanhar por doze homens em armas. Em Curaçá só havia dois soldados. Informação do Sr. Doniezete Nunes Franco. 63 Este fato aconteceu em 1926. Com a Coluna Prestes palmilhando os sertões nordestinos, o governo espalhou suas tropas pelas cidades que poderiam estar na rota da Coluna Prestes. Esta era formada fundamentalmente por militares, tendo também civis, cujo objetivo era lutar por uma nova ordem no país; tinha como chefe principal o oficial do exército Luis Carlos Prestes, que posteriormente tornou-se um grande nome do cenário político nacional, firmando-se como o maior líder comunista do país. 64 Revolução de 1930, comandada por Getúlio Vargas e que acabou por depor o governo estabelecido.65 Tenente Galdino e o sargento Pedro Álvares. Eles foram avisados pelo funcionário do telégrafo.

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criação. Penduravam as carnes para secar na rua mesmo. Era homem que dava agonia, todos com lenços vermelhos. A frente da igreja serviu de ponto de arrumação das tropas. O povo, querendo simpatia, arranjava um jeito de arranjar pano vermelho também. A tropa queria alegria. Os oficiais faziam festas para ela. Mandavam convidar o povo, com intenção nas moças da cidade. Quem não ia? Os pais não queriam, mas não faziam pé contra, que o negócio não era de brincadeira.

Petrolina também tinha sido tomada pelos revolucionários. Juazeiro resistia. Os revolucionários queriam Juazeiro de qualquer jeito. Ameaçaram fazer bombardeio. Os chefes políticos da cidade, aliados ao governo, se retiraram da cidade, amedrontados. Os revolucionários astuciaram plano: tomar Juazeiro por terra, saindo de Curaçá. As tropas do governo souberam. Rumaram para atacar Curaçá. O Coronel Franklin, de Pilão Arcado, coronel de patente comprada, rumou com seus jagunços, junto com os soldados do governo. Vinham folgados pela estrada. Queriam ataque de surpresa. Os revolucionários souberam da história. Cavaram trincheiras na fazenda Acari. Pegaram a simpatia de Dona. Rola Dantas66, mulher valente e malvada, dona da fazenda. Quando as tropas do governo chegaram foram pegas de surpresa. O fogo comeu. De Curaçá se ouviam os estrondos. Morreu gente, morreu gente. As forças do governo se arrebentaram. Os revolucionários seguiram, levando simpatias, paixões67.

E Lampião! Desassossego! Ele pegou a pisar pela região. O povo ia espalhando a fama, as coisas. Era gente correndo, dormindo no mato, abandonando as fazendas. Não havia paz. Mas, no começo, era mais converseiro. Depois veio um caso. Aí arrepiou. Chorrochó, distrito de Curaçá. Os mesmos soldados. Um sargento pegou seus homens, foi a Chorrochó fazer

66 Rola Dantas, uma das proprietárias da fazenda Acari, chefiava a família e exercia liderança sobre os moradores das proximidades. Era respeitada por seus atos de truculência. A Fazenda Acari fica a aproximadamente 25 km de Curaçá, já nas terras do município de Juazeiro.67 Alguns dos oficiais, pelo menos três, se apaixonaram e casaram-se, posteriormente, com moças de Curaçá. O povo não teve motivo para odiar as tropas revolucionárias, ao contrário, fez amizade. Note que os revolucionários não desrespeitaram a população. Informantes: Seu Jovem (Joviniano Moreira da Silva, *1901), Dona Nén (Liz Carvalho de Araruzo, *1913), Dona ecília da Conceição Lopes, *1913), Sr. Antero Caçote – década de 1910), Zezé (José Acendino Duarte, *1910).

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prisão. Prender Antônio de Ingrácia. Ele não estava em casa. O sargento pegou a mãe dele, botou chocalho, botou cambão, botou careta, fez montaria, maltratação. Os Ingrácias não engoliram a desfeita. Já eram de arruaça. Aí pegou. Juntaram-se com Lampião. Conheciam tudo, o lugar. O sargento, homem do capitão Benevides. Lampião tocou fogo na fazenda68 do capitão, matou o vaqueiro. Começou a perseguição, o piseiro nas terras de Curaçá. Atrás de Lampião as Volantes. Lampião chegando nas fazendas, fazendo exigência. O proprietário tinha que cumprir. Fazer bom recebimento de comida farta e agasalho para seus homens. Lampião se ia. Com pouco chegavam os homens das Volantes. Os combatentes contra Lampião. Faziam acusação de acoitamento e o pau pegava. Os caatingueiros espremidos, sem saber como fazer. Um sujeito arranjou uma saída: receber bem a Lampião e às Volantes: “Sou amigo dos banditórios e dos macacórios”69. Lampião fazia coisas, as Volantes iam no rastro do machucamento do povo, machucando mais. O povo corria para a rua, abandonando o mato, deixando os bichos. Na rua, o moradores fazendo trincheiras, na espera de Lampião. Aí vinha a história: “Lampião tá perto”. A população se esbandalhava. Gente atravessava para Pernambuco, gente caía no mato. Gente da elite fugiu para outras terras de mais longe. No roda que roda, aconteceu. Lampião pegou um irmão do sargento. Carregou esse irmão amarrado em um jumento, no jeito de carregar porco em montaria, até longe. Pediu resgate. A família providenciou dinheiro. Lampião recebeu e disse: “Por mim você tá livre”. Antônio de Ingrácia disse: “Mas de mim não está não” – e o matou, em terras de abaixo de Riacho Seco.

Um espanto. Foi no ano de 1926. O povo só conhecia carro de boi e

tropa de animal, não conhecia carroça. Quando pensa que não, um carro70. Atravessou o rio embarcado. Veio de Boa Vista no seguir viagem para Juazeiro. Todo mundo em cima daquela novidade. Coisa de espanto. O proprietário seguindo viagem. A maior dificuldade que a estrada não estava terminada. Aqui, ali, chamamento de gente para tirar os embaraços71. Depois,

68 Fazenda Amizade. O Sr Benevides era capitão de patente comprada.69 Essa é uma frase atribuída ao capitão Olímpio, morador nas imediações da Fazenda Juá. Informação do Sr. Gió, proprietário da Fazenda Juá. 70 Carro do Sr. Flor Barros, de Boa Vista. Curaçá só veio a conhecer uma carroça no ano de 1959, introduzida pelo Sr. José do Fumo, este proveniente de Ouricuri, Pernambuco.71 A estrada Curaçá-Juazeiro foi construída em 1926 pelo, na época intendente, Raul Coelho.

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no mesmo ano, outro carro. Esse de gente de Curaçá72. As pessoas sonhando com uma voltinha. Coisa impressionante, que não se entendia. Tinha gente que mendigava uma carona, ia para voltar a pé, só para saber como é que era. Nem bem se acostumara com o carro, lá vem Seu Raul Coelho com um rádio. Rádio!? O povo indo se admirar, assistir o bicho falador. O dono o botava na janela de sua casa para o povo ouvir. Depois o levou para o teatro. “Como é que pode essa coisa faladeira? Num será coisa do diabo?”. Uma mulher teimou e teimou. Queria ver o homem que estava dentro da caixa73. Assistir missa feita em Roma, como é que pode? Foi feita até associação para comprar um para o povo. E o povo ficava ali no silêncio, botando atenção, querendo entender.

E os padres! Teve pragas de padres. O do sangue na pedra tá dito. Padre Manoel Félix. Homem de reza forte, de vida santa, de praga pegadeira, conhecedor das leis divinas. Não tinha medo de careta. Arranjava raiva contra ele. Mandaram matá-lo. O pistoleiro se tocaiou. O padre na estrada. O tiro pipocou. A bala pegou na sela. O padre olhou o homem, sem medo. Disse: “Você, daqui para frente não matará mais nem um passarinho”. Seguiu viagem sem olhar para trás. O homem, se tremendo, deu volta desaluado, se acabou sem macheza . Chorrochó. Ele foi rezar missa lá. Deu-se que haviam roubado umas peças da igreja. O padre rezou missa com as velas acesas em castiçais colocados de cabeça para baixo. Um dos rapazes que havia feito o roubo morreu logo, logo, assassinado. O outro ficou aleijado pela vida que viveu, enrolado dentro de uma rede. Mandões do lugar entraram em teima com ele. Ele os mandou arredar. Em Patamuté botou praga em gente. Fez o mesmo em Poço de Fora. O povo se tremia, respeitava, se vigiava no acatamento das coisas ditas por ele74. “Se ele jogasse praga em uma pessoa... ela ia morrer”75. Em Curaçá foi de outro jeito. O padre se navegava com cabeça própria. Não adulava rico. Não fazia aprochego com a elite. Uma família da elite entrou em revolta contra ele. Providenciou seu retiramento. Ele nem aí. O padre gostava de vatapá. Um dia, alguns membros dessa família mandaram fazer um vatapá com quipá, xique-xique, mandacaru. Enfeitaram o bicho bem direitinho e

72 Esse de propriedade do Sr. Raul Coelho.73 Informações dos Senhores Angêlo Alves Santos e Donizete Nunes Franco, entre outros.74 O padre Manoel Félix atuou como pároco de Curaçá nos anos de 1905 a 1914. Ele chegou a morar na Gruta de Patamuté e foi o iniciador das romarias do dia 2 de novembro. A informação relativa a Chorrochó nos foi fornecida pela Sra. Maria Teles de Mendonça, de Riacho Seco.75 Seu Jovem (Joviniano Moreira da Silva), de Poço de Fora.

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mandaram para ele. Veio o decreto de praga: “Atraso para os membros da família até a 5ª geração e não haverão de ser nada”.

“O padre Eutímio sabia se benzer” 76. Veio logo depois do padre Félix. Botou morada em Curaçá. Tinha mulher amante77. O padre rezando missa e uns sujeitos, gente de bem da cidade, lá. Lá na casa da amante dele. Sapecaram o pau a bater nela, chutando, espancando de todo jeito. Pegaram umas riquezas dela. O padre foi avisado no fim da missa. Assuntou o caso com os olhos, vendo a mulher escorneada, gemendo. Deu as providências da salvação da vida. Anunciou o decreto dos destinos dos homens: “Todos cairão em desgraças e farão padecimento até enquanto viverem”. “A praga pegou”. Até pouco tempo tinha gente carregando ferida na perna, cachimbando pelo meio da rua. E o bêbado? O padre rezando missa. Um bêbado chegou falando, dizendo coisas do padre. O padre mandou botar o bêbado fora. Ordenou o fechamento das portas. Chovia. O bêbado não se foi. Fez baticum, urrando na porta da igreja, enquanto o padre rezava. O padre não disse nada. O povo fez juízo de praga. O bêbado era comerciante na feira. Ninguém mais quis comprar nada dele. O padre se compadeceu e foi lá, no meio da rua da feira, dizer: “Comprem as coisas do homem que ele não está excomungado não”.

Dificuldades com tratamento das doenças. Rezas, remédios de pau. Dor-de-barriga: raspa de caatingueira, chá de pai-pedo, cuia esquentada no fogo e passada em cruz na barriga; febre: chá de eucalipto; para obrar: purgante de óleo de rícino; pílula-contra para tudo; papeira: casa de maria-pobre e, quando ela descia, o sujeito tinha que ir urrar num curral; arranhão com sangue nas pernas, nos braços: mijo. Para cortar íngua, tição passado em cruz nos pés. No resguardo: cebola branca, raspa de quebra-faca, arruda, fazer inguento. Depois amarrava na barriga. Um mês assim, com a coisa, sem afrouxamento. Banho de pé à cabeça, de jeito nenhum, que a mulher morria. Só meio banho, até um mês. Não podia pegar sereno. Andar de pés descalços... “Deus me livre!”. Para dentição: raíz de carquejo; sujeira no nariz de menininho: água de barco para a criança beber78. Se isso não desse jeito, feiticeiro. Se não desse 76 O padre Eutímio sucedeu ao padre Manoel Félix.77 O padre Firmino veio para Curaçá e teve três filhos; o padre João teve amante em Curaçá e um outro fez família na cidade78 Água que se acumulava no piso das canoas. A mortalidade infantil e de parturientes era alarmante.

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jeito, morria. Mulher em parto, assistência de parteira. O menino nascendo e a parteira com um cachimbo na boca. Menino nascido, um assopro de fumaça no imbigo dele. Mãe Sérgia, a mais famosa. Fez muito trabalho de nascimento. Na rua, no tempo dela, pegou quase todo mundo que nasceu79. Depois teve doutor na rua. Não tinha farmácia. O doutor passava a receita. Cadê o remédio? Os possuídos de condições mandavam um portador comprar em Juazeiro. Seu Manoel Velho era quem mais ia. Ia a pé. Saía em um dia, chegava no outro80. Mas doutor não curava doença de feitiço, de picada de cobra. Doença de feitiço com feiticeiro. Para picada de cobra, rezador, remédios feitos de pau, resguardo contra gente do sangue, de olho ruim. Para sezão!? Quinino, remédio que o povo encontrou. Esse vinha de farmácia. Um pozinho, ruim, amarguento. Tão amarguento que o cristão não aguentava engolir ele nu. O povo fazia um embrulhuzinho em papel de seda e depois o engolia. Só aguentava assim. Teve até gente que ficou surda por causa dele81. Dor de dente, dor de dente! Arrancar o bicho sem ajuda de anestesia. No dia da feira o dentista às vezes vinha. Se arranchava debaixo de um pé de pau e começava o trabalho. O dolorido sentado em uma cadeira, o dentista com o boticão na mão e uns quatro homens segurando o camarada. O pau comia e o camarada esperneando até o fim do trabalho. Mesmo com esse sacrifício todo havia gente, que com os dentes sãos, mandava-os arrancar para botar chapa, dente de ouro no lugar82.

79 Mãe Sérgia (Sérgia Maria da Conceição). Esse nome porque as parteiras eram reverenciadas pelas crianças nascidas pelas mãos delas como uma segunda mãe. Faleceu na década de 1960, bastante velhinha. Fez o trabalho de parto de várias gerações, para o que não exigia pagamento. Era descendente de escravos e sucedeu seus pais na guarda da bandeira de São Benedito. Até hoje, é da casa onde ela morou que a bandeira sai todos os anos. Não fumava.80 Isso até a década de 1940. A remuneração por esse serviço era de 12 mil réis, equivalente a seis dias de serviço. Segundo diziam, era mais rápido que animal. O fator determinante, entretanto, eram as despesas que os animais provocariam e a demora da viagem de volta. Informante: Donizete Nunes Franco.81 Informação do Sr. Milton Araújo. O impaludismo, ou sezão atacava principalmente nos períodos de cheia e vazante do rio. Nas décadas anteriores a 1960 morreu muita gente de febre tifo e de impaludismo. 82 Usar chapa, dente de ouro ou as duas coisas ao mesmo tempo era sinal de boa condição social.

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Os tropeiros, os boiadeiros nos caminhos, caminhando para a Serra Branca83, para Juazeiro, para Rio Branco84, para Vila Nova da Rainha85.

Tropas de cinco, de dez, de vinte animais de carga86. Surrões, caixões

com as mercadorias dentro, cobertos por couros. Farinha, rapadura, toucinho, carne seca, milho, cachaça, feijão... As estradas estreitas, com o mato batendo nas cargas. Andanças de feira em feira. Os animais marcando rojão, no compasso do grito do tropeiro. A chibata estalando no ar. Puxado grande para dormida nos pontos de descanso, de água, de feira de dia certo.

Nas roças, as farinhadas, os trabalhos de moagem de cana, os trabalhos de plantação, de limpa da terra. Rapadura e farinha87. O rio subindo, comendo terra, afogando a plantação e o povo na arrancação de mandioca. Trabalho nas pressas, com a água vindo e com as formigas comendo os pés, as mãos. Carregação da mandioca para as canoas, no lameiro. As canoas entupidas. Remar até a casa-de-farinha. Fazer o carrego até as raspadeiras e as raspadeiras raspando, raspando, cantando, soltando converseiro, tirando versos.

“Passarim sofreu “Ô minha gente!Onde vai morar olhe a rola

Na beira do rio fogo pagôOnde canta o sabiá minha rolaOu na beira do rio pega o nizinhoOnde canta o sabiá. da rola

83 Serra Branca, no Estado de Pernambuco. Na verdade os tropeiros se abasteciam em toda essa região, atingindo as cidades de Bodocó, Araripina, Crato e algumas outras. Aí se abasteciam com farinha, feijão e toucinho, fundamentalmente. 84 Rio Branco, atual Arco Verde-PE, fica a aproximadamente 500 km de Curaçá. Segundo os tropeiros, a distância era de 95 léguas (570 km). Ali existia uma feira de gado. De Curaçá a Rio Branco, a viagem durava entre 18 e 22 dias, segundo o Sr. Sindolfo Cursino Rosa, *1919. 85 Atual cidade de Senhor do Bonfim. Para esta localidade, os tropeiros levavam criação miúda e compravam principalmente produtos alimentícios.86 A carga transportada por cada animal pesava por volta de 60 kg.87 Estes foram os alimentos básicos de nossa gente até a década de 1960. Outro alimento importante era o toucinho e o feijão. Tendo isso, o camarada podia dizer que era farto.

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Ceva, ceva cevadeira fogo pagouSeu cevar já me namora minha rolaSe não fosse seu cevar pega nos ovinhosEu não estaria aqui agora. da rola

Passarim...” fogo pagou

minha rola pega no pezinho da rola fogo pagou...”88

Ralar, imprensar, peneirar, mexer a massa no forno89. A moçada se

olhando, procurando namoro, aproveitando o mexido do peneiramento da massa na peneira para se grosar nas mãos. O povo na conversa, esperando sono, esperando o aprontamento dos beijus90. O mexedor, não! Rolando a noite toda na beira do forno, no vai-e-vem do rodo, mexendo a massa. Cuidando para ninguém bufar por perto, senão a farinha saía azeda. No tarde da noite, o povo se enrolando com cobertores, procurando um canto de parede, qualquer beira de chão, providenciando agasalho para o sono.

88 E por aí iam as brincadeiras embutidas nas cantigas, entrecortadas por gargalhadas. Os versos da Rola foram recolhidos da boca de Loló, rapadeira de longas datas. 89 O trabalho era coletivo. Os arrancadores, as raspadeiras, os mexedores e o dono da casa-de-farinha recebiam a paga em farinha. Uma raspadeira recebia um prato (cinco litros) de farinha por dia. O mexedor que, além de ter a atribuição de ajudar no trabalho de arranca, de transporte e de prensagem da massa, era pago na proporção de um prato de farinha a cada oito produzidos. O proprietário da casa-de-farinha era remunerado na mesma proporção do mexedor. O dono da mandioca ainda tinha que remunerar com farinha o tirador de lenha e as pessoas envolvidas em outras operações, como peneirar, carregar a mandioca, lavar, etc. Tinha também que arcar com as despesas de alimentação de todos quantos participassem do processo de desmanche da mandioca. No final, sobrava entre a metade e um pouco menos da produção, mas o que interessava ao dono da farinhada e aos demais que se envolviam no trabalho de desmanche da mandioca era a garantia de alimentação e farinha era a alimentação básica. Possuí-la estocada em casa significava fartura. Esse o seu valor. Informação prestada pelo Sr. Bina (Bernardino Rodrigues dos Santos) e Luizinho (Luiz Lopes), que ainda possuem casas-de-farinha. 90 De início, até a década de 1940, o trabalho de ralar a mandioca era inteiramente manual, feito através da força humana. Depois, alguns proprietários de casas-de-farinha introduziram motor.

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Plantação na beira do rio no aproveitamento da umidade da vazante, uma tira de terra no comprido da linha d`água, que plantação maior só quando Deus mandava chuva. Milho, abóbora, batata, feijão, mandioca, melancia. Plantar muito, para quê? “Você tinha para vender e não tinha quem comprasse”. Trabalho na medida das necessidades do sustento. Fora a plantação a aventura nas pescarias, esperando a sorte de uma fisgada, tiração de palha de carnaúba para fazer esteira, vassoura, chapéu, extrair a cera91.

Nos engenhos, outra futrica. Trabalhos de moagem92. Cortar cana,

carregar a cana para o pé do engenho, botar lenha, aparar a garapa, cuidar dos tachos para não perder o ponto do mel, da rapadura, colocar o melaço nas formas. Garapa, mel, rapadura, batida, alfinim. Os bois girando, rodando a moenda de pau naquele inhec inhec da madeira gritando, o “pé-de-engenho” enfiando a cana na moenda, a garapa caindo. Os tachos no fogo, esquentando a garapa, pro apurado do mel. O ponteiro na atenção, cuidando do ponto certo. As formas sendo enchidas, na medida certa do tamanho das rapaduras. Os meninos esperando as coisas doces dessa agonia, se lambuzando no chupado de cana.

Nas caatingas, trabalho com os bichos. O criatoriozão aí. “O criatório era muito. Os donos eram poucos. Quem tinha, tinha muito. Quem não tinha, não tinha nada93.” As cabras, o gado chegando na malhada. Os bodes no bodejo, correndo atrás das cabras. Os jumentos urrando, os bezerros, as vacas berrando. Gritos, latidos no mato e os chocalhos das cabras tocando. As caças gordas, muitas, no mato. O ronco das emas, o canto das seriemas Queijo,

91 A cera de carnaúba chegou a ser um produto importante na economia regional. Embora não proporcionasse renda vantajosa, proporcionava um meio de vida para muitas pessoas em alguns períodos do ano. A cera era retirada da palha depois destas serem retidas e postas a secar. Uma vez secas, batiam-nas e delas caía um tipo de um pó que era aparado para depois ser transformado em barra, por meio de cozimento.92 Pé-de-engenho era o responsável por fazer a moagem; o ponteiro era o responsável pela apuração do mel e pela observação do ponto do mel. O proprietário do engenho assumia todas as despesas da moagem, dividindo a produção bruta, meio a meio, com o produtor da cana. A produção no município era insuficiente para satisfazer as necessidades da população. 93 Espressões análogas a essa foram pronunciadas por várias das pessoas entrevistadas.

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requeijão, imbuzada, coalhada, carne assada, pele de criação para fazer a feira94, cheiro de chuva, banho nos riachos. De noite, fogueiras, histórias. Doenças para os bichos quase não tinha. Se aparecesse, chamavam o curador de pasto para fazer benzimento. Ele benzia três cantos, um ficava sem benzimento para a “intuição ruim sair”95. As doenças se acabavam. Bicho de bicheira caía com reza. Para as mundiças das plantas também era só fazer reza: “Chegar na roça e dizer: Senhoras mundiças, Jesus Cristo mandou dizer que é pra subir ou pra descer”. No outro dia não tinha mais nenhuma. Se virasse uma lagarta pelo avesso, as outras morriam.

A seca: “Tristeza de vaqueiro”96. O vento soprando, o vento sumindo, os bichos berrando fraco. A valença: ela demorava a vir. Quando vinha, queimar mandacaru, xique-xique. Cortar rama de juazeiro, de quixabeira. Dar água aos bichos, nas cacimbas, puxando água de bogó. A seca apertando, os bichos esmagrecendo, morrendo, o mundo se enfeiando. Quem tinha do que se valer, se valia do que tinha. Quem não tinha, dava providência de outras coisas no trabalho de se escapar. Tirar casca de angico97, arrancar salitre das furnas, trabalho do cão98. Da serra da Borracha com muito salitre na barriga, socado 94 Os caatingueiros, via de regra, efetuavam todas as compras na feira com o dinheiro apurado com a venda da pele da criação que abatiam para comer. 95 Expressão do Sr. Francisco Bispo, que nos deu informações, sendo ele um benzedor.96 Expressões frequentemente utilizada pelas pessoas que vivem ou viveram no campo.97 A flor do angico era um excelente refrigério para os animais e a retirada da casca redundava, no mais das vezes, na morte do pau. Alguns criadores fizeram queixa ao prefeito, na década de 1950, e este mandou tocar fogo nas cascas tiradas e que eram o meio de ganho do povo na seca. Resultado: até hoje o povo prejudicado não esqueceu o fato e se enraivece quando ouve o nome dele. 98 A exploração do salitre tinha duas utilidade. Tanto servia para a produção de sal, como de matéria prima para a produção de pólvora, além de ser um produto comercializável. Um quilo de salitre proporcionava recurso suficiente para se fazer uma feira. Processo de extração: tirar o salitre de uma furna, porque ele só dá onde não cai água. Pega a terra e a mistura com cinza de esterco. Coloca-se em coxos furados, coloca-se água e vai-se alimentando até lavar. Os pingos, em baixo, vão sendo aparados em uma vasilha. Pega-se a água pingada e a coloca em uns tachos para ferver, até dar o ponto. Resultado: fica um tipo de um mel. Depois disso, coloca-se em coxos de madeira e esse mel coalha. Quando já estiver coalhado, joga-se água nele várias vezes até lavar. Lavado, põe-se em um tacho para ferver de novo. É descoalhado. Coloca-se no coxo novamente e aí ele coalha diferente. No final, ele fica como sal de pedra. Esse era o processo utilizado até a década de 1940. A comercialização era feita em Patamuté e em Uauá para comerciantes de Sergipe. Informação fornecida pelo Sr. Sindolfo Rosa, que teve nessa atividade parte de sua sobrevivência. Desde muito tempo o salitre vinha sendo extraído.

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por dentro das locas. “Juntava uma homaiada danada. Era tanta gente, que se aproveitava até para fazer festa99.” Na faltança de tudo, apelar para as comidas que o mato dava, “que gente pobre não tem grã-fineza, é o que Deus dá100”: batata de angelim, batata de macambira, gró101, xique-xique102 e até mucunã. Mucunã, quando não havia mais jeito de nada. Tinha que ser lavado em nove águas, senão podia matar. “Quem comeu mucunã, se morreu com cem anos, ainda morreu de mucunã”103.

“Ladrão!? Ou era desterrado104, ou era preso ou era morto.” A família do camarada ficava toda esmorecida, envergonhada e todo mundo no fala, fala. Perdia merecimento de respeito, de honra. A família, no que podia, providenciava reparação, se lavando, se desesperando na vergonha105.

Uma lavadeira andando pelas lojas do comércio. Não desconfiava que desconfiassem de sua pessoa. Pegou umas peças de pano. Os donos deram falta. Pensaram nela. O delegado foi lá na casa dela. Executou as investigações, achando o fato das coisas. Decretou pena, jeito, dia e hora de seu cumprimento. Todo mundo ficou sabendo, conversando nos ouvidos. No aprazado, conforme

Já em 1697, a viúva de um dos D`Ávilas, Dona. Leonor Pereira Marinho, mandara construir nessa serra, uma oficina para a preparação de salitre. As ruínas dela estão lá, já bastante comidas pelo tempo. Possui aproximadamente 8 metros de comprimento por 4 de largura, toda construída com pedra; observam-se bocas de forno (duas) em uma das laterais, acabadas com tijolo de alvenaria. O povo morador nas vizinhanças diz que ali era a casa dos caboclos.99 De Dona Ricota, moradora da fazenda Laminha, nas cercanias da Serra da Borracha (mais ou menos 75 anos).100 Expressão de Dona Elzita da Salobra.101 O gró era feito do miolo do ouricuri. Lascava-se, colocava no sol e depois de seco fazia-se angu. 102 Com o xique-xique fazia-se cuscuz. Retirava-se a parte interna dele, colocava-se por vários dias no sol para secar e, uma vez seco, fazia-se a massa. Todos os informantes disseram que esse cuscuz era gostoso.103 Dito do Sr. Sindolfo Rosa. 104 Desterro era um recurso que os criadores utilizavam quando tinham conhecimento que alguém estava praticando roubo de bode. Isso obtinham ou através de pressão sobre a família do acusado, ou oferecendo os meios para que o mesmo se mudasse para outro local. 105 Os atos bons ou ruins praticados por um indivíduo, repercutiam sobre todos os membros de sua família. Assim, as famílias, para se livrarem das sanções morais,. procuravam reparar as práticas negativas de seus membros, repudiando-as e punindo o mal feitor de modo que todos viessem a tomar conhecimento.

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o decreto do delegado, tudo aconteceu. Ela na frente, com uma toalha encobrindo a cabeça, cuidando para não ser vista, escondendo a vergonha. O povo se fechou nas casas, curiando pelos buracos das portas. Ela apontou bem no beco do Chalé. Vinha na frente, com os panos do furto segurados pelos braços. Um soldado atrás. Ela caminhava no rumo do cumprimento da sentença. Ia passando pelas frentes das casas, na conformidade do andar. Sabia que era vista. Encafifava-se por dentro de si, ouvindo o pisado do soldado bem perto dela. E foi... e foi nesse que chegou na primeira loja. Botou os panos lá onde estavam antes. Depois foi na outra. O soldado parou por aí, olhando o ela sumir na esquina, atarantada. Os converseiros aos pés dos ouvidos, na rua106.

Prefeito? Existia! Não se sabia direito que serventia tinha. Os políticos nas pendengas disputando prestígio, se arreliando com eles mesmos. O povo se dividia no acompanhamento de um dos lados. Os eleitores votando, carregados pelas mãos dos candidatos. Precisava-se de palavra de proteção, no quase nada das coisas do governo, da justiça, de polícia. De tempo em tempo uma eleição. As coisas na mesma. Ninguém esperava nada, que cada um que desse seu jeito de viver, cuidando do que podia e queria. A falta de tudo batendo e o povo se rebolando no nada, na esperança da piedade de Deus. Remédio para escassez de água: abrir cacimba. E era assim, porque era assim que era.

Os ensinamentos. Na rua107, escola para meninos, escola para meninas. O professor entrando na sala e os meninos ficando de pé para tomar a bênção, todo mundo de uma vez só: “Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo, bênção, professora”. Ela respondia: “Para sempre Deus seja louvado. Deus abençoe”. Professores do governo, desde muito existiam, com professores formados pela vocação. Com formatura de escola, as professoras Marieta e Enedina, vindas das lonjuras de Salvador108. Pobre começando a ver utilidade em estudo, mas 106 Este fato ocorreu na década de 1950.107 Rua era assim que designava-se a cidade ou a sede do distrito.108 As primeiras professoras formadas em Curaçá foram Anedina e Marieta Severo Bahia, vindas de Salvador entre finais do século XIX e início do século XX. Não dispomos de informações a respeito dos professores do século passado. O professor Evaristo lecionou por volta da primeira década desse século, assim como o professor Hermenegildo (estes leigos) e Dona Maria Carlota. Nessa época, o trabalho de professor não era remunerado condignamente, pois Evaristo viveu na miséria – In: Álbum do Centenário de Curaçá. Foram também professores da primeira metade do século em Curaçá as Senhoras Maria Carlota, Leni Possídio, Elisabeth Bahia, Olga Bahia, Ezilda Torres, Ilda Torres Lima, Maria Augusta, Excelda

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escola difícil. Tinha exigência, os meninos precisavam trabalhar109. O povo no mato, que na rua era pouca gente. Botar professor pé-de-pau110, sem formação de diploma. Os pais pagavam, o professor ia, ficava morando lá. Escola com exigência que se pudesse cumprir. Professor dando aula em casa, debaixo de pau, fazendo governo de estudo com palmatória, com reguadas, com castigos de ajoelhamento no chão em cima de caroços de milho. Ensinar a ler, a escrever, a contar. Os meninos levando seus banquinhos, se sentando no chão, lendo a Cartilha do Povo. Depois o 1º Livro, o 2º Livro, até o 5º Livro. Não tinha mais livro e o cabra estava pronto. Nas aulas, o professor marcava o dia do “argumento”: perguntas e respostas sem gaguejo. Tabuada cantada. Quem não soubesse responder em cima da bucha apanhava. Menino sem caderno, fazendo escrita, conta no chão. Caderno só foi depois, que antes ou era o chão ou eram as pedras, onde se faziam as contas111. O recreio, uma festa de alegria. Mas... daí o professor tocava o buzo112 e pronto, era o começo da agonia.

As festas da rua. No fim do ano tinha a maior. Natal: presépio de Jesus-menino. O povo apreciando aquela boniteza com piedade, tudo tão condoído no olhar de Nossa Mãe Virgem Maria, dos bichinhos perto dela na manjedoura. Missa do Galo com todo mundo se purificando dos pecados, ouvindo a voz do padre, adorando os santos ajuntados no altar. No fim, o baile pastoril, da gente de grã-finagem cantando, dançando na rua, vestida com roupa só vestida naquele dia. No emendar dos dias, a festa de São Benedito, do Bom Jesus da Boa Morte. No começo não era assim. A atenção a São Benedito era em outra ocasião, mas havia dificuldade de padre. Resolveram fazer tudo junto e ficou

Nascimento e já, na década de 1950, Valdelice Aquino e Eliete Torres (Titinha). Informantes Ângelo Alves dos Santos e Valdelice Aquino. 109 As dificuldades eram muitas. Na rua eram poucas as pessoas que moravam e mesmo entre essas poucas, quase ninguém podia arcar com as despesas de comprar livros, cadernos e fardamento, conforme era exigido. No mais, a alimentação dos meninos pobres pela manhã, antes de irem à escola, era café preto com farinha.110 Essa designação decorria do fato desses professores serem práticos e também por se sujeitarem a trabalhar nas condições que lhes ofereciam. Foram de extrema importância na alfabetização do povo do mato e também da cidade.111 Pedra: um pedaço de granito em forma de tábua, com molduras, no formato de uma folha. Nessa pedra, só para fazer conta, o estudante escrevia com outra pedra, que servia como um tipo de giz. Logo que o espaço era preenchido, com a tarefa pronta, mostrava-se ao professor para correções e apagava-se para nova tarefa. Em Curaçá, o último desses professores, na sede, foi o professor Sílvio Torres, famoso por seu rigor. Também o professor Austriquiliano teve grande importância como educador na área das caatingas.112 Uma espécie de buzina de chifre feita com chifre de gado.

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um festão emendado, sem folga113. Os das caatingas vinham, os das roças também. Os que estavam fora voltavam. Aquela gente chegando, muitas pessoas mal vestidas e descalças, carregando a roupa da festa enrolada em uma toalha, uma muda só, pendurada no braço e, entrançado no pescoço, um par de sapatos com os cadaços amarrados. Todo mundo se vendo naquela alegria. Tinha novena, tinha missa. O padre celebrando, o povo se libertando dos pecados na reza. Casamento, batizado. No dia da saída da bandeira de São Benedito, um grupo saindo com ela, de casa em casa, tirando esmola e todo mundo abrindo a casa para a visita. Os moradores de cada casa esperando, vindo de longe, para receber a visita. A bandeira entrando, todo mundo cantando:

“É chegada nesta casa É chegada nesta casa Este santo pede esmola

A bandeira da alegria Mas não é por carecer Que nela vem retratada Pede pra experimentar Benedito maravilha. Quem seu devoto quer ser

Benedito maravilha Este santo saiu hoje Vem correndo a freguesia Saiu com muita alegria Vem tirando sua esmola Visitando seus devotos Para a festa do seu dia. Filhos da Virgem Maria

Quem se cobre com a bandeira No reino do céu se veja A bandeira da alegria Nossas almas em bom lugar... Que nela vem retratado Meu Senhor São Benedito

A bandeira passando pelas cabeças dos moradores da casa e eles beijando, com os olhos chorentos, se enchendo de emoção, ouvindo o verso de saída:

(...) Deus lhe pague sua esmola

113 Informação da professora Nenzinha (Maria de Almeida Araújo, *1916. Segundo ela, um dos padres que serviu à cidade ficava indignado por ser São Benedito mais popular e mais devotado que o padroeiro. Esse fenômeno ocorre em outras cidades do Brasil.

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Deus lhe dê muito que dá. Deus lhe pague sua esmola Deus lhe dê muito o que dá”.

Na procissão da levantação da bandeira de São Benedito, nem se fala... do mundo de gente que ajuntava. Todo mundo cantando, com veneração de crença forte, com velas acesas nas mãos, levando a bandeira. Os homens se apressando, para chegar na frente, pagar promessa de carregar o mastro. Um embuchado de mãos nele, no seu carregamento para igreja. Na igreja a levantação. A bandeira amarrada no mastro, o mastro subindo, os foguetes pipocando no ar e o padre gritando: “Viva São Benedito!”. O povo respondendo: “Viva!” – e cantando:

“Que bandeira é esta Que vamos levantar - É de São Benedito Que vamos festejar

Viva, viva Viva São Benedito Que vamos festejar”.

Levantação feita. Todo mundo pro teatro para assistir ao drama114. Depois forró nas casas, que tinha muito sanfoneiro. Não cobravam ingresso para entrar. Só pagava quem dançasse. Mulher, não. O cabra dançava uma vez, outra vez e aí precisava pagar a cota. O cobrador ficava assuntando o povo no salão, para ninguém enganar. Mas tinha camarada sabido, que não pagava cota. Saía de casa em casa onde tinha forró e dançava a noite toda, de graça, só dançando duas partes em cada uma. Os sanfoneiros lá dentro das casas agoniando a sanfona e os dançadores chiando os pés no chão. Manoel Pistola resfolegando o fole, cantando o "Deus Salve a América"115... A poeira subindo. Um suor lascado, com o calorzão tomando conta da sala. De vez em vez um cacete e... aquele corre-corre atropelado. O povo se esbandalhando, correndo 114 Drama, entendido como qualquer representação teatral. Todo ano era preparado um espetáculo para a noite do dia 30 de dezembro. 115 Hino da América, que era uma das músicas que o povo mais gostava de dançar, nos toques da sanfona de Manoel Pistola.

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para longe e, de longe, assuntando a hora certa de voltar pro chamego do rala-rala. A elite fora disso, que a festa da “sociedade” era no salão da prefeitura, com tocadores de instrumentos finos e músicas de outro jeito, com seleção de quem podia entrar. Coisa para gente de posição. Mas havia gente pobre que ia lá, ficar se divertindo vendo, serenando do lado de fora, na janela. Havia também o carrossel, que botavam perto do cais. Aquelas coisas rodando e a meninada desejando, os adultos apreciando. A banca de seu Odilon, cheia de coisas apreciadas, levantando vontade, o jogo caipira com o bozó com os dados dentro e os homens, a mocidade aventurando sorte. O todo povo enfeitado, com roupa nova, com sapato. Um paluxiado danado no se apresentar. Cabelo lambido com brilhantina, chaveiro com pente, escova de dente e espelho, pendurados no passador dianteiro da calça. Um cheiro grande cheirando no ficar perto das pessoas. Gente puxando da perna, pelos agoneios do sapato apertando no pé. Quando não, quando não, o camarada se revoltava, arrancava o bicho dos pés e se acocorava onde desse para ser.

Na manhãzinha do outro dia, os marujos em animação de festa, chegando embarcados, indo para a igreja homenagear a bandeira de São Benedito, cantando, tocando:

“Adeus, adeus, porto do mar “Vamos seguindo nas ondas do mar Ora Deus, ora Deus Vamos seguindo nas ondas do marRibeira riá Conceição de Maria nos queira

ajudar Adeus, adeus, porto do mar Conceição de Maria nos queira

ajudar Ora Deus, ora Deus Queira ajudar, queira ajudar”. Ribeira riá. .................................Quando eu fora me embarcar “Viva os soldados que

andaram aquiCom espingarda e mochila Viva os soldados que andaram

aqui

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Lacuxia, lacuxia Viva nosso Rei do Aracati Lá no porto do mar. Viva nosso Rei do Aracati Do Aracati, do Aracati”. Adeus... .......................................................... Esse nosso batalhão “Dom Pedro, Dom Antônio,É formado em divisão Dom Felipe, Dom ToméAlferes, porta-bandeira Os marujos de Angola General e Capitão. Pintandim que nem guiné (Bis) Adeus...”. Esse povo já me pede Pra essa guerra se acabá Já morreu o capitão Só ficou o generá”.

Depois pegar o rei e a rainha e sair pelas ruas até a igreja. Rei e rainha

no trono, no altar. O padre rezando, o coral cantando, o povo venerando, os foguetes pipocando. De resto visitar as casas para começão e bebeção. Assim do amanhecer ao entardecer. No outro dia, a procissão do padroeiro. E a banda de música? Cabras bons nos toques, no acompanhando da procissão, na missa, na praça. No começo era só a Banda de Curaçá, depois a Banda de Curaçá misturada com a de Barro Vermelho e, no correr dos tempos, só a de Barro Vermelho.

As mulheres da alegria dos homens também faziam suas festas, tinham suas danças. Corria na rua que era dança de cabaré. A sociedade condenava essa animação. O samba rolava a noite toda. Fele Brabo, o sanfoneiro, homem puro, ia lá pro ganho da vida tirando harmonia do fole. Tocava a noite toda com os olhos fechados, “pra não ver safadeza, pra não pecar”.

Fora do fim do ano, na rua, as festas de assustado. Os rapazes combinavam segredo com as moças: “ Vamos fazer um assustado na casa de fulano”. Na hora o fulano em casa, calmo, quando via era a chegança do povo

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dizendo que ia ter festa. O dono da casa tinha que dar as providências do beber e do comer. Ficava acanhado de negar a graça da brincadeira. Procura providência. Não havia carnaval. Era “intrude”116. A moçada se mascarava e saía pela rua assustando os meninos, tirando brincadeira, jogando água no povo. Algumas pessoas danavam a xingar, a jogar pedra, a cair com molhador no chicote. Houve até um sujeito que fugiu pro mato... se perdeu. Morreu lá, de fome, de sede117. Quando o acharam veio o arrependimento da brincadeira. No São João, as fogueiras, os fogos pipocando118. Milho assado, canjica, as quadrilhas, pau-de-sebo, quebra pote. Todo mundo tinha que acender fogueira, “senão o diabo vinha mijar na porta”. Os viúvos, não. Esses ficavam com a dívida para o dia de São Pedro. Os batismo de São João, com a moçada se apadrinhando.

As cerimônias da morte de Cristo. Semana Santa. Resguardo para a alma, sem ninguém poder pecar, nem em atos nem em pensamentos. Não podia, não podia, não podia. Na sexta-feira, aí então! Reza, reza, jejum sério. Se fosse tirar leite, do peito do animal saía sangue. Se montasse em um animal, era como se montasse em Jesus. Só podia matar cobra, que esse feito levava ao caminho da salvação, mas as cobras se escondiam... O dia virava. Sábado de Aleluia: a serração. A turma fazia rosário de mamona, cruz de qualquer pau, pegava serrote, enxada, pé-de-cabra e saía no silêncio, procurando casa de gente amigada. Chegava quietinha, travava as portas, as janelas e aí, em coro, grosando o serrote em alguma coisa que fizesse barulho, danava a gritaria de lamentação no mundo: “Acorda jumento vem receber seu sacramento. Jesus, perdoe esse irmão!”. De dentro da casa partia tiro, partiam xingamentos: “A panela de cozinhar viado eu já quebrei. Fulano, sua irmã dá a beltrano! O tabaco da mãe, filho de rapariga! Vá serrar o corno de seu pai! ”119.

Vaqueiro não tinha dia de festa na rua. Suas festas eram no mato, todo dia no tempo da pega de boi. Na comemoração do Centenário120 os da rua

116 Entrudo, de acordo com o dicionário.117 O nome desse cidadão era Pedro Fogoso. 118 Os fogos, do final da década de 1950 até a década de 1960 eram confeccionados por Dona Ana Fogueteira, uma senhora protestante. 119 Dona Ciclita, moradora da rua de baixo, era a predileta dos serradores porque era a que mais xingava e era a mais imoral nas palavras.120 O Centenário de Curaçá aconteceu em 1953.

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fizeram a invenção. Convidaram os vaqueiros para fazerem apresentação. O povo gostou, os vaqueiros gostaram. E aí no outro ano, e mais ano e todo ano. A vaqueirama toda pronta, completa nos couros: chapéu, gibão, perneira, peitoral, sapato de couro121, garupeira, guiada, corda, serrote, facão, faca, alforje, machadinho, flêmo122, frasco de mercúrio123, tabaqueiro de torrado, copo de chifre, buzo, jogo de peias, chocalho, mochila para milho. Cavalos no completo dos arreios. Os organizadores na vistoria. Se tivesse um sem os aprontamentos de vaqueiro, era botado fora. De manhã a missa, depois o desfile pelas ruas, com os vaqueiros aboiando.

“Ô...ê.... “Ô... ê... meniná Eu nasci pra ser vaqueiro Meniná eu quero um beijo E adoro a profissão Só não quero no pescoço Quando monto eu meu cavalo Quero no bico do peito Quando eu tomo o meu gibão Que é lugar que não tem osso Me pego logo com Deus Que já tô ficando véio Pra honrar minha profissão Prá lembrar que já fui moço Ê... boi, oi ê.. i... a...” 124 Ê... ê... ô... ô...” Os aboios, onde houvesse vaqueiro, o dia todo. A rua para os cavalos, o

povo que se desviasse. À tarde, as corridas, a escolha do cavalo mais bonito, a escolha do vaqueiro melhor encourado, os prêmios. O povo da rua vendo, aplaudindo, admirando, se orgulhando. De noite as danças. Forró para todo lado. Vaqueiro não pagava em canto nenhum. Documento de vaqueirice: o peitoral. Alguns se acompanhavam de chicote, de espora, ainda nos couros. Festa de vaqueiro125. 121 O sapato tinha que ser 100% feito de couro.122 Instrumento com leve aparência de canivete. Era utilizado para fazer sangria no cavalo, quando ele ficava afrontado ou quando ficava triste.123 O mercúrio era utilizado em ferimentos e para combater o piolho dos animais.124 Aboios do Sr. Bernardino Rodrigues dos Santos. 125 Entre os incentivadores desta festa, por longas datas, destacaram-se os Senhores Gilberto Bahia e Durval Gato. Por longo período a festa era de fato dos vaqueiros. Através de uma associação que fundaram, fizeram um cercado para dar apoio aos animais e a sede da Associação. Segundo o Sr. Bertoldo Pereira Martins, vaqueiro da velha guarda, a festa significava “boniteza. Era uma reunião. Tinha gente que a gente só via no dia da festa. Hoje, na

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As festas no mato. Alguém marcava novena. A notícia corria pelas rendondezas. A moçada se animava. No dia o povo ia chegando na casa da reza. Todo mundo na lordeza de roupa, nas vaidades dos perfumes. Cavalos arriados na prontidão de festa. Terreiro cheio. As mulheres descaroçando os terços, fazendo as puxadas dos benditos. O restante no acompanhamento. O povo olhando o santo no oratório, se benzendo, clamando por graças, pelo aliviamento dos pecados, nos devidos do merecimento da fé de cada um. A novena terminava e o povo se debandava para a casa da festa. Novena em uma casa, a festa em outra casa, por perto. A sanfona gemia, o cheiro de cachaça se acendia e a dança se desembaraçava na alegria. Os homens tirando as moças para dançar. As moças na obrigação de aceitar. Se uma desse um corte, pronto: a noite toda quieta, sem a permissão de dançar com outro. O cabra agoniado no acochado dos braços da dama e, daí a pouco, lá se vinha um e pedia uma parte. O cabra tinha que entregar a dama, sem conversa que senão tinha aborrecimento, com prosseguimento de cacete, que desaforo não se levava para casa. Daí a pouco o leilão. Uma vasilha encoberta, toda enfeitada. Ninguém sabia o que tinha por baixo. Os lances começavam: “Dou-lhe uma, dou-lhe duas, quem dá mais”... A rapaziada olhando, se mostrando para as moças, gritavam preço. Acontecia disputa. No fim, quando o ganhador descobria a vasilha, todo mundo olhando, aparecia um doce, ou um requeijão, ou um frango, ou uma fruta, coisas assim. No fim do leilão a festa continuava, até o dia amanhecer. Bulir em moça? Casamento na certa, por bem ou na marra,

festa, a gente não pode nem usar facão e até vaqueiro calçado com conga tem. É vaqueiro?”. Com o passar dos tempos, entre finais da década de 1960, início da década de 1970, políticos se apropriaram da festa e a colocaram em decadência, com os vaqueiros sendo colocados na passividade, ao ponto de grande parte dos associados nunca terem montado em um cavalo. Hoje a festa não possui regulamento e parte considerável dos associados é constituída por gente sem vínculo efetivo com o campo. O seu marco inicial foi o ano do centenário de Curaçá, em 1953, quando os vaqueiros foram convidados para fazerem uma apresentação. No ano seguinte, a reunião de vaqueiros teve continuidade, acontecendo no seguir dos anos no dia 2 de julho, como comemoração da Independência da Bahia. Mais recentemente alteraram a data da festa que está acontecendo em data rotativa, no primeiro final de semana do mês de julho. Isso porque, às vezes, o dia dois de julho cai no meio da semana e cria dificuldades para os participantes e visitantes. As informações foram prestadas pelos Senhores Gilberto Bahia (1914), Sindolfo Rosa e Bertoldo Pereira Martins (do São Bento).

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senão morte, que honra era coisa que não se podia sujar. Quem queria mulher bulida na família?126 “Tenho muito pecado de jega”127.

Z O padre marcava “as desobrigas”128. O boateiro se espalhava. Os

meninos pagãos seriam batizados, os noivos se casariam. Os noivos faziam os convites. Os convidados chegavam. Todo mundo montado. Os noivos na frente, os convidados atrás com os cavalos batendo os cascos no chão, barulhando as argolas, levantando poeira129. Aqui e ali, um gritava: “Viva os noivos! Viva nossa bela sociedade!” O resto respondia em coro: “Viva!” Casamento feito, acompanhamento de volta. Dança, cachaça, comida nos devidos das posses de cada um.

A rua entrando no moderno das coisas do mundo. Iluminação de lâmpada na rua. Energia gerada por caldeira130. Isso nos anos de 1930. A rua, de noite, com claridade do dia. Uma lampadinha aqui, outra ali, penduradas em postes de madeira. Alegria de desenvolvimento. Logo a caldeira fechou e o escuro voltou. E ficou no escuro uns anos. Os anos. Botaram outra caldeira. Caldeira para mover a desfibradeira de caroá, a descaroçadeira de algodão, à noite funcionando para a iluminação131. Um horror de gente carregando água para a bicha. Lenha, muita lenha para ela funcionar. Ligaram um gerador e a rua ficou clara de novo. Às dez da noite desligavam. Luz acesa a noite toda!?

126 Os homens solteiros, principalmente os jovens, viviam no sofrimento pela ausência de mulher que satisfizesse suas necessidades sexuais. Quando a coisa apertava, ou se viravam sozinhos ou caíam no mato, em busca de alguma jumenta.127 Dito de um vaqueiro nascido em 1938. Poucos foram os caatingueiros, e mesmo moradores da rua, que viveram sua juventude até o início dos anos 60 e que não se satisfaziam sexualmente com jumentas.128 O povo, principalmente no mato, sentia dificuldade de satisfazer as exigências da igreja, em vista da carência de padre. Meninos cresciam pagãos e até mesmo casais se juntavam sem receberem as bençãos do padre. Outros ficavam algum tempo à espera que algum padre aparecesse para poderem se casar. Por isso, de tempos em tempos, algum padre saía pelas localidades fazendo as “desobrigas”, ou seja, desobrigando o povo das faltas cometidas por falta de quem lhe desse o sacramento. 129 Os cavalos de festa eram bem tratados e arriados e tinham quer ser marchadores. A crina bem feita, o rabo enrolado. Arreios além dos habituais, mas bem conservados, com peitoral enfeitado. Na sela, cochinil e garupeira. 130 Esta caldeira era de propriedade do Sr. Maro Brandão e funcionava em um sobrado que havia em frente à praça Dona Feliciana.131 Esta, de propriedade do Sr. Raul Coelho, dos anos 40 para os anos 50.

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Era morte de rico. Um tempo, e o escuro voltou. Veio um prefeito e comprou motor. E luz de novo. Semana tinha, semana não, que motor quebrava, que faltava combustível. Uma novela: aquele vai ter luz, não vai ter luz132.

No comum da vida de todo dia, divertimento de gente fina, passeio no prado133. As moças, os rapazes da sociedade com roupa de lordeza caminhando, procurando divertimento no limpão do chão vermelho, cheio de moitas de malva, ouvindo os gritos dos jogadores no campo de futebol. Eles indo e vindo, vendo o povo da chegança da labuta das roças passarem, carregando suor, corpo doído.

Ilusão de pobre: ganhar dinheiro. Um sujeito em um caminhão. Chegou por ali. O povo espiando com os olhos, com os ouvidos. Homem de situação. Ele viu o povo. Notou a querença por ganho. Falou: “Quero encher esse caminhão de ponta. Só quero ponta. Por cada ponta de bode eu pago 500 réis e as de boi eu pago dez'tões. Quando eu voltar pago e pego tudo”. Desceu rio abaixo na viagem que ia. A turma ficou juntando ponta, formando as rumas. Sempre alguém tomando conta de cada ruma de ponta, se prevenindo contra a sabedoria dos outros, sem sossego, dia e noite, dormindo de guarda no pé dela. Cada ruma danada e não se parava de catar mais. O homem demorando. O povo já desconfiado, desconfiando. Daí o sujeito aparece. Fica sabendo e vai olhar. Marcou dia e hora do recebimento para pagamento. Gente alegre, conversando, calculando plano. No dia marcado, cadê o homem? Saiu na madrugada ainda noite. Ficaram as rumas de pontas, tristezas e gaitadas134.

O clima mudando, as profecias chegando, se confirmando nos tempos.

O fim das eras. Lá estava dito. O livro sagrado se mostrando no de vera dos acontecimentos vistos. Pai sem ligar para filho, filho sem ligar para pai; irmão brigando contra irmão; nação contra nação; pecado da raparigagem, da viadagem, da traição de mulher contra marido; uns bichos voando por cima, outros voando por baixo; os “cientistas” se multiplicando no mundo; o povo se vendo na vaidade, sem adoração ao Criador; as plantações sendo aguadas; 132 Foi o prefeito José Borges, entre 1963 e 1967.133 O que chamavam de prado era uma área descampada que havia atrás da cidade, nas imediações de onde até hoje é o campo de futebol. Era um campo aberto, de terra avermelhada, pontilhado por moitas de malvas. Era aí que os membros da elite passeavam nos finais de tarde. 134 Fato ocorrido em 1936, segundo o Senhor Ângelo Alves dos Santos.

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muito pasto e pouco rastro. Coisas do fim do mundo. A gente querendo, não podendo alcançar os ditos na imaginação. Como podia ser? Todo mundo de cuia carregando água, molhando a plantação? Os bichos voando por cima, serpentes? E os bichos voando por baixo? No sinal de tudo, está tudo aí, com o mundo se indo, findando.

Os caminhões aparecendo, matando os barcos, matando as tropas. Caminhão de Seu Pedro Unias, de Seu Jaime de Seu Hermes, de Seu Donizete, de Seu Inácio Pacote, na briquitação, fazendo linha, correndo para Juazeiro. Hora das viagens, na madrugada da noite, ainda. O povo, todo lorde para viajar, pendurado na carroceria, em cima da carga. Vento e poeira, chegava em Juazeiro todo enfeiado. O carro parando e parando e a estrada ruim. Quando chovia, os atoleiros, os riachos botando empate. Os viajantes presos no meio da chuva, na espera do estio.

Caminhão só para viagem longe, para carregar coisa de muita importância. Não tinha carroça. Transporte de telha, de tijolo, de areia, de cal em lombo de jegue. A infieira de jegue com as cargas. Os bichinhos se torcendo com o peso. Os donos atrás gritando. Seu Tito, Zequinha Gato, Joaquim Vermelho. Aquelas idas e vindas sem fim, todo dia, todo dia. Aqui, ali, um jegue deitava. Seu Tito tinha a arte de fazer o deitador levantar: esquentava o fundo do jegue com fogo.

No rio, Seu Chico Coelho, Seu Piau, João Pescocinho. Seu Chico Coelho na travessia do povo, se mantendo na vida com essa serventia. Linha: Barro Alto-Curaçá. Ele no meio do rio, empurrando o barco com o remo, pedindo a sorte de um ventinho que soprasse na vela. Viagem devagarinho. Vivia nesse ir e vir, todo dia. Sem saber nadar, quase tinha morada no rio. Do mesmo jeito Barba Azul (Chico Barge). Seu Piau nos peixes. Subindo e descendo com seus anzóis, se desviando dos lugares de Nêgo D`água, que no rio tem mistérios. “Nêgo D`água existe, mas nem tudo é para todo mundo ver, mas eu vi um neguinho, que dava nos peitos de um homem sentado”135. Na canoa de tronco de pau João Pescocinho cortando as águas, de dia e de noite. Ele assobiando, cantando, armando e desarmando a rede de pescar, botando anzóis na água, se apoitando numa ilhinha no meio do rio. Nela plantando

135 Seu Piau ( José Nunes dos Santos, *1916, foi o primeiro pescador profissional de Curaçá.

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zozós, angaris, calumbis na luta para não deixar as águas carregarem sua areia, sonhando dela ser grande um dia.

Não tinha cais. As mulheres lavando roupa no rio. Da rua para o rio, um ladeirão sem fim, cheio de pedra. Os carregadores de água com os galões136, as mulheres subindo a ladeira com as latas na cabeça, carregando água para as casas da riqueza. Ganho de vida137. Agasalho de água em casa de pobre, só para beber, cozinhar e para banho das mulheres, que lordeza de banho para macho era no rio, ou então que virasse rico. Rico-rico não bebia água do rio, não. Água para eles trazida de longe, de um caldeirão da serra do Icó, nos barris, nas latas carregadas pelos jegues138.

No domingo, na segunda-feira, os carregadores de saco gemendo com os sacos nas costas, rompendo a subida rio acima. Na água paquetes e paquetes; no seco animais e gente. A beira do rio era uma rua de gente. O governo decretou: construir cais em Curaçá139. Gente chegando para trabalhar na obra. Obrão sem fim, de grande que era. O paredão de pedra subindo, os homens trabalhando. Um buracão danado se formando. Fazer enchimento. Carregar areia da ilha. Uma porção de canoas nessa labuta. Não dava. Contrataram gente para carregar terra. Jegue que não acabava mais. Não davam conta da obra no tempo dito. Trouxeram caminhão. Mais de seis meses de trabalho nesse serviço de transporte de terra, até tudo ficar pronto140.

Ninguém acreditava, mas era de vera. Falavam que falavam em construção de hospital. Foi que foi até que veio. Um obrão danado que dava para caber o povo todinho da rua. Muito, muito maior que a igreja, nem era de fazer comparação. Um trabalho danado de muitos trabalhadores na peleja. Prédio bonito como nunca se tinha visto, com o chão ladrilhado com mosaico. 136 Galão: duas latas cheias de água amarradas nas extremidades de um pau que era apoiado no ombro de uma pessoa. 137 Havia gente que tinha no trabalho de carregar água a fonte principal de ganho.138 Este caldeirão localiza-se nas terras da fazenda que pertenciam a Dona Cizina e a uns 15 km de Curaçá. Informação de Betinho de Lídio e de Nego de Mariinha de Totó. 139 A construção do cais foi realizada em finais da década de 1940; o deputado Manoel Novaes foi o responsável por sua solicitação. Algumas pessoas, até hoje residentes em Curaçá, foram atraídas pela oportunidade de trabalho que essa obra propiciou. 140 Foram informantes nesse parágrafo os Senhores Betinho de Lídio (Alberto Xavier), Nego de Maria de Totó, Ângelo Alves dos Santos, Seu Piau e Chico Bispo.

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Tinha até caixa d`água. Colocaram um bocado de aparelho, de coisas dentro dele. Fizeram inauguração. Não mandaram médico e o prédio ficou lá, ficou lá, ficou lá... o tempo andando, andando e ele se desmanchando. Um dia, com pouco tempo, o telhado desmoronou. Foi feita a reforma. Ele ficou bonito de novo141. Enquanto estava em pé, nele funcionou a maternidade, depois o ginásio e aí não deu mais. Foi caindo de pouquinho até que se acabou. Um prefeito mandou executar demolição do resto e no lugar dele ficou um limpão142. Só sobrou a caixa d`água. O posto de saúde veio junto. Também prediozão. Um doutor fazia a apreciação da saúde do povo, mas era uma coisa acanhada, no acanhamento do lugar.

Muita coisa em um tempo só. Chegou até juiz. Curaçá sede de comarca143. Homem da lei, na reteza do agir, passando na rua sem oferecer ousadia. O juiz na admiração do povo, mostrando exemplo do bom proceder. Gente querendo intimidade e o homem difícil. Por educação oferecia resposta a cumprimento dado. No mais, encafifado dentro de casa, só dando prosa a gente igual. Feiticeiro assim também. Cientista. Sujeito de segredo, vivendo no meio dos encantos . Falar baixo, melhor nem pensar, que ele tem o segredo de andar nos segredos dos outros. “Sabe o que se deu, o que vai se dar”. Desenvolve trabalho para curar, para adoecer, para adivinhar, para botar e para tirar encosto, para achar perdido no trabalho de responso144. O povo sem querer prosa, de longe, chegando perto nas necessidades.

O lugar da feira foi mudado. O prefeito construiu prédio para o mercado145. O barracão velho, os pés de tamarineiros ficaram no abandono, até que morreram. Prédio grande. Cabia o mundo todo lá dentro dele. Até calçado era, cabia gente!... Os armazéns ficaram onde já eram. No dia de feira, o povo do mundo todo vinha, montado nos animais, trazendo o alforje que era para 141 Informação de Babá (Omar Dias Torres). 142 Este prédio de hospital tinha planta igual à do Hospital Regional de Juazeiro; sua obra foi iniciada em 1949 e concluída logo depois. 143 A comarca foi criada pelo decreto-lei estadual nº 519, de 19 de junho de 1945, abrangendo um só termo que foi desanexado da comarca de Juazeiro – In: Sinopse Estatística do Município de Curaçá – IBGE, RJ, 1948. 144 Através do responso, o cientista ou feiticeiro não só encontra os desaparecidos (perdidos, sumidos ou roubados), como fica sabendo quem roubou ou achou o objeto procurado.145 O mercado foi construído entre 1953 e 1954. Um pouco antes, em 1951, houve a construção do matadouro municipal. O prefeito Gilberto Bahia foi o autor das duas obras.

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carregar os trens. Trazia também uma pele de criação e um litro de vidro amarrado na garupa da sela que era para botar o querosene. A pele o povo vendia para apurar o dinheiro da feira. Os beiradeiros não tinham pele, traziam coisas das roças. Coisas que faziam coisas que plantavam. No mercado, aquele zummmmmm da voz do povo, imitando zoada de marimbondo no ninho. De longe se ouvia. No fim da feira ficava a turma da confusão, bebendo cachaça. De tardezinha era a hora do pau. Os bêbados se agarravam. Às vezes o caldo engrossava, com sangue derramando no chão.

O governo mandando coisa de novidade. Instalou um posto da Comissão do Vale do São Francisco. Mandou engenheiro, mandou caminhão, veio trator, veio motor para botar água em plantação146. “Você já viu!”. Coisa de governo procurando o que fazer. Levantaram prédios na roça, casa pro doutor, bicho porco. Como pode um sujeito morar numa casa com latrina dentro, bem juntinho da sala, da cozinha? E o fedor? Vôte!147 No resto o conforto. Água encanada, casa toda encimentada. Gente do lugar virando funcionário do governo, dirigindo caminhão, futucando em trator no fuça, fuça do chão. O engenheiro mandando construir valetas para água correr, para molhar plantação. Plantação de uva. “Tá vendo qui num dá certo?” A cerca toda certinha, com os paus pintados de branco, toda no arame. “Dinheirão jogado fora”. O povo passando, curiando, vendo aquele aguaceiro correndo nas plantas e as plantas trepadas em arames. O doutor no calado de sua importância, aqui, ali uma palavrinha de assunto novo, falando das coisas de progresso. De bom mesmo o caminhão que adjutorava transportando de graça, carregando madeira, dando carona.

146 Refiro-me à instalação de um posto da Comissão do Vale do São Francisco em Curaçá, nos meados da década de 1950, por influência do deputado Manoel Novaes. Este posto tinha a função de oferecer assistência técnica e difundir tecnologias agrícolas. Foi extinto em finais dos anos 60. A C.V.S.F. posteriormente foi extinta e criada para a mesma função a Superintendência do Vale do São Francisco. Esta posteriormente foi modificada em suas funções, recebendo o nome de CODEVASF – Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco, até hoje (1999) existente.147 A primeira casa de Curaçá a possuir sanitário nos moldes modernos foi a do chefe da Comissão do Vale do São Francisco – CVSF, onde hoje é o parque de exposições. A população não entendia. É que, nessa época, as latrinas ficavam fora da casa, na extremidade do muro, e as fezes caíam dentro de um buraco que ficava aberto o tempo todo. Imaginem o fedor.

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A “Difusora Sertânia de Curaçá” levando seus programas ao ar, povoando a rua com música, com conversa, alegrando o povo148. Cinco e meia da tarde o primeiro programa: “Ao cair da Tarde”. Músicas de Carlos Galhardo, Nelson Gonçalves, Vicente Celestino... Às 18:00 horas: “A Ave Maria”’. Às 19:00 retransmissão da “A Voz do Brasil”. No mais tarde da noite as cantigas de sucesso: Trio Nordestino, Roberto Carlos, Jerri Adriane, Diana, Evaldo Braga, Vanderley Cardoso, Renato e seus Blue caps... A voz de Zito Torres no comando, dando avisos, mandando mensagens, cortando corações : “Estamos falando diretamente dos estúdios da Amplificadora Sertânia de Curaçá, da rua Major Torres, para toda a cidade”. O povo sentado nas portas apreciando as músicas, as conversas que vinham dos alto-falantes149.

A praça Dona Feliciana. Os que chegavam mais cedo esperavam os outros para irem em magote fincar os marcos no cais150. Os porcos roncando, querendo a comida, chegando perto. A turma, de cócoras, espantando os porcos no abanar das mãos. Depois do alívio, a volta. As moças chegando. Começando a circulação no arredondado da calçada da praça, arrodiando o quadro. Os rapazes também. Os olhares, os chego, não chego. Recadinhos, troca de olhares escondidos. Os alto-falantes espalhados na rua, soltando música no ar. Com pouco lá se vinha: “Um alguém muito apaixonado oferece esta música para uma morena de cabelos castanhos que está vestida com roupa azul e que se encontra, nesse momento, passeando na rua do Quadro”. Curiosidades. Destino e destinatário bem que se sabiam. A sorveteria de Seu Juatan, a casa de Dona Gercina em frente da praça, criando aperreio na rapaziada desendinheirada. Cadê dinheiro para pagar doce, sorvete para a namorada? E se ficava assim. Na precisão grande, gastava-se o dinheiro da vergonha151. A luz baixava: primeiro sinal. Todo mundo a se ir que, com o segundo sinal, vinha a escuridão. Hora de moça séria ir para casa152. A 148 Era um serviço de alto-falante de propriedade da prefeitura e foi criado em 1967.149 De acordo com Babá (Omar dias Torres), antes, no início da década de 1950, já haviam instalado um serviço de alto-falante, cujos locutores foram José de Roque (José Ferreira Só) e Adélia Rodrigues. 150 Expressão relembrada por Omar Dias Torres. Fincar os marcos significava fazer cocô.151 Dinheiro da vergonha era aquele dinheiro que o sujeito carregava no bolso para se prevenir de grandes aperreações. Não era para ser gasto, isso só poderia acontecer em último caso. Consistia em grande vergonha o fato de alguém ser descoberto totalmente desindinheirado. 152 Esta situação ocorreu durante toda a década de 1960. A casa de Dona Gercina era uma doceria e vizinho à casa dela funcionava a sorveteria de Seu Juatan – a primeira da cidade. A

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rapaziada ficava mais, fazendo balanço da noite, contando estórias de assombração, falando da vida alheia, conversando putaria.

Os velhos no converseiro sobre os assuntos de tudo do mundo. O ponto na porta da casa de Fortunato Lopes. Ali iam chegando, se abancando logo no cedinho do amanhecer. Prosas e prosas. Às vezes a conversa cochichada, às vezes bradada. Pilhérias contra os passantes e os assuntos correndo no chegar e no sair dos frequentadores de todo dia. O banco lisinho, lisinho de tanta bunda ser coçada. No dia que morria alguém os parentes do morto vinham pegar o banco para colocar o defunto em cima dele. Não havia problema, a sentinela não passava de uma reunião extraordinária.

Os beiradeiros na incutição de enricar. Deram a plantar cebola na aventura da bicha dar dinheiro. Sonho, sonho. Aqui, ali, um ganhando. Carregação de água na cabeça, botar veneno, arrancação, entrançamento. Um cheiro ardido no ar, grudado no corpo. Os matutos sem querer negócio com essa labuta que é coisa de aventura sem futuro. Criação dá resultado de certeza, com a ajuda das águas das chuvas, que Deus manda.

Os rádios na falação de banco153. Banco emprestando dinheiro para comprar motor, para comprar gado bonito, jegue grande, cavalo possante, para fazer cerca de arame. Os caatingueiros desconfiados: “É armadilha pra gente dever”. Pouca gente entrando na estória. Os mais entendidos se enfiando nela, tirando proveito do seu ser. E começaram a vir as cercas de arame, os bichos de raça, as coisas de novidade nova.

As escolas ajuntadas em um lugar só. As aulas no prédio que o governo havia ordenado construir154. O povo começando a ver utilidade no estudo de

rua do Quadro situa-se ao lado da praça Dona Feliciana e era nesses espaços que toda a moçada se encontrava. Aos domingos, o encontro ocorria após a celebração da missa ou novena. Com relação ao cocô no cais, este já era uma tradição de todos os dias e, por isso, nesse horário, o local se infestava de porcos. 153 Nos meados da década de 1960 os bancos iniciaram o processo de financiamento para atividades agropecuárias na região.154 Prédio Scipião Torres. Construção do governo do estado, iniciada em 1936 e finalizada mais ou menos em 1940. As escolas que até então eram isoladas foram agrupadas nele. Informação de Milton Araújo e Valdelice Aquino.

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escola de professora formada. Meninos da rua, meninos das roças, do mato de perto da rua vindo estudar. Iam chegando a pé, montados em jegues, trazendo lenha, leite para vender. Depois ir para a escola. Todo mundo fardado, com os livros, os cadernos, nos alinhos ditos pelas professoras. Os pais de distante, botando os filhos para morar na rua. As mães acompanhando os filhos. A rua crescendo. Menino sem freio de pai, sem traquejo de labuta, nas vaidades da desocupação, querendo roupa, comida fina, entrando nos entusiasmos dos namoros. Ainda pouca gente nos estudos. Ensino só até o curso primário. Depois dele, o fim. Escola mais adiantada: ginásio, em Juazeiro155. Quem podia? Os estudantes se aquietavam nesse. Gente teimosa tinha, que meteu a cara em coisa de caminho de doutor156. Dificuldades sem tamanho: “Pra quê? Coisa de desatino de pobre metido a besta, que estudo adiantado num tem serventia nessa vida do mato”.

José Gonçalves157 nas preocupações de estudo adiantado. Jogou-se na luta por ginásio, falando com um, falando com outro. O povo achando aquilo impossível. Os líderes da cidade sem entusiasmo. Ele foi e foi. Bateu aqui, bateu ali, no desespero de seu querer. Ficava sonhando, achando que podia ser. Conseguiu. Ginásio funcionando, no adular de gente para dar aula, que dinheiro não tinha158. Os estudantes com entusiasmo de estudo adiantado,

155 A continuidade dos estudos na região só poderia acontecer em Juazeiro onde, desde 1953, fora fundado o Ginásio Rui Barbosa, que oferecia ensino gratuito. Mesmo havendo a dificuldade imposta pela necessidade de mudança de cidade, alguns pais envidaram esforços e garantiram a continuidade do estudo de seus filhos. Note-se que é a partir daí que os menos aquinhoados passaram a atingir melhor condição de vida e ascender socialmente. Antes disso só os abastados podiam manter filhos em escolas, vez que elas se localizavam nas capitais. O curso colegial só foi criado em Juazeiro em 1963, também funcionando no Ginásio Rui Barbosa - Ribeiro, p. 149. 156 Houve polêmica entre a população da cidade. A maioria achava que manter filho estudando em níveis mais adiantados era uma coisa descabida. Uma minoria insignificante, entretanto, teimou e bancou os sacrifícios, garantindo o prosseguimento dos estudos dos filhos.157 José Gonçalves (Pretinho), natural de Curaçá, de origem humilde, estudara em Salvador, onde se fez farmacêutico. Voltou para Curaçá pelo propósito de acompanhar a mãe que tinha uma casa de hospedagem. Aí estabeleceu uma farmácia, de onde extraía, com dificuldades, recursos para sua sustentação, que era auxiliada pela renda do emprego nos Correios e Telégrafos Desde 1954 se embalava na idéia de um ginásio em sua cidade, na esperança de poder ver pobre avançar nos estudos.158 Diante da falta de interesse do Estado, foi criado um ginásio municipal, em 1962, que recebeu o nome de Ginásio Municipal de Curaçá, tendo suas atividades iniciadas em 1963,

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orgulhando-se no vestir da farda destacada de cor cáqui. Educação virando obrigação de necessidade. Mais e mais estudantes vindo para rua, nos deveres do novo aprender, do novo seguir nos encaminhamentos de se preparar para arranjar emprego em terras distantes.

Padres americanos chegando, falando com enrolo de língua, sem ninguém entender. Os meninos ensinando os padres a falar: “Diga, “minha mãe é puta” – e o padre: “Minha mãe é puta”. Gente diferente falando em Deus, fazendo pregações.. Os padres parecidos bestas, se fingindo, roubando as coisas da igreja, trocando as peças sagradas, enrolando os caatingueiros, comprando por nada peças de valor, levando-as embora 159. As mulheres, os poucos homens devotos, nem se davam conta.

Zé Pretinho rua acima, rua abaixo. Um bastão na mão, um coité pendurado no passador da calça160. Homem de todas as casas, sem pedido de licença para entrar. Café aqui, outra comida ali. Dando-se a dar recados, que tinha merecimento de palavra. Hora por outra esticava os olhos para o céu e

funcionando inicialmente nas instalações do Prédio Escolar Scipião Torres, no período noturno, por falta de espaço durante o dia. No ano seguinte mudou-se para o local onde funcionava a Casas de Parto e, posteriormente, para o prédio do hospital, até que este viesse a ruir, tornando-se ameaçador. Nessa ocasião já funcionava no turno vespertino. A primeira turma foi composta por 20 estudantes e os primeiros professores foram os seguintes: José Gonçalves – que foi o 1º Diretor - (Farmacêutico), Osmar de Souza Oliveira (Juiz de Direito), Antônio Laranjeiras (Promotor), Euvaldo Torres de Aquino (Odontólogo), Valdeci Aquino (Professora), Excelda do Nascimento (Professora), Alice Possídio – Alicinha – (Professora), Dr. Juracy Gonçalves, José Gaudêncio de Souza (Sargento), Pompílio Possídio Coelho (Médico) e Valdejane Brandão (Professora). Pelo menos entre 1963 e 1966 os professores deste ginásio não eram remunerados por suas atividades. Informante: José Gonçalves. No correr da história, já na década de 1970, criaram o curso Normal (pedagógico em nível de 2º Grau) e, em um gesto descabido, mudaram o nome do colégio para Colégio Municipal de 1º e 2º Graus Dr. Ivo Braga, um sujeito que a população não sabe quem é e nem o que fez pela educação e pelo município. 159 Este fato ocorreu na década de 1960, quando o bispo de Juazeiro trouxe alguns padres americanos. Segundo algumas pessoas que na época davam assistência à igreja, eles tiraram algumas peças e venderam-nas em antiquários. Embora não haja um inventário, em muito contribuíram para dilapidar o patrimônio histórico municipal pela aquisição de peças encontradas nas caatingas e que eram resultado de heranças de antepassados. Note-se que os antigos tinham o costume de inverterem seus recursos em ouro e prataria.160 Coité era uma vasilha feita com o casco de um coco serrado ao meio e que era utilizado tanto para beber água como café.

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dizendo: “Desce daí, Suzano”161. Tomava banho nu no rio. Na hora certa ele chegando, tirando a roupa sem atenção no estar dos outros, rumando ao rio e três mergulhos. A roupa dele suja e sem querer trocar. A turma ia lá, pegava a roupa velha, colocava uma roupa nova. Ele xingava, urrava, vestia, se ia como nada acontecido. Zebu fumando o tempo todo na luta para não deixar o cigarro apagar, falando sem ligança para os ouvidos dos outros, contando casos de Lampião: “Foi sim! Nastá!” Mororó todo florido, batendo lata, se apaixonando, vendo Santa Terezinha em toda moça bonita que enxergava. Coruja no seu quebra-jaca e dizendo: “Cachaça ainda mata um peste/ Um peste ainda morre bêbado/ Eu não sei se é João de Sérgia, Conceição ou Gi do Ó/ Só não morre Conceição, que é filho de Chorrochó”. Daru rodando o mundo, de vez em quando chegando para despejar uma barriga. João de Mãe Sérgia se entortando na cachaça, bocejando: “Rererere”, brigando com Zé Pintor, e Zé Pintor gritando: “ Ora, que putaria, forró não! Quer sacanear? Um chega, mete dedo na tinta, outro pega o pincel e vem esse agora querendo carregar a escada! Putaria, forró não!” Conceição soltando suas mentiras e Domingão soltando “porraaaaa...” jogando pedra nos meninos aperreadores. Turite (Maria Quitéria), afogada na cachaça, rezando nos doentes, clamando aos céus, pedindo socorro ao povo e gritando: “turite”. João Pescocinho em suas pregações, preparando a volta de Jesus. Zé Doido futucando nos sacos de farinha, na feira, beliscando a bunda das mulheres. Goizinho trocando dinheiro por dinheiro, cuidando da origem das pessoas, com nojo do povo. Macacuí... Macacuí se enchendo de cachaça, jogando pedra, falando putaria, putaria, putaria, carregando uma galiota162, fugindo da mãe para beber escondido e a mãe atrás dele com uma vara na mão. Neném de Zé Pitaca caminhando no seu caminhar, se botando em intimidade com todo mundo, comendo nos conformes de sua querença. Os doidos do povo, da rua toda na intimidade de chegança em qualquer lugar, na entrança das casas sem estranhamento dos donos.

As coisas distantes chegando para perto. Lá se vieram os homens da água, esburacando o chão, chão duro que só furava com tiro. Aquela buraqueira danada, feita para se deitar cano. A construção da caixa d`água. Uma altura de alcançar o céu. O povo trabalhando na trabalheira de obra de fim de sofrimento de água na cabeça. A coisa indo e o povo sem crença de

161 Suzano seu irmão falecido. Esta expressão nos foi lembrada por Gerson de Maria Júlia.162 Carrinho-de-mão.

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funcionamento daquela invenção. Água paga! Coisa de fim de mundo que onde já se viu pagar pelo que Deus deu? E a água chegou, correu nos canos, entrou nas casas. Água com o conforto do só abrir da torneira. Gente sem poder fazer encanação. Pegar água no chafariz. Aquela fila medonha, do povo no aparar dela. Lata batendo, gente cortando fila, as aperriações de apelido, as converseiras de falação da vida alheia e o pau comendo de gente nas brigas. Os canos subindo rua acima e o chafariz ficando só, no seu sem função. O povo entrando no moderno do conforto de água paga no fim do mês163.

No rastro da água, a luz. Luz de Paulo Afonso. Energia que mata gente descuidada. Os homens no trabalho de arribação de poste. O chão duro, duro, com os tiros retirando as pedras de baixo, no aprofundamento dos buracos. Os postes subindo, os fios sendo esticados. Trabalho feito, as casas com instalação feita. Cadê luz? Não tinha rede de transporte de energia. Rede da Bahia em Juazeiro, em Barro Vermelho. A de Pernambuco, ali, no atravessar do rio. Empurra para cá, empurra para lá, um acordo feito: sangrar a energia de Pernambuco. Curaçá no clarão a noite toda, toda, morresse rico, morresse pobre, não morresse ninguém164. O povo chegando do trabalho das roças, cuidando para esconder os trajes, as manchas da labuta. Gente cortando caminho pelas ruas de detrás. A claridade mostrando as caras, os jeitos. A pobreza aparecendo nos sinais de candeeiros acesos, dentro das casas das ruas iluminadas. Os escurinhos dos namorados invadidos. Ponto de amarração de animal mais difícil, o prefeito sem querer sujeira, sem querer bichos na rua. As mulheres querendo casas com sala na decência. Os meninos nas brincadeiras até o tarde da noite, as meninas brincando de roda, os meninos brincando de barra, de esconder, de chicotinho queimado e todo mundo brincando de casamento oculto.

Os velhos no mato, os velhos na rua. Os sem valia da rua se guardavam no abrigo São Vicente165, feito desde muito para a finalidade desse

163 O SAAE implantou o serviço de água em Curaçá por volta de 1963.164 A energia de Paulo Afonso foi instalada em Curaçá por volta de 1970. A sangria da rede de Pernambuco foi feita um pouco acima da Ilha do Canto, bem no local onde há uma grande pedra no meio do rio. 165 O Abrigo São Vicente de Paula, ou Casa dos Vicentinos, como queiram, foi fundado mais ou menos na década de 1930, tendo à frente os Senhores Jonas J. Brandão e José dos Santos Torres, com a contribuição inestimável de Salvador Pereira Lima. Por todo o tempo foi

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cumprimento. Isso só no desamparo do não ter apoio nenhum, por velhice, por doença de pegar. Os do mato, se sem a graça de possuir família, entregues a Deus e a acudição da caridade de almas boas, como desse. Os que possuíam família se ancoravam na proteção dela vivendo do compromisso do respeito do costume, plantado pelas exigências de Deus. Velhos curvos pela judiação do trabalho, pela passação de necessidades, com pouco de enxergar. O governo entendeu fazer reparo da situação. Adotou medida criando aposentadoria. Os velhos se emburacando na procura do FUNRURAL na intenção de se aposentar166. Carradas deles no caminho de Juazeiro. “Dinheiro fácil, vindo na valia da vida”, arranjamento de adjutório para se tocar no tempo com os trocados de todo mês167. Os comerciantes abrindo crédito, eles comprando no certo de poder pagar, se aumentando no respeito da família.

No mato os pais na briquitação, dando, sozinhos, assistência ao criatório. Esforço para garantir sustentação de futuro para os filhos. Despesão danado. Os bichos caindo no pau para sustentar. Feira para casa da rua, feira para casa do mato. Os meninos desaprendendo, deixando de aprender as coisas dos traquejos da vida das caatingas, entrando nas delicadezas, nos desejos das coisas da rua: rádio, bicicleta, roupa bonita, comida de rua, festas. Os filhos sem voltar. Mais e mais sem voltar.

mantido pela contribuição pública, tendo à frente alguns membros da elite e do da cidade e também gente do povo com alguma condição, havendo mesmo aqueles que, sem dispor condições de doar, contribuíam com trabalho, destacando-se aqui o pedreiro José Francisco. Após a adoção da aposentadoria pelo governo, através da criação do FUNRURAL, seus membros julgaram que a atividade não fazia mais sentido. Foi transformado em Casa de Apoio ao Aposentado. Segundo o Sr. Donizete Nunes Franco, vicentino, em entrevista do dia 26.09.99, a entidade retomou seu nome de origem, mas encontra dificuldades para funcionar como no passado. 166 A aposentadoria dos trabalhadores rurais foi criada a partir de 1971, sendo que seu valor por essa época era inferior à metade do salário mínimo. Só dos meados da década de 1980 em diante é que a remuneração passou a ser equivalente a um salário mínimo.167 Embora o valor da aposentadoria fosse pequeno, necessário é levar em conta o tipo de consumo que estava incorporado aos hábitos da gente a que aqui nos referimos. O comércio local, a princípio, não sentiu grande impacto. Como os velhos recebiam suas aposentadorias em Juazeiro, aproveitavam para efetuar parte de suas compras por lá mesmo. Posteriormente, com a abertura de agência bancária em Curaçá, a situação se reverteu e a sede do município ganhou por atrair os velhos dos distritos e dos povoados.

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O mundo mudando, mudando, chegando perto do fim. As coisas se acabando. O silêncio, o mato crescendo nos terreiros, as cercas caindo, as cacimbas se entupindo. Os carcarás, os gatos-do-mato , os bichos do mato se multiplicando no pasto. As secas apertando, com as águas diminuindo, sem fazer tempo bom. Os mata-pastos sem crescer. Falta de água, falta de comida, a lamentação. Os bichos minguando, o mato entrando no abandono de casas sem gente. E cadê gente para adjutorar nos trabalhos de todo dia? Gente sustentando a alimentação dos desejos, fazendo dinheiro com os bichos dos outros. Os lobisomens, as almas sem ter a quem assustar, se aquietando, desaparecendo. Rua! Rua! Rua! Todo mundo indo para rua. Vender as terras. Gente de fora comprando.

Os políticos precisando de voto, de voto. Olho no povo. O povo tinha voto. Água de carro-pipa. As cacimbas entupindo. Carro-pipa! Carro-pipa!168 A matutada gostando, agradecendo a atenção, se enfiando no compromisso com homem bom. Homem bom de merecimento com os pobres. Lá se vinha recomendação de doente a médico, a hospital; ajeitamento de papéis para aposentadoria, ajeitamento pro sujeito tirar o título eleitoral. Os políticos ajeitando, os políticos perseguindo e o povo fazendo fieira, virando rebanho esperando água no pé da porteira. Todo mundo se vendo na necessidade de se agasalhar nas mãos de político. O povo sem saber se achar nos direitos que já tinha, sem ter força, sem querer, vivendo na dívidas dos agradecimentos, querendo cair na graça de alguém que pudesse.

Juazeiro longe. Viagem de caminhão. Estrada de terra. Os carros fazendo poeira. No tempo de chuva, a lama, os atoleiros, os riachos cheios, empancando os carros e os carros esperando a água baixar. Riacho da Barra Grande, um tormento. A cheia do rio, Sobradinho querendo explodir: 1979. Curaçá ilhada. As águas do rio subindo. O povo desesperado, sem ter como sair, como chegar, viajando a pé pelo Pernambuco. Desespero. O prefeito fugiu169. Agonia.

168 No início dos anos 70 o emprego de carro-pipa passou a ser uma grande arma utilizada para o atrelamento político dos caatingueiros. As cacimbas cada vez mais foram sendo entupidas e a dependência dos homens do campo aumentou.169 O prefeito da cidade na ocasião se ausentou sem dar explicações, abandonando o povo.

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A irrigação na beira do rio. Cebola, melão, melancia. Adubo, motor, bomba, veneno, trator. Coisas de comprar, coisas de vender. O povo, na influência de pegar em dinheiro, de acertar em negócio bom. Trabalho de cada qual em seu cada qual, sem palpite de pai, sem olho de família, sem consideração de vergonha de fazer o não certo, de seguir nos caminhos da consideração do respeito. Farinha, rapadura, abóbora, feijão, batata... coisas sem futuro, de trabalho que não paga a pena. Irrigação. A beira do rio mudando, as carnaubeiras, os juazeiros, os marizeiros sumindo, os limpos nascendo, a água subindo, comendo chão e o povo plantando, molhando, envenenando, colhendo, ganhando, perdendo. Cadê os beiradeiros? Sonho de carro, de casa bonita, de dinheiro para gastar. Banco, comprador. O povo nos trabalho de roça, sem data de ano para trabalhar. Cadê Nêgo d`Água? Chico Coelho morreu, Seu Piau se aposentou170, os peixes sumiram, os paquetes desapareceram. A barragem de Sobradinho acabou com o capim d`água, com o zozó. Na enchente o rio comeu a ilha, levou a canoa de João Pescocinho. Ele perdeu o encantamento. Parou de assobiar. Entocou-se em um buraco de ribanceira. Gatos amarrados na entrada, amarrados em uma cruz. Os gatos para não deixarem cobras entrarem. A cruz para espantar os espíritos. Foi preciso o povo ir lá arrancá-lo. Ele protestando. E Deus o fez seu enviado. Ele danou a pregar, a combater as perdições do mundo171. E o rio virou água, um mundo de água, caminho de barco andar. Os barcos a motor cortando as águas do rio, subindo e descendo com pressa de chegar. As bombas chupando o rio. Dinheiro, mercadoria. O povo sem se conhecer, sem se reconhecer. Salário mínimo, Justiça do Trabalho, cheque, promissória, avalista. Palavra sem valor.

O mato se modernizando. Um viver no parecido do da rua. Carro, moto, festa com conjunto, gás, roupa lorde, pão, bolacha, refrigerante, cerveja, televisão172. Carro-pipa, energia solar, poço artesiano. O tamanho dos chiqueiros diminuindo, os bichinhos berrando. O jeito de criar piorado. Gente de fora atacando os chiqueiros, pegando os bichos na malhada. Refrigério com

170 O Sr. Piau faleceu após estas linhas terem sido escritas, no mês de setembro de 1999.171 João Pescocinho pregou de 1979 até sua morte, que ocorreu por volta de 1988.172 Curioso é notar que essas modificações, que se verificaram nos costumes do homem do campo, só se operaram em aspectos vinculados à aparência. Raríssimas foram as pessoas que fizeram melhorias sanitárias. O mobiliário e o aspecto das construções não sofreu alteração. As técnicas de criação se mantêm inalteradas, não obstante os problemas tenham aumentado em muito.

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farelo, com coisa comprada nos caminhões. Vaqueiro sem ter o que traquejar, perdendo o treino, se acabando e os bichos mansinhos, criados na fome de ração pouca. Cavalos de enfeite, sem ocupação de corrida nas caatingas brabas. Mais coisas para comprar, mais coisas com o que gastar. Caatingueiro andando de carro, de moto. Os caminhos do mato se apagando, os caminhos de rodagem se acendendo. Os aposentados no sossego do dinheiro do governo, todo fim de mês173. Os filhos, os netos vivendo do dinheiro dos velhos. Os meninos estudando nas escolas do mato, com os carros levando e trazendo todo dia, todo dia. Todo mundo querendo que o governo dê, que o governo faça, que o governo dê.

A rua crescendo. Estrada asfaltada, posto do Banco do Brasil, agência do Baneb, banco estadual, sinal de televisão174. Gente de fora, gente do mato chegando, gente da rua se indo. Os carros correndo nas estradas de toda direção, levando, trazendo. O povo em um ir e vir sem fim. A rua se inchando, se inchando. Gente de fora chegando, chegando. O povo sem se conhecer, sem se confiar. Ruas nascendo nos locais de plantação. Roubos, assaltos, enganações. Gente se pondo sabida nos desconfios. Trabalho de muitos jeitos, nos muitos das profissões e o mundão aí, com tudo perto. O povo querendo emprego, se aperreando na rua sem ocupação de ganho, tendo que comprar, que comprar, que pagar, que pagar. Ir para onde? Os aposentados recebendo a aposentadoria em Curaçá. Os comerciantes se animando, esticando a feira nesses dias. Os carros trazendo tudo, o comércio na fartura de sortimentos variados. Mas a feira fraca que comércio tem todo dia em todo lugar. O povo indo comprar fora, no espalho do mundo.

As festas. Quem liga para coisa de santo? Muitas bandeiras andando na rua, na tiração de esmola para São Benedito, mas pouca devoção O povo na

173 Note-se que os chiqueiros reduziram em quantidade de criação, sendo possível que a média de animais por chiqueiro não chegue a 45 cabeças. Levando-se em conta que uma criação, em média, é vendida por R$ 25,00 e que só há parição uma vez por ano, a atividade não consegue dar suporte de vida a seus praticantes, dentro das atuais exigências de consumo. O salário de um aposentado – R$ 136,00 - equivale a 5,4 criações mês.174 A estrada Curaçá-Juazeiro foi asfaltada no início dos anos 80, ocasião em que também foi instalado posto telefônico e que a cidade recebeu sinal de televisão. Na transição da década de 1970 para a de 1980, foi instalado um posto do BB (Banco do Brasil) e, logo depois, uma agência do Baneb (Banco do Estado da Bahia).

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procissão com fé encolhida. Os jovens com devoção envergonhada, os velhos sentindo saudade e o santo sem alumiação de muita luz de vela. Pobreza de foguetes. A banda em arremedo não sabe mais tocar a cantiga do santo e o povo querendo, fraco, desentoado. O padre se esforçando, mas sem saber. O povão mesmo nas barracas, na barulho das músicas de sucesso. Festa, festona na rua com conjunto afamado. Os marujos crescendo, mais gente participando. A fila de gente querendo ser rei, ser rainha. Festa dos vaqueiros com vaqueiros de enfeite, vestidos com roupas de pano, montados em cavalos grandes, arriados com selas coloridas. Os vaqueiros de verdade em cavalinhos de trabalho do aprumo das caatingas, sem espaço de liberdade na rua. Aboios? Aboios de disco, cantados em carros-de-som. Os vaqueiros desfilando atrás do carro-de-som, em romaria no silêncio de suas vozes, sendo levados, sendo levados.

O teatro se arruinando, se desmilinguindo pelo gasto do tempo. O povo do lugar sem força para reconstrução. Trabalho de recuperação. Dinheiro vindo de fora. Devagarinho, devagarinho se embonitou de novo. Marcos da Ré que deu providência, no chamado da Ararinha Azul175. Padre José fez pedido, arranjou as cadeiras. Tá lá, bonito, pedindo uso, cansado de solidão.

Os costumes mudados. Tudo no diferente de antes. Os pais sem a atenção do respeito dos filhos, perdendo condição de mando. A justiça fazendo os impedimentos da disciplina dos filhos pelos pais. A lei dos homens governando o mundo. Os estatutos de outro jeito. O povo no desconhecimento de como ser. Os velhos vindos do mato se misturando com os velhos da rua, jogando dominó, jogando pulha, esperando o tempo passar, assuntando o mundo, se admirando com as coisas aparecidas. Os jovens nas providências das novidades, sonhando com ganho de emprego, ganhando para gastança nos pagamentos de compra de roupa, de bebida, de entrada de festa, querendo carro, abandonando o fazer, o ser dos pais. Festa direto. Os bares estrondando som, a noite toda. A polícia rodando, vigiando os movimentos do povo e todo mundo animado desanimado176. 175 Marcos da Ré, catarinense, agente iniciador do Projeto Ararinha Azul, desenvolveu campanha de reforma do Teatro e conseguiu apoio da Fundação Louro Parque (entidade espanhola) e de parte da população local. 176 Nos dias atuais está havendo um volume acentuado de drogas circulando entre a juventude, o nível de criminalidade acentuou-se bastante e há também um grande número de moças

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Cadê os doidos? Os doidos vivos se endoidecendo. Zé Doido procurando o mundo no mato, nos caminhos sem rumo, sem lugar de bem querença na rua, agora trancado. Domingão triste, porrinhas bem fracas, bem baixinhas, sem entrosamento de amizade com o povo chegante, de vez em quando se dando a fugir nas caminhadas pelas caatingas. Goizinho foi levado embora, vive em outro mundo sempre pedindo para voltar177. Neném foi morar no mato. Vive reclamando, querendo Curaçá. Nerimar vivendo na rua. Incutição de ser artista, tocando guitarra sem som, aproveitando a música dos bares para fazer apresentação. De vez em vez um maltrato contra ele. Miau, esturrando miados, fazendo caretas, assombrando os desconhecidos. A cidade sem lugar para os doidos, os doidos sem lugar de boa aceitação.

Uma parte do povo procurando jeito de arranjar recursos que chegue para o sustento do sonho da vida da modernidade do jeito de ser. A sabedoria campeando nas enrolações de palavras floreadas, garantindo dinheiro para amanhã. O fiado amedrontando os comerciantes e o prefeito agoniado com a fila de gente atrás pedindo emprego, adjutório. Os patrões assustados com os trabalhadores, que aprenderam o caminho da Justiça do Trabalho, reclamando direitos. Os trabalhadores sem o preparo exigido pela vida presente178. O povo do mato se queixando de seca, na certeza da mudança do mundo, querendo maneira de se melhorar. Reuniões, discussões. Formar associação: a frase dita e repetida pela gente do governo. O povo formando associação, correndo para se amparar nos recursos do Banco. Depois do dinheiro na mão, cada um em seu cada um, sem ligança para a união necessária da coisa: enfeite de casa, compra de carro, de moto, roupa, festa. Poucos se aplicando nos investimentos para o futuro. O prefeito falando, buscando novidade, promovendo cursos e o povo sem crença na força própria. Riacho Seco indo, entendendo as coisas na frente, se adiantando na história, crescendo. Os moradores dos outros distritos ciumando, olhando de braços meio cruzados. Uma parte do povo se agarrando nos jeitos velhos do passado, vendo o mundo se acabar, se entregando, reclamando da safadeza do mundo, da mudança do clima, recordando as

adolescentes engravidando. 177 Faleceu recentemente, quando este trecho já estava concluído. 178 Inclua-se como trabalhadores, inclusive a maioria, os funcionários públicos, que ainda não se compenetraram da necessidade de mais agilidade, eficiência e compromisso com suas atribuições.

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profecias do fim do mundo, sem dar fé à modernidade. De quando em quando, a notícia de um sujeito mudando o pensamento, entendendo a forma de se guiar na vida procurando outras maneiras179.

Curaçá180 frente a frente com o futuro, na intenção do colorido dos mundos distantes, elegantes, reluzentes. Recomeçar. Botar a cabeça para frente, fazer o

a ser feito, entrar no mundo do mundo novo. Outras tristezas, outras alegrias. Quem entende esse mundo? Como será?

179 Na administração do atual prefeito, Salvador Lopes Gonçalves, foram realizados vários cursos preparatórios para novas atividades e de modernização de atividades antigas. Ocorre, entretanto, que os resultados são ainda embrionários, devido à resistência das pessoas. Mesmo quando muitas dessas pessoas manifestam simpatia por novos métodos de trabalho, não conseguem assimilar os procedimentos que a atualidade exige. De qualquer modo, muitas associações foram criadas e a idéia associativista está em expansão em todo território do município.180 Posição da sede do município: latitude: S, 8º 59’ 27” ; longitude: W. Gr. 39º 54’ 41” . A altitude é de 350m. Segundo João Matos, p. 49, “pelo recenseamento de 31 de dezembro de 1890, a população do Município atingia 12.000 habitantes”... O recenseamento de 1920 registrou uma população de 16.500 habitantes. De acordo com João Matos, por volta de 1926 Curaçá possuía "200 casas bem construídas e alinhadas, formando 3 praças e 4 ruas, com mil habitantes". Em 1940, segundo o IBGE - Sinopse Estatística, 1948 – a área territorial do Município de Curaçá era de10.628 km² e a população estimada em 21.331 habitantes, 1.884 na zona urbana e suburbana e 19.447 na zona rural. Na sede, nesta época, existiam 23 logradouros públicos. Havia cinco distritos: distrito sede (Curaçá) com 4.091 habitantes sendo que 918 na zona urbana e 3.173 na zona rural; Barro Vermelho com 3.053 habitantes, sendo que 290 na zona urbana e 2.763 na zona rural; Chorrochó com 5.021 habitantes, dos quais 360 na zona urbana e 4.661 na zona rual; Ibó com 5.923, sendo que 66 na zona urbana e 5.857 na zona rual; Patamuté com 3.243 habitantes dos quais 250 na zona urbana e 2.993 na zona rural (Em 1926, segundo João Matos, já era essa a divisão administrativa). Entre a população de 5 anos e mais sabiam ler e escrever 3.245 pessoas; não sabiam ler e escrever 14.741. Declaram-se católicos 21.235, contra 83 de outras religiões. Foram recenseados 24.451 bovinos, 3.315 equinos, 11.303 asininos e muares, 6.041 suínos, 44.142 ovinos, 146.126 caprinos e 13.484 aves - In Sinopse Estatística - Município de Curaçá -, IBGE, Rio de Janeiro, 1948.

Em 1953, com a elevação de Chorrochó à condição de município, Curaçá perdeu 3.919 km² ficando com uma área de 6.709 km² (Segundo a SEI – Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia, a área do município é de 6.476,0 km²) sua atual área territorial. A partir de 1953, pela Lei nº 628 de 30 de dezembro, os distritos de Curaçá passaram a ser os seguintes: distrito sede (Curaçá), Riacho Seco, Barro Vermelho, Poço de Fora e Patamuté, sendo esta a mesma situação administrativa da atualidade, acrescida dos povoados de Mundo Novo, Pedra Branca, São Bento e as Agrovilas – pertencendo estas duas últimas aglomerações ao distrito de Riacho Seco.

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Segundo o censo estatístico do IBGE, realizado em 1996, a população do município naquele ano era de 25.219 habitantes sendo 9.762 na zona urbana e 15.457 na zona rural e uma densidade demográfica de 3,89 habitantes por km². No distrito sede foram contabilizados 10.361 habitantes, dos quais 7.112 urbanos e 3.249 rurais. Em Barro Vermelho: 731 habitantes (201 da zona urbana e 539 da zona rural); Patamuté: 2.455, 355 habitando a zona urbana e 2.100 na zona rural; Poço de Fora: 1.612 habitantes, (614 na zona urbana e 998 na zona rural); Riacho Seco: 10.051, (1.480 na zona urbana e 8.571 na zona rural).

Segundo ficha cadastral da Fundação Serviço de Saúde Pública, a sede do município possuía, em maio de 1999, 2.269 domicílios, sendo que, destes, 1.837 estavam ligados à rede de esgoto, quase toda realizada a partir de 1997. Os dados do SAAE, também no mês de maio de 1999, apontaram a existência de 126 logradouros públicos.

No censo de 1996, o rebanho do município estava assim constituído: 34.128 bovinos, 11.427 suinos, 2.463 equinos, 6.810 asininos (jumentos), 1.748 muares (burros), 67.661 ovinos, 254.184 caprinos. Em 1998, pesquisa do SEBRAE identificou 260 estabelecimentos comerciais, sendo que 35% deles eram bares, 20 unidades industriais (30% de padarias), e no setor de serviços 110 unidades (31,82% no ramo de costura). Estes dados, embora não claramente especificados no documento, ao que parece referem-se ao município como o todo e não estão discriminados por distritos (está contabilizado como estabelecimento qualquer atividade, mesmo que seja desenvolvida em nível individual e embrionário) – In: SEBRAE - PERFIL EMPRESARIAL (de Curaçá), 1999.

Em 1999, a Secretaria de Educação do Município matriculou 8.858 alunos, dos quais 966 no ensino infantil, 21 no ensino especial, 7.222 no ensino fundamental, 524 no curso de magistério, 125 em educação básica. Destes, estão matriculados na sede 433 em educação infantil, 21 em educação especial, 1.719 no ensino fundamental, 140 no curso de magistério, 125 em educação básica, um total de 2.438 matrículas.

Total de recursos da prefeitura, incluindo o FPM, nos meses a seguir:

-Fevereiro: R$ 436.676,02;

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-Março: R$ 529.211,91;

-Junho: R$ 383.922,06;

Outubro: R$ 455.615,20 (meses correspondentes ao ano de 1999).

Distâncias entre distritos e povoados: Curaçá - Riacho Seco: 42 km / Curaçá - Pedra Branca: 91 km / Curaçá - Agrovilas: 102 km/ Curaçá - Patamuté (via São Bento): 84 km / Curaçá - São Bento: 42 km / Curaçá - Barro Vermelho: 54 km / Curaçá - Mundo Novo: 96 km / Curaçá - Poço de Fora: 78 km / Riacho Seco - Pedra Branca: 48 km / Riacho Seco - Agrovilas: 60 km / Patamuté - Barro Vermelho: 42 km / Patamuté - São Bento: 42 km / Barro Vermelho - Poço de Fora: 24 km / Barro Vermelho - Mundo Novo: 42 km.

Limites do Município de acordo com a Lei nº 628, de 30 de dezembro de 1953: - com o Estado de Pernambuco: começa no rio São Francisco, na foz do rio Curaçá,

desce pelo talvegue do rio São Francisco até a foz do riacho do Pambu (quatro municípios pernambucanos são fronteiriços: Lagoa Grande, Santa Maria da Boa Vista, Orocó e Cabrobó);

- com o Município de Abaré (esta divisão não está coberta por essa Lei, pois Abaré só veio a se emancipar de Chorrochó recentemente, por volta de 1962) : começa na foz do riacho do Pambu, sobe por este até sua nascente, daí em reta até a nascente do riacho Santo Antônio, daí em linha reta até a foz do Riacho Jaquinicó e, daí, em reta até as proximidades da fazenda Horizonte;

- com Chorrochó: Seguindo das proximidades da fazenda Horizonte, através do riacho da Vargem até as proximidades da fazenda Lagoa da Pedra, daí seguindo em sinuosidade até o ponto mais alto da serra dos Cágados, na divisa com o município de Uauá (Também este limite não está em conformidade com a referida Lei pelo mesmo motivo do caso do município de Abaré);

- com Uauá: começa no ponto mais alto da serra dos Cágados; daí em reta até o marco no alto da serra da Canabrava ao norte do povoado do mesmo nome, daí por outra reta até o marco do alto da serra do Januário;

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DISTRITOS

- com Jaguarari: começa no marco do alto da serra do Januário, de onde segue em reta até o marco no lugar Boa Vista (ou Bela Vista?), no rio Curaçá;

- com o município de Juazeiro: começa no marco no lugar Boa Vista, no rio Curaçá, e por este abaixo até sua foz no rio São Francisco.

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BARRO VERMELHO

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Vai longe o tempo que começou. A história é a história vinda das lembranças dos mais velhos. Naquele tempo o povo não tomava nota das coisas. Ficava tudo aí, rolando de boca em boca, de cabeça em cabeça, nos andos e desandos do mundo. Fazer finado viver, quem quiser precisão, que o outro século, há muito, já se acabou e a memória o tempo comeu.

Do que se sabe, o início foi com Joana do Garrote. Mulher rica, fazendeira, dona de dinheiro de ouro e da Fazenda do Garrote181. De onde ela veio? Sei lá! Talvez de Portugal. Tinha marido, um tal de Francisco Félix. Pelo parecimento da história, não era um sujeito por exemplo182. Ela não parou naquele mesmo do lugar. No desembaraço da labuta, fez vida de fazendeira e esparramou raiz por longe, abrindo curral para as bandas do riacho que seus vaqueiros deram o nome de Mundo Novo. O casal teve quatro filhas. Uma das filhas se casou183 e o marido botou fazenda por perto, nas terras da sogra. Foi vivendo ali. Porque sim, porque não, outros parentes se chegando, morando perto, fazendo situação e, quando viram, já era uma pequena aglomeração no meio da caatinga184. Devagarinho, devagarinho o povo se multiplicando, formando parentalha. Aqui, ali, um casamento com gente de fora, com gente chegante, mas logo, logo, viravam a mesma “progena”185, nas misturas do sangue.

181 A Fazenda Garrote ainda existe com esta mesma denominação e situa-se próximo a Barro Vermelho. Informação de Hélio Oliveira. 182 Segundo provérbio de alguns curaçaenses existe homem por acaso e homem por exemplo. 183 Conforme dizem alguns dos mais velhos de Barro Vermelho, o marido dessa moça, de nome Josefa, era Francisco Gonçalves Brito, supostamente, originário do Riacho do Navio, Pernambuco. De acordo com o Sr. Dilson Martins Oliveira, *1924, este casal teve, mais ou menos, 10 filhos, dos quais apenas dois eram mulheres, e fixaram residência em Barro Vermelho. 184 Segundo Hélio Oliveira essa pequena aglomeração tinha se formado em torno do ano de 1850.

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Barro Vermelho... Terá sido esse o nome desde o tempo de começo? Há uma história. Por ela, esse nome porque um padre, ao ser mal recebido pelas pessoas, quando passava pelo lugar, se zangou e jogou uma praga: “Tu és barro vermelho e barro vermelho ficará. Haverás de crescer que nem rabo de égua186”. Bateu o pó dos chinelos e se foi, atazanado, sem olhar para trás. O povo ficou crente naquilo, conversando pelos tempos.

Havia muitas fazendas por perto do lugarejo. O povo

aumentando, aumentando. Feira no rio, em Curaçá. Cada um no seu por si, pelo meio do mato, fazendo vereda. Comprar, vender, tudo, tudo, lá. Em Juazeiro, vez por outra. Gente, bicho de idéia, alguém atinou. Começou a fazer revenda, compra das coisas do mato, pele de bode187, pena de ema, essas coisas. Comércio grande, ainda em Curaçá. Nesse que nesse, veio outro e outro e nasceu uma feirinha, debaixo de um tamarindeiro. Eras de 1903, por aí. Depois construíram um barracão. O povo se juntando no compra e vende, mais troca-troca, que dinheiro era raro. Os tropeiros é que iam ao rio. Aquela enfieira de jegue, tudo carregado: farinha, feijão, rapadura, abóbora, batata, fumo, gás188, um tudo por tudo. Quando chovia, um Deus acuda de sofrimento, os animais atolando, jegue deitando. Na seca, o sol, a água longe. Outros tropeiros vinham de mais longe ainda. Vinham de Sergipe, também de Juazeiro. Ganhou importância, virou distrito189.

185 Progênie: origem, procedência, descendência.186 Esta é a versão dos moradores, quando tentam explicar a origem do nome do lugar.187 Era, normalmente, através da venda de peles de bode que os caatingueiros conseguiam recursos para efetuarem a feira. Na maioria das vezes a feira era efetivada com a venda de uma única pele. 188 Querosene, que era o único combustível utilizado para iluminação.189 Barro Vermelho foi elevado à condição de distrito em 1911. Sinopse Estatística do Estado da Bahia, In: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – Conselho Nacional de Estatística, 1948, Rio de Janeiro.

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Barro Vermelho cresceu mais, foi se situando. Os padres passando, pregando. Santas Missões de 1912. Os padres fizeram incentivo, ordenação para o povo para construir igreja. O povo carregando pedra, areia, fazendo cal. As paredes levantadas, o altar feito. A força acabou190. São João Batista, o padroeiro191. Sagrado Coração de Jesus192, muito venerado, até com homenagem de comemoração. Adoração sem proteção de telhado. Nas festas, cobertura só para as festas, de palha, qualquer coisa assim. Depois, mais adiante, com uns dez anos as forças renasceram e igreja terminada. Não tinha bancos. O povo assistindo missa em pé, se sentando, se ajoelhando no chão. Os mais mais providenciaram cadeiras, marcando lugar. Os outros aí. Uma porção de velhinhas com panos na cabeça, venerando, ouvindo o padre falar em latim, que era assim que era193.

Agora, lugar distinto. Os fazendeiros fazendo casas, se arruando nos dias de feira, nos tempos de festa. As mulheres gostando. Uma civilização. Os pobrezinhos também foram se chegando, fazendo casinhas de palha, formaram a Rua da Palha, ali perto da Cacimba Velha, do lado do Riacho Dema, vivendo, Deus sabe como.

190 A igreja de Barro Vermelho foi construída em duas etapas. A primeira etapa teve início em 1912, através de mutirão sob a liderança de João Onório de Oliveira, com a levantação das paredes. A segunda etapa, em 1923, sob a liderança de Jovino Ribeiro, quando a obra recebeu cobertura e foi finalmente concluída. Informante: Hélio Oliveira. 191 Comemorado no dia 24 de junho, sendo a festa profana realizada da noite de 23 para 24.192 O Sagrado Coração de Jesus é comemorado em data rotativa: último final de semana do mês de setembro. 193 Informações prestadas por Dona Quiquinha (Maria Oliveira Coelho, *1913), e pela Professora Filadélfia Fonseca Ribeiro, *1914.

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O lugar se afamando, virou sede de distrito194. Fundou filarmônica195. Música comendo no centro, animação. Filarmônica 15 de Março. Os meninos aprendendo, os mais velhos ensinando. Sem sossego. Todo lugar queria música: Patamuté, Uauá, Curaçá, acompanhando os padres nas desobrigas, aquela coisa. Nas desobrigas, nas festas dos lugares, a banda indo e vindo, acompanhando os noivos, os batizados, fazendo acompanhamento na procissão. A paga dos músicos? Festa, bebida, comida, dormida. Dez, quinze dias fora de casa, fazendo alegria. O povo entusiasmado, admirado, invejando, querendo ser um. Os músicos formaram jazz196, tocavam nas festas dançantes, ganhando uns troquinhos. Dois trompetes, um sax, dois trombones, cabaça, pandeiro, pronto, estava o conjunto formado. De dia a filarmônica, de noite o jazz, nos clubes, fazendo a festa dos ricos.

194 Em 1926 já era sede de distrito. In: Matos, 1926, p. 92. 195 A Filarmônica 15 de Março teve sua fundação em 1917. Foram maestros consecutivamente: Antônio Alves, Arnobre Varjão, Isaulino Gonçalves, Sr. Filemon e atualmente Hélio Oliveira é o responsável. 196 No caso significa banda, conjunto.

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Escola chegando. Primeiro os professores pé-de-pau, pagos pelos pais dos meninos. Aprender as primeiras letras, a fazer conta, cantar bem a tabuada. Menino rude se via na peia. Seu Berlarmino, Seu Benício de Moraes, Dona Lindaura, os professores mais conhecidos. Andavam de lugar em lugar, ensinando, conforme fossem chamados. Professora mesmo, de diploma, só depois. Primeiro foi Dona Leni Cardoso, por pouco tempo. Depois a professora Elisabeth Bahia, vinda de Curaçá, ficou mais. Quando se foi, aí veio uma professora do lugar mesmo, a professora Filadélfia Fonseca197. Muitos meninos moravam longe, nas fazendas. Vinham todo dia, montados nos jeguinhos. Vários pais não davam importância, não. Esse negócio de escola, para quê! Só é preciso aprender a ler, a contar. De resto a vida ensina, que não é preciso escola para poder aprender a derrubar boi e nem a trabalhar com enxada. As mães pensavam de outro jeito, pediam que a professora convencesse seus maridos. Ela fazia campanha, aconselhava. Era tida com respeito, às vezes conseguia vantagem.

Água, a dificuldade. O tanque do Governo às vezes secava, de acordo o andar das chuvas. No longe das chuvas a água engrossava. Servir-se da Cacimba Velha198, lá no riacho, fazer cacimbinhas dentro dela. Abrir buracos chão abaixo, até dar minação. Esperar a água chegar, um sacrifício, ali aparando, enchendo a cuia. Cada um cuidando da sua, evitar sujeira dentro. Bem tapadinhas, para o riacho não entupir, para os bichos não caírem dentro. A água era boa. Lavar roupa, aí o problema. Também quase não tinha roupa. Os ricos mandavam lavar fora, longe. A pobreza se ajeitava no seu conforme. Assim se ia.

197 A educação formal iniciou-se em Barro Vermelho no início da década de l930. A professora Filadélfia Fonseca Ribeiro, natural desse distrito, iniciou seu trabalho em Patamuté, no ano de 1938, para onde se deslocava a cavalo no final das férias. Neste mesmo ano conseguiu transferência para sua terra onde lecionou de 1938 até 1965, quando se aposentou por invalidez. 198 A Cacimba Velha foi construída, segundo é acreditado, por escravos que, no trabalho de escavação, utilizaram-se de gamelas e banguês para carregarem o material que retiravam. Informação fornecida por Hélio Oliveira.

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O comércio crescendo. Seu Augusto Martins, Euclides, seu Jovino Ribeiro, depois seu Agostinho, seu Isaú, botaram armazém. Dia de feira, um mundão de gente. Um converseiro danado, chega fazia zuuuuu. De longe se ouvia. Tinha a turma da cachaça. Ficava por ali, nas vendas, contando conversa, procurando assunto, bebendo, fazendo volta na frente do balcão. No tarde da tarde começava a se desmanchar. Uns com feira feita, outros por fazer. Alguns pegavam suas montarias e se encaminhavam bambaleando pelos caminhos; outros ficavam mais, falando alto, dizendo, dizendo, se desentendendo com os colegas. No mais das vezes acabavam no Beco da Porrada, no enrola-enrola de confusão feia de tapas e puxadas de faca. O povo se assanhava em correria, uns para cima outros para longe. Não havia solidão

Apareceu correio, seu Bento Matos carregando os malotes nas costas, caminhando a pé, indo e vindo direto, Barro Vermelho-Curaçá. Assim até que apareceu o caminhão do correio, fazendo o caminho Chorrochó-Patamuté–Barro Vermelho-Juazeiro. O caminhão de seu Zinho de Patamuté fazendo linha, caminhando na direção de Juazeiro. O povo esperando, querendo viajar, resolver coisas, procurar providência para saúde. Gente do lugar comprou um, ficou melhor199. Partida, chegada mais certa. Até prédio escolar apareceu200. Barro Vermelho virando comércio.

Um padre fazendo pregação. Padre José Luna. Achou a igreja acanhada, sem bancos para o povo sentar, sem mobiliário. Deu a fazer campanha. Pediu e pediu. Homem jeitoso, de palavra chamativa. O povo foi dando, fazendo contribuição. Ele arranjou umas coisinhas por fora. Abancou a igreja, botou mobiliário201. Ficou bonitinha. O povo agradeceu.

199 O Sr. Augusto Martins adquiriu um caminhão e passou a fazer linha regular.200 Segundo Hélio Oliveira, o prédio escolar foi construído em1949. 201 Padre José Luna trabalhou no município de 1958 a 1961.

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A festa de São João Batista. O povo todo vindo. Os de longe e os de perto. Todo mundo na veneração. A igreja cheia. O padre pregando, o povo rezando, cantando. Os foguetes no ar, pipocando. O cheiro de vela. Aqui, ali, a banda se assanhando. Aquela gente toda se vendo, se abraçando, se encontrando. Um pergunteiro danado. Depois bebida, dança até o sol alto. No fim a procissão. São João Batista no alto, carregado. A Filarmônica tocando. As filas de gente acompanhando, passo a passo em passos pequenos, fazendo respeito. A fila saía, a fila chegava, pronto. Despedidas.

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Os rapazinhos indo estudar fora, na procura da formação de ginásio. Umas mães indo junto. Juazeiro, Bonfim, poucos para Salvador. O povo ganhando o mundo: São Paulo, outros cantos. Lugar sem emprego, os homens na labuta do sempre; as mulheres, costurando, bordando, lavando, cozinhando, sem outro meio de vida. Só na dificuldade da labuta bruta. Os situados ainda tinham o seu, se faziam no seu de criação de bicho; os sem situação, vendendo dia, quando havia alguém para comprar, vivendo do mato: tirando casca de angico, caçando, arrancando pena de ema, comendo tatu. As agonias. Quem voltava? Só gente indo, indo, indo202. Os músicos também se foram, se esbandalharam mundo a fora. De vez em vez é que vem. Os velhos ficavam. O governo botou salário de aposentadoria. Um adjutório bom. Refrigério dos velhos. Dinheiro sem sacrifício, todo mês, todo mês. Uma beleza.

A feirinha203 ficando fraca, o povo comprando em outras bandas, no mais em conta. Os aposentados recebendo dinheiro fora, aproveitavam e já faziam a feirinha. Quase não precisavam mais do comerciozinho, que é mais caro. Assim as coisas correm. Aparência de deserto. Até os velhos se vão. Os filhos carregam, levam-nos para perto da assistência. Casas fechando, fechando. A rua sem gente, a feira apagada, bancos vazios nas portas. Silêncio. Um vulto aqui, outro longe, um grito solitário no vento. Os que ficam sentem. “A vida aqui é uma solidão retada!204”. Viver de pensamento. Pensar no passado, nos que foram, no sucesso e nos insucesso que alcançaram. Adelmário Coelho, o orgulho205. Mas tem a festa.

202 De 1960 em diante o processo de emigração se aprofundou.203 A feira semanal de Barro Vermelho ocorre às quartas-feiras.204 Frase do Sr. Dilson Martins Oliveira, *1924, em setembro de 1998. A esse respeito, Dona Quiquinha, 1913, disse: “No passado ninguém reclamava de solidão. Ninguém conhecia nada. Todo mundo era cego. Nas caatingas a gente achava bom, quanto mais no comerciozinho!”. 205 Adelmário Coelho é cantor de projeção em todo o Nordeste brasileiro.

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Dia 23 de junho chegando. O quem vem, quem não vem começa. Os recados: limpem minha casa, ajeitem as coisas, estarei aí... Providências: ajeitar a igreja, arranjar meio para a Filarmônica, arrumar as coisas. O povo chegando, chegando, se encontrando, dizendo, perguntando, bebendo, festejando. Gente que não se conhece se conhecendo: a “progena” feita longe. Uma alegria danada. A festa canta e canta, mas termina. Despedidas, choros, partida. Recordações206.

Meninos continuam nascendo. Mais no mato, que na rua quase não têm. Trouxeram as escolas do mato para a rua. Dia de aula tem movimento. Menino que só o diabo, chegando nas caminhonetes, gritando, trazendo vida. Estudam. Depois se retiram. O silêncio volta. No outro dia tem mais barulho. Para esses o se ir está acabando. Ir para onde, com tanto desemprego no mundo? Ajeitar-se por aqui mesmo. Fazendo o quê, ninguém sabe? O mato vai nascer de novo207?

206 Recordações. Para que se tenha uma idéia mais clara, enquanto, em 1996, o IBGE contou 201 habitantes na sede do distrito, sendo 104 do sexo feminino e 97 do sexo masculino. Em 1940, o mesmo órgão registrou a existência de 290, de acordo com a Sinopse Estatística do IBGE de 1940, p. l3, e em 1950 a população era de 360 habitantes, segundo a Enciclopédia dos Municípios da Bahia, 1958, p. 211. A secretaria de Saúde de Curaçá contabilizou, em 1999, 158 prédios na sede do distrito. A Secretaria Municipal de Educação contabilizou, em 1999, 172 matrículas, sendo 17 no ensino infantil e 155 no ensino fundamental. 207 A energia elétrica foi instalada em 1974, o posto médico nos meados da década de 1980, o dessalinizador em, 1994 e a água encanada em 1997. Em março de 1999, segundo dados da Secretaria Municipal de Saúde, Barro Vermelho possui 158 prédios. O IBGE, no censo de 1996, contou 201 habitantes na sede do distrito, 104 de sexo feminino e 97 de sexo masculino. Situa-se a 54 km, da sede do município, a 24 km de Poço de Fora, a 42 km de Patamuté e a 42 km de Mundo Novo. Faz divisa com o município de Juazeiro, com os distritos Poço de Fora, Patamuté e com o distrito sede, Curaçá. As divisas são as seguintes: a - com Curaçá: começa no rio Curaçá, na foz do riacho do serrote Pelado; sobe por este até a foz do riacho do Banguê; sobe por este até a sua nascente; daí em reta até a nascente do riacho Jaquinicó.b – com Patamuté: começa na nascente do riacho Jaquinicó, daí em linha reta até a nascente do riacho Patamuté; continua em reta até a nascente do riacho Espírito Santo.c – com Poço de Fora: começa no rio Curaçá, na foz do riacho Espírito Santo, sobe por este até sua nascente.d – com o rio Curaçá.

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PATAMUTÉ

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Um homem, morador pelas bandas de Canudos, ouviu uma fala: “Em Rodelas tem uma índia que sabe onde existe um grande olho d`água nos campos de Curaçá”. O homem era criador. Atentou naquele dito. Ele era de seu propósito. Os campos de Curaçá tinham pasto, ele sabia. O gado que possuía já era demais nas terras de sua fazenda, lá nas bandas do rio Vaza-Barris. Pastinho pouco, bicho muito. Procurou a índia. Ela se dispôs. Lá se foram. A prova do dito foi mostrada. No olho d`água tinha uma anta. A anta se assustou. Mergulhou na água, sumiu. A índia viu o mergulho dela e gritou: “Patamuté, patamuté!”208. Um riacho com água, muita água para mais de muitos metros no correr do comprido dele. Tinha peixe também209. O homem fez a situação do lugar. Patamuté ficou nome de fazenda. Isso lá no tempo do não se sabe. O tempo comeu a memória do continuar da história.

Foi feita uma casa210, um chiqueiro e um curral. Plantou-se criação: gado, cabra, ovelha. O fazendeiro botou um vaqueiro e ele foi se levando na vida assim. Todo mundo se levava assim: na labuta, se aperreando nas agonias do mato. Aquela solidão danada. Só berro de bicho, tocar de chocalho, ronco de ema, assobio de cascavel, canto de cigarra. O ventão assoprando, de noite: vuuuu, chaaaa, chaaaa. O sol, a seca, a chuva, o verde, o sol... De longe em longe, um boiadeiro, um viajante perdido. Outros foram se aprochegando, se situando nas terras de perto, perto longe de mais de légua. Ouvidos afiados,

208 Segundo alguns, o termo patamuté, na língua cariri, significa anta na água, anta caiu na água. Entretanto, o neto do fazendeiro em apreço afirmava que era a própria índia que se chamava Anta. O nome do fazendeiro era Pedro Martins e se neto era o capitão Pedro Pereira de Alcântara. In: Matos, p. 90. O Sr. Didi (João Pedro da Cunha, *1917), afirma que Pedro Martins era mais conhecido pelo nome de Barão de Geremoabo.209 Na década de 1960, a água que se acumulava no paredão atingia mais de 500 metros no correr do riacho. 210 Segundo os moradores mais antigos, a primeira casa, que era a sede da fazenda, é uma casinha que se encontra em ruínas, situada no segundo quadro da sede do distrito e que pertencia aos Chias ( um povo de quem não se tem mais notícias). Os moradores dessa casa provavelmente tenham sido os primeiros vaqueiros da fazenda. Segundo o Sr. Didi (João Pedro Cunha, *1917), o primeiro morador foi João Paulo, vaqueiro do Barão de Geremoabo.

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conversa para muito tempo. Assuntar, matutar, aproximação sem aproximação, que o mundo é cheio de história e o diabo não dorme. Esse povo de longe... sei lá! O tempo andando, andando, o povo virando finado. Os mesmos se vendo no sempre mesmo da vida, de quase não existir um morador novo, na redondeza. Mas chegava o desespero das secas brabas, e lá se vinham eles, os outros moradores de perto, trazendo seus animais, procurando refrigério de água. Iam se agasalhando por ali, arranjando comida de mandacaru, de xique-xique para o gado, para eles também. Os tropeiros, os boiadeiros, na descoberta de água no lugar, começaram a fazer apoito por ali. A fazenda ganhando freguesia de gente, no mais e mais tomada de conhecimento de gente das lonjuras do mundo. Assim é que se acredita que foi, e pode ter sido desse jeito mesmo. Aquele aguaceiro no riacho, com poças fundas e até peixe existindo, tudo isso no meio da caatinga, não deixava de fazer espanto, de atrair a atenção do povo.

O fazendeiro, dono do lugar, viu que dava para ser mais. Mandou construir um paredão no riacho, represar água, buscar mais vida. Uma obra de vantagem, sem outra para comparação. E deram um nome ao riacho: riacho do Paredão211. E assim ficou para o sempre da história do até hoje.

O povo foi se chegando, correndo das dificuldades trazidas pela seca,

pela escassez de água. Foi se abancando no lugar, chegando mais para perto, botando sitiozinhos. Os tropeiros se arranchando por ali, fazendo descanso, atraíram moradores da redondeza que vinham buscar novidades, fazer compras, vender o que tinham. Um ponto de encontro, um lugar de gente se ver, de fazer negócio. Fora daí, comprar umas coisinhas só em um longe sem fim, sofrimento de estradas compridas, aquele desertão das caatingas. Isso era lá pelos idos do final do século XIX212. Uma casinha, mais outra casinha, o povo se chegando, o lugar virando feira, tomando jeito de lugarejo, até padre começando a passar, fazendo desobrigas de tempos em tempos. Os fazendeiros também foram se chegando, fazendo casas e o lugar se encorpando. Houve entusiasmo. Deu-se no povo a necessidade de construir uma igreja, coisa feita 211 Os mais velhos acreditam que essa pequena barragem tenha sido construída por escravos, a mando do proprietário da fazenda.212 Os documentos que dizem respeito sobre a propriedade das terras de fazendas da região, e que se têm notícias, são datados por volta de 1860. Por esse período, é provável que os primeiros situadores das terras com gado o tenham feito por volta do início do século XIX.

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por volta de 1902 para 1903213. O povo naquela futrica, se ocupando do trabalho sagrado, carregando pedra, areia, fazendo a construção. Nisso lá vêm passando uns retirantes e viram aquela movimentação. Um deles perguntou: “quem é o padroeiro daqui?” Não tem – foi a resposta. O retirante carregava uma imagem de Santo Antônio e a deixou como oferenda. O povo viu sentido nessa atitude e tomou o santo como padroeiro214. Obra da igreja acabada. Não tinha banco, cada um que levasse sua cadeirinha. Muita gente em pé, ouvindo as pregações.

Alguém se deparou com uma gruta215. Susto! O povo ficou admirado. Aquilo só podia ser obra do divino, coisa do começo dos tempos. Um padre andava fazendo pregação das Santas Missões. Foi lá, viu, se maravilhou. Resolveu fazer o encerramento da missão dentro dela. Levou os fiéis, fez veneração, botou o povo para rezar. No fim botou um cruzeiro dentro dela216. Ficou aquele achado a fazer impressão no povo. Os ditos do missionário se grudaram na cabeça das pessoas. Não foi muito apareceu o padre Manoel Félix. Padre de vida boa, seguidor dos exemplos de Jesus. Encantou-se com a gruta. Resolveu botar residência dentro dela. Foi ao coronel do lugar, na intenção de

213 Segundo o Senhor José Gomes Reis, *1904, a igreja foi iniciada entre 1902 e 1903 e a torre levantada em 1906. Note-se que, em 1903, aconteceu a realização das Santas Missões e era do feitio dos missionários incentivarem o povo a efetuarem construções sacras. O altar da igreja foi demolido na transição da década de 1950 para 1960, sob a orientação do Padre José que o fez com a finalidade de ampliá-la. Nesta oportunidade, o coro também foi demolido. Segundo os moradores ouvidos, foi esse mesmo padre o responsável pela aquisição dos bancos e demais mobiliários da igreja.214 Essa é a história conhecida pelos moradores de Patamuté. Segundo a Senhora Maria Helena, filha do Senhor José Gomes Reis, a imagem doada pelo retirante é uma pequena que ainda está exposta no altar da igreja ao lado de uma imagem bem maior, adquirida mais recentemente. A festa do padroeiro é realizada no dia 13 de junho, e a festividade profana é realizada na noite de 12 para 13.215 A gruta foi encontrada em finais do século XIX e dista 18 km da sede do distrito. Segundo o Sr. Lídio dos Santos, *1906, dentro dela foram encontrados ossos de animais pré-históricos. Informação também registrada na obra de Fausto Luiz de Souza e Antônio Carlos Magalhães (Viagem de Reconhecimento Geológico e Paleontológico à Região de Curaçá, Bahia – publicada pela Universidade do estado da Guanabara em 1965). Estes últimos obtiveram a informação através do Padre Manoel de Magalhães, que foi pároco em Curaçá pelas eras de 1940. 216 Este fato ocorreu em 1903 e o pregador foi o missionário monsenhor Pedro Cavalcante Rocha. In.: Matos, 1926, p.67.

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comprar o terreno. Terreno para o Sagrado Coração de Jesus. O coronel não botou dificuldade. O padre, como dizem, fez aguada, para si e para os romeiros que ele queria levar para lá no dia da santidade. Fez casa também. O coronel, vendo aquilo, botou olho gordo, ofereceu dificuldade. Recebeu espraguejamento217. O padre não desistiu. Deu início às romarias.

Mais casas nascendo, em frente e ao lado da igreja. Nasceu um quadrado. As casas voltadas umas para as outras e todas olhando a igreja. Fora do quadrado o mato, a rua de costas para ele, e assim ficou até 1912. A rua era só essa. Mas era grande. Os coronéis vinham fazer morada nela, mostrar pose, fazer sociedade, viver entre os iguais, com jeito de civilização218.

Um barracãozinho219 servia de mercado, feira dia de sábado, todo sábado. O povo vinha fazer compras, vender. Comerciantes de Rodelas, de Uauá, de Chorrochó, de Barro Vermelho, gente da serra da Canabrava220, de Riacho Seco. De Curaçá, batata, abóbora. Os jumentos nas estradas em comboio trazendo as coisas, um sofrimento. Mercadorias: rapadura, farinha, milho, feijão, tecidos, miudezas. Nesse passo de andar, o governo mandou botar correio221, um progresso. Educação tinha também. Os fazendeiros de posse

217 Essa é uma versão contada por dois antigos e que rola na boca de muita gente. Outros antigos confirmam a praga do padre contra o coronel Galdino Matos e sua descendência até a quinta geração, mas afirmam ser outro o motivo. Entretanto, se recusaram a falar sobre o fato motivador da história que conhecem. De qualquer modo, ao que tudo indica, foi o Pe. Manoel Félix o iniciador da romaria, entre 1905 e 1914.218 Patamuté foi elevado à condição de distrito em 1911. (“Em virtude do Ato nº 59, de 10 de julho de 1890, o Município passou a denominar-se Curaçá, figurando na divisão administrativa do Brasil, correspondente ao ano de 1911, composto dos distritos de Curaçá, Várzea da Ema, Ibó, Chorrochó, Patamuté e Barro Vermelho” – In: Sinopse Estatística – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, RJ, 1948). 219 O barracão (quatro forquilhas e uma cobertura) é, provavelmente, do final do século XIX, segundo o Sr. José Gomes.220 Serra que fica na divisa com Uauá. Uauá dista 56 km e Chorrochó 90 km. Curaçá fica a 84 km e o distrito curaçaense de Barro Vermelho a 42 km.221 Não consegui identificar a data da instalação do posto do correio, mas os antigos que foram entrevistados foram unânimes em afirmar que tal fato ocorreu há muito tempo. Provavelmente tal ocorrência tenha se verificado entre as décadas de 1910 e 1920. Segundo contam, os estafetas transportavam os malotes a pé ou em lombos de animais e faziam as linhas Patamuté-Curaçá e Patamuté-Juazeiro. Na década de 1930, os estafetas eram vítimas certas de Lampião, quando eram por ele alcançados.

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botando seus filhos na escola, no trabalho do conhecimento das primeiras letras. Primeiro um professor, depois professoras no ensinamento das coisas de futuro222.

O chefe do lugar, o mandão de tudo era o coronel Galdino. Coronel de patente comprada. Tinha poder absoluto. Tudo debaixo de suas ordens e nada sem o seu consentimento, quem seria doido de torcer o queixo, dificultando o cumprimento de suas determinações? Era o homem de tudo e em tudo metia seu dedo, sem querer ouvir palavra contrária223.

O Patamuté desenhando a realeza no meio das caatingas. Era preciso ser como todo lugar de gente fina. Botaram iluminação. Iluminação de candeeiros, com combustível de carboreto, ao lado da igreja. Ficavam eles lá acesos, clareando do anoitecer até um pouco mais da noite, sinalizando vida. E de longe o povo ficava vendo a dança das sombras que eles faziam, os vultos que entrecortavam os sinais do fogo. Mas não era só monotonia. Aconteciam festas. A festa do padroeiro a maior. Havia também as festas que a elite fazia, reservadas só para gente da “sociedade”, “ que os vaqueiros, o povo do trabalho, era todo ignorante, não podia entrar, e além do mais não tinha roupa nova”. Nelas “as finezas e elegâncias de roupas e tratos”. Os músicos vindos de Barro Vermelho, de Belém do São Francisco, de Serra Talhada. A “sociedade” alegre, dançando, se animando. O povo de fora, com o prazer pelo direito de poder assistir, e nisso se contentava.

Na festa do padroeiro dava mais animação. Os músicos acompanhando os batizados e os casamentos de casa para a igreja, da igreja para casa, com

222 Segundo o Sr. José Gomes, de seu conhecimento, o primeiro professor foi Purcino da França Cardoso, e depois dele, Quintina Ricarda Monteiro (esta de Salvador), na década de 1910. Depois, nas décadas posteriores, foram assinalados pelo Sr. Adonai Matos Torres, Manoelito ( Manoel Mendes de Souza) e pela Sra. Filadélfia Fonseca Ribeiro os seguintes: Maria Honório Sampaio Matos, que dinamizou a vida cultural da sede do distrito, promovendo comemorações e festas; Dona. Maria; Dona Edite; Dona Almerinda e professora Filadélfia Fonseca Ribeiro (natural do distrito de Barro Vermelho). O primeiro prédio escolar só veio a ser construído entre as décadas de 1940 e 1950, por influência do deputado Manoel Novais.223 O coronel Galdino, *1840 +1930, era natural de Monte Santo e passou a residir em Patamuté a convite da viúva de Cazuza Mendes, próspero fazendeiro do lugar, de quem era parente.

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seus toques, espalhando alegria. O povo fazendo boa apreciação daquele acontecimento tido de ano em ano.

Nas eras de 1950 Patamuté ficou mais animada. Ganhou luz gerada por motor. A claridade do começo da noite até daqui a pouco. “As ruas claras como o dia, chega a claridade doía nos olhos”. Aí ganhou mais jeito de cidade, de rua organizada. O comércio se alegrava. Havia sortimento com muita variedade nos armazéns e o povo andava para a feira em maior quantidade. Desde os anos de 1940 que já havia caminhão zoando pelo mato, fazendo linha, libertando os jumentos das estradas de longe. O povo começava a ver outra vida. A água é que ainda era a mesma. Os poços do Paredão onde os homens iam tomar banho, as mulheres iam lavar roupa e os animais beber água. Aí a meninada fazia a festa na brincadeira das águas. Pescavam também, que tinha peixe curimatá e traíra. As mulheres não tomavam banho lá, não. Eram “cerimonientas”, tinham medo dos olhos escondidos dos homens. Levavam água em latas, na cabeça, para se lavaram em casa. Água de beber nas cacimbinhas, feitas acima do paredão. A água minava à noite. Durante o dia lá se ia o povo para pegá-la, para o abastecimento dos trabalhos da cozinha, para beber. Água calcária, pesada. Foi assim até os anos de 1960, quando construíram um poço artesiano. Aí sim, água com fartura, mas salobra. Ainda era melhor. Nesse tempo, fazendo sombra de progresso, teve também a construção do prédio do mercado. O barracãozinho foi levado ao chão, botado no esquecimento das coisas finadas224.

Por perto da rua teve gente querendo fazer indústria. Na fazenda Bom Jardim225 botaram uma desfibradora de caroá. Foi aquele mundo de gente trabalhando, arrancando caroá no mato, carregando água, estendendo as fibras, enfardando. Vinha gente de longe para esse trabalho, também ia gente da rua para lá. Foi um tempo de ganho do povo. Coisa pouco mas de serventia que os meios de vida era escassos. Foi e foi até que parou e tudo ficou na lembrança.

Há algum tempo atrás, apareceu um alemão em Patamuté. O comentário

do povo é que ele era fugitivo226, supõe-se que de guerra. Arranjou amparo do coronel Galdino e foi se arranchar na gruta. Vivia a deixar rastro nas serras, 224 O prédio do mercado foi construído pelo prefeito José Borges entre 1966 e 1967, segundo o Sr. José Gomes. 225 Pelos idos de 1950.

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fuçando as grutas, as furnas, procurando ouro. Enfiou esperanças de riqueza na cabeça do povo. Mas um dia foi pego por alguém do lugar e entregue à polícia, em troca de recompensa. É o que falam os mais velhos. Ele foi levado, mas muita gente ficou sonhando com o ouro escondido, encravado nas pedras, misteriado nas furnas. Nunca se achou ouro. Acharam jazidas de mármore e veio a animação. Gente estranha andando no lugar, chegando de carro, correndo o mato, cavando buraco no chão. Contrataram homens para o trabalho nas pedras. Aquele entusiasmo. Mármore róseo, artigo de primeira, coisa para exportação. Seu Elieser foi quem começou com essa furupa227. Grandes blocos de pedra tirados do chão, carregados em caminhões, levados para longe, onde acontecia o beneficiamento. Daí a pouco o fôlego esmorecia, os homens sumiam. Com pouco tempo, lá vinham eles de novo. De uma vez fizeram até aeroporto. Avião descendo e subindo. Mas não há infra-estrutura: as estradas são ruins, os compradores ficam longe e as vezes desaparecem228. O povo vai aproveitando os restos das jazidas, construindo calçadas, utilizando-os para fazer os bancos da praça.

O povo fazendo casas na rua, largando o mato de pouco, botando os filhos no estudo. Os da rua rumando para longe, buscando futuro de conforto, de estudo mais adiantado. Uns chegando, outros saindo. Aquele chega e sai. Patamuté pequeno, mas crescendo, devagarinho, devagarinho. Meio de vida dificultoso, que a caatinga e o bode é que dão sustento a tudo, mas a seca coloca atrapalho. O povo também quer mais e o bode não pode sustentar as despesas das adquirenças das finezas que vêm de longe. A gente entrando no mundo das modernagens. As mocinhas, os rapazinhos, sonhando com o mundo de longe, desejando, se indo, se indo. Voltar só por ocasião das festas grandes, poucos dias por ali. Aí as poses, os aparecimentos, com os que ficaram se

226 Segundo a sondagem que fizemos, esse alemão deve ter aparecido em Patamuté entre o final da década de 1910 e meados da década de 1920.227 Esta informação nos foi prestada pelo Sr. José Gomes. José Afonso Souza Menezes, entretanto, indica o Sr. Turibo como sendo o pioneiro da exploração do mármore em Patamuté.228 Segundo José Afonso Menezes, o mármore é beneficiado em Salvador, em Cachoeira do Itapemirim, em Goiânia, em São Paulo e no Rio de Janeiro. Parte deste mármore é, em certas épocas, exportado para a Itália. A exploração não ocorre de forma contínua devido à concorrência de outros materiais como o granito, falta de compradores e falta de infra-estrutura. É utilizado para fazer revestimentos, pisos, pias, etc.

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admirando, também querendo se ir. Depois das festas, o quieto das pessoas sem novidade de ver, com poucas de ouvir, de falar e nesse a vida se leva229.

As modernidades do mundo cada vez mais ficando perto, emburacando de porta adentro: rádios, bicicletas, televisão, energia elétrica, água encanada, dessalinizador, carros... O mundo de longe ficando perto e os do lugar ficando iguais aos de fora230. O comerciozinho minguando. Os aposentados gastando dinheiro nos lugares do recebimento da aposentadoria; o povo cada vez mais comprando fora e a feira ficando fraca, fraca. Os jovens querendo sonhar sem saber com o quê, reclamando, querendo emprego, meio de ganhar a vida no lugar. Querendo instalação de curso de segundo grau. Não vêem vantagens no mundo de fora. Ir para onde? Os que se foram reclamam da saudade e se põem a recordar231.229 Em 1940, Patamuté tinha uma população de 250 habitantes na sede do distrito e 2.993 na zona rual – note-se que a esta época a área do distrito era bem superior, sendo parte dela desmembrada para compor o município de Chorrochó no ano de 1953 (Sinopse Estatística - IBGE - 1948).Segundo a Enciclopédia dos Municípios (1958), p. 211, a sede do distrito de Patamuté, em 1950, contava com uma população de 331 habitantes. A contagem do IBGE, no Censo Estatístico de 1996, contabilizou 335 habitantes na zona urbana, sendo 193 do sexo feminino e 162 do sexo masculino. Na zona rural foram contabilizados 2.100 habitantes, sendo 994 do sexo feminino e 1.106 do sexo masculino . A Secretaria de Saúde do município de Curaçá, no ano de 1999, contabilizou 208 prédios na sede do distrito. A Secretaria de Educação do Município contabilizou, em 1999, 557 matrículas das quais 47 no ensino infantil e 510 no ensino fundamental. 230 A energia gerada em Paulo Afonso foi instalada na década de 1980; o dessalinizador nos anos de 1990, como resultado da interferência do Sr. José Hugo Borges; a água encanada também foi instalada nos anos 90 deste século.231 Os limites do distrito de Patamuté, segundo a Lei nº 628 de 30.12.1953, são os seguintes:

a – com Curaçá: começa na nascente do riacho Jaquinicó e desce por ele até o marco do término da reta, de direção sul, tirada do alto da serra da Natividade;

b – com Barro Vermelho: começa na nascente do riacho Jaquinicó, daí em reta até a nascente do riacho Patamuté; continua em reta até a nascente do riacho do Espírito Santo;

c – com Poço de Fora: começa na nascente do riacho do espírito Santo, seguindo por uma reta que, passando pelo lugar Angico, vai encontrar os limites intermunicipais com Uauá;

d – com Riacho Seco: começa no marco à margem do riacho Jaquinicó, no extremo da reta de direção sul, tirada do ponto mais alto da serra da Natividade; desce pelo dito riacho Jaquinicó até sua foz no riacho da Vargem;

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“Uma cidade pequena, mas com muito amor pra darTenho orgulho dessa terra porque lá é meu lugarGosto tanto da cidade, que pra lá quero voltarPatamuté quadradinho, uma praça, uma igreja Mais pra cima o mercado, pra vendas de miudeza Para todos da cidade e de outras redondezas.Eu me lembro com alegria das caçadas de tatu E dos mês de fevereiro da fartura do umbu.E do jogo de gamão, na venda de Zé Lulu.Suas matas, suas serras e os rios pra pescar Existe uma gruta linda onde o padre fez seu lar.Eu lhe provo tudo isso, se quiser lhe levo lá.” (Jorge Augusto).

e – com Curaçá: começa na nascente do riacho Jaquinicó e desce por ele até o marco do término da reta, de direção sul, tirada do alta da serra da Natividade.

f – com o município de Uauá: começa na serra dos Cágados e segue em linha reta até o ponto tirado da reta que, partindo da nascente do riacho Espírito Santo e passando na fazenda Angico, atinja a linha divisória entre os municípios de Curaçá e Uauá;

g – com Chorrochó: iniciando na serra dos Cágados até os limites interdistritais com Riacho Seco.

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POÇO DE FORA

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Ainda era tempo de escravidão. Um escravo232 fugiu, errante pelas caatingas. Danou-se a andar pelo mundo, procurando. Queria se ir. Não podia sossegar. Era tempo de seca, seca braba. Caatinga no seco, queimando. O sol sapecando. Uma serra comprida no seu caminho, desfilando pelo longe. Lugar bom para esconderijo. Foi lá, para descanso. Perambulou por ela. Foi ter bem no lugar onde ela se abre. Topou um poço grande, cheio de água. Serviu-se dela, mas não podia parar. Se não tinha destino, também não podia fazer desmazelo. Sabia ter gente nos seus rastros. Arribou.

Um criador na caatinga sem caminho. Caminhava sem rebanho. Com ele, dois filhos e um escravo, procurando lugar bom, tomando fundamento para fazer fazenda. Tinha seca de água, tinha sede. No descuido da atenção, o escravo, quando viu, se viu no meio deles. O escravo agoniado. Conversa que conversa, aperta que aperta, o fugitivo bateu com a língua no ponto: “Hoje fui tomar banho, no boqueirão de uma serra, e se não sou eu nêgo d’água, tinha morrido afogado”. Combinaram acerto. O negro mostraria a lagoa e o criador o deixaria. O poço foi mostrado. Alegria. O primeiro filho do criador deu um mergulho, não achou terra, o segundo a trouxe na mão. Compromisso do criador: bico calado. De parte a parte, acerto cumprido. O escravo se foi, o criador ficou, se plantando, preparando jeito para arranjar o rebanho233.

Da serra, do mato, os bichos do mato olhavam curiando, querendo saber. Cutia, veado, ema, seriema, caititu, tamanduá, peba, tatu-bola, gambá... Não

232 Segundo seu Jovem (Joviniano Moreira da Silva, *1901), os mais antigos contavam que o escravo fugia dos maus-tratos a que era submetido. Vinha fugindo de Ribeira do Conde, caminhando em direção ao Piauí. Este fato ocorreu bem antes de 1850, uma vez que os avós do informante se estabeleceram nas imediações do Poço Grande em 1853 e a história já era bem passada.

233 Esta é a história que corre carregada pela memória dos mais velhos. Entre 1988 e l992 foi redigido um texto que veicula essa mesma versão nas escolas de Poço de Fora. Esse texto, sem assinatura, foi redigido por algumas professoras que, entretanto, não o assinaram. Seu Jovem (1901) e Erval Felix contam a mesma versão. Segundo esta história, o criador era um pernambucano, Domingos da Silva Duarte, e situam tal ocorrência por volta dos meados do século XIX.

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podiam bater com atino de juízo. Não tinham. Sua água, sua paz, sem defesa. Os homens se chegando. Cadê os bichos do mato?

Índios, pouquinhos, de sobra, ainda havia, espantados, agoniados. Os fazendeiros atrás. A caboclinha correu, deixou a papa de xiquexique em cima da pedra: serrote da Caboclinha. Um sem lugar de sossego.

Lugar bom, sem melhor, por ali, o criador procurou garantia de domínio sobre a terra. Foi se bater com o procurador da Casa da Torre234, responsável pelas terras daquele pedaço de chão. Conseguiu arrendamento por dez anos. Botou nome no lugar: Poço de Fora. Segundo dizem, esse nome, porque havia outro poço por trás da serra e que denominou Poço de Dentro.

O poço podia ficar maior. O criador tinha escravos. Ordenou que levantassem, com pedra e cal, um paredão. O poço virou represa. A água durava mais tempo, atravessando o ano. O segundo nome: Poço Grande.

A serra se abriu, formou boqueirão, deu viagem ao riacho. Águas se represam. Um espelho de vida refletindo formações rochosas. Cactos, arbustos contemplando, do alto das pedras. E as águas correntes das chuvas caminham, se vão, deixando desenhos nas rochas. A imaginação, depois, dá o sentido: banda de lua, coração, rastro de animais, buraco dos namorados, imagem de Nossa Senhora... Tem marca de gente, de outra gente. Quando essa gente viveu? Quando se marcou nas pedras? Há quantos anos? Dois mil, dez... sei lá. O que queria dizer ao tempo, podemos decifrar? Mistério, encanto, acalento. Poço Grande, marco zero.

O tempo passando. A seca se jogando na terra. Os criadores se amparando na acolhida das águas do poço, fazendo caiçaras, improvisando moradias, se amontoando no desespero, rezando por tempos bons. Lugar conhecido, falado. Ponto bom para desobrigas235. Os padres foram chegando. Não havia prédio, nem mesmo casa. Um grande pé de juazeiro. Sombra

234 A Casa da Torre pertencia à família D`Ávila, os primeiros conquistadores da região e, através de seus procuradores, exercia enorme pressão para que todos que se estabelecessem nas áreas que julgava serem de seu domínio pagassem uma taxa de arrendamento. Ver o livro Opara - Formação Histórica e Social do Submédio São Francisco, Juazeiro, Gráfica Franciscana e/ou História da Casa da Torre. Salvador-BA, Fundação Cultural.

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majestosa à beira do riacho, pertinho do Poço Grande. O padre decidiu, escolheu. O juazeiro virou o lugar das desobrigas e ficou Juazeiro Grande. Casamentos, batizados, confissões, comunhões, pregações, aconselhamentos, disciplinamentos. O povo em devoção, se encontrando no sagrado. Um ano, outro ano e todo ano. Padre Eutímio, homem de oração... sabia se benzer. Depois o padre Manoel Félix236, mais lembrado. Homem santo, de força nos mistérios, tinha segredo. Assistia às nove noites da novena. Todo mundo obedecia. Quem tinha coragem de teimar? “Os cachaceiros iam beber no cemitério, se escondendo. Se ele jogasse praga em uma pessoa... ela ia morrer, pegava. Quem desobedecia pagava. Um que teimou, levou a pontada de um boi, ficou inutilizado; outro, descadeirado; e, mais outro, ficou louco. Tudo isso por causa de frequentarem a casa de uma mulher da vida. Bala não entrava nele, não237.” Reunia o povo todo nas desobrigas. “Não desprezem as pregações do Sagrado Coração de Jesus, que Poço Santo haverá de ser combatido e não vencido238”.

Fé viva. Construir uma capela239. O padre fez incentivo, o povo seguiu.

Uma capela defronte ao Juazeiro Grande. Bem pequena, dentro não dá cabimento de muita gente. As sombras do juazeiro como amparo e ficou assim. Um padroeiro. Sagrado Coração de Jesus, seu devotado. Ele fez influência, o povo aceitou. Buscou a imagem na Europa. Ela foi colocada no trono240. Pronto. A festa cresceu: dia do padroeiro241. Não tinha foguete, mas tinha pipoco. Um clavinote amarrado em um pau forte. Pólvora acochada no cano. 235 Desobriga. A escassez de padres e a dispersão da população no território levava os fiéis católicos a não se batizarem, a não se confessarem com regularidade, a se juntarem matrimonialmente sem que tivessem recebido os sacramentos religiosos. Em vista disso, de tempos em tempos, os padres saíam a desobrigar seus fiéis de suas faltas, andando pelos lugarejos e fazendas. O povo, com grande devoção, participava desses eventos.236 Padre lendário. É lembrado por quase todos os idosos de Curaçá. Estes sempre ressaltam seus poderes e o respeito que o povo lhe dedicava. Morou na Gruta de Patamuté. Fez desobrigas em Poço de Fora, todos os anos, de l905 até 1914. 237 Informante: Seu Jovem.238 Palavras do padre Manoel Félix em suas pregações. Ele não aceitava nem a denominação de Poço Grande, nem a denominação de Poço de Fora. Só tratava o lugar pelo nome de Poço Santo. 239 Antônio do Bulhão foi, pelo que dizem os mais velhos, enfrentante notável da obra. 240 O documento já referido, e que circula nas escolas de Poço de Fora, situa a construção da capela e a entronização do padroeiro por volta de 1908. Outros informantes não contestaram.241 O dia do padroeiro é comemorado no primeiro sábado do mês de junho.

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Uma varinha com fogo na ponta e fogo no clavinote. A serra véia tremia, estalava. Duas casinhas assistiam tudo, olhando aquele amontoado de gente242. Alegria com bebida gingibirra243.

Fazendas perto, fazendas longe. O lugar sem agasalho. O povo foi construindo casebrezinhos. Arranjos feitos de barro. Passar dois, três dias, nos dias da santidade do padroeiro, com padre pregando.

Lugar de ajuntamento, de combinação das coisas. Dificuldade para comprar, dificuldade para vender. Feiras em Jaguarari e Bonfim. Uma danação de caminhada. Barro Vermelho também, umas coisinhas. Caminho do rio, lá se ia. Não era de muita vantagem, não. Nesse ido, foi que foi. Começou a aparecer tropeiro vendendo coisa. Tropeiro de Bonfim, de Campo Formoso, de Jaguarari, das bandas do hoje Euclides da Cunha. Feirinha no meio do tempo, bem aí, onde nasceu a praça: farinha, feijão, rapadura, batata... Tudo, tudo. De noite, o claro dos candeeiros acesos. De longe se via, parecia rua, ficava rua naquele movimento244. No crescer do número de casas, no movimento da feira, Poço de Fora245 se viu povoado246.

O povo fazendo casinha, cada quem fazendo casinha... arruou. A feira juntou muita gente. Levantaram um barracão247, coisa bem feita. Forquilhas de pau de lei. Cobertura véia, no começo, depois, telhado bom, ladrilhado, no meio de um limpo. Licença dada em Jacobina, conforme exigência de Lei. Mais casas dos lados, o quadro se fechando. O limpo já era praça. Praça sem

242 Nesses idos só havia duas casas, a de Pedrão e a de Virtilino, segundo Seu Jovem (Joviniano Moreira da Silva). Segundo Erval Felix, uma, a de um ferreiro de nome João Domingos e de acordo com o documento que circula nas escolas, os primeiros moradores foram Pedro Fagundes e José Virgulino. De acordo com os dois primeiros, abaixo da capelinha havia um curtidor de couro. 243 Gingibirra era um tipo de refrigerante artesanal feito com milho, água e açúcar. O padre só recriminava o uso da cachaça.244 A feira teve início por volta de 1918, segundo todos os informantes.245 Poço de Fora fica a 78 km de Curaçá e faz divisa com os municípios de Juazeiro, Jaguarari e Uauá. 246 A elevação da condição de Poço de Fora em Povoado ocorreu em 1922, quando Raul Coelho era o Intendente de Curaçá. 247 O barracão foi construído em 1933, segundo o documento já mencionado.

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banco, sem jardim. Um limpão, com o barracão no meio. Progresso. O povo cantou ABC.

Zé Cazuza e Pedro FélixPor serem aços ligeirosCobriram a casa da FeiraCom palha velha e esteira.

Interventor em Curaçá. Ele achou o barracão feio, véio. Deu ordem. Derrubaram248. Construir mercado. O homem foi embora. O Poço permaneceu. Cadê mercado? Feirante no sol.

Um sem novidade, na vida. Um dia, aí deu. Uma arrelia, pequena. Coisa de dívida no valor de quatro contos de réis, lá no mato. Compadre e comadre em desentendimento. A comadre disse que não pagava, o compadre bateu pé firme. Um fala que fala danado. O compadre foi buscar providência da justiça. A comadre, nem aí. A falação. Disse que disse. A coisa envergou. Mataram um dos da confusão. A madeira deitou. De um lado uma mulher, chefiando. Do outro um homem, comandando. Eram perto de moradia. Endereço: Sameado249. A bala emendou no mundo. Ano de 1923. Trincheiras nas comeeiras. Pá, pá, pá, o dia todo. À noite uma pausazinha. Cabras destemidos. Intervalozinho curto no tempo. Todo mundo conhecido, o povo assustado, temendo compromisso da palavra. Curioso, de boca fechada. Quando pensa que acabou, aí chegam mais cabras, trazidos de Vila Bela250. Gente morta de toda parte. Fogo nas casas, as casas furadas. “Bala é brincadeira?” Nesse, durou um ano. Chefe, homem vencido, degredou-se. Tensão, silêncio, desconfiança, cisma. Quando pensa que não Lampião, chegando sem aviso, cheiroso, vaidoso, exigindo dinheiro, montaria. Alvoroço. Se ia. Lá vem a volante. Acusação de alcovitagem. Como ser? Um sem paz de vida, viu!

248 O barracão foi derrubado nos meados da década de 1940, segundo Erval Félix. 249 A denominação dessa fazendo ora aparece como sendo Sameado, ora como Esfomeado. 250 Vila Bela, atual Serra Talhada, no estado de Pernambuco.

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Devagarinho, o lugar foi andando. Atingiu ser distrito251. O povo conseguiu escola de professora particular252. Depois, professora do governo e aquela cantoria de tabuada na sala de aula. Os meninos tremendo, olhando a palmatória girando na mão da professora.

Lá vem o caminhão, roncando na estrada, fazendo zoada no ar. Os tropeiros arredam sem jeito, dando aposentadoria às tropas. O povo se alegra. Andar ligeiro, viajar, ir e vir no mesmo dia. Juazeiro, Uauá, Pinhões. A feira253

caminhando, correndo atrás dos feirantes, chegando perto, perto, matando a feira. O povo se esbandalha. O prefeito fez mercado254, a feirinha minguando ao lado dele. Mais carro. Carro caminhonete, levando, trazendo, botando mercadorias nas vendas. Coisas novas, muitas. Os bodinhos poucos, véios, no ser de antes. “Num há dinhero qui chegue, fim do mundo”. A serra, serra do Poço, ali encostada, só vendo, assistindo, acompanhando, jogando frio no povo. O povo olhando para a serra, vendo o pato de pedra. Pato de choco sem fim.

O rádio traz novidade todo dia. Televisão. Mundo bonito! Tudo diferente, colorido, alegre, notícias de longe, novelas. Trabalhar fora, virar empregado, botar negócio, arranjar ganho que dê.

A capela, a mesma, do tempo do padre Manoel Félix. Pequena, acanhada, às costas da rua. O riacho chegando, lambendo seus pés. O Juazeiro Grande de testemunha, assistindo. O povo quer igreja grande, deseja, deseja255. Igreja não nasce do chão, os velhos sabem disso. Mas... cadê o povo para fazer a igreja? Povo sem força da fé. Pediu socorro. Um político atendeu256. Obra de fé?

251 Poço de Fora passou a ser distrito em 1953, pela Lei número 628 de 30 de dezembro. Antes, pertencia ao distrito de Barro Vermelho. 252 Em 1937 chegou a primeira professora, Alzira Ribeiro. Depois, 1938, chegou a professora Rachel da Costa Lima Zumba que ficou até 1950, sendo substituída pela professora Inês Viana Barbosa. Uma outra, a professora particular Libânia Dias de Oliveira, trabalhou de 1947 a1952. 253 A feira acontece às terças-feiras.254 O mercado foi construído em 1966.255 O padre José Luna, por volta de 1960, deu início à campanha pela construção da igreja, mas ela só veio a ser erguida na década de 1980.256 Antônio Carlos Duarte, vereador na época, natural e morador de Curaçá, doou a cobertura.

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A rua crescendo, crescendo257. Bares, festas, escolas. Cadê meio de vida para o povo assim258? Sustento: bichos de criação, plantação de chuva, dinheiro de aposentadoria, salário dos funcionários públicos.

Lazer: Poço Grande. Apreciação das pedras, refresco das águas. Lugar para namoro, para levar visitante. Ponto de descanso, de menino fujão. Meteram broca nele. Desfiguraram seu jeito, arrebentaram muitas pedras. Queriam fazer progresso. O povo o ama, assim com amor bruto. Admira, mas não faz cerimônia de fazer os alicerces das casas com suas pedras.

Água, a dificuldade. Poço Grande não aguenta. O povo toma providência: fez cacimba259, reivindicou açude. O açude seca. Não dá. Poço artesiano, arremedeia. Um sonho: barramento da Gangorra, idéia antiga, com obra começada, com obra parada, nunca esquecida. Sonho com água. Perto, o Açude de Pinhões: um rio260.

257 Em 1930, iniciada a construção da primeira estrada que interligava Juazeiro a Uauá (padre Magalhães foi um dos organizadores) ; 1950, instalação de um posto do correio e telégrafo; 1951, construído o primeiro prédio escolar; 1958, é instalado um gerador para eletrificação dos distritos – iniciativa do deputado Manoel Novaes; em 1981 é instalada água encanada, proveniente do poço artesiano; 1982, instalação de energia fornecida pela usina de Paulo Afonso; posto telefônico instalado em 1987. Informações fornecidas pelo professor Expedito.258 Em 1947 foi construído o açude; em 1966, o Mercado Municipal; em 1968, o poço artesiano e um cata-vento; em1981, instala-se água encanada, captada no poço artesiano; em 1986, é criada a Escola Estadual; em 1987, o posto telefônico; em 1990 foi criado o Colégio Estadual. No início de 1999 contava, na zona urbana, com 764 habitantes (segundo o IBGE, censo de 1996, a população urbana era de 614 pessoas e a rural de 998 pessoas em um total de 16l2 habitantes), 279 casas, 192 famílias, 19 depósitos, 22 casas comerciais, 2 oficinas, 110 alunos nas escolas municipais, 47 alunos na Escola Getúlio Vargas e 164 no Colégio Estadual João Francisco Félix. Atualmente, 1999, há 37 matrículas no ensino infantil, 456 no ensino fundamental e 69 no curso de magistério, um total de 562 matrículas, segundo a Secretaria Municipal de Educação. 259 Antes da instalação do poço artesiano, quando o Poço Grande seca e também o açude, o povo se servia da água da cacimba, a Cacimba Velha, aberta em antiga data e que fica nas proximidades da capelinha. 260 O açude de Pinhões fica a 12 km e abrange terras de Juazeiro e Curaçá. De acordo com a Lei número 628, de 30 de dezembro de 1953, os limites do distrito de Poço de Fora são os seguintes:a – com Barro Vermelho: começa no rio Curaçá na foz do riacho do Espírito Santo, sobe por este até a nascente;

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b – com Patamuté: começa na nascente do riacho do Espírito Santo, seguindo por uma reta que, passando pelo lugar Angico, vai encontrar os limites intermunicipais com Uauá.c - com o município de Juazeiro: limites pelo rio Curaçá;d - com o município de Jaguarari: começa no marco do alto da serra do Januário, de onde segue em reta até o marco no lugar Boa Vista, no rio Curaçá.e – com Uauá: começa no marco do alto da serra do Januário e vai até o ponto definido por uma reta que, iniciando-se nas nascentes do riacho Espírito Santo, passando pelo lugar Angico (fazenda Angico), vai dar na divisa de Curaçá com Uauá.

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RIACHO SECO

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Mato alto, fechado. Muitos pés de juazeiro, de quixabeira, de muquém, de ingazeira. Na beira do rio, capim d’água, zozó e o mato cheiroso: paipedo, marcela. Carnaubeiras recortando a margem do rio, dos dois lados. Jacarés, capivaras, galinhas d’água, garças, mergulhões, bichos aos montes. Os índios gostavam. Havia peixe, havia caça, havia água. Quando os criadores chegaram foram tirando a paz dos índios, expulsando-os da terra. Os índios foram se acantonando nas ilhas. Vieram os padres fazendo pregações, formando aldeamentos, fundaram missões261. Os criadores foram se achegando, se achegando e acabaram escorraçando os índios, se adonando das ilhas. Os índios sem nada, sem nada, se perderam no seu ser, foram se esquecendo, morrendo, se misturando, nascendo sem saber ser índio.

Juazeiros frondosos, quixabeiras imensas, pedaço de terra plana, vazantes boas de plantação, defronte uma ilha grande, de terra boa, a ilha do Inhanhum. Gente foi se chegando, situando, ficando por ali. Nas folgas dos dias sem trabalho, lá vinham eles, os pernambucanos, jogar baralho, se divertir, beber cachaça debaixo das sombras das árvores262. Os mais velhos é que dizem.

261 Em tempos imemoriais foi criada uma missão na Illha do Inhanhum, que fica defronte a Riacho Seco. Em suas proximidades há também a Ilha da Missão, onde existem ruínas de alicerces daquilo que teria sido uma capela. Da Ilha do Inhanhum, os missionários faziam o acompanhamento dos índios que habitavam nas demais ilhas das imediações. Não dispomos de muitas informações escritas sobre o assunto. Apenas as ruínas e o trabalho de Sebastião da Rocha Pita, citado no livro “O Homem no Vale do São Francisco”, p. 260, de autoria de Donald Pierson, sugerem este raciocínio. 262 Esta é a história que rola na boca dos mais velhos e que a mim foi passada pelo Senhor Guilherme Bernardes, *1908, e que é morador no lugar desde 1955, mas que desde sempre viveu nas adjacências.

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Todo lugar tem um nome, se não tem é de bom juízo que se bote um. Um riacho ali perto. Anos de pouca chuva, chuvinhas fracas. O riacho levou sete anos sem botar água. Foi fácil. Apelidaram o lugar: Riacho Seco. E Riacho Seco ficou. Coisa de pilhéria, que o lugar fica na beira do rio, rio que de tudo por tudo pode faltar, menos água. Um lugar e um nome. De resto não havia novidade. Isto nos anos de ninguém sabe.

Antônio Conselheiro, de vez enquanto saía de seu arraial, no lugar Belo Monte. Dessa vez, no ano de 1877, andava andando com seu batalhão de fiéis pelas caatingas, aconselhando, proclamando a palavra de Deus quando, na certa, teve vontade de ver as águas do rio. Caminhou em sua direção e saiu ali, naquele lugar cheio de sombras. Ninguém sabe o que se deu na cabeça dele. O que se sabe é que ele resolveu que ali deveria existir um cemitério. Por que cemitério, se no muito das vezes ele construía igrejas? Porque sim, porque não, a decisão dele foi cemitério, e acabou! Reuniu o povo que veio vê-lo, se aconselhar, ouvir as palavras das sagradas escrituras e ordenou o trabalho de início da obra sagrada. Pensando melhor, acrescentou que deveria ser construída também, no fundo do cemitério, uma capelinha, para servir como agasalho de orações. Cemitério era melhor mesmo. Os mortos tinham que ser enterrados em lugares abençoados, livres das tentações do diabo. Dá até para imaginar o tanto que sofriam as almas dos finados enterrados fora dos Campos Santos. O povo não fez corpo mole. Deu começo à obra. Antônio Conselheiro, junto, acompanhou a feitura do alicerce, depois foi embora, deixando dito que voltaria para ver o trabalho terminado. Dito e feito. Voltou dez anos depois e viu. Fez a bênção263 do Campo Santo. Os mortos podiam descansar em paz.

Capela que se preze tem que ter sino. Um fazendeiro resolveu fazer presente. Mandou comprar um em Salvador. Transportaram-no no lombo de burro até Riacho Seco. Colocaram-no na capela e ele ficou lá por tempos e tempos anunciando rezas e enterros264.

263 Segundo o Sr. Guilherme Bernardes o cemitério foi iniciado em 1877, tendo Conselheiro acompanhado o levantamento do alicerce e o inaugurando em 1887.264 Segundo a Sra. Maria Teles de Mendonça, *1924, o fazendeiro doador foi, possivelmente, o Sr. Félix Alves. Quanto ao fato do sino ter sido transportado em lombo de burro, é a possibilidade que resta, uma vez que a linha férrea que liga Salvador a Juazeiro só foi concluída em 1896. Segundo a Sra. Adalcina Alves dos Santos, *1933, antes do sino havia um

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No meio da caatinga, o povo, desassistido da palavra de Deus, bem sabia da importância de livrar os mortos das perseguições dos mensageiros do inferno. Dever de cristão: dar proteção às alma dos finados, fazer enterro só no Campo Santo. Mas só havia cemitério longe. Quando alguém morria, lá se vinha a obrigação. Fazer esquife265. Levar o finado nos ombros até o lugar certo, fosse onde fosse. Riacho Seco era o lugar mais perto de muitos e muitos lugares. Foi se afamando.Na beira do rio, por perto de Riacho Seco, nasceu engenho266, nasceu casa-de-farinha. Não demorou muito, a matutada começou a se encaminhar para lá na procura de se abastecer. Virou uma feirinha, comércio de rapadura, farinha, batata, abóbora, peles, debaixo das sombras dos juazeiros. A feira crescendo, construíram um barracão267. Andavam barcas268 pelo rio, vindo de baixo, vindo de cima, fazendo comércio. Os donos deram a fazer paradas para vender, para comprar269. Carregavam gente também, que esse, tirando lombo de animal, era o transporte para Juazeiro. Aqueles homens, ora empurrando as barcas com varas grandes, ora caminhando pela margem do rio, puxando-as com cordas, um sacrifício danado. Apareceram tropeiros, tocando fieiras de animais de carga, mais para comprar, mas havia os que vinham vender. No chamego desse movimento, seu Gregório Mendonça resolveu construir casa, botar ponto para vender cachaça270. Aí é que os pernambucanos vinham mais. Mas o lugar sem vida.

“chocalho de Itabaiana, pendurado em um pau – um desses de colocar em pescoço de vaca ”. Uma senhora, fazendeira das adjacências, indignada, vendeu três bois e com o dinheiro mandou comprar um sino em Salvador. O cemitério, no correr do tempo, ficou pequeno e fizeram uma murada que abrangeu a construção feita pelo Conselheiro. Hoje as paredes levantadas sob a orientação do beato estão caindo, mas ainda há sepulturas antigas. 265 Alguns mortos eram carregados em redes, outros eram carregados enrolados em esteiras. Eram feitas armações toscas de madeira para facilitar o trabalho dos carregadores.

266 Na região de Riacho Seco havia muitos engenhos, tendo deles que produziam até 300 rapaduras por dia. Além de rapadura faziam também mel, batida e alfenim. 267 Este barracão, segundo o Sr. Guilherme Bernardes, foi construído em 1906.268 Estas barcas, na viagem rio acima, eram empurradas com enormes varas ou, quando era possível, puxadas por cordas. Na descida os remeiros utilizavam os remos. O percurso de subida entre Riacho Seco e Juazeiro era coberto, normalmente, em oito dias. 269 Os comerciantes sergipanos traziam muita cachaça, produto que trocavam por qualquer outro. 270 Segundo o Sr. Guilherme Bernardes, o Sr. Gregório Mendonça foi o responsável pela feitura da primera casa de Riacho Seco.

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A caatinga seca todo ano. No tempo ruim vinham os criadores procurar refrigério na beira do rio. Mais e mais casa. No meio do mato, botaram mato de gente no lugar. Plantaram tamarineiros271. No verde voltava todo mundo para o mato. As casas ficavam. Riacho Seco se situando assim. Na vazante das águas do rio, o impaludismo dava carreira no povo272. Era praga que pegava em todo mundo. Amolecia o corpo e o cabra ia se quedando, amarelando, dando preguiça, com febre misturada com frio, todo dia. No vai-e-vem do povo, o lugar acabou ficando uma vilinha. Movimento de vida só em dia de feira.

No mato o povo clamando por Deus, querendo apreciar as palavras, as coisas de Jesus, fazer desobrigas. Padre, coisa rara. Só o Padre Eutímio, antes dele, o Padre Manoel Félix, andando273. Não podiam estar em todo lugar274. Vieram os missionários. Santas Missões. 1912. O povo descambou para a rua. Assistir pregação, casar, batizar, tirar pecado. A capelinha não dava. Era pequena demais. É certo que era nela que os padres rezavam missa. Mas para as missões vinha gente demais. Altar debaixo de pau. Debaixo de um pé de juazeiro275. Riacho Seco sem abrigo de casa para todo mundo. O povo se arranchando debaixo dos paus. Assistindo missa ao sol, se penitenciando dos pecados feitos, afinando os ouvidos, esbugalhando os olhos, dando atenção aos

271 Esta árvore, cujo nome no dicionário é tamarindeiro, não é nativa. Ela é originária da África e não sabemos o motivo dos primeiros nordestinos não indígenas serem tão apegados a ela. Logo que um fazendeiro situava uma área e construía uma casa, de imediato cuidava de plantar uma muda no terreiro. Curiosamente, sua sombra é medíocre. Por longa data foi a única planta estrangeira difundida na região. A sua existência em um lugar, pelo que parece, sinalizava a presença “branca”, ou seja, não-indígena, no lugar. Podia ser também um distintivo de status, vez que só fazendeiros de um certo destaque, pelo que parece, exibiam-nas em seus terreiros.. 272 A época da vazante, que ocorria entre os meses de fevereiro, março e até abril, correspondia ao período em que a caatinga, exceto períodos excepcionais, estava verde.273 O padre Manoel Félix assistiu de 1905 a 1914¸aproximadamente. Padre Eutímio o sucedeu. Informação de seu Jovem (Joviniano Moreira da Silva, *1901), morador da Fazenda Terra do Sal, distrito de Poço de Fora - Curaçá . 274 O padre Manoel Félix assistia a todo o município de Curaçá, que na época abrangia os territórios dos atuais municípios de Chorrochó e Abaré. 275 Na época existiam vários pés de juazeiro. Esse, debaixo do qual foi erguido o altar, situava-se a meio caminho entre o lugar onde hoje existe o prédio escolar estadual e a igreja. Depois das missões, as missas continuaram a ser celebradas debaixo dele, até que construíram a igreja. Informação fornecida por Maria Teles de Mendonça e confirmada por Josefa Bernardes, professora natural de Riacho Seco, onde trabalhou por quase toda a vida.

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ditos, aos jeitos dos padres. Os padres soltando o verbo no mundo, falando de céu, de inferno, de alma, de pecado, de perdão, de penitência, das tentações, de jeito santo de viver.

Fazer a casa de Deus em frente ao Cruzeiro276: mandado dos padres. Os padres foram embora. Não podiam ficar muito tempo. Tinham o mundo a socorrer. O povo se ficou na promessa do cumprimento de fazer a obra. seu Luiz Sacerdote Bispo, homem forte do lugar, fazendeiro, encabeçou os outros fazendeiros, “os mais fortes”. Fizeram o enfrentramento277. Os pobres seguiram atrás, que todo mundo quer o merecimento do caminho do céu. O trabalho começou em 1915278. Em 1919 terminou. Foi feita a festa de inauguração. Trouxeram o sino da capelinha do cemitério279. Botaram o santo no altar. São Luiz Gonzaga, o padroeiro280. Altar bonito, cheio de encantamento. Igreja grande, cheia de pilastras, alta, dava para caber o povo do mundo todo dentro. O povo orgulhoso, o padre alegre.

Lugar de respeito. A matutada fez mais e mais casas. Retiro da seca, busca de devoção, preparação do caminho da alma. Ficar perto do santo, da casa de Deus. Riacho Seco crescendo. Mais gente se chegando, plantando roça, refrigerando os bichos de criação. Mas vinha a chuva, o impaludismo, a praga de muriçoca. O povo batia em retirada. Tomava os caminhos das caatingas. No

276 Segundo o Sr. Guilherme Bernardes, o cruzeiro é anterior a 1912. Entretanto, não sabe explicar quem o construiu e nem a época. Julga que pode ter sido obra de Antônio Conselheiro, na mesma época da construção do cemitério. Apóia-se na semelhança com relação ao cruzeiro de Chorrochó, este, sim, sabidamente construído por Conselheiro. Entretanto, era prática dos missionários marcarem suas passagens pelos lugares onde pregavam com um cruzeiro. O Sr. Guilherme assevera que o de Riacho Seco não foi obra das missões. 277 O enfrentante da obra, segundo a Senhora Maria Teles, foi o Senhor Luiz Sacerdote Bispo, que serviu como referência para a escolha do padroeiro, ajudado pelos fazendeiros Ananias Carlos do Nascimento, Ângelo Gregório de Mendonça, Teodomiro Dias Pereira, Graciliano dos Santos, Félix Souza, Pedro da Silva, Capitão Benevides e José dos Santos. O povo ajudou com o próprio trabalho.278 Embora haja concordância com relação à data de conclusão da obra, ela não existe com relação à data do início. Segundo o Sr. Guilherme, a construção foi iniciada em 1915, segundo a Sra. Maria Teles de Mendonça a construção foi iniciada em 1912, mesmo ano das missões. 279 Depois que a igreja foi construída, a capela do cemitério ficou abandonada e caiu recentemente, por falta de cuidados, segundo o Sr. Guilherme Bernardes. 280 Segundo os informantes, o padroeiro foi escolhido pelo Sr. Luiz Sacerdote Bispo, que era devoto de São Luiz Gonzaga, a quem devia o nome.

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dia do padroeiro, 21/22 de junho, o povo queria vir, assistir às novenas, se purificar. Não dava certo. Os criadores estavam nas caiçaras, na caatinga, dando cuidado ao criatório, aproveitando o resultado do verde, fazendo requeijão. Os ricos, que os pobres não tinham negócio com tempo certo, que sem quase do que cuidar. A festa ficava fraquinha e o povo pecando pela ausência. O padre se condoeu. Fez mudança de data. Comemoração no último domingo de agosto. Os caatingueiros, os beiradeiros chegando. Festão. Reza, reza. O andor de São Luiz Gonzaga carregado pela rua pelos homens da chefia do lugar. O povo atrás fazendo preces, implorando, pedindo clemência. No fim da reza, dança e bebedeira. O povo se vendo, se aparecendo. Alegria. Os ricos dançando em festa animada com conjunto, sem permissão da pobreza entrar. Festa de elegância da gente de fineza, nas lordezas dos ternos e dos vestidos brancos. Os pobres se punham de pé, pegando sereno, apreciando de longe, sem a ousadia da licença de chegar mais perto. Pobre que entrasse seria botado para fora agarrado pelo braço. Ficavam curiando aquela coisa bonita do toque do clarinete, do saxofone, do dançar da gente educada. Nos salõezinhos o buco-buco do surdo misturado com as puxadas da sanfona nos toques de Pedro Chinol281, com o povo dentro do forró, se grosando no suor. No fim, o silêncio, o paradão do sempre do lugar. Zoada, animação, só no dia da feirinha282.

Os sanharós283 viram o movimento. Quiseram ficar perto. Arrancharam-se em um tamarineiro. Ficaram ali brincando com os feirantes. De vez em quando agoniando, se enrolando nos cabelos deles. Botaram fogo no oco do pau, eles não saíram .

E Lampião? Todo mundo com medo. Nas caatingas, na rua. Do mato ele mandava pedir dinheiro aos fazendeiros. Quem não atendesse virava inimigo e atacava, matava, tocava fogo na casa, nas cercas, matava os bichos que visse. Na rua, atacava os comerciantes. Dava as mercadorias ao povo. Se pegasse um graúdo, levava. Propunha troca por dinheiro. Estipulava quantia, determinava prazo. O homem, imagem de assombração. Os fazendeiros largando os bichos,

281 Pedro Chinol era o sanfoneiro da animação até o início dos anos 60.282 Por essa época, 1926, Riacho Seco era considerada uma povoação, segundo João Matos, In: Descripção Histórica e Geográfica do Município de Curaçá, p. 95. 283 Um tipo de abelha de cor preta que, ao invés de ferroar, se enrosca nos cabelos e belisca a pele, exalando um cheiro desagradável.

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a terra, indo embora, vindo para a rua284. O povo pobre amedrontado. Pobre não tinha dinheiro, mas vivente que não fosse rico tinha que ser cabra de alguém. Lampião não dava perdão fácil. Um dia de feira, a surpresa. Ele chegou. Botou conversa no povo, foi maltratando os comerciantes. Deu que encontrou um inimigo. Matou o homem ali mesmo na assistência dos presentes. O homem sangrando, gemendo, morrendo sem amparo de cristão. Quem dava socorro? A história ficou de espanto. Fizeram combinação. “Quando Lampião estiver por perto, tocar o sino da igreja, para o povo ter tempo de correr”. Foi o acertado. Um dia tocaram o sino fora de hora. O povo se espavoriu. Desesperou na carreira, se entocando nas moitas. Pai perdendo filho, mulher se apartando de marido. Era engano285. Cadê o povo confiar?

A feirinha286 cresceu mais. Mais gente fazendo movimento. Os paquetes no rio, os animais amarrados nas árvores, as barcas paradas. Os barqueiros, os tropeiros, comprando, vendendo. Não havia produto de granfineza. Era tudo coisa grossa: panelas, potes, filtros de pedra287, cordas, chocalhos, esporas, feijão, farinha, pele de animais, penas de ema, cachaça, batata, café em caroço, milho, arroz em casca, abóbora, rapadura, mel de engenho, fósforo, gás288, assim. Povo sem dinheiro, que a vida era difícil.

Os fazendeiros ainda se acudiam. A pobreza padecia. “Uma muda de roupa de sobressalência e a roupa do trabalho. Sapato, os pés num conhecia. Granfineza de comida: carne de porco, de criação, de caça, que era o melhor paladar que conhecia”289. Levar a vida caçando, tirando caroá para fazer corda

284 Mesmo os fazendeiros que tinham tradição de luta armada fugiam, pois que o governo do Estado havia mandado a polícia desarmar o povo. Dito de Gulherme Bernardes.285 Quem tocou o sino foi o Sr. Martins Pereira, segundo informação do esposo de Donana (Ana Soares Nascimento dos Santos), enfermeira prática.286 Acontece às quarta-feiras. 287 Filtro de pedra era utilizado para purificar a água, mas estava ao alcance apenas das pessoas mais dotadas. De pedra porque o objeto filtrante era uma pedra porosa. Era produzido no “rio de baixo”, na localidade chamada Jatobá, nos arredores de Petrolândia. As barcas vinham de Abaré, Orocó e da região de Petrolândia, principalmente da localidade conhecida pelo nome de Jatobá, transportando peles, utensílios de barro, algodão de seda (um tipo de seda extraído de uma planta chamada bofó), mamona, peles, etc. 288 Querosene. Fósforo, chamavam de fosco.289 Informação do Senhor Marcelino Feitosa – mais ou menos 65 anos - feirante em Curaçá e, natural dos arredores de Riacho Seco.

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ou vender as fitas, pescando, trabalhando por dia, plantando uma rocinha, na conveniência do consentimento do dono da terra. Salvação: a ilha do Inhanhum290. Muita terra, plantação de meia, fazendo cultivo na lama do rio. Ganho de vida difícil. Viver humildemente se humilhando. O mais certo, o mais livre, o caroá que estava solto no mato, sem ligança dos donos das terras. Meio de vida de pobre. Esses faziam casinha no mato, para se agasalhar, no sossego do corpo. Trabalho desgraçado. “Só fazia isso quem não tinha outra coisa pra viver”291. Acabava com as mãos, com os braços, com as pernas. Machucava o corpo todo. Arrancar o caroá, tirar parte dos espinhos, descangotar, puxar a fita (uma folha), bater a fita no pilão, botar para enxugar, depois fazer corda, vender corda para fazer a feira. Vender maço de fita também. Cada maço com doze fitas. Isso dava para comprar um prato de farinha. Também trabalho de catar algodão de seda. A turma saia catando bofó, que tinha muito espalhado no mato. Abria o bicho, botava para secar e depois vendia no quilo, por um quase nada. Para pesar mais, o que faziam? Botavam o bofó para secar em cima da areia das crôas, para o bicho misturar com areia, ganhar peso. O padre foi quem mandou parar com essa sabedoria292. No verde, plantar tudo: feijão, milho, abóbora, batata, algodão, mamona293. Fartura vinda da riqueza da chuva. Descanso do caroá, do bofó.

As farinhadas. Trabalho de festa. As raspaderias no chec-chec o dia todo, conversando, tirando versos, paluxiados294. À noite a cevação. As mulheres cevando e cantando. Os homens puxando roda e bebendo cachaça a noite toda. O mexedor no pé do forno, rolando o rodo, derramando suor, tempero de farinha. Gente carregando mandioca, gente botando lenha no forno, gente nos preparos da tapioca, providenciando os preparos dos beijus. Nos engenhos também a futrica. Cortar cana, carregar cana até a canoa, remar até o engenho, levar a cana para o alto, colocá-la no pé do engenho, fazer a moagem, aparar a

290 A ilha do Inhanhum, possui 195 hectares e pertence à família Bernardes. Foi muito utilizada pelo povo sem terra, que trabalhava de meia. Fica defronte a Riacho Seco. 291 Marcelino Feitosa, que viveu dessa prática por muito tempo, dos anos 40 aos anos 60.292 O Padre Magalhães, na década de 1940, foi procurado por um comerciante de Juazeiro e este pediu ao padre para avisar ao povo de Riacho Seco que deixaria de comprar o produto, caso continuassem a utilizar essa prática. 293 Mamona e algodão eram produzidos especialmente para comercialização. Eram os produtos que propiciavam algum ganho para aquisição de outros coisas.294 O caso paluxiado significa brincadeira.

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garapa, tanger as cangas de bois, carregar o bagaço, colocar lenha nos fornos, preparar o alfenim, a batida, o mel a rapadura.

Instalaram uma desfibradora de caroá295. Foi na fazenda Barra. Começou funcionando com caldeira. Gente carregando água, gente arrancando o caroá, gente fazendo o carregamento do mato e gente transportando em animais até a Barra do Tarrachil296. Mais de 400 pessoas se ocupando. O negócio ia indo. O proprietário se entusiasmou. Comprou motor. Mecânico só em Recife. Mais parada que andando, mas andava, até que a indústria não quis mais comprar as fibras. Aí desandou de tudo. Os pobres voltaram para suas cordas, para seus maços de fibra.

“A pobreza procurando a riqueza”297, arranjando meio de compadrio, querendo amparo de vida com menos sacrifício para os filhos, uma proteçãozinha. Mendingando a acolhida de um filho, de uma filha nas casas da gente potentada. Trabalhar como babá, como menino de serventia de serviços de mandado para ver se pingava alguma sorte aventurada. Pagamento com comida, com uma roupinha de quando em quando, na ocasião da boa vontade do compadre.

Lugarzinho isolado. Tudo difícil. Médico298, comércio de novidades,

estudo, caminho para Juazeiro, tudo em Boa Vista 299. Os comerciantes de lá vindo para a feira de Riacho Seco. O povo pegando amizade, se misturando,

295 Esta desfibradora foi instalada pelo Sr. Guilherme Bernardes na Fazenda Barra, a uma distância aproximada de 42 km de Riacho Seco e funcionou durante as décadas de 40 e 50. As fibras eram utilizadas para confecção de tecidos, cordas e redes de pescar. 296 Em Barra do Tarrachil, o material era atravessado e transportado até São Caetaano, PE, para ser entregue a uma cooperativa. O produto era utilizado para fazer tecidos. Na década de 1950 o transporte através de animal foi substituído por caminhão.297 Expressão de Dona. Adalcina Alves dos Santos, *1933.298 Em Riacho Seco, como nos demais distritos, a situação da saúde é precária. Embora haja posto de saúde, o seu funcionamento é precário pela falta de médico. Dona (Ana Soares Nunes do Nascimento), enfermeira prática, durante vários anos desempenhou, com exclusividade, funções de enfermeira e de médica, receitando, tratando e fazendo trabalho de parto. Segundo ela, a mortalidade infantil, por volta de 1979, era assustadora. Atualmente o atendimento médico é prestado em Curaçá e o transporte é fornecido pela prefeitura. 299 Santa Maria da Boa Vista – PE., fica a aproximadamente 24 km.

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virando parente. Curaçá, longe300, com pouco contato, vendo recurso sangrar, o povo também na procura de melhoria, se indo embora.

Ensino de professor pé-de-pau. Aprender a ler e a contar. Bem lido e

bem contado, senão a palmatória pegava. O cabra tinha que decorar as letras e cantar a tabuada, sem apelação de desculpa. Professoras de nome Dona Raimunda, Dona Zifa, sem formação de diploma. Sabiam a arte do ensino, executavam os meninos no direitinho do saber. Depois, no mais longe, a professora Josefa Bernardes301, formada e tudo. Ensino até o primário. Ensino mais adiantado fora. Os caatingueiros construindo casas na rua, para abrigo de dia de feira, para trazer os meninos do mato para o estudo. Escola pequena de uma professora só. Não dava para todo mundo e no mais havia as exigências que arredava os pobres302.

Riacho Seco ganhando vida, viu luz. Década de 1940. Instalaram um motor a diesel. Esparramarm os fios pelas ruas, pendurados nos postes. Em cada poste uma lâmpada. Claridade danada. O povo se encandeando. Noite se parecendo com dia. De longe dava para ver. O negócio agora vai! Um prédio para escola303. Um deputado atendeu o pedido. Vira sede de distrito304. Animação dos moradores.

O povo aumentou, a Igreja não o coube mais. O Padre305 arranjou meio de crescer o espaço dela. Fez combinação e mandou derrubar o altar, tombou pilastras. Um altar feinho foi botado no lugar. Os mais velhos até hoje lamentam306.

300 Curaçá fica a 42 km, rio acima. Praticamente toda transação de Riacho Seco é com Santa Maria Boa Vista. 301 A professora Josefa Bernardes lecionou em Riacho Seco de 1940 até 1972. Por muito tempo foi a única professora formada trabalhando no lugar. Informação da própria professora. 302 Cumprimento rigoroso de horário, farda completa e limpa, aquisição de material didático.303 Prédio Escolar Ananias Carlos, construído pela influência do deputado Manoel Novaes, em 1948. 304 De acordo com a Lei nº 628, de 30.12.1953.305 Padre José Luna, na transição da década de 1950 para 1960. 306 O altar, construído em 1919 e que os mais velhos afirmam que era uma obra primorosa, foi demolido na transição da década de 50 para a de 60, sob a orientação do vigário de Curaçá na época.

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Cebola, ouro de roça. O povo se encafifando, com idéia de ficar rico. Molhação com lata, que motor era só para os ricos. Fazer entrançamento de cebola, amarrando com fita de caroá. Levar para o comprador e pegar na bufunfa. Sair do caroá, aventurar na plantação, que o negócio dá futuro. A seca apertando, apertando. Caatingueiro se abeiradando, se abeiradando, que na caatinga a vida é dura, ficando sem futuro. Não abandonar de tudo, que criatório dá segurança307. Cebola dando dinheiro. Gente vendeu criatório, comprou motor, se danou a plantar. Mudou o jeito de ser. Começou a falar alto, a fazer zoada em mesa de bar. Carro, revólver, cerveja, roupa bonita, móveis de loja para enfeitar casa. Cara de progresso. Mais desejo. Gente quebrou com cebola ruim de preço. Entrou melão, melancia, tomate. Um ganha e perde danado, mas assim o povo se foi. Animando-se, se desanimando. Tudo na irrigação. Esquecer batata, mandioca, cana. De um tudo por tudo o que se plantava não se planta mais, que não dá esperança de dinheiro bom. Farinha, rapadura e até feijão, vem tudo de fora308.

1967. Cebola deu bom preço. Os beiradeiros se endinheiraram. Sidu309

viu a bocada. Foi a Recife. Comprou um bocado de terno, contratou conjunto em Belém do São Francisco. Anunciou a festa. O povo se animou e ele dizendo: “Pra entrar é preciso estar bem vestido”. O povo não entrou nas dúvidas. Deu a comprar roupa boa e na hora tava todo mundo lá. Os negros do Serrote também. Quando a fineza chegou foi aquele Deus nos acuda. Revolta, apelação. Sidu sem fingir engano: “Pra entrar aqui só precisa estar bem vestido”. Assim ficou310.

Os sanharós incomodando, se enrolando no cabelo do povo. Botaram veneno no oco do pau. Eles sobreviveram.

307 No município de Curaçá, foi na área de Riacho Seco onde a agricultura comercial primeiro foi praticada e ganhou sentido para o povo, incorporando-se à cultura, talvez pela influência dos pernambucanos. Estes já a praticavam desde meados da década de 1940. 308 Os engenhos não suportaram a competição das rapaduras do rio de cima (região de Januária). As casas de farinha foram desativadas por causa das transformações das relações sociais, da competição com os comerciantes de Sergipe, que possuem melhores preços e qualidades, e também devido à mudança do movimento das águas do rio depois da arragem de Sobradinho. A agricultura comercial destruiu o espaço das culturas tradicionais. 309 Edmundo Mariano de Souza.310 Informe da Sra. Josenita Ambrósia dos Santos, 1951.

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Um areião danado na rua. O povo se atolando nele. O prefeito atendeu o queixume. Tomou providência. Foi seu Luiz de Jorgina quem fez o serviço, carregando cascalho no lombo dos jumentos, para mais de dez animais. Trabalho todo dia. Cada dia um pouquinho, até tudo. O chão ficou duro. As carregadeiras de água acharam mais suave no caminhar mais leve com o peso da lata na cabeça.

Estudo mais desenvolvido de ginásio, de colégio em Santa Maria da Boa Vista, PE. Poucos em Curaçá. Quem não podia ficava no primário, se com sorte, que no mato não tinha escola. Um dia e outros dias, as coisas foram aparecendo: energia, posto de saúde, posto policial, ginásio, colégio, posto telefônico, posto médico, mercado, imagem de televisão, água encanada311. O lugar tá indo!

O povo diferente, sem ligança para as coisas de Deus. A capela do cemitério foi ao barro, o muro do cemitério velho está caindo, os meninos depredam o cruzeiro, e os pais nem reclamam. Festa de padroeiro? Só festa de dança e cachaça, que os novos não querem saber de outra coisa. O padre só se danando. Rua cheia, igreja vazia. O padre fez decisão combinada. Comemorar o padroeiro no dia certo, 21/22 de junho312. O tempo mudou. Esta data não faz mais atrapalhação. Na festa, cadê o povo? Nem dá importância. Nem homem para pegar no andor do santo aparece. Sair na rua pedindo a um e a outro. Festinha desapercebida, coisinha fraca. Animação mesmo é na Festa da Agricultura313. Aí, sim, zoada a noite toda! Gente de todo lugar, o povo na rua, se alegrando. O sino fez revolta, perdeu o gosto, ficou mudo314.

311 Energia da rede de Paulo Afonso, por volta de 1970; posto telefônico em 1988; ginásio em 1984 e colégio 1993; água encanada 1984/85 ; mercado e posto médico entre meados da década de 1980 e 1990.312 A comemoração do padroeiro nesta data é coisa recente, ocorrida na década de 1990.313 A Festa da Agricultura ocupou a data em que o padroeiro era comemorado, ocorrendo no último domingo do mês de agosto e está se afirmando como sendo a festa do lugar, embora esteja ocorrendo pela quarta vez em 1999. 314 O sino da capelinha do cemitério e que foi transferido para a igreja, recentemente rachou e, depois que o soldaram, perdeu o som. Encontra-se hoje na casa de dona Áurea, incansável zeladora voluntária da igreja. O sino que serve hoje é recente, adquirido e instalado há uns três anos.

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A feirinha em um quase não tem. Os aposentados recebendo dinheiro fora. Fora mesmo fazem as compras. Os mercadinhos tem de tudo, todo dia. As barcas, tropeiros, engolidos pelos caminhões, pelos carros, despareceram, desde faz muito315. O mato, só só. Os bichos, querendo gente, pernas para a rua. As cabras na praça. Têm direito? Discussão. O povo sonhando com roça, com roça. Muita gente arredada pelos mundos de meus Deus, uns outros emburacados nos caminhos dos “projetos”. As coisas de roça se compra fora, se vende fora. Mas... Riacho Seco crescendo316, se enchendo. Animação na noite: estudantes caminhando, música, cerveja nos bares.

A agricultura arremediando a vida do povo. Os sem nada plantando de meia, aventurando uma fezinha, com os mantimentos fornecidos pelos donos das terras. Quando dá, dá. Quando não dá, comeu. Na hora da conta, a confusão: meeiro se queixando de exploração. Os donos das roças se

315 Tão logo o caminhão passou a ser difundido, as barcas perderam suas cargas, assim como os tropeiros perderam o seu motivo de ser e desapareceram. Isso lá pela década de 1950.316 Riacho Seco é o maior e o mais dinâmico distrito do município de Curaçá. Tem posto telefônico, posto policial, mercado, ginásio, colégio, posto médico, água encanada, energia elétrica, maior produtor municipal na área de agricultura, muitos bares e várias casas comerciais. Dista 42 km da sede do município e é interligado através de estrada asfaltada, concluída no ano de 1999. Em sua área territorial está incluída a povoação de Pedra Branca, as Agrovilas, Ilha Redonda. Na sede do distrito, segundo a Secretaria de Saúde do Município, 1999, existem 457 edificações. De acordo com o senso realizado pelo IBGE em 1996, a população urbana era de 1.480 pessoas e a população rural de 8.571, em um total de 10.051 habitantes, 4.829 do sexo masculino e 5.222 do sexo feminino. A população estudantil de Riacho de Seco conta com 2.214 estudantes, sendo que, destes, 293 estão matriculados no ensino infantil, 1.839 no ensino fundamental e 82 no curso de magistério. Seus limites, de acordo com a Lei nº 628, de 30 de dezembro de 1953, são os seguintes:a – com Curaçá: começa no rio São Francisco, na foz do riacho Barra do Ananias, subindo por este até sua nascente; daí em reta até o ponto mais alto da serra da Natividade; daí em reta na direção sul até o marco à margem do riacho Jaquinicó.b – com Patamuté: começa no marco à margem do riacho Jaquinicó, no extremo da reta de direção sul, tirada do ponto mais alto da serra da Natividade; desce pelo rio Jaquinicó até a sua foz no riacho da Vargem.c – com o estado de Pernambuco: começa no rio São Francisco, na foz do riacho Barra do Ananias e vai, acompanhando a margem, até a foz do riacho do Pambu.d – com Abaré: começa na foz do riacho Jaquinicó, no riacho da Vargem, daí em reta à nascente do riacho de Santo Antônio e finalmente em reta à nascente do riacho do Pambu, pelo qual desce até a sua foz no rio São Francisco.

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queixando dos meeiros. Os velhos morrendo, as terras divididas, ficando pequenas, tripinhas, sem jeito de trabalho. Os mais novos aflitos, se dando de frente com os destinos da vida. E assim vai.

Os sanharós317 atacando. Taparam o oco do pau com cimento e pedra. “Eles mandaram dizer: ‘Só vamos se levarem o pau”318. Quiseram cortar o pé de tamarineiro. Os moradores mais velhos não deixaram. Disseram: “Os pés de tamarineiro são da história”. Os meninos brincam com os sanharós. O povo pegou conhecimento com eles.

317 O sanharó se arranchou e até hoje está em um dos dois pés de tamarineiro que ficam ao lado do local onde foi construída a primeira casa de Riacho Seco.318 Gozação do Sr. Guilhermes Bernardes.

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POVOADOS

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PEDRA BRANCA

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Antigamente, lá pelos anos de 1919, onde hoje é Pedra Branca, existia somente uma casinha de taipa, perto da beira do rio São Francisco, onde morava seu Chicó (Francisco Araújo). Como todos os habitantes das margens do rio, esse senhor vivia do que podia: plantava roça, criava uns bichinhos, se aventurava, ora por outra, em uma pequena pescaria. Nas imediações desse lugar o rio é cheio de ilhas e corredeiras, mas bem no ponto onde o seu Chicó estabelecera sua casa, um local alto de onde se avista uma bonita paisagem desenhada pelas águas, a travessia para o outro lado da margem é possível. Além disso, é um dos raros lugares, naquele trecho, onde isso podia acontecer sem grandes dificuldades, reunindo, desse modo, as condições para se transformar em um porto. Como morador da beira do rio, seu Chicó possuía uma canoa para suas andadas pelo rio e para as travessias para o outro lado, que fazia de vez em quando.

Nesse tempo, que vai do começo da história até os dias dos anos de 1940, o povo vivia com dificuldade de encontrar mantimento. Produzia-se farinha e rapadura na beira do rio, mas a produção era pequena. Quando muito satisfazia o consumo dos moradores de bem perto. Os das caatingas, esses tinham que se arrumar de outro jeito. Foi aí que começaram a aparecer comboeiros319. Os comboieiros formavam tropas de cinco e até vinte animais de carga para se encaminharem até Bodocó, serra Branca e Araripina, no estado de Pernambuco320, Barbalha, Juazeiro do Norte e mais lugarejos daquela região da serra do Araripe, no Ceará. Farinha, mel e rapadura eram o que mais iam comprar, ou para o próprio abastecimento ou para comércio.

Como o rio não oferecia outras alternativas de travessia naquele trecho e como o ponto onde se estabelecera seu Chicó era favorável, muitos deles começaram a efetuar suas passagens ali porque, além do já dito, era mais cômodo, dado que cortavam caminho. Aparecia comboieiro de Chorrochó, de

319 Comboieiro ou tropeiro: condutor-proprietário de comboio formado por tropas de animais utilizados para o transporte de cargas.320 Do porto de Pedra Branca até estas localidades as distâncias variam de aproximadamente 170 km a até 300 km.

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Uauá, de Patamuté, da Icozeira e de outros lugares. Agasalhavam-se com seu Chicó, que também garantia a travessias dos comboios e dos comboieiros em sua canoa. Canoa de dois remos e um leme, três homens trabalhando321. Atravessavam os animais de pouquinho, peiados e deitados dentro da embarcação. Conforme fosse o tamanho da tropa, esse trabalho gastava até dois dias. Com esse movimento, o ponto de travessia ficou conhecido. Conhecido pelo nome de Porto da Pedra Branca. Isto porque, em suas imediações, havia muitas pedras brancas, transparentes e soltas, que brilhavam à luz do sol ou à claridade da lua322.

No ano de 1937, uma outra pessoa, o Sr. Barnabé Hipólito, percebendo o movimento naquele local, resolveu instalar ali um pequeno comércio de bebidas, cereais, miudezas e, posteriormente, tecidos. Esse comércio, inicialmente, funcionou em uma barraca. Depois da construção da segunda casa do porto da Pedra Branca foi transferido para ela, onde seu proprietário passou a residir.

Os moradores das redondezas de Pedra Branca, até 1937, frequentavam a feira do Ibó323, a 30 quilômetros de distância, rio abaixo, o que era muito sacrificante. Percebendo essa dificuldade e as vantagens que se poderiam tirar dela, o Sr. Barnabé e um comerciante do Ibó deram início a uma feirinha, aos sábados, no porto da Pedra Branca, “pra ficar mais perto pro povo324”. Depois de iniciarem a feirinha, algumas pessoas começaram a levantar casas ao redor

321 Informação de Dona Brígida Barbosa, *1920. Ela também acrescentou que Seu Chicó tinha uma comerciozinho e que só não vendia cachaça. Informou ainda que, em 1932, a polícia ficava lá para dar apoio aos comboieiros. 322 Informação prestada por Guiomar Hipólito, primeira professora formada a lecionar em Pedra Branca. Foi nomeada em 1960, pelo Estado, em decorrência de aprovação em concurso público. Sua nomeação para Pedra Branca foi complicada, uma vez que a localidade ainda não possuía cadeira (cargo). Depois de muita luta da referida professora, o governador Juraci Magahães a criou e ela, finalmente, pôde iniciar suas atividades, lecionando por 10 anos consecutivos. O início de seu trabalho foi complicado, uma vez que não havia prédio. O seu pai, Sr. Barnabé, então desativou um depósito e o cedeu para que funcionasse como escola. 323 Ibó é distrito do município baiano de Abaré, distando por volta de 30 km de Pedra Branca, através de estrada carroçável.324 Dito de Dona Rosalina Gomes Fonseca, que acompanhou todo o processo de formação do povoado.

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do espaço onde ela acontecia e, assim, o porto foi se transformando em povoado325.

A vida na Pedra Branca, de quando em quando, era sobressaltada pela presença de Lampião ou de seus cabras. Antônio de Ingrácia, Antônio de seu Mário e Cirilo326, por serem naturais de Chorrochó, localidade próxima, de vez em vez passavam por lá, quando não era o próprio Lampião. Eles, ao chegarem, deixavam os comboieiros e a população local em polvorosa. Em resposta às frequentes passagens dos homens do cangaço pelo porto de Pedra Branca, as tropas das volantes327 estavam sempre a se abarrancar por lá, no intuito de garantir a movimentação dos transeuntes.

Lugar de passagem, com fraquíssima vida comercial, Pedra Branca se ia vagarosamente com uma casa sendo feita aqui, outra ali, em um passo sem compasso. Nisso, seus moradores, se sentindo sem assistência religiosa, levantaram uma capelinha em l949328, oportunidade em que tiveram a satisfação de, pela primeira vez, darem acolhida à presença passageira de um padre329. O povo veio ver. Faltava-lhe, entretanto, um padroeiro, e viveu sem até o final da década de 1950, quando um padre330 escolheu o nome de Nossa Senhora de Lourdes para tal, batizando sua imagem em 1959. O dia litúrgico da padroeira, 11 de fevereiro, não era observado porque esta data coincidia com o período da safra e o povo achava complicado. Por isso, passou-se a comemorá-lo no segundo domingo do mês de setembro.

Emoldurando a capela, foram sendo construídas casas que acabaram por formar um quadro, aspecto tradicional dos lugarejos nordestinos. Mas a

325 Povoado do Distrito de Riacho Seco.326 Antônio de Ingrácia e os outros dois eram naturais de Chorrochó e, não obstante já tivessem fama de valentia, só entraram para o bando de Lampião depois de terem tido problemas com a polícia de Curaçá que executou maus-tratos contra a mãe de Antônio. 327 Forças do governo de combate ao cangaço.328 Informação da professora Guiomar Hipólito.329 Pedre Jacson Bemberengue Prado, hoje bispo em Salvador. Depois passaram por lá, fazendo assistência, os padres Pedro Campos, José Luna, os bispos D. Antônio Monteiro (de Bonfim), D. Tomás Guilherme (de Juazeiro), os padres Luiz, Flávio (americanos) e o Padre, Adolfo que assumiu a paróquia de Curaçá. Este último muito atuou junto ao povo, impelindo-o ao trabalho de melhoria do lugar. 330 Padre José Luna que, a esta época, era o pároco de Curaçá.

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preocupação não era apenas com a religião. Em 1941, por reivindicação de moradores, o município faz a designação de uma professora para servir às crianças da comunidade. Nessa época Pedra Branca era tão grande que os meninos eram chamados às aulas pelo toque da campainha de um relógio despertador que tinha na casa da professora331. Professoras contratadas pelo município, leigas, de pouco estudo, esforçadas. Ficavam seis meses, um ano sem receber pagamento. O povo as mantinha, ajudando-as, clamando pelo trabalho delas. Professora Eunice, professora Tolentina. Esta casou. Foi embora, mais ou menos 1955. Pedra Branca sem escola. Uma professora crente botou sala. Escola particular. Cadê os pais quererem botar seus filhos para estudarem com ela? “Crente num é da Lei de Deus!”. Ela se esforçando, mas pouquinhos alunos. Um quase nada. Veio a professora formada, nascida no aqui de Pedra Branca, professora Guiomar. Paga pelo Governo. Os meninos voltaram às aulas. Sala de aula em um depóstio. Cada menino com sua cadeirinha, uns no chão. O menino Otílio estudava na escola, sabia ser marceneiro. A professora fez entusiasmo. Eles arranjaram resto de caixões, de madeira. Aos sábados, na hora da aula, começavam os trabalhos. Um baticum danado, Otílio ensinando, a professora assistindo, fizeram as cadeiras. Escola arrumada332. Daí em diante a assistência educacional, no nível primário, não sofreu interrupção.

Em Pedra Branca tudo era como tudo tinha sido. Seu Noé, vendo nos outros lugares, resolveu: botou, bem no lugar onde hoje é a tomada de água das Agrovilas, uma usina de beneficiamento de caroá. “Foi o ganho que a pobreza conheceu, das eras de 40 para 50”. Um monte de gente carregando água para a caldeira. No mato, gente e gente arrancando caroá, cortando lenha, levando tudo para a usina. A coisa ia bem. Seu Noé até construiu uma vilinha de casinhas brancas. Uma beleza! Mas... um dia, as indústrias têxteis não

331 Professora Eunice Siqueira. Depois assumiu a professora Artemísia Tolentino, que lecionou até mais ou menos 1955, tendo casado e ido embora. A localidade passou a dispor então de uma professora evangélica, semi- analfabeta, mas sua escola quase não tinha alunos devido à recusa dos pois em colocarem seus filhos para estudar com ela, devido a sua vinculação religiosa. De 1955 até 1960, portanto, a localidade ficou praticamente sem assistência educacional.332 A professora Guiomar não se limitava ao trabalho de lecionar. Fazia reunião com os pais, formou grupos de jovens, grupos de mulheres e atuava na catequese.

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quiseram mais as fibras e a usina fechou. Seu Noé foi embora e tudo voltou ao antes.

O movimento ainda existia no porto. O povo atravessando, indo com as tropas para o Ceará, para Pernambuco. Foi que apareceu o caminhão, ligeiro, forte, carregando tudo, indo para todo lugar. Os tropeiros sumiram, o porto foi ficando mais só. Só com os de perto.

No todo dia de Pedra Branca, mulheres, meninos e homens subindo e

descendo a ladeira, no caminho do rio e da rua. Carregar água, lavar roupa, atravessar, tomar banho. Na beira do rio há uma pedra dividindo o porto. De um lado, o banheiro dos homens; do outro, o banheiro das mulheres. Na confusão dessa separação, os meninos curiando, enchendo a alma de pecado. À noite, as conversas dos velhos, as brincadeiras de roda, de esconde-esconde, o silêncio. O silêncio tomava conta de tudo e aí, às vezes, aparecia o fim do silêncio no meio do escuro. Pisadas de cavalos que corriam, montados por homens que gritavam, que atiravam e o sono se ia carregado pelo medo.

A novidade que acontecia no povoado era a chegada do padre. Aí o povo se reunia. Rezas, batizados, casamentos. Aquele movimento. Mas um dia foi diferente. Padre, todo mundo já conhecia. Um dia foi o bispo. Bispo de Bonfim333, que Juazeiro ainda não era diocese. Aquele homem santo, cheio de roupa bonita, com um jeito, um olhar de gente de outro mundo, bem ali para quem quisesse ver, ouvir. A rua se encheu.

A capela e a existência de escola se somavam à feira e ao porto, atraindo a atenção da gente que vivia nos sítios próximos. Por outro lado, as comunicações com Petrolina e Juazeiro por aí se faziam mais facilmente, principalmente a partir dos meados da década de l960334, quando houve interligação asfáltica entre Petrolina e Recife. Note-se que as comunicações com as demais cidades da Bahia, inclusive com a sede do município ao qual

333 Dom José Trindade visitou Pedra Branca em l951. Na oportunidade estava acompanhado por um frade e padre, segundo anotações da professora Guiomar Hipólito.334 Em 01-04-1964, conforme anotações da professora Guiomar, Pedra Branca tinha seis pequenas casas comerciais, sendo duas de tecidos; uma capela católica; uma igreja batista; um mercado; uma barbearia; uma escola estadual sem prédio; duas escolas municipais; uma escola batista; entre 154 e 172 habitantes; 50 casas e 81 crianças matriculadas.

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pertence Pedra Branca, que fica a 100 quilômetros, até os dias atuais, são complicadas pelas distâncias e pelas condições das estradas que são de terra.

Em decorrência, Pedra Branca passa a receber influências mais diretas de Pernambuco, tendo seus moradores contatos regulares com o município pernambucano de Cabrobó, distante 30 km, onde realizam seus negócios, recebem assistência médica e até assistência bancária. Com a difusão dos transportes, com a adesão dos pedra branquenses à agricultura irrigada e com a instalação em Cabrobó de uma emissora de rádio, o estreitamento das relações se tornou ainda maior, ao ponto da feira e do comércio de Pedra Branca serem seriamente abalados. O comércio varejista de Cabrobó, bem mais dinâmico, oferece melhores preços e isto aniquila o comerciante pedrabranquense. Por outro lado, a comercialização dos insumos e da produção agrícola e pecuária é realizada nos municípios pernambucanos de Orocó, Belém do São Francisco e Cabrobó. Mais recentemente, com a introdução do cartão magnético pelas agências bancárias, até mesmo os aposentados335, que todos os meses eram forçados a retirarem suas pensões em Curaçá, deixaram de fazê-lo, se dirigindo para os municípios pernambucanos ou para o município baiano de Abaré, conforme o mais cômodo. Nesta oportunidade também efetuam suas compras. Dentro dessa realidade, resta ao comerciante de Pedra Branca desenvolver suas atividades apenas nas sobras. Vendendo pouco e fiado, precisa vender mais caro e, vendendo caro, só lhe compram quando não há outro jeito.

Uma notícia chegou carregando esperança: “o governo vai fazer umas barragens. As barragens vão prender as águas, que vão mergulhar as terras do povo. O povo vai ser trazido prá cá. Vai ter projeto, riqueza!” Os homens das firmas chegaram, começaram a pisar chão, daqui prali, dali praqui. Desapropriaram terras, as máquinas foram chegando, veio a balsa. Uma canoa bem grandona, aguenta carregar até trator336. No pisado de idas e vindas, fizeram o que não dava nem para imaginar: derrubaram um mundo de mato,

335 O dinheiro proveniente da pensão dos aposentados representa a principal fonte de renda dos moradores do povoado.336 Na década de l980, Pedra Branca viveu um certo alento. Em 1984 foi instalada a energia elétrica, em 1986 a água encanada, em 1988 o posto telefônico e, em 1989, chega a balsa que possibilitou o transporte de veículos e caminhões para Pernambuco . Informações de Aldeniza Gomes e Antoniel Gomes.

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dalí a umas andadas, subiram água pelos canos caatinga adentro, construíram vilas e vilas cheias de casas. Dinheiro correu. Houve ganho para o povo.

O governo mandou o povo337. Gente e gente passando, indo morar nas casas das vilas, todo mundo por conta da Chesf, ganhando dinheiro, mas o povo só passava. Parava pouco em Pedra Branca, por muito que fosse bem aí. Ia-se para Cabrobó, Belém, fazer feira e assim é. Pedra Branca338 fica só vendo, pegando as beiradinhas. Mesmo assim, cresceu mais, ficou mais possível339.

“O governador prometeu: vai fazer a estrada. O ligamento Paulo Afonso-Juazeiro vai ser feito e, então, aí sim, as coisas melhorarão de vez.”

337 A transferência desse povo, que foi trazido da área inundada pela Barragem de Itaparaica, iniciou-se em l988. Informação do Sr. Assueres da Silva Santos, um dos assentados e dirigente do Pólo Sindical.338 Atualmente Pedra Branca conta com oito bares-mercearias, 178 prédios (informação da Secretaria de Saúde de Curaçá), duas balsas, 153 famílias (aproximadamente) e, mais ou menos, 690 pessoas. Dados fornecidos por Aldeniza Gomes. Segundo a Enciclopédia dos Municípios – 1958 – p.211, a população estimada para o ano de 1957 era de 70 habitantes. 339 Pedra Branca, segundo a Secretaria de Educação do Município, em 1999 contava com 531 matrículas na rede municipal sendo 57 no ensino infantil e 474 no ensino fundamental. Dista 91 km de Curaçá e 10 km das Agrovilas, fazendo divisa com o município de Abaré, na Bahia, e com os municípios pernambucanos de Cabrobó e Orocó. É povoado do distrito curaçaense de Riacho Seco.

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MUNDO NOVO

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“Eu vou contar a história que escutei falar, que nesse tempo eu não era nascido.” Bernardino Geraldo.

“Esse sabido, é o sabido do conto dos mais velhos, que contavam conto por conto.” Damázio Francisco César340.

Caatinga. Caatinga braba, bruta: xiquexique, mandacaru... Tudo ermo. Havia uma lagoa. Uma lagoa encantada. Ninguém sabia dela, ninguém tinha notícia. As águas findadas no mato. O gado da fazenda Garrote desgarrado. Fim das águas no mato, mês de outubro, por aí. As vacas sem sair na fonte para beber água. Joana do Garrote341 mandou os vaqueiros darem campo no gado. Os vaqueiros andaram, andaram, deram com o gado. O gado bebido, farto. Mistério. Os vaqueiros no cavucar da cabeça, sem saber. Joana do Garrote mandou seus homens pegarem a pista do gado. Rastejar as vacas, seguir no rastro delas para tirar a certeza das coisas. O mato fechado, tecido de pau. Seca, seca, tudo seco. Os vaqueiros deram no rastro gado. O rastro soltando lama. “Rapaz, num tempo desse, onde é que tem lama?” As vacas tocando os chocalhos, pegando comida no mato. Os vaqueiros bem atrás, no andar delas. Quando o sol pendeu, elas pegaram a caminhar um caminhando desapressado, fazendo arrodeios no mato. Foram, foram. Os chocalhos pararam. De tempo em tempo um badalado. Os vaqueiros chegando devagarinho, sem fazer barulho. Elas não podiam sentir o cavalo, o cheiro do vaqueiro, que os bichos do mato têm sabedoria. Ficar de longe. Acompanhá-las pelo rastro, pelos chocalhos. Com pouco eles viram uma mancha, uma ilha de verde. Uma moita de caatinga diferente com árvores grandes, verdes. “Mas rapaz, a verdura. Todo lugar tá seco”... Não era uma larga de verdura. Era um quadro, uma ilha, 340 Ambos são moradores e naturais das adjacências de Mundo Novo.341 Joana, viúva e proprietária da fazenda Garrote nas adjacências de Barro Vermelho. Este fato deve ter ocorrido por volta de 1850.

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com a secura da caatinga fazendo o mundo. Eles foram arrodeando, se aproximando, se aproximando, até avistar o gado. Encostaram. O calumbi fechando passagem. Xiquexique, xiquexique, o mato embrenhado. Viram um bocado de cipós saindo do chão, subindo pelas árvores altas e o gado, por baixo, procurando brecha para alcançar a água. As poças de água debaixo do mato. Quando o gado percebeu os vaqueiros, se assustou espantado, correu esbandalhado, sem o encanto, com mistério quebrado. Os vaqueiros foram apreciar o encontrado, meio desconfiados das vistas. Voltaram para casa na fazenda Garrote. Soltaram a boca nos ouvidos de Dona Joana. Ela juntou um bando de gente para ir olhar. Quando chegou, ficou ali pensando que lugar era aquele. Matutou no juízo e disse: “Aqui é um mundo novo”. Todo mundo quis ir lá, ver, conhecer a lagoa desencantada. “Mundo novo, mundo novo” e Mundo Novo ficou.

O encanto da lagoa não era tão encantado. A serra do Pica-pau ali perto. Na baixa da serra, uma gente morando, vivendo, arredada. Raça de caboclos. Caboclos brabos. Os caboclos sendo afugentados, afugentados, andando de um lugar para outro. Plantaram-se lá. Era tudo ermo, ermo. Muita caça nos matos das caatingas. A lagoa dando sustento de água. Os caboclos na paz do mundo seu. Longe, sem notícia dos afugentadores. Na secura daquele mundo ermo ninguém viria. O gado, seus chocalhos, trazendo notícia de mau sentido. Eles plantando rocinhas de mandioca, habitando em ranchos de palha. Os vaqueiros passando. Os caboclos se escondendo por trás dos paus, botando sentido nas andanças deles, assuntando o que queriam. Foi e foi. Mais vaqueiros, mais vaqueiros. O mundo dos outros chegando. Os caboclos desconfiando da segurança do mato, se amedrontando. A lagoa invadida, cheia de gente estranha. Fazendas se plantando por perto. Fazenda Lagoa da Vaca, com gente escrava, com tronco, senzala e tudo342. Os espaços sendo encurtados, os caboclos se fechando em si, com cisma, de acordo com o afugentamento dos estranhos. De pouco em pouco se quedando, se amansando no mesmo mundo do viver dos outros.

Um fazendeiro botou o olho nas terras dos caboclos. Deu jeito de se adonar de terras nas terra deles. Coisa de documento em cartório. Os caboclos

342 No sabido da memória dos velhos, esta fazenda pertencia ao Sr. Cazuza Mendes, que não dava sossego a seus escravos. Esta fazenda situa-se a poucos quilômetros de Mundo Novo.

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sem entendimento dessas coisas. Anunciou a venda da terra. Um outro fazendeiro se interessou. Quando foi se estabelecer nas terras, os caboclos fincaram pé. Foram em Patamuté na procura de decisão certa dos homens da lei. A lei se fez contra eles. O comprador, olhando para eles, disse: “Vocês perderam as terras, caboclos!”. Quando o homem se viu “dono” das terras mandou seus cabras tocarem fogo em tudo. Nas palhoças, nas roças, para desarranchar os caboclos343. Eles perderam a mandioca, que é do que viviam, tirando as caças e as comidas do mato. Ficaram desabitados, sem terra, sem lugar para ficar. Se esbandalharam se abandonando, morando de favor nas terras dos fazendeiros. Viraram agregados, nos caprichos dos proprietários. Não podiam botar roça. Viver só do que o mato dava: raiz de imbuzeiro, mari, bruteiro344, favela, juá, caça, xiquexique, mucunã345, miolo de ouricuri e ovo de passarinho. Não podiam reagir. “Não tinha mais flecha, não. Os caboclos foram desabituados porque os governos tomaram parte, tomaram as armas e a direção. A gente ficou assim meio acanhado porque caboclo nunca teve instrução mesmo, né”346.

A lagoa amparando a vida do povo, a vida dos bichos. Gente de longe vindo para perto dela, se arranchar, nos tempos de seca. A gente vivia aí com as coisas do mato. Muito xiquexique e, nas serras, o ouricuri. Os meninos com aqueles buchos bem grande, empanturrados com os intestinos inchados. No verde a vida melhorava. E o povo levantando casas de palha e casas cobertas

343 O informante, Sr. Bernardino Geraldo, filho de um dos caboclos desarranchados, disse que o sujeito que se adonou das terras inicialmente foi um sujeito de nome Barros (do Paredão) e o comprador que desarranchou os caboclos foi Agostinho Félix (das Cacimbas). O responsável pelo cartório que acabou decidindo a questão foi Galdino Matos (chefe político de Patamuté). Esse fato ocorreu entre o final e o início desse século. No local onde habitavam os caboclos, foi instalada uma fazenda com o nome de Angico. 344 Também conhecido pelo nome de araticum verdadeiro, em outras regiões.345 Segundo o Sr. Bernardino Geraldo, “lavavam a mucunã em nove águas e ela ainda matava”.346 Sr. Bernardino Geraldo. No seguir de sua fala: “Você sabe quem gerou a geração do Brasil? Foi a princesa Isabel. A princesa Isabel era cabocla... foi pegada. O reino de Portugal foi quem avançou... e pegaram a caboclinha e aí ela casou com o fio do homem e agora, aí todo mundo é caboclo. É por isso que eles (os índios) querem a terra de volta... que ela foi tomada a muque, não foi vendida a Portugal. Nem que o governo me prenda mas eu acho que eles não compraram. Houve morte, houve guerra... caboclo matou soldado, soldado matou caboclo... mas era muitos e venceram”.

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com barro347. Agregados, refugiados da seca, vaqueiros. Todo mundo na pobreza, se confundindo nos mesmos caminhos. Uma roupinha só, para cobrir os couros. Calça sem cueca. Na hora de lavar, ir para o mato se esconder, nu, esperando a roupa secar. Os vaqueiros sem ter onde prender os bichos doentes, que cerca só a do curral, a do chiqueiro. Os bichos doentes amarrados debaixo dos paus. Os fazendeiros morando longe, para as bandas de Bonfim, de Salvador. Morando por aí, um ou outro, fechado nas distâncias com o povo. Os que tinham, tinham muito. Os que não tinham, não tinham nada. O povo por si, na esperança de Deus.

Assunto de escola no mato, sem auxílio do governo. Os pais, os padrinhos pagando aos mestres para realizarem os ensinamentos. Os meninos indo para aprender a escrever o nome, com sorte aprender a ler, a escrever, na conformidade de suas inteligências. A palmatória, os castigos. Os meninos inventando os meios de escrever. Faltava tudo. Faziam tinta com leite de pinhão, com folhas, com lagartas desmanchadas em água quente. Quem aprendesse bem, a ler e a escrever, virava professor, no ensinamento das escrituras.

A morte. Enterrar gente só em cemitério, para garantir a salvação da alma, para impedir as tentações dos diabo. Cemitério em Uauá. Fosse seca, fosse verde, carregar o defunto em um esquife, caminhando dez léguas com ele nos ombros. Assim, assim até 1937, quando construíram um cemitério perto da lagoa.

Os fazendeiros foram perdendo a impressão de vantagem nas terras das caatingas. De pouco em pouco passaram a vender retalhos de terras. Os vaqueiros comprando, virando proprietários. Os agregados ganhando consentimento para botar roça. A vida mudando de pouquinho348.

347 Esta cobertura era feita da seguinte forma: levantavam-se os esteios, depois fazia-se uma armação com varas na cobertura. Após isso, jogava-se barro e depois colocavam capim. O primeiro morador foi o Sr. Antônio Fagundes. O cemitério foi construído em 1937 pelo Sr. João Onório, sendo o mesmo até os dias atuais. Neste período, os cemitérios configuravam-se como espaço de aglomeração humana, dado o seu caráter sagrado, ou palha sobre o barro da cobertura, tocavam fogo para o barro endurecer. 348 Mais ou menos por volta de 1930, as terras começaram a ser retalhadas.

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A lagoa, o último lugar de água no mato. O gado livre de carreira de cavalos, arredio por perto dela. Os bichos do mato na paz das caatingas, se vendo com eles mesmos. Os vaqueiros se chegando, batendo o campo, fazendo retiros349, botando caiçaras350, se alegrando, fazendo festa nas corridas de pega de boi. A lagoa, o agasalho deles. E eles se arranchando na sombra da baraúna grande, bem grande, que havia na beirada dela. Gente vindo com carga, carregando cachaça, fazendo rancho, mulher chegando para vender comida, doces. Aboios, conversas, informações sobre gado, sobre gente, as notícias correndo. Cachaça, cachaça351. Os bichos do mato arredando. A lagoa do Mundo Novo conhecida e conhecida. Todo mundo era dono. Nunca venderam terra aí352. Nunca teve dono. Alguém botou morada pertinho353.

Os caboclos, espalhados nas moradas do mato, sem prosa de muita aproximação com ninguém, assustados na desconfiança. Quando viam gente estranha, saíam correndo, abandonando casas, retornando com o sumiço dos chegantes. Vivia entocado nos seus caprichos, se dando consigo, estranhando o mundo dos que chegavam no seu chão, vivendo do mato, caçando, também plantando em suas rocinhas. O mato ficando fraco, a lagoa morrendo e eles olhando, acompanhando nas conversas entre si. De pouco em pouco, na carreira do tempo, foi se botando nas misturas. Misturou, se fundiu, entrou no mundo dos outros. Agora, sobra de resto de sangue, sem noção dos costumes.

Feira nas distâncias. Caminhadas para as lonjuras, caminhando à pé, em lombo de animal. Em Uauá, a seis léguas, na segunda-feira feira; em Patamuté, a oito léguas, no sábado; em Barro Vermelho, a sete léguas, na quarta-feira; Poço de Fora, a seis léguas, na terça-feira. Alguém de comércio atinou organizar adjunto de feira. O adjunto no oitão da casa do morador de perto da lagoa. O adjunto em um dia livre, sem feira: sexta-feira. Rapadura, cachaça,

349 Ajuntamento de gado ou outros animais para depois retirá-los para as fazendas de sua criação, por ocasião do final das águas no mato.350 Caiçara: abrigo provisório que os criadores montavam em locais abundantes em pasto e/ou água, para se livrarem dos rigores da seca ou aproveitarem o resto do verde. 351 Estes acontecimentos ocorreram até as décadas de 1940, início da década de 1950. Conforme o tempo, o movimento persistia até início de agosto. 352 Bernardino Geraldo.353 Segundo a coleta de informações realizada pela professora Maria Ferreira, o primeiro morador foi o Sr. Antônio Fagundes.

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feijão, farinha. Começo de tardezinha354. Pegou. No continuar dos tempos o povo caminhando para aí355, no mesmo dia do começo.

Mudaram a feira, para um lugar próximo, pertinho, onde tinha um pé de imbuzeiro. Debaixo dele o comércio das coisas356. A feira chamando gente. Fizeram um barracão357. O imbuzeiro esquecido. O povo chegando no atrasado da hora. De atraso em atraso, ela na noite e na noite rolando. Seis horas da tarde, os primeiros ajeitamentos de negócio. O povo começou a levantar umas casinhas, casinhas de taipa, de palha, de vara. Depois foi uma casa de tijolo. Foi seu Lino358 quem a construiu para sua morada. Adoração dos santos. Seu Lino 4gostava. Lugar de cristão tem que ter casa de Deus. Ele pediu a ajuda do povo. Construiu uma igrejinha, botaram santo dentro359. O povoado crescendo devagarinho.

A devoção, para agrado das coisas boas de Deus. Uma mulher do mato de perto, com a imagem de uma santa. Nossa Senhora do Parto. Comemoração da data dela: 15 de agosto. No começo, novena meio dia na casa da dona da santa. Depois a mulher levando a imagem para a igreja, no dia da celebração. Assim, assim até que ela veio morar na rua. Trouxe a santa. Colocou-a no altar da igrejinha. O padre Adolfo dando assistência de missa no dia da reza. Resolveu construir igreja. Chamou o povo, fez mutirão. Igreja construída, trouxe a imagem da padroeira360. Ele que escolheu: Nossa Senhora da

354 Segundo o Sr. Bernardino Geraldo, a feira se realizava no final da tarde devido às ocupações do povo nas caatingas, principalmente no período de seca.355 Segundo o Sr. Urbano Fernandes de Vale, *1909, os enfrentantes do adjunto da feira foram os Srs. Antônio Ferreira e Antônio Emiliano. Segundo Sr. Bernardino Geraldo e Dna. Flora Ferreira de Souza, *1934. A primeira feira aconteceu em 1950.356 Segundo informação da professora Maria Ferreira, o pé de imbuzeiro localizava-se onde hoje é a casa da Sra. Corina.357 Segundo o Sr. Damázio o barracão foi construído nas eras de 1950, na gestão do prefeito Gilberto Bahia. Barracão era o local onde a feira se realizava e consistia em uma pequena área coberta, mas aberta nas laterais. Foi ele a primeira benfeitoria do município na localidade.358 Seu Lino tinha um comerciozinho e também era pedreiro. Além disso criava e possuía uma rocinha de mandioca.359 A capelinha foi construída de 1953 para trás, uma vez que, nessa data, um padre de Uauá celebrou a primeira missa da coletividade nela.360 A atual capela foi inaugurada em 1969.

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Assunção. As duas santas no altar. As duas santas dividindo o andor na hora da procissão.

Nesse, nesse, o tempo rolando. Veio a construção de prédio para mercado, no mesmo lugar do barracão361. Feirantes em jumentos, a pé, em bicicletas, em motos, em caminhonetes. No hoje o comércio de feira até às 22:00h. Todo tipo de mercadoria. Depois cachaça. A turma bebendo, se alegrando nos bares, conversando alto, de vez em quando um cacete. Alegria até as três horas da manhã. “Feira só pode ser de dia. Tem gente que conhece o mundo todo e só conhece feira de noite aqui. Só aqui que é de noite. Não sei362”.

A baraúna grande não existe mais. Acabou-se a prova dos tempos velhos. O povo foi devorando os paus da lagoa, arrancando os cipós, derrubando as árvores grandes, a água minguando, se acabando logo.

Agora a alegria dos meninos do estudo, chegando fazendo zoada, trazendo alegria, animando, dando vida ao lugar363.

361 O prédio do mercado foi construído em 1973.362 Frase do Sr. Urbano Fernandes do Vale. 363 Primeiro prédio escolar construído em 1964; o segundo prédio construído em 1985. Foram as primeiras professoras: Mariana Marques de Jesus e Maria de Lourdes Rodrigues de Souza. Atualmente a sede do povoado conta com ensino completo de primeiro grau, tendo diretora e coordenadora com curso superior. Regularmente matriculados se encontram (1999) 29 alunos na educação infantil e 453 no ensino fundamental, segundo resultados do Censo Escolar organizado pela Secretaria Municipal de Educação. Antes da energia de Paulo Afonso, instalada em 1986, havia um gerador a diesel e que iluminava o povoado até às 21:00 h. Mundo Novo, além dos equipamentos já assinalados anteriormente, conta com um posto telefônico, dois poços artesianos e um dessalinizador (que passou a funcionar em 1996), uma quadra de esportes, um restaurante, uma igreja evangélica e um posto policial (embora sem assistência). Há vários bares e duas mercearias. Em meados de 1999 contava com 106 prédios (entre residenciais e comerciais), segundo a Secretaria de Saúde do Município. Dista 96 km da sede do município e é povoado do distrito de Patamuté, conforme delimitação territorial do município, estabelecida pela Lei nº 628 de 30-12-1953.

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SÃO BENTO*

* Este texto foi redigido em muito com base em um documento escrito por José Afonso Gomes Leite.

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Serra da Natividade, Riacho do Jaquinicó, Brejo, Serra da Canabrava. Mato rico, terra boa de plantação. O povo foi situando, situando. Uma fazenda, depois outra e mais outra. A gente se multiplicando. Com o tempo, muitas fazendas.

Vida de trabalho, de enfrentamento de dificuldades. A secona queimando tudo. Os bichos berrando na porteira da fonte. Queimar mandacaru, cortar rama de juazeiro, de quixabeira. Salvar os bichinhos, não deixar a semente se acabar. Comida pouca em casa. Na faltança das coisas, comer comida do mato: gró364, macambira, xiquixique. As caças se escondendo, se escondendo, para não virar comida grã-fina. O povo se salvando como podia365. Avançava para cima do mato, tirando casca de angico; arrancando a vida e a pena das emas; fazendo sal, tirando salitre da barriga das serras. As mulheres indo longe, lavar roupa nos caldeirões366. A chuva chegava. Mato alegre, chão molhado, riacho roncando, criação berrando forte, cabritos escabriolando, bodes bodejando. Plantação de roça: algodão, mamona, milho, feijão, abóbora, melancia367. Queijo, leite, imbuzada, carne assada, requeijão. Fartura da muita. Novenas alegres e o povo procurando dança. Os campos nos bichos, os chiqueiros crescendo no namoro deles. Ovelhas, bodes aos montes.

Os meninos. Fizeram escola para eles. Foi na fazenda São Bento, perto do riacho, na beira da estrada. Os meninos de jegue, a pé no caminho do estudo. Pequenininhos, grandinhos, fazendo zoada, carregando vida nas

364 Gró, uma comida feita do miolo da planta ouricuri. O ouricuri era encontrado na serra da Borracha. Informe do Sr. Sindolfo.365 Está viva na lembrança do povo a atitude de um prefeito que, percebendo o caráter predatório da retirada da casca de angico, mandou que seus funcionários queimassem toda a casca que encontrassem. A ordem foi cumprida e o povo se indignou, pois ela era o sustento da vida da maioria dos que não tinham outro recurso. 366 Escavação natural existente na rocha, que armazena água por longo período. 367 A área de plantio era compreendida pela faixa de terra umedecida pelo riacho, quando das cheias.

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brincadeiras, alegrando o mato. A professora Baiana368 ensinando. Aprender a ler, a escrever, a fazer zelo do lápis, do caderno. A régua, a palmatória de prontidão para endireitamento dos traquinos, dos desmazelados. Um sofrimento danado. Os pais autorizando a professora: “Aplique a disciplina!”. Os meninos ouvindo, vendo, com medo. Havia festa de comemoração da pátria. 7 de Setembro. Os meninos fardados carregando bandeirinhas do Brasil. A professora vigiando, botando tudo nos conformes do desejado. Os pais, o povo de perto assistindo. A escola mais bonita assim. A hora do desfile. A professora nervosa, os meninos se arrumando na fila e o desfile começava. O trajeto: uma volta em torno do prédio, que não havia rua. Depois a cantiga do hino. Era bonito. Os meninos gostavam. Os pais se orgulhavam. A professora ficava feliz369.

Feira em Curaçá370. O povo indo toda semana, carregado pelos animais. Juntando-se pelas estradas, conversando, se botando a par das coisas da vida. Viajona danada. Comprar rapadura, sal, farinha, feijão, gás371; vender pele de bode, pena de ema, requeijão, coisas do mato. Assim foi, por muito, desde o tempo dos antigos.

Um comerciante viu372. Achou que dava futuro, marcou o dia e o local. Fazenda São Bento, do lado do prédio escolar373, dia de domingo. Lugar bom para o caminho do povo. Ano de 1972374. O povo chegando, gostando. Feira perto, sem precisão de caminhada longa. A notícia se espalhando e cada vez mais gente nas feiras do seguir das semanas. O ajuntamento crescendo, a coisa dando certo. O dono da fazenda375 ficou incomodado com o ajuntamento dentro de suas terras. Botou dificuldade, querendo fazer questão. Também tinha a atrapalhada do riacho que, quando enchia, não deixava o povo atravessar. 368 Professores: Cecília de Assis, Raquel de Souza (Baiana), Flordinice Lima. 369 As atividades festivas eram organizadas com grande ajuda da professora Flordinice. 370 Curaçá fica a 42 km do povoado de São Bento.371 querosene372 Joatan Nunes Franco, tradicional comerciante de Curaçá.373 O Prédio Escolar, hoje abandonado e em ruínas, foi construído no ano de 1972, antes do início da feira.374 Segundo documento de memória do povoado e assinado por José Afonso, entre outras pessoas, a primeira feira foi realizada no dia 1º de setembro de 1972.375 O proprietário da fazenda era o Sr. José de Souza. Informação do Sr. Eduardo Pereira Martins.

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Perto, bem perto outra fazenda, esta de nome Bela Vista. Os donos fizeram consentimento para o negócio. A feira mudou de lugar, mas levou o nome do lugar velho. Foi botada na malhada da casa de Né Pereira, quase na porta, debaixo de dois tamarineiros. Mas o movimento foi aumentando, aumentando. Mais feirantes, mais comerciantes. Estava incomodando os moradores. Eles resolveram fazer doação de uma área de terra, em lugar perto, para o movimento do povo376.

O povo se animou, levantou latadas, levantou barracão. Um barracãozinho, coberto de palha377. Área livre, os feirantes foram fazendo casinhas para se agasalhar, apoiar os meninos na escola378. Tomou jeito de vila e logo virou povoado379. Povoado de São Bento, na fazenda Bela Vista. A feira virou ponto de encontro dos que tinham negócio e dos que queriam diversão. Animação danada. Pegou fama e mais gente vindo morar, visitar. Teve até ônibus fazendo linha380. O prefeito se entusiasmou, fez prédio para o mercado381.

Casa de Né Pereira382, sede da fazenda Bela Vista. Né Pereira devoto de São Sebastião383. Desde muito comemorando o santo, fazendo novenas, reunindo a matutada pras rezas. Aí foi. São Sebastião virou padroeiro de São Bento. Festa em 20 de janeiro. Procissão, missa e tudo mais. Não havia igreja. Um sonho do povo e o povo esperando, esperando. Época de eleição, um candidato fez promessa, financiou a construção384. São Sebastião agasalhado. Igreja e mercado. Depois foi o prédio escolar, energia e poço artesiano385.

376 Fizeram a doação de uma pequena área de mais ou menos dois hectares, no ano de 1973. Os doadores foram Juvino Pereira, Manoel Pereira, Zilda Pereira Rego, Zulmira Pereira dos Santos e Antônio Pereira. 377 Este barracão funcionava como mercado.378 Os primeiros moradores da área específica do povoado foram Eduardo Pereira, Serafim de Rita, Norberto e Evangelista.379 Já em 1974 ganhou caráter de povoado.380 Ônibus da empresa Joalina. 381 O prédio do mercado foi construído no ano de 1976. 382 Originário do município de Juazeiro. 383 A casa de Né Pereira foi construída em 1915 e, a partir de 1916, São Sebastião passou a ser celebrado em novenário.384 A igreja foi construída com recursos doados por Antônio Carlos Duarte, no ano de 1983.

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“Crises”. Uma virada do mundo. “As crises mudando a natureza do povo”. Secas danadas, com o criatório morrendo. A gente foi abandonando seus lugares, as casinhas sem cuidado, caindo, as cercas se espedaçando, indo ao chão. O povo para rua de Curaçá. A feirinha minguando. O povoado perdendo gente. Trabalho nos projetos, escolas mais adiantadas, longe. Aposentados recebendo dinheiro na rua e na rua fazendo as compras. De pouco em pouco se vão para lá. A facilidade de transporte desvia os feirantes. Comerciozinho fraco, cachaça, surtimento pequeno de mercadorias. Crises386. São Bento esvaziando, se amiudando387. Caminho para gruta e para Patamuté, os moradores ficam vendo os carros passarem, olhando a poeira388. As pessoas sentadas nas portas, os meninos brincando na rua. O tempo, a vida assim ...

Um sonho. Barragem, que o riacho é grande. No atrasado dos tempos houve uma promessa389. O DNOCS fez estudo, corrigiu a terra e plantou a idéia de represamento de muita água. Os homens do governo foram embora. O desejo ficou. Os mais velhos sem ilusão, os mais jovens sonhando. Uma fezinha de novo. Agora parece que vai. Uma barragem nascendo. Não é tão grande como a que ficou na promessa, mas vai fazer arremediação para adjutório de vida e São Bento se anima. Os meninos também chegando para os negócios de estudo, vindo de todos os lados nas caminhonetes. Uma gritaria zoadenta, o povoado ganhando vida390.

385 O prédio escolar construído em 1986 , o gerador de energia em 1987 e o poço artesiano também foi nessa época. 386 É assim que o Sr. Eduardo Pereira explica a decadência do povoado de São Bento.387 São Bento possuia, em meados de 1999, segundo José Afonso, 47 casas e 80 moradores.388 A estrada passa bem no meio do povoado. 389 Por volta de 1940, o DNOCS fez estudo da área e projetou um açude que, segundo está na memória dos mais velhos, represaria água numa extensão de 40 km. Em 1999 está sendo concluída uma barragem projetada para acumular 42.598 m³ de água e um volume útil de 25.558m³, devido à perda por infiltração e evaporação. O projeto estima que serão atendidos 750 habitantes, levando-se em conta o consumo per capta de 100 l/dia – In: Memorial Descritivo de Projeto Barragem de São Bento, Prefeitura Municipal de Curaçá- 1999. 390 A Secretaria Municipal de Educação resolveu nuclear as escolas nos povoados e nas sedes dos distritos e isso está mudando o panorama de calma dessas localidades.Segundo aquela secretaria, a população estudantil de São Bento é de 282 estudantes, sendo 26 matrículas no ensino infantil e 256 no ensino fundamental.

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JATOBÁ

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As margens do rio fechadas de mato. Jatobás, juazeiros, muquéns, genipapeiros, ingazeiras, os mufumbos de calumbis, os entrançados dos cipós, matos pequenos do chão. No subir do alto a secura dos matos da caatinga caminhando na direção da serra do Icó. Bichos do mato abrindo veredas no entre a serra e o rio. No distante dos tempos, índios passando por aí, fazendo pouso, armando aldeia na fartura do rio, na fartura da serra. Os brancos chegando, os bois berrando, a terra ficando pouca, apertada: perseguição, aperreio, índios se indo, sumindo, se acabando. Gente negra chegando, se escondendo nas terras de índios, correndo de branco, se apertando na beira do rio, no agasalho do mato fechado, cheio de bichos do rio, de bichos do chão, de mosquitos. O povo morador empurrado, molestado com as águas subindo, com as águas baixando. Os brancos se encostando, se encostando, ficando perto, perto. Índios e negros se misturando, se fazendo outro ser. Caça, pesca, plantação de mandioca. Casas de palha, de taipa, debaixo das sombras das árvores. Na noite, fogueiras no terreiro, toré. As caças escasseando, o falado da língua mudando, o povo esquecendo, fazendo um outro jeito de si. Jatobá, o nome do lugar.

A vida sempre assim: caça, pesca, plantaçãozinha de beira de rio e o tempo passando. O povo ali no seu ser de sempre, no briquitar das poucas coisas precisas pra fazer vida. Breiação de negro com índio e o povo casando entre si, se confundindo na mistura do mesmo sangue virando parentalha, formando rama do mesmo tronco. De raro em raro, mistura nova de sangue brotada da barriga de índia pega a dente de cachorro na serra. Índia amarrada, amansada, pros preparos do casamento do pegador.

“Sou bisneto de índio. Minha bisavó foi pegada a dente de cachorro. Os caçadores no mato, caçando... os cachorros pegaram ela e meu bisavô a trouxe. Casou com ela. Os índios não a procuraram mais. Não sei informar porque eles

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não a procuraram. Ele, meu bisavô, era negro”391. (...) “Minha avó, só era ver cachorro, ficava se tremendo”392.

Sem ser do comum, mas havia breiação de homem branco com mulher do Jatobá. Coisas que aconteciam, nos mexidos dos desencontros encontrados da vida. Uma ou outra família também chegando se entrando na convivência.

“Aí foi ficando tudo melado, tudo russo, tudo misturando. Somos negros-caboclos”393. “Mas na nossa descendência somos índios, que antes era tudo índio”394. “Tinha muita cerâmica de índio. Aqui era aldeia de caboclo brabo. Nessa serra tinha caboclo brabo. O negro, eu acho que surgiu do índio, dos caboclos velhos, que quando iam fazer roças achavam os cacos de telha, os cachimbos deles”395.

Ramo velho fincado no ramo novo. O ramo novo dando vida ao tronco velho e o povo fazendo marca de vida de gente na igualdade da parenteação, nos trabalhos de todo mundo junto no mesmo pedaço de chão, derramando as mesmas lágrimas pelos que morriam, sentindo as mesmas saudades dos que partiam. Um povo só: Rompedor, Jatobá, Favela.

Os meninos crescendo nos costumes de uso de flecha para pescar, para caçar capivaras. Treinar, treinar, treinar, que só depois de ser bom em flecha acontecia condição de respeito de ser homem. Aí sim, direito de usar espingarda, sonho de menino. A vida no mato, na roça, no rio. As casas, lugar de encosto para sono. Na frente delas o terreiro, a fogueira, as histórias, as danças do toré.

391 Manu (Manoel Gonçalves Buriti, *1938). 392 Anatalino Barbosa dos Santos, *1931.393 Manu (Manoel Gonçalves Buriti).394 Anatalino Barbosa dos Santos.395 Dona. Maria Izabel.

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Toré, sessão de giro, depois o xangô396. Sessão de giro só com palma e pandeiro, trabalhando na linha branca, na linha do bem. Coisa de parecimento com toré. Todo mundo que tem sangue de caboclo é de uma aldeia. Precisa fazer disciplina, senão morre. Cada caboclo possui um escravo. O escravo é um espírito. Ele bota seu escravo para se encostar no sujeito para ele adoecer. O sujeito doente vai procurar tratamento, vai à sessão. No tratamento o corpo fica limpo, sem os fluidos ruins, então o caboclo encosta, entra nele, ensina tudo, como é, como deixa de ser. Daí pra frente o caboclo passa a rezar no povo, a consultar, a passar remédio. Caboclo é coisa que vem da natureza, de um dom397.

Trabalho de roça. Mês de março, o começo da plantação na vazante do rio. Briquitar até junho. Os grandes no pesado, os meninos no mais leve, juntando o mato, botando as sementes nas covas. Depois banho no rio, as brincadeiras. Em dezembro lá se vinham as águas subindo, subindo. Arrancar batata, mandioca. A labuta para fazer farinha. As rapadeiras tirando versos, o mexedor suando, os carregadores gemendo com o peso dos caçuás, o tirador de lenha com o machado zoando e a turma puxando roda, no esforço dos braços, na lida da cevação, se animando com cachaça, soltando cantoria. Dia e noite, noite e dia o mexido do povo no tralho. Uma farinhada, mais outra farinhada e o tempo se ia na vida, no conforme do movimento da água no rio.

No tempo de moagem, os engenhos virando festa. Gente carregando cana do alto para o rio, os paquetes até o porto do engenho, do rio para o alto, do alto para o engenho. Os carregadores de lenha, os meninos tangendo os bois, outros botando cana no pé do engenho e mais gente cortando os pés das canas. As canas entrando na moenda e a moenda gemendo, estalando e os bois girando. Fome nessa labuta não tinha. Garapa, mel, alfenim batida, rapadura. “Milho pra jegue, rapadura pra homem”398.

396 Segundo os velhos do Jatobá, o toré era coisa dos mais antigos. Do tempo deles veio o xangô e a sessão de giro. Pelas características que deram, a sessão de giro se aproxima do toré e notei haver uma certa censura ao xangô e ao candomblé que só recentemente foi introduzido lá mas, pelo que deixaram transparecer, não fez muito sucesso. Pelo que tudo indica, a sessão de giro chegou por volta dos anos de 1940/1950.397 Este é o raciocínio de Manu e de outros habitantes do Jatobá.398 Expressão de Manu ( Manoel Gonçalves Buriti).

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Dia de feira, feira em Curaçá399. A infieira de barcos, a infieira de gente andando a pé, um ou outro montado em jegue, no caminho da rua. Cestos nas cabeças das mulheres, os homens carregando as coisas nos ombros, nos braços, nos cabeçotes das selas. Abóbora, batata, esteiras, farinha, beiju, tapioca, verduras. “Os negros do Jatobá”400 chegando na feira, se achegando no armazém de seu Juatan, no mercado, com suas vozes diferentes, falado cantante arrastado, andando em turma. Vinham como se iam, em irmandade de ajuntamento.

O tempo, o tempo.

Nas enchentes, as águas do rio caminhando terra acima, as muriçocas empesteando o mundo, o povo fugindo, mudando os ranchos para o alto, no vai e vem de todo ano. A irrigação chegando, os engenhos morrendo, as farinhadas diminuindo, barco a motor aparecendo. Plantação de cebola, de coisas só de vender. Os jovens entrando em desejo de outras novidades, os velhos ficando no seguir dos costumes. As sessões de giro carecendo de gente, as brincadeiras antigas sem animação da mocidade. A mocidade nas escutas de rádio, no campo de futebol, nas festas de músicas tocadas com radiola.

A vida, outra vida de outras coisas. O povo se desgarrando pra outras bandas no cedo da idade. Os jovens providenciando maneiras de outro viver. De pouco em pouco tomando decisão de fazer as casas no alto, fugindo das águas, das muriçocas. Os velhos, resmungando, se convenceram no tempo. A beira do rio deixada pro canto dos sapos, dos grilos de noite, lugar só de trabalho. As casas, perto umas das outras, mas de taipa. Umas na Favela, outras no Rompedor e algumas no Jatobá. Água longe, carregada com latas na cabeça, em galões, com os sujeitos gemendo no peso, ladeira acima.

Irrigação, barco a motor, plantação para vender. A luta do novo da vida. “O que passou prá trás já foi. Agora só as coisas modernas”401. Casas de alvenaria, luz elétrica, água encanada, os meninos estudando. O junto do antes. O povo se misturando na parentalha. Obra de devoção: construir igreja. “Se a 399 Curaçá dista 10 km.400 Esta a expressão que o povo de Curaçá utilizava para designar os jatobaenses. 401 Do Sr. Mateus, mais ou menos 70 anos, morador do Jatobá.

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gente se afastar das coisas de Deus, nada vai pra frente”. A turma no briquitar. Teve gente de fora que ajudou402. Igreja sem padroeiro. Arranjar um. Eleição. O eleito, São José. Cadê imagem do santo? Romaria para Juazeiro do Norte, se acudir nas preces para Padre Cícero. Viram uma imagem em uma casa de comércio. São José bonito. Desejaram. Foram se acertar no preço. O dinheiro não dava. Fizeram reserva da imagem. Compraram um pequenininho, para adorar. Voltaram no desejo do santo grande. Arranjaram dinheiro, enviaram portador pro cumprimento da missão, com recurso de conta certa. O homem havia subido o preço. “Aí acertaram que voltariam. Assinaram papel e tudo. Outra viagem. O santo estava lá, conforme o dito do homem. Fizeram a compra. Enrolaram, encaixotaram. Vieram direitinho, de ônibus, porque o santo precisa ter conforto. Como é que ia ficar, santo quebrado? Mas quebrar ele não ia, não, que santo tem milatre, ô!... São José!403.” O santo chegado, reunião do povo. Aquela veneração. Procissão pra igreja. O santo entronizado, lá, no comando das coisas divinas. O padre benzeu o santo, inaugurou a capela.

As coisas do tempo velho findas. O candomblé sem entusiasmo, seção de giro de sem ter. Os engenhos acabados, farinhadas nas diferenças do mundo. Fazer festa. Festa do Jatobá. Foi e veio. Chegaram: 20 de novembro, festa do Rei Zumbi. Comemorar as coisas de negro, as coisas do tempo velho. O dia todo de acontecimento. Comida, danças, cantigas, apresentações, exposição das coisas: cestos, colheres-de-pau, potes, cordas, tambores de madeira, gamelas, pilões. Velhos, meninos, visitantes. O dia todo.

402 A capela foi construída em 1991, através de mutirão.403 Dona Maria Izabel.

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AGROVILAS

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A vida era como conhecida por todos. Trabalho nas roças, plantando cebola, milho, feijão, coisas da irrigação. A maioria trabalhava como meeiro, como rendeiro. Alguns nas ilhas do São Francisco, quase todos em terra firme. Havia os que só cuidavam de trabalhar avulso, para os outros, recebendo pelo dia de serviço trabalhado. Também havia os que, nas épocas de chuva, se ocupavam com o criatório nas caatingas e durante a seca se mudavam para a beira do rio, procurando refrigério404. A vida era assim.

Ninguém, nem de longe, poderia imaginar o que viria a se suceder. Que falavam da represa, isso falavam! Mas quem podia crer que uma obra dos homens fosse capaz do que foi, de mexer com tanta gente? Isso, não! Foi nos idos de 1976 que a conversa teve o tom aumentado. Mas era só conversa de rádio e a palestra que o padre fazia na igreja, na hora da missa.

404 A agricultura ainda não era uma atividade especializada. Via de regra era consorciada com a pecuária, pescaria e outras atividades residuais. Os trabalhadores ainda podiam ser configurados como camponeses.

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O povo não acreditava. Aquilo tudo não podia ser. Mas, foi que foi e começou a acontecer. Os maquinários chegando, zoando, fuçando o chão. As empreiteiras instalando canteiro-de-obra e o povo despreparado para a verdade que iria acontecer, conforme o dito do padre405. Ele já conhecia a história pelo passado ocorrido na barragem de Sobradinho, quando o povo sobrou, sendo dele feito o que a Chesf quis. O padre já sabia que todo mundo ia ser botado fora, que as águas iam tomar conta de tudo. De pouco em pouco foram aparecendo uns. Uns que começaram a acreditar na verdade do que izria ser. Foi aí que começaram as reuniões. Foram reuniões e reuniões. Os mais velhos não acreditavam. Ficavam rindo daqueles que participavam delas. Quando os via caminharem na direção dos locais de encontro, diziam: “Oh! Os bestas já vão” – e se danavam a sorrir. A Chesf também não acreditava que o povo tivesse a capacidade de fazer com que ela procedesse ao contrário do que planejara. Ia tocando a obra como bem entendia e sabia fazer. Foi aí que cada vez mais chegava mais gente para participar das reuniões. Os sindicatos chefiados por pelegos406. As empreiteiras começaram o serviço, já mexendo com o povo. O povo fez concentração dentro do canteiro-de-obra, reivindicando, querendo acerto, a Chesf sem querer, só enrolando. Era difícil. Os sindicatos estavam isolados e nas mãos de dirigentes pelegos. Foi preciso tomar os sindicatos, mas não bastava. A obra da barragem de Itaparica iria mexer com gente de vários municípios da Bahia e do Pernambuco407, com gente da caatinga, com gente da beira do rio e com gente das cidades e dos povoados. Precisava que ser uma fala só. Foi aí que nasceu a idéia. Juntar os sindicatos, formar um pólo sindical que comandasse todos os sindicatos da área afetada. Mas a luta ainda não era forte.

405 O então Padre Alcides Modesto que, posteriormente, foi eleito deputado estadual e federal, por algumas legislaturas. 406 Pelego, no caso, é aquele representante que faz jogo contrário aos interesses de seus representados; dirigente sindical conciliador.407 Ao todo, aproximadamente 120 mil pessoas seriam removidas, segundo reportagem do Diário de Pernambuco de 19 de julho de 1981. Aí incluíam-se a totalidade dos habitantes da cidade de Petrolândia, Pernambuco.

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Muita gente continuava sem acreditar no que viria. Também pudera, como imaginar ver aquele mundão de terra debaixo d’água, até terra longe, nas caatingas, e rio acima, bem distante? E como é que se podia imaginar ver tudo acabar assim com o acabamento de tudo, cemitério, igreja, todos os lugares? Lugares bem conhecidos, onde viveram os bisavós, os avós e onde se criaram seus pais? E o povo, como é que iria ficar? Para onde ir? Essa história era sem prumo. Sem prumo? E os tratores cortando o mato? E aqueles homens diferentes cortando o mato, fazendo picada? Será que aquilo tudo era feito apenas para fazer susto? Não! Não podia ser. Nessa história tinha que haver um quê. À medida que o tempo passava, a coisa ia ficando mais verdade. Quando pensa que não, olhe os tratores futucando nas roças do povo! Não tinha jeito. Era verdade. Até o ministro admitia. Mas ainda havia quem duvidasse.

Depois de muita luta, os trabalhadores organizados passaram a fazer suas exigências: terra por terra na beira do lago; indenização das benfeitorias; construção de casas, de acordo com o número de casas de cada comunidade; benefício de escolas, posto médico, igreja, rede de saneamento, eletrificação, estradas, área para feira, área comunitária para criatório, com tamanho de 10 ha por trabalhador; reassentamento de todos, inclusive daqueles que não tinham propriedade de terra408. Os anos 80 já haviam entrado.

A obra avançava dia-a-dia. Para se garantirem sobre o que reivindicavam, os líderes fizeram visitas aos trabalhadores reassentados de Sobradinho. Não gostaram do que viram. Exigiram terra de qualidade, fosse onde fosse. Perceberam um problema: como ficariam os moradores das terras para onde se transfeririam? Exigiram que os atingidos das áreas onde seriam reassentados também fossem beneficiados nas mesmas condições. A vida, se já não era fácil no normal, ia ficando difícil dia-a-dia. Incertezas, inseguranças. Para onde iriam? A Chesf avançava em sua obra, o lago logo ia ser formado pelas águas, e o povo? Aí é que dava. Pressão: assembléias, manifestações, denúncias. Foi que foi, a Chesf apontou áreas, aceitou certas condições. Pedra Branca409. Onde fica?408 Boletim dos Trabalhadores Rurais Atingidos pela barragem de Itaparica, número 8, julho de 81 a junho de 1982.409 A área total do projeto compreende 11.000 ha, sendo que 2.700 ha. para irrigação e 7.300 como área de sequeiro. Cada reassentado teria direito a 10 ha de área de sequeiro e de 1,5 a 6 ha de área para irrigação, a depender da força de trabalho de cada família, na ocasião do

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O povo da Chapada, da Fazenda Árvore estava no seu quieto. De vez em quando botava ouvido no assunto do rádio. Questão de curiosidade. Quem iria imaginar? A conversa começou a chegar. Vão fazer projeto, trazer gente de fora, gente ruim. Ficou com medo, cismado. Será que é mesmo? Em Pedra Branca um dito corria: “Agora vai acabar com o sossego de Pedra Branca com esse cão que vem”. Chegaram as firmas, começaram a fazer levantamento, a tomar apontamento. O povo assistindo sem saber direito. Apareceu uma mocinha410 da igreja, fazendo falação, reunindo, organizando. O povo se chegando, compreendendo. Quando menos se esperava, apareceu também gente da gente que vinha. Veio fazer exame da terra. Olhar o lugar, para fazer decisão. A área foi aprovada. Os de fora procuraram os do lugar. Fazer reunião, conversar, se conhecer, acertar a vida. Aquela desconfiança. Os pratos foram colocados na mesa. Muitos do lugar viram vantagem. Terra irrigada, escola, atendimento médico, eletrificação. Não imaginavam isso. Amoleceram desejando. Teve quem achasse ruim. Os que tinham muita terra, que criavam muito. Esses não ficaram satisfeitos. Os que não tinham nada, só o trabalho dia-a-dia, duvidaram, mas desejaram que fosse.

As empreiteiras fizeram os variantes, começaram a construir as casas. Um bocado de vilazinhas. Setenta, sessenta casas, mais ou menos, em cada uma. O mato foi sendo mudado. Estrada pra todo lugar. Buracos enormes. Os do lugar ficavam imaginando. Os velhos vendo. “É o fim do mundo”. Uns se desesperavam411: “Eu vou sair daqui, nada, pra morrer nas terras alheias! Lá vai morrer todo mundo de sede, vai se acabar todo mundo de fome”.

Nas terras de Rodelas, em trechos de Abaré, o falatório, o aperreio de juízo. “Vai inundar, vai inundar, temos que ir.” O sindicato batendo pé: todo mundo junto, os vizinhos juntos, os parentes juntos, as comunidades perto. Mas as obras para onde iam não estavam prontas. Só as vilazinhas tinham sido feitas. A Chesf dizendo: quem cria só pode levar ou três vacas ou trinta cabeças de criação. E o resto? Tem que vender412. Vender os bichinhos, abandonar as

transplante, e da quantidade de terra que cultivava anteriormente. 410 A mocinha era uma agente pastoral servindo na paróquia de Curaçá e chama-se Ângela.411 Informe do Sr. João Batista, militante sindical e dirigente de uma das cooperativas.412Segundo Assueres da Silva Santos, *1965, dirigente do Pólo Sindical, havia criadores que possuíam um rebanho de até três mil cabeças de animais. É certo que esta era uma situação

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casas, as terras, não ver mais o que se vê. Não poder ser mais do jeito da gente. Viver como, se ainda não havia jeito de trabalho? Lá se vai o sindicato de novo fazer briga. Botou na mesa: dois salários mínimos e meio para cada chefe de família reassentado, enquanto as obras não ficarem completas para o povo trabalhar. Fez pressão. A Chesf não achou outro jeito, concordou. Mas a coisa era de dúvida. Alguns fizeram logo a decisão e exigiram indenização. A Chesf pagou um dinheirinho. Esses agora teriam que se virar sozinhos, onde quisessem, como quisessem. Outros resolveram ficar em algum lugar por perto mesmo e a maioria decidiu que aceitaria se mudar para o projeto Pedra Branca. De qualquer jeito, espatifo de gente.

Os representantes examinaram as vilas. Fizeram distribuição do povo, no conforme das vizinhanças, das proximidades de sangue. Só faltava a mudança, e o dia chegando, chegando. O povo se apertando no coração, sem saber como seria, se desaprumando na cabeça, olhando sem ver. Chegou o dia. O dia durou dois meses. Início do ano de 1988. Choro, choro, abraços, despedidas, saudades das terras, das coisas, da vida que a água ia afogar. As mudanças nos caminhões, a poeira subindo, a gente toda olhando, acenando, sumindo, nos caminhos do adeus

Terra nova, diferente. As casinhas juntas nas vilas. Dezenove vilas413. A ocupação das casas não era de qualquer jeito. Havia a ordem. A das vilas também. Em cada vila, os chegados de sangue ou de vizinhança. Morador em cada casa, conforme a casa anterior414. Já as conheciam no papel. Agora

isolada, mas muitos possuíam chiqueiros com 100 e até 200 cabeças. 30 era um número pequeno demais. Essa criação é solta na área de sequeiro, onde cada um tem direito a 10 ha Entretanto, não há cerca demarcatória entre as áreas individuais. Só é permitido a cada proprietário fazer chiqueiro. Nesse particular foi possível manter a tradição.413Treze dessas vilas foram situadas no município de Curaçá e seis no município de Abaré. Nelas foram reassentados apenas moradores do município de Rodelas, os antigos moradores da área onde o projeto foi estabelecido e moradores da parte da área atingida pelo lago no município baiano de Chorrochó. Foi criada uma estrutura mínima com eletricidade, saneamento, rede de água, educação e assistência médica.414 Casas de nível um, com um quarto; casas de nível dois, com dois quartos e casas de nível três, com três quartos. A distribuição foi feita de acordo com as casas onde moravam anteriormente. Ao todo, segundo o Sr. João Batista, foram construídas 801 casas, correspondentes ao número de famílias reassentadas. Número igual de lotes foram estruturados. Estima-se que, aproximadamente, 3.200 pessoas foram envolvidas diretamente no

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estavam na frente delas, abrindo as portas, se agasalhando naquele desajeito todo, todo mundo murchando pela fome. Uma coisa de espanto: no abrir das portas, cada um se deparou com a fartura de uma cesta básica botada no meio da sala. Ao lado dela uma quentinha para cada membro da família, tantas quantos fossem415. Alento, desalento. Tudo tão diferente. O cansaço, o sono, a dúvida. Depois, os meninos nas ruas, brincando, fazendo festa, admirando o tudo novo. Os velhos desalentados, saudosos. Os do batente, desencontrados, sem saber. E agora? Não tem comércio, não tem rio pertinho, não tem trabalho, não tem, não tem... Recomeço. Teve gente que morreu416: saudade!

As notícias: as águas da represa estão subindo, já inundaram lugar tal. A ilha fulana não existe mais. Tá tudo afundado. O povo, ouvindo, encabulado na contrariação, fazendo cálculo, pensando, pensando. “É! Inundou tudo”.

O mato diferente, sem chocalho tocando. Os tratores se mexendo. Os homens das firmas andando pra cima e pra baixo. Nisso, todo mundo parado esperando a terra. Esperando a terra pronta, conforme acordo assinado. A terra não chega e não chega. Firma começa, firma pára e um lá vem, lá vai sem nunca se acabar. Todo mês o salário do acerto417 e o paradão da vida. As mulheres no de casa; os homens jogando pulha pelos cantos, conversando fiado, jogando baralho, sinuca, bebendo; os meninos, os jovens, na vadiação, procurando vaidade. Caminhar para Cabrobó418, Abaré, Belém, Ibó. Comércio nesses lugares. Assistência médica também. Andança. Os assaltantes nas

reassentamento.415 Esse fato marcou os reassentados causando-lhes a melhor das impressões em relação à Chesf.416 Os reassentados do próprio lugar tiveram poucos traumas, pois a maioria achou-se beneficiada. Há, entretanto, os que se queixam.417 Pelo acordo, a Chesf se comprometeu a pagar a V.M.T. (Verba de Manutenção Temporária), equivalente a dois e meio salários mínimos a cada chefe de família, por mês, até que o projeto estivesse completamente pronto. Na realidade ela só pagou dois salários. Como a maioria absoluta deles viviam exclusivamente da V.M.T., criou-se uma situação de nivelamento social.418 A assistência médica usual era e continua sendo feita pelo município de Cabrobó. Os casos mais complicados são enviados para Petrolina ou para Juazeiro. O transporte para estas duas cidades é feito através do estado de Pernambuco, por via asfaltada. O contato com a sede do município de Curaçá é pequeno, tendo sido iniciado recentemente e é restrito aos dias de feira. O município de Cabrobó foi o que mais se beneficiou com o reassentamento, pois é nele que as transações comerciais de compra e venda são habitualmente realizadas.

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estradas tomando dinheiro, o que encontrassem, assustando. Viagem só em comboio, guardado pela polícia419.

Anos de nada, de vazio, sem ocupação. Quase dez. Só depois desse tempão a Chesf entregou os lotes. Mas a obra, no completo, ainda sem estar pronta. Muitos lotes não prestaram420. Terra rasa, sem condição. Cadê financiamento? E, depois desse tempo, o povo ainda quer trabalhar? Surpresa! Os assentados, em sua maioria, entraram no batente421. Problemas tiveram. O mundo já é outro. O jeito de plantar e o que plantar, também. Não é mais cada qual no seu cada qual. Trabalho coordenado, coisa de decisão em reunião. A água vem de uma vez422. É preciso se ajeitar no horário da molhação, fazer calendário de plantação. Tem queixume. Coco, goiaba, manga, banana. Mais banana que é o carro chefe423. A caatinga verdejou, no seguir do ano inteiro. A terra aguenta? O medo da salinização. Nas chuvas prejuízos, feitos no correr das águas, pelas lagoas nascidas. Cadê drenagem? Uns querem plantar mais. A terra não cabe, a bomba, as subestações não suportam. Problema. Como é que faz?

O povo ficando diferente. O igual se acabando. Gente plantando, gente sem plantar. Gente ganhando, gente perdendo. Gente vindo de fora trabalhar,

419Houve uma série de assaltos aos reassentados quando estes se dirigiam ao município de Cabrobó. Como resolução do problema foi e é necessário que a polícia baiana os escolte até o porto de Pedra Branca e que a polícia pernambucana os escolte até a cidade de Cabrobó. 420 Segundo dirigente do Pólo Sindical, no projeto Pedra Branca, mais ou menos 100 lotes foram descartados por questão de impropriedade do solo e a Chesf quer substituir seu compromisso inicial por indenização. 421 Pelo que ouvi de alguns moradores das Agrovilas, um dos aspectos básicos que motivam a juventude para o trabalho é o consumo. Moto é o objeto mais ambicionado. Também há festas frequentes, com bandas de renome regional. 422 A irrigação é feita por aspersão. A água é bombeada de uma distância de 18 km e a distribuição é feita através de estações de bombeamento. 423 No início os assentados andaram plantando culturas temporárias mas tiveram muitos prejuízos por causa da oscilação de preços. Depois passaram para a fruticultura, onde alguns se consideram bem sucedidos. Segundo dirigente da Cooperativa, hoje (início de 1999) há mais de 1.000 ha plantados com fruteiras. O mesmo dirigente informou que toda atividade agrícola, até agora realizada, dependeu apenas de recursos próprios dos proprietários dos lotes, isso devido a embaraços jurídicos provocados pela Chesf. Só recentemente é que está sendo iniciada a viabilização de empréstimos, junto ao BNB, agência de Salgueiro, PE.

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fazendo meação, se ocupando em serviço de diária424. Interesses diferentes se plantando no povo. Uns esperando pelo salário do governo, outros querendo enricar425. Não é mais igual. “Lugar esquisito. Tem muita gente de fora, mistura muito: meeiros trabalhadores. Tranquilo mesmo era o nosso lugar. A gente não vai voltar mais. Não adianta mais. Lá virou mar, né. A gente vai voltar, mas pra onde? Lá virou água, só é água. Ficou tudo inundado426”. Desando do mundo. Os mais velhos continuam nesse. Para onde? Nada presta, nada presta. Os mais jovens nem ligam, mas querem ir, ir. Melancolia.

Os meninos cresceram. Viraram jovens, adultos. Houve casamentos.

Gente nasceu427. Problema. As vilinhas não aguentam mais casas. O povo aumentando. A estrutura é pequena: energia, saneamento. Uma dificuldade fazer o ajeitamento do povo novo428. E aí? Se não for nos lotes dos pais, trabalhar onde429?

Cuidado para se livrar de gente de fora. Não deixar estranho construir casa. O lugar só pros daqui. Consentimento de abaixo-assinado, assinado pela maioria. É assim.

A Chesf está saindo, terminando o compromisso com o povo. A V.M.T.430 vai acabar. Está correndo no seu descomprometimento. Entregando a

424 Os meeiros e os diaristas não são bem vistos pela população local. Moram em casas ou barracões construídos nos lotes.425 As diferenças sociais começam a aparecer. O medo dos líderes sindicais é que a Chesf entregue títulos de propriedade e os beneficiários possam vender suas terras. Eles temem tanto a concentração da terra nas mãos de alguns, como a infiltração de estranhos na condição de proprietários. Isso, dizem, quebraria o equilíbrio da vida dos moradores.426 Frase de Cida (Maria Aparecida, dona de um restaurante da Agrovila 5), originária do povoado de Penedo, no município de Rodelas.427 A estimativa dos líderes sindicais é que, hoje, mais de 4.000 pessoas vivam no Projeto.428Segundo o informante Assueres, a energia é insuficiente para alimentar as residências atuais, assim como a estrutura de saneamento é muito pequena, incapaz de atender a novas residências.429Esta é uma dificuldade séria. Os jovens constituindo família e a estrutura do projeto não suporta expansão. O sistema de captação de água só é suficiente para alimentar os 2.700 hectares previstos pela Chesf. Ampliá-lo seria muito caro, fora do alcance financeiro dos reassentados. 430Verba de Manutenção Provisória. Pelo que falam os membros do Pólo Sindical, essa verba será eliminada tão logo a Chesf conclua as tarefas delineadas no acordo, o que parece irá

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responsabilidade dos serviços às prefeituras, passando responsabilidades para os reassentados, resolvendo pendências de qualquer jeito431. O governo criou o GERPI432, terminar logo, logo a responsabilidade. Privatizar Itaparica. É preciso entregar o Projeto, cumprir acordo. Entregar os títulos da terra, construir o que falta433, fazer estrada, passar o controle da área irrigada para a CODEVASF434. Pronto! O povo que se vire435. Pagar água, energia, garantir operação e manutenção das bombas, da adutora. Despesa alta. Vai dar certo?

Ampliar a infra-estrutura dá um jeito mais ajeitado para o lugar. As prefeituras podem bancar?

Preocupação: arranjar meio de vida para os jovens. Sonhos com indústria, comércio de cidade, hospital, polícia, serviços, resolver tudo no lugar mesmo, movimentação. Medo: vai chegar gente de fora, gente do lugar vai crescer, gente do lugar vai minguar. Como a vida vai ser?436

acontecer em breve.431Para se ver livre de seus compromissos com os reassentados, a Chesf está querendo substituir a entrega de lotes por terra, para aqueles trabalhadores que não receberam lotes ou para aqueles cujos lotes foram descartados. O Pólo Sindical reage. 432Grupo Executivo para a Conclusão do Projeto de Reassentamento de Populações da Usina Hidrelétrica de Itaparica, em 1997.O bjetivo: entregar logo o projeto; criar as condições para privatização da hidrelétrica. 433 Entre os itens que faltam, encontra-se a construção do centro comercial com mercado, área para feira, casa de hospedagem, centro de saúde, pontos comerciais. Este centro comercial já conta com um prédio escolar e um posto policial. 434 Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco.435 Recentemente foi criada uma cooperativa que tem por intuito a organização da produção e da comercialização. 436Situação da população estudantil em 1999, segundo a Secretaria Municipal de Educação: Educação Infantil com 27 alunos matriculados; Ensino Fundamental com 1.360 matrículas; Magistério com 233 matrículas. Total de matrículas: 1.620.

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OUTROS ESCRITOS

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AS ERAS

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O mundo mar, o mundo pântano. Duzentos milhões de anos... sessenta milhões de anos: mar. Depois pântano. Mastodontes, tatus, preguiças gigantes, ursos, jacarés... os bichos esturrando no mundo desses chãos. Bichos grandes, grandões. Água farta, muito verde o tempo todo. Nuvens de bichos pequenos, cardumes de muitos, de muitos peixes. Outras árvores, outros matos, tudo outro. Catástrofe na terra: os bichos gigantes morrem. Bichos menores sobreviveram. Menores grandes. A natureza se refaz, anda no tempo grande sem hora. Gente índio437 aparecendo, caçando, matando os animais, os animais se matando. Os bichos grandes rareando. Onze mil anos atrás: o tempo muda, o mar se movimenta438. Animais morrem, plantas desaparecem, plantas aparecem. Outro mundo.

A caatinga nascendo, ainda sem ser caatinga. As lagoas secando,

escasseando. O rio. Os bichos mais perto dele. No alto, os brejos pingados da sobra do tempo findo. Serras verdes, muitos animais pequenos. Água pouca. Índios andando, de um lado para outro, andando, sem rumo de parada, brigando com os outros, brigando com os animais. Abrigando-se na furnas, nas locas de pedra, deixando rastro de letras nos paredões das serras, dos serrotes, nas pedras439. O tempo mudando, mudando, a caatinga aparecendo, aparecendo. Mar de seca, ilhas de verde. Disputa entre homens e bichos pelos brejos, pelos caldeirões, pelos olhos d`água. Assim vivendo. O rio, o caminho. Fartura no rio.

437 Em verdade tratava-se de uma gente que antecedeu os índios. Segundo uma hipótese, a presença do homem no Nordeste data de pelo menos 49.000 anos; segundo outra, a presença humana só se verificou a partir de 12.500 anos atrás - Gabriela Martin - In: Pré-História do Nordeste do Brasil. 438 Há cerca de 11.000 anos “ocorreu uma mudança radical no clima da América do Sul e uma elevação de 80 metros no nível do mar, provocando um desequilíbrio ecológico enorme”- In: Super Interessante, nº 8, p. 22.439 Há várias inscrições rupestres nas serras e serrotes do município de Curaçá. Elas podem ser encontradas na serra da Natividade, nas imediações da serra da Canabravinha, no serrote do Velho Chico (onde há a maior variedade), no serrote das Letras (em Poço de Fora e também no poço Grande) e, segundo várias informações, na serra do Icó.

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Os índios zanzando, procurando apoio do bom do mato. Indo, vindo, parando, caminhando. Morrer, morriam. Deixar os urubus, outros animais comerem a carne do morto. Esperar a limpeza dos ossos. Preparar o funeral. Construir aribés. Ossos limpos, cerimônia de funeral: botar os ossos no aribé, enterrá-los perto da morada, dentro da morada. Pronto. Viver outras jornadas. Por que assim com os mortos? Quem sabe! O que queriam dizer com o que escreviam?440

O céu azul, cinzento, estrelado, enluarado, ensolarado, coberta do mundo. O mundo grande sem fim. As águas rolando no descambo da terra, se juntando, formando rio. O rio molhando o chão de seu caminho. Em suas margens o mato. Mato entrelaçado, abrigo dos bichos. Carnaubeiras, juaís, muquéns, ingazeiras, jatobás, calumbis, jenipapeiros... capim-cabeludo, paipedo, marcela... zozós, capim-d`água... defendendo a terra da beira do rio. Os bichos no mato, os bichos do rio: cobras, jacarés, capivaras, passarinhos, preás, caititus, cágados, jabutis, camaleões, teiús, gatos, guarás, raposas... Peixes e peixes, nadando, batendo na água: mandins, mandins-açu, curimatás, dourados, piaus, corvinas, surubins, mantrinchãs, acaris, piranhas, pacus, traíras, caborges, pacomons, sarapós, cananans, pirás, piabas... As palhas das carnaubeiras, no choque com o vento, tocando a música do rio: tratratratratratratra.... e as águas acompanhando, roncando nas pedras, sem parar.

No alto a caatinga fechada, sem caminho, espinhenta, baixa com árvores altas aqui e acolá. Xiquexiques, frades, mandacarus, quipás, apontando espinhos. Moitas de croatás, de caroás, macambiras, cipós se enroscando e o chão queimando de sol. As serras lá longe, se mostrando no azulado das distâncias. Muitos animais, do chão, do ar. Um silêncio sem fim no barulho do mato. Os índios vivendo aí, no seu vagar, guerreando entre si. Disputando os brejos, os caldeirões. A sua paz.

Um outro tipo de gente: português. Português querendo ouro,

procurando mato adentro, entrando, se arranhando no mato fechado,

440 Pelas hipóteses dos estudiosos do assunto, as inscrições rupestres encontradas datam de idades que vão de 3.500 a 9.000 anos atrás.

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espinhento, esgarranchento. Caminho fácil: os riachos. Ouro nas serras, nos serrotes. Caminhada, caminhada. Sede, incerteza, ataque dos índios, o perigo dos bichos, doenças de insetos, fome, desorientação. No aperreio dos mufumbos do mato, fogo nele. E os estalados, os bichos correndo, os passarinhos perdendo seus ninhos, os índios assustados, caatinga queimando441. Caminhada leve no rumo do limpo da queimada. E se iam, se vinham. Deram que deram para pegar índio. Guerra danada. Fazê-los escravos. Levá-los para Salvador, para fazer comércio. Índio morrendo na guerra, índio adoecendo. Desgraça.

Os portugueses trazendo gado, plantando currais, se adonando do mundo, ficando com as terras boas, com os olhos d`água, com os brejos, com os caldeirões. Os índios, as onças, caçando o gado. Os homens dos portugueses reagindo matando onça, guerreando contra índio. Onça se acabando, índio morrendo, fugindo, indo para longe, se escondendo nas serras, na beira do rio. Vozes diferentes, berros diferentes habitando no mato. Os rebanhos crescendo, mais currais, mais currais, os índios indo para mais longe, correndo. Os padres mudando o jeito dos índios, domesticando-os, amansando-os pros portugueses. 441 ...“Ainda em meados deste século, no atestar de velhos habitantes das povoações ribeirinhas do S. Francisco, os exploradores que em 1830 avançaram, a partir da margem esquerda daquele rio, carregando em vasilhas de couro indispensáveis provisões de água, tinham, na frente, alumiando-lhes a rota, abrindo-lhes a estrada e devastando a terra, o mesmo batedor sinistro, o incêndio, o incêndio. Durante meses seguidos viu-se no poente, entrando nas noites dentro, o reflexo rubro das queimadas.

Imaginem-se os resultados de semelhante processo aplicado, sem variantes, no decorrer de séculos...

Previu-os o próprio governo colonial. Desde 1713 sucessivos decretos visaram opor-lhes paradeiros. E ao terminar a seca lendária de 1791-1792, a grande seca, como dizem ainda os velhos sertanejos, que sacrificou todo o norte, da Bahia ao Ceará, o governo da metrópole figura-se tê-la atribuído aos inconvenientes apontados, estabelecendo desde logo, como corretivo único, severa proibição ao corte das florestas.

Esta preocupação dominou-o por muito tempo. Mostram-no-lo as cartas régias de 17 de março de 1796, nomeando um juiz conservador das matas; e a 11 de junho de 1799, decretando que ‘se coiba a indiscreta e desordenada ambição dos habitantes (da Bahia e Pernambuco) que tem assolado a ferro e fogo preciosas matas... que tanto abundavam e já hoje ficam a distâncias consideráveis, etc” – Euclides da Cunha, In: Os Sertões, p. 51, Círculo do Livro.

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Os vaqueiros caçando as índias, amarrando-as, amansando-as para casamento. Índio se deixando, esquecendo o jeito de índio, nos mandos dos portugueses, virando vaqueiro. O povo à toa no mato, se cuidando do jeito que dava: caçando, tirando mel, fazendo alguma plantação, cuidando dos bichos dos outros, se multiplicando.

Os homens caçando, caçando, perseguindo os bichos do mato e os bichos minguando, se embrabecendo, se escondendo. Perseguição. Comércio de penas442, de peles dos bichos443. Os passarinhos perseguidos para comércio444. O machado comendo os paus, os homens tirando mel, matando abelhas445, arrancando o salitre das grutas, tirando casca de angico, arrancando caroá; as casas-de-farinha, os engenhos, as olarias, as caieiras comendo lenha. As cercas devorando as árvores, as serras ficando peladas446. Os caminhões carregando madeira, indo longe, e os machados batendo no mato. Jumento, cabras,

442 O comércio de penas e peles por longa data foi uma fonte de renda para a população 443 João Matos, em 1926, arrolou em seu livro os seguintes animais pertencentes à fauna no município: onça pintada, tigre, onça de lombo preto, sussuarana, gato-do-mato, raposa, saguins, lontra, quatis, saruê, guaxinin, cangabá, queixada, cangambá, capivara, caititu, veado, cotia, mocó, preá, tamanduá, tatu, tatu-bola, peba, cágado, jaboti, jacaré, camaleão, teiú, ema, seriema, codorniz, anun, alma-de-gato, mãe-da-lua, garça, frango d`água, gaivota, saracura, craúna, socó, jaburú, jacurutu, massarico, mergulhão, colheira, pato, marreca, lavadeira, maracanã, papagaio, picapau, bem-te-vi, carcará, urubu, gavião, cauan, coruja, corujão, caboré, sabiá, sofrê, cardeal, canário, pega, xuréo, coleira, cheque, azulão, caboclinho, papa-capim, joão-de-barro, joão-de-couro, cancão, jesus-meu-deus, vinvim, tentém, colibri, carriças, etc. 444 Os canários talvez tenham sido os mais atingidos. Note-se que no final da década de 1960 eles andavam aos bandos, voando pelos riachos e em quase todas as grandes árvores se arranchava um casal. A sua valorização no mercado e a facilidade com que eram pegos os fez praticamente extintos, não só no município como em toda a região. 445 As abelhas em extinção: mandassaia, arapuá, manduri. A invasão das abelhas chamadas de africanas e italianas em muito contribuiu para o sumiço das abelhas mandassaias. Por outro lado, o processo que os moradores da região utilizavam para retirar o mel era, como ainda o é, extremamente predatório, não havendo preocupação em reconstituir o abrigo das abelhas. Casos há em que se utiliza o expediente de tocar fogo nas abelhas como forma de afugentá-las.446 Após os anos 60, quando começou a haver financiamento para a construção de cercas e também com a irrigação, especialmente com o cultivo da uva, houve um verdadeiro ataque às árvores de porte como angico, aroeira, baraúna, carnaubeiras, imbuzeiros, juazeiros, etc. A irrigação efetuou um duplo ataque: derrubadas e consumo de madeira para cerca e para o estaqueamento dos parreirais, sendo que este requer madeira de porte em grande quantidade por hectare.

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impedindo o mato de crescer, roendo os paus, matando o mato. O gado pastando no mesmo lugar, pisando, pisando, comendo. Os homens cortando xiquexique, mandacaru, queimando as moitas de macambira para alimentação dos bichos. As chuvas rareando, os brejos morrendo, os olhos d`água minguando, os veios d`água secando447. O mato rareado, cortado de estradas, de caminhos. Os passarinhos, as caças sem proteção de esconderijo. A irrigação devastando o mato, envenenando a terra. A terra, nua, se empobrecendo, se esburacando, as chuvas carregando tudo pro rio, o rio entupindo, limpo nas beiras. Os bichos se acabando, o mato do mato ficando pouco. Caçadores vindo de perto, de longe, matando tudo, tudo, com armas potentes, com armadilhas, com cachorros treinados, sem respeito de tempo nem de lugar.

Jacarés extintos, cadê as lontras? Mergulhões, galinhas d`água, garças, socós, capivaras, guarás, sem lugar para se asilar, sumindo. Sobradinho mexeu nas águas448. Capim d`água, zozó, capim cabeludo sumiram. Os barrancos quebrando, o rio se enlarguecendo, bancos de areia apontando.

O mato gemendo, olhando.

Os caminhos das águas cavados pela correnteza, mostrando as pedras do fundo do chão. Duas serras se vendo, apreciando o mundo de suas voltas. A caatinga seca embaixo delas. No chão, ossos. Ossos de animais gigantes, rolados pelo pisar dos bichos, dos homens. Ossos arrancados da terra pelo movimento das águas. O silêncio do mato e uma voz que se levanta: “Quantos anos faz que o outro mundo se acabou?”449.

447 Exemplo disso é a fazenda Laminha, que possui esse nome por ter sido brejo. Segundo todas as pessoas entrevistadas, as chuvas começaram a rarear a partir da década de 1930. Para que se tenha idéia, em um passado de 25 anos atrás, os mata-pastos cresciam bastante, chegando a encobrir um homem alto. Esse mesmo mato, nos tempos atuais, quando muito atinge os 50 centímetros. 448 Antes da barragem de Sobradinho, o rio começava a encher a partir do mês de novembro e permanecia com as águas altas até março, mais ou menos, período em que o povo utilizava o molhado das margens para plantar.449 Frase pronunciada pelo Sr. João Fininho, mais ou menos 75 anos, no dia 21.11.1998, quando estávamos a observar ossadas de animais pré-históricos, nas imediações da fazenda Cabaceira. Uma semana depois ele se suicidou. Queixava-se de solidão.

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Ruínas de cemitério sumindo defronte a um terreiro. Pedaços de cruz comida pelo tempo, arrodiada por pedras encobertas por uma moita de xiquexique Uma mulher acocorada, com os olhos cansados, falando com lerdeza: "A gente que está enterrada aí é tudo do outro século. Sei quem são, não"450.

A ararinha-azul sozinha, testemunhando a vida de outros tempos, assistindo a devastação. Canto sem resposta, vôo no perigo das espingardas. Na solidão do ser só, se acasalou com arara de outra espécie. Não reproduz, só grita, um grito de despedida. Voa pelos céus enquanto há vida.

Um homem pensativo, olhando para frente, olhando para trás sentencia:

"A vida da gente aqui na terra é só a emoção de uma notícia"451.

450 Frase de Dona Dionísia Gomes dos Santos, *1912, moradora da Fazenda Brejo451 Frase de Hugo França, mais ou menos 60 anos.

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ÍNDIOS*

* Índios que se denominam TUMBALALÁS. Estão em processo de renascimento e habitam nos limites entre os municípios de Curaçá e Abaré. Praticam seus rituais em Missão Velha e em São Miguel, ambas as localidades bem próximas entre si, nas imediações de Pambu (Abaré), mas já dentro do município de Curaçá. Cada uma dessas localidades possui um pajé que se encarrega do trabalho interno da aldeia, das crenças e comanda os rituais. O cacique é eleito pelos membros da aldeia e cuida das relações externas e problemas de domínio administrativo.

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“E tu quebra teu cocoÉ decomer de cabocloÔi! Caboclo gentio não pisa no chãoPenera no ar que nem gavião.”

O deus do índio, Papai do Ar. Quando eles ouviam um trovão, quando viam um relâmpago, se escondiam debaixo das folhas, debaixo dos paus, com temor. Quando viam aquela luz grande ficavam com medo. Aqueles mais entendidos perguntavam: “Como é que nós vamos escapar?” Alguém, com confiança, respondia: “Os poderes de Papai do Ar são grandes”. Os mais inocentes gritavam: “...Mas o mato ainda é maior”. É. Eram todos inocentes, selvagens. Os índios viviam sem ressurreição. Viviam por conta de Deus. Não faltava o tatu, o peba, o tamanduá... bichos do mato pra comer. Não faltava a abelha. Deus botava tudo no mundo pra eles. A roupa era de casca de pau, só se vestiam da cintura para baixo... faziam aquelas roupas de croá452, de embira, penachos para cobrir a cabeça, se curavam com remédio de pau. Se um ficasse doente, outro que tivesse experiência assentava o ouvido no chão e ficava sabendo onde estava o pau que servia de remédio para aquela doença. Viviam nesse modo aí. Tinham a união deles lá no mato. Eram felizes. Mais felizes do que hoje, porque hoje a tibuta453 é grande.

A cruz é do regime dos índios. O índio já tinha seu cruzeirinho no mato para trabalhar. Os padres, os portugueses chegaram depois e assentaram um cruzeiro. Era Dom Manoel. Ele pensava que estivesse em uma ilha e deu o nome de Ilha da Velha Cruz. Os índios começaram a matar, a comer carne de português. Os portugueses voltaram para Portugal. Quando retornaram, trouxeram fumo, fitas verdes, vermelhas, de toda qualidade, aqueles laços, aquelas belezas e colocaram esses acessórios no cruzeiro. Botavam essas coisas 452 Caroá.453 Tibuta (labuta).

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para os índios se abestalharem e irem pegar. Os índios não podiam pegar. Tinham vontade, mas refugavam. Os portugueses resolveram trazer cachaça. Colocaram-na no cruzeiro. No que os índios foram pegar as coisas, beber a cachaça, abraçaram o cruzeiro e se engancharam. Cada um que se enganchava ia sendo batizado, ia sendo amansado. Os padres enganaram os índios. Eles queriam amansar os índios para eles ficarem amansados na cruz, para ficarem com a religião. A religião do índio era a inocência. Começaram a amansar os índios pelo cruzeiro. Pegaram, batizaram, amansaram. Isso foi bom para os índios. Eles ganharam a ressurreição. Antes, faziam tudo no mundo. Comiam cobra, calango, gente... O jesuíta domesticou, deu a doutrina. Houve muita traição contra eles. Os padres maltratavam os índios porque achavam que eles estavam em outro sentido. Depois se recompreenderam, hoje estão ajudando o índio.

Santo Antônio do Pambu é do índio. Ele se apareceu pra nós. É nosso padroeiro. Ele era muito rico. Tinha ouro, tinha terras que o povo fazia doações. Os padres se aproveitaram, venderam as coisas do santo, do índio e ficou assim.

A gente sabe disso porque ouviu o pai contar. O pai ouviu do avô, o avô do bisavô e assim veio trazendo, trazendo. Os nossos bisavós eram brabos do mato. Caboclos véios da jurema. Viviam encobrindo as partes de baixo do corpo com embira, com croá. Foram pegos a dente de cachorro. No mato ainda há lugar onde os índios dançavam o toré. Os terreiros dos antigos. Nesses lugares o mato não nasce, 'tá tudo limpinho, parecendo coisa de mistério. Coisa de caboclo tem força.

Quando os índios eram só sangue puro, brabio, a cor deles era morena com os cabelos bons. Depois breou com português, com africano, mudou a qualidade. Agora tem índio de toda qualidade. O sangue se esparramou nas misturas. Tem até índio de olho azul. Quem vê diz que não é, mas é. Tem sangue.

O povo não sabia que Pambu era aldeia. Um pajé da nação truká, da ilha da Assunção, recebeu um encanto, um espírito de antigo que já morreu. Eles se apresentam no corpo dos vivos que tenham sangue de índio para fazer

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revelações. O encanto declarou que Pambu era aldeia. Exigiu que o povo de Pambu começasse a dançar o toré. Só tinha toré na ilha da Assunção. Ficava penoso ir lá duas vezes na semana, dançar a noite toda e no outro dia ir trabalhar na roça. Os velhos resolveram assentar um cruzeiro em São Miguel, depois em Missão Velha. O cruzeirinho de São Miguel vem dos velhos454.

Muita gente tinha medo de dançar, de ir ver o toré. Pensava que era coisa que botasse espírito... coisa ruim. Depois é que viu que esse negócio de coisa ruim é de sessão, de xangô. Nesse lugares o sujeito vai tirar um espírito e entra outro. No toré, não. É uma dança. Só encostam os espíritos da descendência455. Quem possui sangue índio não tem jeito, tem que dançar toré. Se não tiver força pra dançar, pode ficar sentado, assistindo. Senão pode até morrer, abrir correndo na caatinga, sem rumo. Os espíritos da descendência chamam. Adoecem o sujeito e ele só se cura se for ao toré. Todo mundo precisa que trabalhar pela descendência dos antigos. Sem a descendência o índio não é nada. Não precisa chamar ninguém. Des'tá que quem tiver sangue índio vem, puxa pra aldeia. Está brolhando, é rama nova, o que surge do que secou. Isso é que nem pé de pau. Se cortar, quando menos se espera a rama brolha. As aldeias são assim.

Os antigos chegam nos trabalhos, no toré, se enramam. Cantam, ensinam as coisa pra gente. Quando um índio é enramado, é tomado pelo encanto. Recebe o manifesto para ensinar remédio, para rezar, para orientar alguma coisa. Tem gente que só fica radiado456, adormecido sem sair de si, com aquela força. Não há trabalho para prejudicar. O espírito do gentio é brabo. Gentio é das matas. Usa arco e flecha. É desconfiado, brabio. A gente tem que trabalhar direito. Ajeitar os encantos, senão eles vão embora. O espírito que foi encantado nas águas é mais manso. Se o sujeito não trabalhar direitinho para eles, o maltrato vem.

454 Missão Velha e São Miguel não ficam a mais de 500 metros de Pambu. Aí foi o local dos primeiros aldeamentos indígenas e local da primeira residência do padre. O toré voltou a ser dançado aí, há aproximadamente 50 anos. 455 No caso da utilização do termo, aqui descendência vai significar ascendência, ancestralidade.456 Adormecido mas consciente.

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A gente aprende as coisas nos trabalhos do toré. Às vezes quando a gente está dormindo os velhos da descendência vem, falam as coisas, nos levam para as aldeias velhas. Mostram os trabalhos, os campos, as danças, ensinam as linhas, mostram os encantos, aquelas coisas bonitas, as detias457. Depois a gente volta e vai trabalhar como eles ensinaram. Tudo direitinho. Quem faz anarquia é porque não sabe.

A linguagem do índio nós não sabemos mais. A linguagem que dá para entender, a gente entende. A que não dá para entender...

A casa, o terreiro. No terreiro um cruzeiro. Os índios chegando, pelas

estradas, caminhando, de bicicleta. “Boa noite pra todos! Bença padim, bença tio”... Um banco na frente do cruzeiro, na outra ponta. Os índios se ajeitando, colocando pujá nas cabeças, vestindo kataió, balançando os maracás, assobio de apitos, chamando os encantos. O pajé caminhando pelo terreiro com o koaki na boca, paramentado, assoprando fumaça nos presentes, retirando as impurezas. A vasilha com o ajuká458 colocada na frente do banco. Os maracás chiando nas mãos, o pajé se sentando no banco, os índios se ajeitando em fila nas laterais deixando um vazio entre o banco e o cruzeiro, de frente uns para os outros e todos se vendo. Os maracás marcando, os pés compassando e...

“Cadê meu maracá Que eu quero trabalhar Eu quero trabalhar Na aldeia tumbalalá Êina, êina, êina, ôa”. ...

457 Detia: costumes do índio.458 Toré: ritual indígena, festejo pelas coisas boas, cerimônia em homenagem aos ancestrais. Ajuká: bebida feita com a casca da raiz de jurema de caboclo (a jurema sem espinho) e preparada pelo pajé ou pelos mais antigos que conhecem os segredos. Incenso: preparado com fumo, alecrim de caboclo, alfazema e outras plantas do mato. Koaki: um tipo de cachimbo que enchem com os preparos para gerar o incenso. Kataió: veste em formato de saiote feito de fibra de caroá. Pujá: ornamento feito de caroá que colocam na cabeça, em formato de gorro. Borduna: instrumento de guerra. Linha: as cantigas. Jurema de caboclo: árvore sagrada.

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“A cachaça dos caboclos é a jurema É a jurema É a jurema É a jurema É a jurema meus caboclos É a jurema

O meu penacho É feito de pena de ema E minha cama é enrolada de jurema

É a jurema”...

O cantorio das linhas, no indo e vindo do cruzeiro para o banco, do banco

para o cruzeiro, fazendo curvas. Os da frente segurando bordunas, homens, mulheres, meninos, todo mundo cantando, todos descalços pisando no chão com força, marcando o ritmo da dança. Os mais velhos, sem força, sentados, dos lados assistindo, participando com os olhos, com os ouvidos, com os sentidos. Beber ajuká. A força da natureza se mostrando, os encantados arrodeiando, se aproximando, o zumbido do apito chamando. Uma linha, outra linha... até o dia amanhecer459.459 Os índios tumbalalás estão lutando pelo reconhecimento da FUNAI. Reivindicam a devolução e regularização das terras, assistência médica, condições para irrigarem as terras.Este trabalho foi composto a partir das informações de Cícero Marinheiro, dos pajés Antônio Lourenço e Luiz Vieira Fatum, dos Srs. Aprígio Fatum, Luiz Alberto Maciel (este da nação truká da ilha de Assunção que fica em frente a Missão Velha, a fazenda São Migual e Pambu), Manoel dos Santos, João Cardoso de Almeida, José Plínio e da Sra. Maria Alves de Carvalho ( Maria de Pedim). Missão Velha, São Miguel e Pambu situam-se às margens do rio S. Francisco, 120 km abaixo de Curaçá e foi aí o núcleo inicial de toda a colonização regional.

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VAQUEIROS

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O VERDE

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Os cachorros latindo no mato. Gritos nos espaços do tempo: “Ôoo... êee... xi cabra!” Na soleira da porteira, por algum lugar do terreiro, da malhada, os meninos, as mulheres chamando o gado. As vacas respondendo com os berros e os bezerros fazendo coro. Os chocalhos das cabras, das vacas, dos outros animais, se misturando no ar com os berros, com os gritos, com o canto dos pássaros. Barulho de tudo no mundo. As galinhas procurando lugar para se ajeitarem no galinheiro. A lenha para a fogueira da noite sendo providenciada, arrumada no terreiro. Os animais chegando e a gente de casa enchiqueirando as cabras, botando os bezerros para mamar, depois apartando-os. A noite vinha trazendo seu truvo, soltando as almas, dando abrigo às cobras, abrindo caminho para o caminhado livre dos bichos do mato. Os vaqueiros voltando, carregando o cheiro do mato, do suor de seus corpos, dos cavalos, descendo das montarias, arrancando os gibões, se sentando em qualquer canto, esticando os pés para os meninos puxarem as perneiras. O dasarreio dos animais, o levá-los para o peador, trabalho de menino. Os cachorros se deitando, soltando fadiga pela boca. O mundo invadido pela noite. A janta: imbuzada, feijão, coalhada, carne assada, carne cozida, “o nome do Pai, a Ave Maria”. A fogueira, as labaredas tremendo. O povo preparando agasalho, as histórias saindo, os meninos curiando imaginação, os cabritos, os borregos enjeitados procurando encosto em gente. O canto dos sapos, o barulho dos grilos. O sono, barulho espaçado de chocalhos, de berros, silêncio de falas. A barra do dia clareando, os galos cantando, os passarinhos acordando, o gado, a criação se agitando. Vozes de gente, o dia. Tirar leite, comer zupi460, soltar as cabras, as vacas, levar os bezerros no comedor, pegar os animais no peador, dar de comer aos enjeitados. Tomar café: leite, pirão-de-leite, carne assada com pirão de leite, queijo, requeijão, coalhada, coalhada escorrida, rapadura, café preto, café com farinha. Trabalho de sofrimento: labuta na roça, pastorar ovelha. Trabalho de diversão, de alegria: dar campo nos bichos. Coisa de gente sem futuro: caçar, tirar mel, que homem sério só faz isso dia de domingo. As mulheres carregando água, lavando roupa, preparando comida, fazendo requeijão, cuidando dos porcos, dos enjeitados, das galinhas, ajudando na roça. Nas roças, melancia, melão, abóbora, feijão, milho.

460 Farinha com leite retirado diretamente do peito da vaca. Habitualmente comia-se o zupi utilizando-se casca de caatingueira para servir como colher.

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As emas roncando, os tatus, os pebas fuçando o chão, cavando buracos, as seriemas, os canários, os pássaros cantando, os patos procurando as lagoas, as abelhas com muito mel, os mocós pulando nas pedras, as codornas dando susto no povo, nos animais, as raposas se escondendo, os cangambás soltando seu fedor. Os pés de imbuzeiros carregados, os meninos tirando favela.

Tempo de parição das cabras, agonia de tanto cabrito berrando, futucando nas pernas da gente, querendo mamar. As moscas botando varejeiras e o cuidado no umbigo dos bichos. Os carcarás espiando os bichinhos, se preparando para hora de descuido arrancar a língua, comer os olhos, beliscar na bunda deles. Cuidado! E os ajuntamentos? Os vaqueiros batendo o campo, chegando no chiqueiro com os magotes de ovelhas. As ovelhas berrando, se agoniando no chiqueiro, os carneiros brigando, os borregos procurando as mães, as ovelhas procurando os filhos. A poeira subindo no ar, os bichos e os homens se sufocando. Separar as ovelhas no conforme dos sinais nas orelhas, formar os magotes, entregar ao vaqueiro do lugar dos chiqueiros delas. Os berros tristes, méee, cobrindo o mundo, se indo no vento461.

461 Nos anos 1930 e 1931, abateu-se uma grande seca que reduziu bastante o rebanho. De 1932 a 1950, quase não houve seca. O rebanho mais que quadruplicou. Os ajuntamentos então se intensificaram uma vez que as ovelhas caminhavam em pasto livre. Nesses ajuntamentos, reuniam-se até 50 vaqueiros. O dono da fazenda, onde o ajuntamento era realizado, tinha por obrigação oferecer o almoço e a janta para os vaqueiros Em compensação, as criações de orelha inteira que fossem encontradas no meio do rebanho ficavam para ele. Outro aspecto é que quase não havia doenças no rebanho e quando havia morrinha (mortandade dos animais por doença) esta era localizada. A partir dos anos 50, quando começou a haver o trânsito de animais provenientes de outras regiões, as doenças alastraram-se, fundamentalmente nos anos 60, provocando um baque no volume de animais. Febre aftosa e verme foram as doenças que mais atingiram os rebanhos, principalmente pela falta de conhecimento para combatê-las. Nesses anos também as chuvas começaram a ser mais raras, sucedendo-se os períodos de seca, os gatos do mato passaram a atacar mais os borregos e cabritos. Some-se a isso o fato do povo passar a deslocar-se para a rua em busca de escola e da realização de outras aspirações, aumentando o nível de consumo e a redução da força de trabalho no mato. Também os laços sociais que regulavam este tipo de atividade extensiva foram quebrados e o roubo de animais apresentou-se como problema. Note-se que as ovelhas, pelo seu instinto de andança, acabaram por ser um dos principais fatores de integração dos caatingueiros na medida em que estes tinham que se deslocar em busca delas.

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O FIM DO VERDE

O pasto murchando, as lagoas secando, as folhas das árvores amarelando, caindo, a plantação virando bagaço. Vigiar as lagoas, ver se não tem bicho atolado. Tempo de fazer partilha, de ferrar os bezerros, de assinar os borregos, os cabritos. Os bichos berrando de dor.

Os campos no mato para juntar a criação, o gado. Os vaqueiros aprumados, encourados, prontos para o enfrentamento contra os bois: guerra na caatinga. Os cavalos ariscos, assoprando pelas ventas, os cachorros agoniados. Faca, serrote, guiada, facão, corda, chocalho, peia, buzo462. Caminho do mato. O gado na paz do pasto, gordo, longe de idéia de curral. Vaqueiro chegando, avistando, conversando combinação, a teima para ver quem vai - os cavalos se agitando. A definição. Espora, chicote no cavalo. O gado assombrado, disparando. O cavalo atrás. O vaqueiro sabe o bicho que quer. Bota o cavalo nele. A caatinga quebrando, os paus passando, roçando, açoitando o cavalo, o vaqueiro. As moitas de xiquexique, o cavalo saltando os pés de imbuzeiro, de imburana, o boi por baixo, o cavalo enfiado atrás, com o vaqueiro derriado, fazendo parelha com o pescoço dele. Deus tome conta! Não sabe como o pau está, por onde o boi vai, não pode pensar, não liga para nada, fica cego, não mede perigo, só quer pegar o bicho. Os paus pegando nas costas, nos braços, nas pernas. O cavalo se espetando nos espinhos. O vaqueiro se benzeu, Deus acompanha. O cavalo chegando, o boi se embalando, o rabo, o rabo, o cavalo não chega, o boi vira. Vira nos peitos do cavalo. O vaqueiro salta da sela, corre para cima do boi, se abraça com ele, mete os peitos na cabeça do bicho, agarra os chifres, empurra para baixo, deita o boi no muque. Os outros vaqueiros chegam, passam o rabo por dentro das pernas dele, peiam-no. Limpar ligeiro o mato debaixo de um pau. Amarrar a rês. Deixá-la amarrada, para perder o enfezo. O arraso fica para trás, o aceiro de pau quebrado. O cavalo fungando, cansado, surrado, com a barriga esporada, o boi enfezado, o vaqueiro arranhado, suado. Vaqueiro vivo é abençoado de Deus. “Iquiô”, os gritos de alegria, os reconhecimentos, os comentários. Assunto para muito tempo. 462 Guiada: instrumento semelhante a uma lança com um ferrão na ponta, que os vaqueiros utilizam para futucar alguma rês amoitada ou para dela se defenderem; buzo: instrumento feito com chifre de gado que os vaqueiros utilizam para buzinar, sinalizando a posição em que se encontram no mato ou para darem aviso de alguma coisa.

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Preparação para outra pegada. No outro dia vir apanhar o bicho. A rês descansada, acostumada na corda. Botar careta, cambão, tocá-la na direção do curral. Diploma de vaqueirice. Os meninos vão saber, vão se embalar nos sonhos de virar homem logo. Pegar boi no mato. Coitados dos bezerros, nas brincadeiras de aprendição.

Aprender a pegar boi tomando surra da caatinga. Até ficar prático, toma muito açoite de pau! Não aprende. É disposição. Quem não tem medo de morrer pode ser vaqueiro. Vaqueiro bom mesmo, pega o boi com a rama na boca. Sem tempo do bicho virar, derrubando-o pelo rabo. É preciso disposição, cavalo bom, prática de caatinga. Correr de dia, de noite, na hora que for de precisão. Homem do mato sem rastro de mato no corpo? Isso é lá homem!

Vender os bois erados463, as vacas velhas. O rólo de porteira464, as conversas de preço se acertando e os bichos no curral sem imaginação de saber dos tratados de seus destinos. Os meninos no pé da porteira, sentindo sensação de tristeza, se despedindo sem palavras, lembrando do tempo dos bichos bezerros. Negociação fechada, os vaqueiros se posicionando e os animais saindo, sendo levados465. Aboios e o berro saudoso de despedida do gado. As boiadas de bois nos caminhos. Caminhos longos, cheios de dureza, tirados a pé que animal de montaria dava despesa. Os tangedores dos lados, atrás das boiadas, fazendo encaminhamento na alpercata, carregando a roupa, a rede pendurada nas costas, apanhando chuva, apanhando sol, todo dia466. O gado se vendo saindo do pasto, se apavorando, querendo se desencaminhar, em um sem

463 O ciclo de uma rês é o seguinte: primeiro ano, bezerro; segundo ano, garrote; terceiro ano novilhote; quarto ano boi de ano. De seis anos em diante, boi erado. Alguns criadores deixavam bois completarem até 12 anos. Já a nível da criação miúda, dizia-se que estava erada ou de chifre virado, a partir de 4 anos. 464 Rólo de porteira: essa a designação que era utilizada no processo de negociação do gado.465 Os bois eram conduzidos até Rio Branco, atual Arco Verde-PE. Esta cidade fica a aproximadamente 500 km de Curaçá. Segundo os tropeiros, a distância era de 95 léguas (570 km). Ali existia uma feira de gado. De Curaçá a Rio Branco a viagem durava entre 18 e 22 dias, segundo o Sr. Sindolfo Cursino Rosa, *1919.466 Segundo os informantes, no encaminhamento da boiada, de comum, trabalhavam cinco pessoas. Um ia na guia, mostrando o caminho ao gado, dois iam fazendo costaneira (caminhando ao lado do gado) e dois atrás, sendo que, dos que iam atrás, um era o encarregado da boiada.

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entender de nada. Os cavalos, os tangedores arrodiando467. O vaqueiro da fazenda, botado na frente, indo choroso, alumiando caminho, latumiando com a voz engasgada em esforço de aboiar, pro gado, seu conhecido, se acalentar. Nas lonjuras do pasto, no seu voltar, o vaqueiro se despedindo com o olho dos bichos de sua guarda. Desandava no caminho da fazenda, escutando as pisadas do cavalo na solidão do mato, e se ia ouvindo o barulho das almas dos berros do gado. No longe do pasto, aboio, aboio pro gado ficar calmo, estradeiro. Aqui... ali... uma rês, parando com mansidão, virando a cabeça para trás, tristonha, soltando um berro comprido... comprido...: “monooooooooooooooo...”, que ia até lá dentro, no fundo. O tangedor remoendo remorso, ouvindo, sem querer ver, sabendo o desejo do dito daquele berro. Respondia:

“Ô, ô, ô, gado manso.A vida de tangedorÉ como vida de teiúDe dia pra tanger boiDe noite pra feijão cruÊ, ê ê, minha boiadaÔ...”468.

E continuava no seu levar, empurrando o gado no caminho do desterro, para fora das terras de sua pátria. O gado estranhando o chão, ficando alerta, assustado, nas areias de Limão Brabo469.

Comer!? No andar da boiada, farinha com rapadura. Vinte e um dias de viagens, na poeira do rastro do gado. De noite o descanso. Os tropeiros tiravam a roupa do corpo, molhada das invernadas. Botavam-na para secar. Apanhavam outra na mochila para passar a noite que, de dia, a outra já estava seca470.

467 Os cavalos só eram utilizados até o gado sair do pasto. 468 Verso reproduzido pelo Sr. Bina (Bernardino Rodrigues dos Santos, *1922), que ganhou parte de sua vida tangendo boi de Curaçá para Rio Branco. 469 Limão Brabo é uma localidade que era cortada pela estrada das boiadas. Os tangedores já sabiam que, ao passar por esse local, a possibilidade da boiada estourar era grande.470 Segundo Elias Nunes da Silva, *1938, duas vezes tangedor nesse trajeto, o comum era levarem apenas duas mudas de roupa, que não eram lavadas durante todo o período de duração do trabalho.

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Cozinhar feijão, fazer pirão, no cochilo do sono. Às vezes assar carne, “se tinha”. Em Rio Branco, o gado entregue. Missão cumprida. Os bichos presos no curral, na espera do trem para seguir viagem para Recife. A paga: cinco mil réis por dia nesse serviço471. Só se ganhava na ida, que a volta era por conta do tangedor.

Boiadas de criação miúda, para Vila Nova da Rainha472, para Juazeiro, para Itabaiana e para Carira, em Sergipe473. Dificuldade de água, comer só nas paradas. Rapadura, farinha. Quando dava, um taco de carne assada. “A gente não comia, lambia474”. Assim...

A SECA

O mato seco, a falta d`água. Puxar água de cacimba, cortar, sapecar xique-xique, mandacaru, queimar caroá, tirar rama de juazeiro, de quixabeira. Os bichos emagrecendo, dando morrinha475, berrando fraco, crescendo a barriga. O sol quente, o céu limpo, a terra rachando, as cigarras fazendo zimmmmmm. Comida sem fartura. Feijão com toucinho, farinha, rapadura, com sorte carne seca, resto do verde: requeijão, manteiga. A feira magra. Cacimba secando, tirar terra de cacimba. O terreiro sem vida, as pessoas desvanecidas, olhando para o tempo. No mato os cangaços dos bichos. Na porteira da fonte a criação pedindo clemência por água. No mato andando de um lugar para outro procurando comida. Seca, tristeza de vaqueiro.

471 Segundo o Sr. Donizete Nunes Franco, por volta de 1932, um trabalhador que trabalhasse por dia, de terça-feira a sábado, ganhava 10 mil réis e esse dinheiro dava para fazer uma feira com os seguintes itens: uma rapadura, um prato de farinha, um quilo de carne de bode, um quilo de carne de boi, uma garrafa de querosene e uma caixa de fósforo. Pronto. Estava a feira feita. Nessas condições, tanger boi era um bom negócio. 472 Atual Senhor do Bonfim.473 Segundo o Sr. Eduardo Pereira Martins, que foi negociante de criação nesses lugares, para Juazeiro faziam a viagem em quatro, cinco dias, e para Sergipe levavam 14, 15 dias, através do Raso da Catarina. Para Paulo Afonso, gastavam até 8 dias. As boiadas eram compostas de, em média, 100 cabeças de criação.474 Expressão do Sr. Sindolfo Cursino Rosa.475 Morrinha é a mortandade dos animais por qualquer doença.

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VAQUEIROS SEM PASTO

As chuvas rareando no correr dos anos. Seca, seca... Os mata-pastos sem futuro de crescimento, os paus sendo acabados, os mandacarus no toco, os bichos dando morrinha. As cercas aumentando, o gadinho comendo ração, sendo carregado de caminhonete, de caminhão. Os jegues sobrando, os cavalos sem serventia no trabalho. Dar carreira em quê? Vaqueiro? “Embrulho de couro, que quase não tem mais. O mundo véio um buraco e o povo caindo dentro”476. Tudo comprado, tudo para vender. Boi erado477, bode de chifre virado? Os bichinhos não podem nem crescer. No nascer, o dono olhando, montando planos para vendição. Os vaqueiros velhos no mato, sozinhos, conversando com os borregos enjeitados, conversando para si mesmos, espantando a solidão, ouvindo os toques dos chocalhos, o barulho do vento topando nas galhas dos paus. Os filhos longe, nos ajeitamentos das coisas da rua, dos lugares com muita gente. A gente se amoitando nos vilarejos do mato. O mato dos novos virando rua, com o moderno das coisas necessárias de outros regimentos de vida, nas delicadezas de conforto de rua no mato, se mirando nas ruas de outros mundos. Quem ainda pode ter vaqueiro em uma fazenda? O ganho de partilha não dá sustento à vida, à lei. Os velhos vivendo de aposentadoria, os jovens se apoiando nisso. Agora é tudo no salário, com conversa de Justiça do Trabalho. Chiqueirinhos pequenos, pequenos, com uns bichinhos berrando, perdidos na malhada. O povo sem confiança, saltando nas criações, no gado alheio. Todo mundo andando de carro, de moto, os caminhos se tapando com o mato.

Os terreiros suspirando sem força, aqui e ali, desenterrando as histórias idas. Cozinho, Narciso. Cozinho das atrapalhadas de muitas conversas, de muitos feitos de gente que andava louquejando478. Narciso, vaqueiro bom de pega. Pequenininho, um tabaqueiro. Não caía de animal, por brabo que fosse.

476 Frase do Sr. Sindolfo Rosa ao se referir à gente que veste couro nas festas, para se apresentar, sem, entretanto, nunca ter dado um campo na caatinga.477 Boi erado. Boi de mais de 12 anos. Deixavam ficar erado pelo prazer, pelo orgulho. O sujeito dizia: “Eu só vendo por tanto.” Se não achasse comprador, o boi ia ficando. Informação de Luiz Lopes Filhos (Luizinho).

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Sabia fazer encanto, era ideista479. Berrava com o buzo e o gado vinha ter em seus pés. Aboiozinho vagaroso... No cavalo dele ninguém mexia. Os animais que montava eram todos desmantelados, com mão torta, mancando, magros, com defeitos. Só usava careta de tamanduá. Todo mundo gostava dele. Nunca deu carreira perdida no mato, fosse de dia, fosse de noite. No espinar do gado ele gritava: “Com as fé de Deus, Nossa Senhora, Virgem Maria”... Desabava pau adentro. No pegar do rabo do boi gritava de novo: “Deita boi!”480 Ir ver o rastro da corrida? De jeito nenhum, que não se rasteja carreira, para não dar azar. O boi brabo podia estar aí, cavucando chão, fungando, remetendo. Ele chegava e batia com os pés no bicho. O boi atendia. Ia pro mato, juntava égua, vaca, ovelha, jegue, cabra e botava tudo na mesma direção do caminho que queria. Os bichos vinham todos sem fazer queixa, direitinho por onde ele indicasse. Não tinha história de hora para correr, que não dava carreira perdida... Narciso, não! Ele com um companheiro atrás de um boi em cima da serra da Canabrava. O dia todo e nada. Botaram tocaia na beira de um poço, na espera do boi. De noite ele falou para o companheiro: “Eu agora vou dar uma volta por ali... ver se encontro o boi”. O colega ficou. Daí a pouco a caatinga quebrando. O companheiro montou ligeiro. Saiu na zoada dos paus, para ajudar. Quando viu, o que viu? O boi na carreira, com duas luzes, uma em cada ponta. Uma delas clareando adiante, a outra clareando para trás. O companheiro se assombrou, voltou. Os meninos ouvindo as histórias, forçando a imaginação481. 478 Louquejando: frase pronunciada pelo Sr. João Fininho, na fazenda Cabaceiras, ao se referir a Cozinho: “Quando Cozinho ainda andava louquejando por aí”... 479 Botador de encanto, ideista, mandingueiro: qualidade que lhe atribuíam pelo fato de dominar os animais com a maior facilidade, por brabos que fossem. Havia a crença de que algumas pessoas conseguiam lançar idéias na cabeça dos animais – os mandingueiros - e fazer com que eles pensassem como gente. Este poder também, acreditava-se, podia ser utilizado para dominá-los.480 As informações sobre Narciso foram dadas por Luiz Lopes (Luizinho) e por Jorge do Sítio Pau de Colher. Narciso faleceu em São Paulo, onde fora trabalhar como operário.481 Além dos nomes já citados, foram informantes também Nezinho da Salobra (Manoel Lima dos Santos. *1924, Sr. Augusto, *1920, (da Serra da Natividade), Sr. Damázio Francisco César, * 1927, (Mundo Novo), Sr. Elias Nunes da Silva, *1938 , Sr. Bina, *1922, (Bernardino Rodrigues dos Santos), Sr. Bráulio Braulino da Conceição, *1918. Todos os informantes foram ou ainda estão na briquitação de vaqueiro.

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GRUTA DE PATAMUTÉ

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A serra, lá com seus matos, com suas pedras. Mato fechado. Dificuldade para andar. O homem subindo nela, quebrando pau, procurando madeira para fazer uma linha para telhado de casa. Andando, andando, andando. Um cachorrinho em suas pisadas, acompanhando o dono. Com pouco lá se foi ele mato adentro. O latido. O homem foi no seu rumo. Deu com um descambado de pedra. Pedra talhada. Os cipós se enroscando desde cima e o cachorro latindo. O homem foi entrando no mato enroscado, desconfiando de como aquilo podia ser, se na frente tinha era um paredão. Foi e foi cortando mato com um facão. Quando pensou que não, avistou um buracão danado, descido para baixo, bem largo. O coração disparou: “É uma toca!”. Correu, correu. Foi se ter na casa do coronel, homem que mandava em tudo do lugar. “Nesse tempo era assim. O povo era besta e tudo o que via contava para um poderoso”482. O coronel se encafifou. Mandou fazer verificação do dito do homem. O achado foi confirmado. O homem que fez o achado morreu, logo, logo, sem prazo de tempo para apreciação do que encontrara. Gruta é obra misteriosa do divino, obra do começo dos tempos. Aquele que desvenda os mistérios do divino morre!

A notícia se espalhou, todo mundo querendo ver aquela coisa de santidade. Um padre do tempo antigo foi lá. Fez profecia: “ Não há gente no mundo que encha essa gruta. Se um dia ela ficar cheia, sua boca se fechará e todos que estiverem dentro dela morrerão”. É mistério.

Um outro padre andava pregando em santas missões. Ouviu falar da gruta. Quis ver. Pasmou de admiração. Acabou encerrando a santa missão dentro dela. Lá fincou um cruzeiro. Mais um padre chegou no lugar. Caiu no encanto da gruta. Botou moradia dentro, dormindo numa caminha isidora. Fez pregação, providenciou imagem de santo, deu jeito de construir altar. O povo se pegou na fé: rezando, colocando ex-votos, enfeitando o altar, acendendo 482 O fato ocorreu no final do século XIX e o coronel em apreço era o Sr. Galdino Matos (1840-1930), então chefe político de Patamuté. A frase entre aspas é do Sr. Lídio Santos, 1906, natural de Patamuté.

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velas, reverenciando o cruzeiro, apreciando com espanto. A imaginação vendo inscrições naturais, “feitas divinamente no começo dos tempos”: rastro de uma vaca, a pegada de uma onça, figura de santo. E tinha a pedra que chorava gotas de água bem brancas, água milagrosa. O povo aparando-a nos dedos para se benzer. Uma “mulher da vida” se utilizou dessa água em seu benzimento. Por causa disso, como dizem, a água sumiu.

O padre, morador da gruta, foi firmando devoção no povo. Devoção no Sagrado Coração de Jesus483. A gruta ganhando fama, os milagres se espalhando, com as conversas indo longe. Nasceu romaria com data de acontecimento no dia 1º de novembro. O povo indo, indo. Gente de longe, de

483 “Em 1903, um erudito pregador, o missionário católico, Monsenhor Pedro Cavalcante Rocha, visitando esta gruta, achou-a tão bela que nela terminou a Santa Missão que, nesta data, pregava em Patamuté, conduzindo para ali muitos milhares de fiéis e colocando no interior da gruta um grande Cruzeiro, que é muito venerado, até na distância de mais de cincoenta léguas, por grande número de crentes, que vão oferecer suas preces com devoção e respeito. E, em 1905, o Padre Manuel Félix de Moura, então vigário desta freguezia, para ali transferiu a sua residência, onde, implantou a devoção do Sagrado Coração de Jesus, colocou uma belíssima imagem, oferecida pelos habitantes de Patamuté, em um lindo altar de pedras transparentes.”(João Matos, in: Descripção Histórica e Geográfica do Município de Curaçá, 1926, p. 67.

Após a santa missão de 1903, a gruta ganhou fama e transformou-se em ponto de romaria, acontecendo a principal delas no dia 1º de novembro, que arrebanha gente de toda a redondeza. Esta romaria foi iniciada pelo padre Manuel Félix, a partir de 1905. Ele morou dentro da gruta por algum tempo e depois construiu uma casinha no local que hoje serve de acampamento para os romeiros.

O acesso à gruta é um pouco sacrificante. Situa-se a 66 km de Curaçá e a 18 km da sede do distrito de Patamuté. A estrada é de terra e, em determinados trechos, a poeira chega a incomodar, mas nada que desanime a curiosidade do visitante. O percurso do estacionamento até a sua entrada pode ser feito por dois caminhos e é de aproximadamente 400 metros de subida em caminho pedregoso, necessariamente feito a pé. Vencida esta dificuldade, um pequeno descambado guia o visitante à obra da natureza: a Gruta de Patamuté. Mede 120 metros de cumprimento por 44 de largura e 22 de altura. De sua cúpula abobada, pendem estalactites.

A Prefeitura Municipal de Curaçá construiu, em 1998, 10 banheiros, dois reservatórios de água e, especificamente nos dias de romaria, instala um grupo gerador para iluminação, dando ao acampamento um ar de vila. Também abriu um segundo caminho que dá acesso à gruta, onde, em um de seus trechos, colocou uma estátua de padre Cícero em tamanho natural.

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mais de 50 léguas. Outra romaria no dia 1º de dezembro para gente de mais perto.

Sem romaria a gruta fica sozinha. Existe gente que faz estrago. Escreve nomes nas paredes, achando bonito, se marcando para os santos, mas enfeia. Tem gente que quebra as pedras, acabando com a obra dos tempos. A pedra da água não escapou.

As caminhonetes, os caminhões, os ônibus levantando poeira, zoando no subir da serra. Dia 1º de novembro. Os romeiros chegando, chegando, se agasalhando debaixo dos paus, no relento dos limpos no mato, em uns ranchos que há. As farofas tiradas das mochilas. “Se não for com sacrifício não é romaria”. As barracas funcionando sem fechar, vendendo comida, cachaça. O povo cantando, tocando, músicas vindas dos rádios dos carros. O motor da luz no tututu, a noite toda. Confusão de zoada. O povo para cima e para baixo passeando, caminhando, querendo ver. Gente de todos os cantos da redondeza. O mato virando rua, com as coisas da rua. No tarde da noite, os magotes de gente fazendo ruma, no sono. Fogueiras acesas. Gente tomando palestra, fazendo roda de conversa. Não tem atrapalho de desentendimento.

Madrugada. O povo se levantando, caminhando na direção do mato. Com pouco, começa a movimentação. Os romeiros subindo a serra na procura da obra divina. Cumprir pagamento de promessa, venerar o sagrado. Logo, logo, ainda no cedo do dia a gruta repleta de gente. Foguetes pipocando do lado de fora, sem dar sossego aos ouvidos. Romeiros entrando, romeiros saindo, num frivio danado. Lá dentro cada um no seu jeito, rezando, pagando promessas, apreciando o monumento. O cruzeiro arrodeado de gente ajoelhada, orando, acendendo vela. Velas acesas no altar, nas pedras, nas paredes de pedra. Aquela alumiação. Ex-votos sendo colocados dentro da gruta. Coisa de todo jeito. Uma banda de pífano tocando, cobrindo pagamento de promessa; uma Roda de São Gonçalo se arma: violão, pandeiro, cavaquinho, cantorias. O altar cheio. Poses para fotografia. Gente arrodeando o salão, na imitação de procissão. Não tem ensaio. É cada um em seu propósito de fé. E tudo é afinado em harmonia. Festa do povo. O padre chegando para fazer celebração. Vai espantando o povo do altar, tomando conta de tudo. Paramenta-se e faz a organização do ambiente a seu modo. O povo obedecendo, ato de respeito, de fé na missa. Uns perto, outros longe. Muitos alheados, contemplando o

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monumento, se pondo em fé por conta própria. Outros indiferentes, assuntando conversa, olhando o movimento. O cheiro de vela queimada tomando conta de tudo. A fumaça enuviando o espaço. O calor se acende. A fé se firma. O corpo fica leve.

À tarde, os romeiros se preparam para avolta. Amontoam-se nos transportes para se irem. Tomam as estradas, na esperança do ano que vem.

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VOZES DO POVO

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O DILÚVIO

No outro século não existia serra. Só o liso, o plano. Veio o dilúvio. A água inundou tudo. Tudo ficou mar, mar sem fim sem nada de fora. Os viventes: peixes e Noé com seus bichos no barco grande. A água começou a correr, a correr. Foi cavando o chão. Noé no meio da água, sem rumo de saber para onde. Ele soltava os passarinhos. Os passarinhos andavam o dia todo, depois voltavam para a arca. A água descendo, formando os oceanos. Um dia ele soltou uma pombinha. Ela voou o dia todo e à noite voltou com os pés sujos de lama. Noé disse: “Ói! Já tem terra por perto”. Foi andando até quando avistou um montinho de terra. Era a serra do Araripe, só com o topetinho de fora. Ele encostou a arca nela - ainda deve ter os restos dela por lá. As águas baixando. Uns lugares altos, outros lugares baixos. Foram aparecendo as serras, os serrotes, os altos, os baixos, os riachos, as cavernas, os rios. No descer apressado das águas, baleias, outros peixes do mar ficaram no seco. Não tiveram tempo. Morreram sem água, deixando os cangaços aí, nos tabuleiros do mundo.

“Esse mundo vai se acabar pelo fogo. Ói aí o bagaço, pra queimar o mundo da gente. O fogo vai derreter tudo... esses morros, vão ficar tudo liso que nem um tábua. Vai tudo ficar que nem era no outro século. Essas destruíções já vêm lá do alto. Está escrito nas bíblias”484.

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484 Versão contada pelo Sr. Aprígio José de Almeida, do sítio Salgueiro (São Bento), e pelo Sr. Augusto Pires, do sítio Papagaio, na costada da Serra da Natividade

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O BURACO DOS CABOCLOS

Dizem que os caboclos brabos fundaram o expulso485 lá. Eles que fizeram o buraco. Buracão sem fim. Um dia apareceu um homem na casa de seu Edmundo e perguntou: “O senhor conhece um lugar denominado pelo nome de Buraco dos Caboclos?”. Seu Mundinho foi mostrar. Quando chegaram lá, o homem arrodeou o buraco, meteu a mão no embornal e puxou um livro. Ajoelhou-se e começou a ler. Quando terminou, fechou o livro e disse: “Este buraco aqui tem dois canais. Um vai diretamente à serra Grande de Araripe e o outro vai sair em Paulo Afonso. Quem quiser pode entrar, mas ele é perigoso. Se aprofundar bastante, o sujeito está sujeito a não voltar”. Seu Edmundo fez um pavio de cera e entrou. A uma certa altura, começou a encontrar uns sapos e uma resfrialdade. Voltou para contar a história. Lá foram descobertos uns ossos maciços. Esses ossos são do tempo do dilúvio de Noé. Encostou ali uma baleia e lá ela morreu. Isso diziam os mais velhos486.

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A CAIPORA

É a dona do mato. Quando ela não quer, ninguém caça nada. Ela esconde as caças. Os cachorros saem acuando, acuando, aqui, ali, acolá. O caçador indo no rumo do latido deles. Quando ele pensa que não está variado. Isso quando ela está boa. Quando não, a caipora mete o chicote nos cachorros e eles correm para debaixo das pernas do caçador, com o rabo entre as pernas, ganindo, ganindo, amedrontados, se mijando. Só se ouve é o quebrar de pau que ela faz. Caçador se defende, querendo ficar em paz com ela. Deixa fumo em algum lugar do mato. Ela sossega.

.................................................................................................485 No caso, significa refúgio. 486 O Buraco dos Caboclos localiza-se no pé da Serra da Natividade e foi entupido porque nele caíam muitos animais. Essa história nos foi contada pelo Sr. Aprígio José de Almeida, do sítio Salgueiro, nas proximidade do São Bento.

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LAMPIÃO

Um forró. O zabumba zoando no bumbumbum, a sanfona gemendo no forofonfon. A turma no furdunço da dança. Animação. Lampião chegou com a cabruera, cercou a casa, pegou os animais dos festeiros. Entrou na casa e disse: “Daqui ninguém sai. Quero todo mundo dançando, e não quero ver ninguém com tristeza!” Amanheceu o dia, o sol ficou alto e o povo foi pedindo: “Nóis precisa ir embora seu Lampião, as cabras estão presas, senão vão morrer tudo”. Lampião respondendo: “Não morre nada! Daqui não sai ninguém!” Deu fumo, deu cigarro, deu bebida e gritava direto: “Quero alegria!”487.

TERRENO DOS CEMITÉRIOS

“A Bíblia diz que Judas vendeu Jesus aos egípcios por cinco dinheiros. Então não quiseram botar o dinheiro no cofre. Aí resolveram comprar terreno para fazer cemitério para enterrar os mortos.”488

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OS ENCANTOS DAS SERRAS

As serras lá, se mostrando de todo lugar, chamando os olhos, se misteriando, mudando de cor, guardando, protegendo encantos encantados. As furnas, as grutas chamando a atenção, se carregando de mistério, mostrando perigo, se guardando nos segredos, mergulhadas na escuridão. O sonho dos 487 História contada pelo Sr. Augusto Pires, da fazenda Papagaio.488 Dito do Sr. José Plínio de Santana, 1916, morador do Pambu.

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homens: ouro. As serras o esconde. O ouro caminhando, mudando de direção. Um dia aqui, outro dia ali e vai. É vivo. Tem vida. Muda de lugar, se encanta. As serras se enchem de assombração. Fecham-se de mato, alimentam suas vidas. Armam-se com armadilhas: os buracos, os talhados, o tudo parecido delas ariando os homens. E acompanha os homens em cada gesto, em cada passada, em cada respiração, com seus milhões de olhos, olhando de todos os lados, de cima, de baixo, onde ele estiver. Os bichos vão se abrigar lá, fazer seus ninhos, se proteger, protegê-las. O vento forte, o frio, o calor, o silêncio, a água que elas escondem. De seus cabeços, nas alturas, o mundo embaixo, se amiudando, indo longe até o encontro do cabeço de outra serra e o espaço se prolonga, no acompanhar das sombras das nuvens, das manchas do mato, no encontro da terra com o céu e tudo se fecha em torno delas. O centro do mundo. Mostra, mas não se mostra e seus encantos se encantam489.

A NOVILHA ENCANTADA

Um dia, andava um caçador, caçando na serra da Natividade. Ao meio dia, ele avistou uma novilha amarela que nem gema de ovo, em pé, debaixo de uma árvore. O caçador se aproximou devagarinho e pegou no rabo dela. Ela saiu de encontro a uma pedra bem grande. A pedra se abriu e a novilha foi correndo na direção dela. O caçador continuou grudado no rabo dela, sendo arrastado até quando chegou no pé da pedra. Nessa hora ele soltou o rabo da novilha. A pedra se fechou e ela sumiu490.

O GALO DE OURO

489 A serra da Borracha, sobre quem bem recai o escrito, é a maior e a que ainda está bastante preservada, não obstante venha sendo depredada. A marca da passagem do homem nela se apresenta nitidamente pela existências das ruínas de uma oficina de beneficiamento de salitre, construída no final do século XVIII, pela existência de coivaras e pelos rastros de caçadores. Mesmo assim, ainda se afirma como um tipo de berçário para os animais do mato.490 História contada pelo Sr. Aprígio José de Almeida.

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Nem adiantava esperar que ele não tinha hora certa para aparecer. Nem todo mundo ouvia seu canto. Algumas pessoas sim, outras não, que nem tudo é para todo cristão. Cantava nos cabeços altos da serra. Vivia sozinho. Era um galo de ouro. Um dia, uma feiticeira ouviu seu canto e fez conta dos cantos que ele cantou. Desse dia em diante ele calou e nuca mais deu notícia. Foi na serra da Borracha.

O CARNEIRINHO DE OURO

Só aparece à noite. Sozinho, tocando seu sino, andando de uma ponta da serra para a outra, pulando de cabeço em cabeço e fica nesse vai-e-vem, berrando. Sai de serra em serra, de uma para outra sem descanso. Fica bem visível no clareado de seu ouro. Defende-se dos curiosos. Nem todos podem vê-lo e ouvi-lo. Quando uma pessoa quer vê-lo, aí é que não o vê mesmo491.

O VENTO

Não se sabe quando. Quando menos se espera se ouve o pipocar. É um vento com jeito de fim de mundo. Fica parecendo que está arrastando, virando tudo. Quando é no outro dia que a gente vai olhar, tudo normal. E se a gente estiver perto dele, se treme, se arrepia de medo492.

491 O carneiro de ouro percorre todas as serras, segundo os moradores do mato.492 Esse fenômeno ocorre na serra da Borracha, segundo os moradores de suas adjacências.

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SÃO GONÇALO*

* Embora São Gonçalo seja um único santo, existem três imagens diferentes: São Gonçalo do Amarante, São Gonçalo do Poço e São Gonçalo da Viola. Os dois primeiros são os mais comemorados em Curaçá. Não obstante as diferentes imagens, o ritual e os cânticos são os mesmos. Foram informantes exclusivos o Sr. Paulo César Dias Torre, *1963, e a Sra. Otila dos Santos Silva, ambos participantes habituais do culto a São Gonçalo.

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O povo da casa nas agonias dos preparativos para o acontecimento da Roda de São Gonçalo. No lado direito da porta de entrada da casa, o altar pronto para receber o santo493. A mesinha do altar forrada com toalha branca, o lugar para as velas já no jeito, umas florzinhas enfeitando o altar. Um banquinho do lado esquerdo do altar para o finado sentar, assistir as rodas494. Os fogos bem guardados, no contado necessário da promessa do finado495. Na cozinha, o fogo, as panelas, mulheres apressadas mexendo nos trens. O santo chegando no conforto do tratamento que lhe deram, nos agasalhos da viagem. O povo da casa vem ver, colocá-lo no trono do altar, se benzer, acender as velas. O povo também chegando, os guias, os contraguias, as cantoras496, os convidados. O entra-e-sai na casa, os comentários, as atenções das coisas da fé. O dono da promessa, ansioso por deixar os infortúnios do sofrimento, cuidadoso, nos conformes das exigências para o pagamento da dívida, observando a maneira de estar, os sentimentos de cada um497. Começar as 493 Nas casas do mato normalmente o povo constrói uma latada para agasalhar o santo. Na cidade providenciam algo como um nicho. Segundo a tradição, o altar só pode ser construído do lado direito da porta da casa. O santo, via de regra, é pedido emprestado. Aquele que possua uma imagem de São Gonçalo não pode se recusar a cedê-la, embora possa impor exigências quanto aos cuidados com a imagem. 494 Nesse banco ninguém pode se sentar enquanto as rodas estiverem em andamento. Segundo se afirma, é sentado nele que o finado assiste as rodas e, às vezes, quando há algum erro, ele baixa em algum dos presentes e indica o tipo de reparação a ser feita. 495 São Gonçalo não perdoa. Aquele que não pagar em vida promessa por graça alcançada, após a morte, cai em sofrimento até que a promessa seja paga. Para tal, baixa em alguma pessoa ou vem em sonho e faz pedido para que realizem por ele o pagamento da promessa devida. Enquanto isso não é feito, o morto não se vê livre dos sofrimentos no outro mundo. “Quem deve tem que pagar”. Faz-se promessa para que seja alcançada qualquer graça: a aquisição de uma casa, o tratamento de alguma doença, para chover... 496 Os guias, os contraguias e as cantoras, no passado, faziam o trabalho puramente por devoção. Nos dias atuais está havendo um certa tendência à profissionalização. Mesmo quando estes não cobram por seus trabalhos, o dono das rodas lhes oferece gratificação financeira. Alguns deles passam grande parte de seu tempo ocupados nessa atividade. 497 No caso de roda de finado, há uma série de exigências a serem observadas. Os participantes podem usar roupas de algodão, o calçado precisa ser de couro, as mulheres precisam vestir roupas de manga comprida, não podem usar batom e nem estar com as unhas pintadas. Não é

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rodas. O povo se preparando. Os guias organizado, acertando os violões; os contraguias se preparando nos pandeiros para auxílio dos guias, as cantoras ajeitando o repertório, os convidados se enfileirando atrás498. Duas filas para os entrançados da dança499. Todo mundo atento nos modos dos jeitos dos dançadores. Evitar perder o trabalho, garantir a libertação da alma do finado, para ela não ficar penando.

O povo nos ajeitados certos da dança, sem nenhuma incorreção. Os guias pinicando os violões, os contraguias marcando com os pandeiros, as cantoras soltando a voz com todo mundo parado dos pés.

“Nas horas de Deus amém Puxa a roda por dianteNas horas de Deus amém Puxa a roda por diantePai e Filho, Espírito Santo Vamos ver a luz do diaPai e Filho, Espírito Santo. Vamos ver a luz do dia. (coro) Ora viva e arriviva... Ora viva e arriviva Que seremos ajudadosOra viva e arriviva Que seremos ajudadosViva São Gonçalo, viva Da sempre Virgem MariaViva São Gonçalo, viva. Da sempre Virgem Maria”...

(as cantoras)

São as primeiras cantigas

permitido comércio e nem é tolerado nenhum tipo de brincadeira. Caso ocorra uma infração, o finado dirá, ou imediatamente ou posteriormente, que a roda não teve validade. Segundo as pessoas que cultivam São Gonçalo, o finado assiste todo o desenrolar da roda. 498 A roda é dançada com, no mínimo,16 pessoas. O máximo é o que o terreiro comportar. Dois guias, um em cada fila, atrás deles os contraguias e atrás destes as cantoras. Depois deles as mulheres e, atrás delas, no final da fila, os homens. Segundo alguns guias, os homens devem seguir atrás para que sejam evitadas pilhérias ou brincadeiras que prejudiquem a roda. Quanto maior for o número de participantes, maior será o tempo gasto para a conclusão de uma jornada. Uma jornada dançada com 16 pessoas, em média, dura oito horas. 499 O número de rodas a serem dançadas é chamada de jornada. Cada grupo de 12 rodas é chamado de jornada. O mínimo permitido para ser dançado é de meia jornada (6 rodas) e não há máximo. Entretanto, só podem ser múltiplo de seis, sendo raras as rodas de três jornadas.

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São as primeiras cantigasQue eu a São Gonçalo cantoQue eu a São Gonçalo canto.

“Ora viva e arriviva”...

Os dançarinos fazendo os entrançados, indo e voltando, reverenciando o santo, dando voltas uns em torno dos outros, trocando pé, se topando nos ombros, o violão falando, o pandeiro batendo, dança vai, dança vem. Foguetes pipocando a cada final de roda dançada. No lá vai, no lá vai, o defunto baixando em gente, mandando fazer conserto. O povo obedecendo no mais da atenção. Cuidado com cachorro, com gato, com menino cortando a roda. Nada, nada podendo passar entre os dançadores e o altar. Se passar, roda desfeita, trabalho perdido, começar tudo de novo. O povo fica dos lados cuidando500.

Na metade das rodas puxar o canto lê, lê, lê na continuação de tudo igual.

500 Segundo Paulo César, em uma das rodas um cachorro atravessou entre o altar e os dançadores. A roda parou imediatamente e uma turma saiu correndo atrás do cachorro até ser pego e, amarrado por uma corda, colocaram-no para retornar por onde havia passado.

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“Ô lê, lê, lê, doce canto Ô lê, lê, lê... Ô lê, lê, lê, doce canto A parreira tem mil galhasMinha gente viva ao santo A parreira tem mil galhasMinha gente viva ao santo Cada galha sua florSão Gonçalo do Amarante Cada galha sua florSão Gonçalo do AmaranteObrou um milagre ontem Ô lê, lê, lê...Obrou um milagre ontem Meu divino São GonçaloÔ lê, lê, lê... Meu divino São Gonçalo Essa vai no seu louvorO menino pediu água Essa vai no seu louvor”O menino pediu água Fez do seu peito uma fonte (...)Fez do seu peito uma fonte

O finado assistindo tudo, cuidando pelo livramento dos sofrimentos. Assiste aos trabalhos até o fim. No final baixando para dizer se pagou, se não pagou. As cantoras tirando os últimos versos. Reza cantada da Salve Rainha. O arrodeio da casa e a entrada porta adentro com o santo na frente. Promessa paga, sossego da alma501.

501 As rodas dos vivos seguem os mesmos rituais, sem os protocolos das rodas de finados.

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APÊNDICE

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PAMBU

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O nome sabe-se que veio dos índios, mas o que significa? A notícia que temos é que os primeiros padres e portugueses que andaram na região, nos idos dos tempos, já falavam no Pambu502. Nesse lugar, por volta de l660, os portugueses construíram uma capela toda de taipa, onde reuniam-se “pelo Natal e na Páscoa, vindos de trinta léguas e mais ao redor, para aí cumprirem as suas devoções”, como deixou escrito o jesuíta de nome Martinho de Nantes, que chegou a Pambu em l67l, com o intuito de aldear índios nessa região. Ele disse também que essa capela era o abrigo de um capelão que fazia assistência à região, percorrendo “para mais de cem léguas para cima e trinta para baixo, a confessar os habitantes, (...) dizendo missa de dez em dez léguas...” 503

Tão logo chegou ao Pambu, o frei Nantes construiu uma casa e com barro, madeira e cobertura de palha, uma igreja, onde instalou um pequeno sino. Para isso utilizou o trabalho de índios e a ajuda de um fazendeiro que lhe ofereceu um boi em troca de algumas missas504. Aí o frei fundou sua base para o trabalho de aldeamento, de catequese dos índios e de assistência religiosa aos fazendeiros e vaqueiros que já habitavam na região. Bem defronte do lugar onde o frei se estabelecera, em uma ilha, “havia uma bonita aldeia de cariris”505.

Os fazendeiros e os vaqueiros se ocupavam com o trabalho de criação de gado e habitavam, uns longe dos outros, espalhados nos ermos das caatingas, vivendo em solidão. Os índios, fustigados pelos criadores, situavam suas aldeias principalmente às margens do rio e nas ilhas, sobrevivendo de pequenos cultivos, da caça e da pesca. Com a chegada do religioso, passaram a

502 Segundo João Matos, In: Descripção Histórica e Geográphica do Município de Curaçá, p. 113, significa sair ou chegar à planície. Pelas condições, do relevo do lugar faz sentido, pois que Pambu é circundado por pequenas ondulações que avançam até a margem do rio.503 Nantes, Frei Martinho de . Relação de uma Missão no Rio São Francisco. São Paulo, Ed. Brasiliana, l979, p. 35.504 Idem, p. 38. 505 Idem, p. 36.

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visitar Pambu com mais frequência, uns por curiosidade, outros em busca dos serviços religiosos e alguns que para lá acorriam, vez ou outra, fugindo da solidão dos ermos. Pouco a pouco, o lugar foi sendo transformado em ponto de confluência de portugueses, mestiços e índios em domesticação. Assim, surge o primeiro núcleo não exclusivamente indígena de toda a região do submédio São Francisco: a missão do Pambu.

Pambu tinha poucos moradores. Seu povo morador era formado quase só por índios que o frei havia aldeado. O religioso é que saía em suas andanças de missão, percorrendo as ilhas e fazendas, nas dificuldades da correnteza das águas e das caatingas sem caminhos bons. Mas, nas ocasiões especiais, os moradores da região para lá se encaminhavam para a comemoração dos dias santos e para fazerem adoração às santidades. O dia da solenidade da morte de Cristo era o de maior comparecimento.

Nos anos primeiros da existência de Pambu, o que havia de importância para o povo era apenas a capela e o padre. Não havia outra coisa. O frei ensinava catecismo, a escrita e a leitura aos indiozinhos. Os índios grandes ficavam curiando aquela coisa que não entendiam, desconfiados. As missas que o frei rezava chamavam a atenção da gente. Não havia outro lugar onde coisa semelhante acontecesse em toda a região. Desse jeito, de pouco em pouco, a missão foi ficando importante, criou fama e mereceu atenção política.

Os índios e os criadores não se uniam. Viviam em arrelia por causa de terra, por causa da criação que os índios, vez por outra caçavam, e por outras coisas. O frei Nantes se intrometia, aconselhando, resolvendo. Muitas vezes não conseguia apaziguar. A convivência entre índios, criadores e o frei era cheia de conflitos. O frei entrava em discórdia com os índios por causa da reação destes às normas que ele impunha; os criadores se lançavam contra os índios, matando-os, corrompendo suas mulheres, invadindo suas terras e destruindo suas plantações; os índios flechavam o criatório dos criadores, argumentando que tinham direito por serem donos da terra e, ora por outra, enraivecidos, matavam a quem encontrassem nos currais (fazenda, sítio); os criadores - que eram portugueses - julgando-se superiores e donos de tudo, botavam-se contra o frei Nantes, acusando-o de colocar-se a favor dos índios. Outras vezes os criadores astuciavam intrigas e jogavam os índios contra o frei

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e o frei, que queria ser meio termo, tomava pancada de um lado e do outro, ora se posicionando contra os criadores, ora se colocando contra os índios.

O trabalho do frei tinha três objetivos: converter os índios ao cristianismo, torná-los submissos ao rei, ensinando-os a conviver com os portugueses e reforçar nos portugueses e mestiços a fé e os costumes cristãos.

No final do século XVII, após muitos conflitos entre o jesuíta e os fazendeiros, tendo estes à frente o chefe militar e político de toda a região e dono da Casa da Torre, o segundo Francisco Dias D`Avila, a situação do frei na região ficou complicada, com muitas ameaças e até tentativas de assassinato. Também o rei de Portugal não estava vendo com bons olhos a presença de capuchinhos franceses no Brasil e tomou medidas limitando o trabalho que desenvolviam. Em consequência desses aspectos, o frei foi forçado a se retirar. Vieram substituí-lo padres da Ordem de Santa Teresa, que permaneceram por curtíssimo período em Pambu e posteriormente, os missionários franciscanos, no início do século XVIII.

Pelo que sabemos, depois que o frei foi forçado a ir embora, a missão do Pambu ficou um período sem assistência religiosa e os padres da Ordem de Santa Teresa, que o substituíram, não davam a importância necessária ao trabalho missionário. O rei de Portugal, informado sobre isso por Garcia D`Avila Pereira, na época mandatário da Casa da Torre, que possuía o domínio de quase todo território regional, mandou substituí-los pelos capuchinhos franciscanos506.

Pambu foi a segunda localidade, na região do médio São Francisco, onde os franciscanos instalaram missão. A primeira foi em Saí507, em l697, e a terceira no rio Salitre, em l703. O trabalho deles em Pambu iniciou-se em l702508. Ao chegarem, nomearam logo um padroeiro para o lugar. Escolheram

506 Documentos Históricos, Vol. XXXIV, p.310 e 3ll. In: Relação de Uma Missão no Rio São Francisco, p. 122. 507 Missão instalada na área hoje compreendida pelo município de Senhor do Bonfim.508 Maria do Carmo Tavares de Miranda, In: Os Franciscanos e a Formação do Brasil, p. l72, Recife, l969.

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Nossa Senhora da Conceição e rebatizaram o aldeamento indígena com o nome de Aldeia de Nossa Senhora da Conceição do Pambu509.

Ao contrário dos jesuítas, que se preocupavam também com as questões materiais e sociais dos índios, os capuchinhos franciscanos limitavam suas preocupações com as questões espirituais. A purificação e a salvação das almas de seus assistidos fossem eles índios ou portugueses. Aos portugueses pregavam a caridade e a observância aos valores morais; aos índios e mestiços pregavam a obediência e a submissão e a ambos a necessidade da veneração. Não deixaram registros sobre conflitos. Será que eles deixaram de existir?

A instalação da missão dos franciscanos impulsionou a importância do Pambu como centro povoador da região. Já em l7l4 é elevado à condição paróquia (distrito eclesiástico) e, no civil, em l724, foi elevado à condição de distrito da Vila de Jacobina, sob a jurisdição da Ouvidoria de Sergipe, ficando assim até l742. Nessa época é criada a Ouvidoria de Jacobina e Pambu a ela fica vinculado, sendo promovido em l743 à condição de julgado (território de atuação de um juiz)510.

A ascendência do Pambu, em tão pouco tempo, mostra bem o prestígio que gozou. Isso foi possível devido à inexistência de outras aglomerações na área em que estava situado e pelo prestígio da missão que atraía a atenção da população e das autoridades. Contando com capela, com padre, com juiz e com um santo milagroso, assumia notoriedade em imensas áreas das caatingas.

Durante todo o século XVIII, Pambu foi, pelo que aparece nos registros, o centro povoador mais importante do médio São Francisco. Nos primeiros anos do século XIX, Sento Sé começa a disputar-lhe o prestígio, ao sediar comarca com jurisdição sobre o seu território. Juazeiro, que também era sede de missão desde 1706, desponta, não em prestígio político ou judicial, mas em termos econômicos. Situada em um ponto de ligação entre Salvador e amplas regiões nordestinas, por aí todo o transporte era realizado, o que ampliava suas possibilidades. Também o lugarejo, localizado na área territorial do Pambu, conhecido pelo nome de Capim Grosso, ganha significância. Mas, mesmo

509 In: Nantes, p. l22.510 João Matos, Descripção Histórica e Geográphica do Município de Curaçá, Bahia, l926.

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diante do florescimento de outras localidades, Pambu ainda fazia manter sua preponderância, sendo elevado à posição de vila em l832511 e instalando sua primeira escola em l835512. Provavelmente tenham sido estes os últimos atos que assinalaram sua importância.

Por esta ocasião, ao que tudo indica, a missão dos franciscanos já havia sido devolvida513 e seu destaque como centro religioso minguou-se em decorrência do aparecimento de outras localidades que contavam com a presença de padres, inclusive em sua vizinhança, como era o caso da Ilha de Assunção, onde fora fundada a Vila dos Índios de Nossa Senhora de Assunção, com igreja e tudo o mais514.

Mas não foi só isso. Pambu não conseguira, devido a vários fatores, dinamizar-se. Seu prestígio, por todo este período, mantivera-se graças à inexistência de outras localidades, o que o transformava também em centro civilizatório. Não conseguira expandir-se populacionalmente, mantendo seus habitantes dispersos ao longo do rio e nas caatingas; nunca chegara a desenhar-se como centro comercial, sua localização o impedia de estabelecer porto e, ademais, ficava mal localizado do ponto de vista da ligação com as outras localidades.

Assim, à medida em que lugarejos surgiam, Pambu mergulhava no isolamento. Até mesmo o motivo que lhe dera existência desaparecera devido ao próprio trabalho dos missionários: a desindianização e o atendimento dos remanescentes indígenas na ilha de Assunção. A exclusividade jurídica lhe escapava e, desse jeito, passava a manter-se apenas pela tradição e pela fama de Santo Antônio515. Não tinha mais o que oferecer como atrativo, restando-lhe somente o santo milagroso. É nesse contexto que, em l853, perde a condição de

511 Pambu foi elevado à condição de vila em 1832, no dia 06 de junho. 512 IBGE - Enciclopédia dos Municípios – Bahia, l958. 513 A Ordem religiosa responsável há havia extinto e, por consequência, recolhido seus agentes. 514 Entre 1781 e 1838, foi sede de freguesia sob a invocação de S. Gonçalo e ganhou status de vila, denominando-se Real Vila de Assumpção. In: Matos, 1926, p. 94.515 Em 1853, Pambu possuía cerca de 30 casas e mais ou menos 140 habitantes, de acordo com registros deixados por Halfeld - In: Atlas e Relatório do Rio São Francisco, Rio de Janeiro, 1860, pag. 39.

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sede de vila e de paróquia para Capim Grosso (Curaçá). Daí em diante Pambu mergulha no esquecimento e cai totalmente em importância.

Em 1952, Chorrochó , distrito de Curaçá, é transformado em município compreendendo a área que abrangia Pambu, Ibó, Lagoa de José Alves e Abaré. Pambu permanece na condição de povoado de Chorrochó até o ano de 1962, quando com a elevação de Abaré à condição de município a ele passa a pertencer, também como povoado. Embora Pambu seja hoje um povoado de Abaré, pelas ligações históricas e culturais e também por estar a menos de 80 metros da área do município de Curaçá, vincula-se mais a este. Por outro lado, a população de Curaçá não entende o motivo de Pambu não se incluir na área de seu município e o reivindica516.

Por três vezes os habitantes do Pambu tentaram romper o seu isolamento e emprestar-lhe algum sentido econômico, empreendendo a organização de uma feira em l935, em l950 e em l960. Contudo, em todas essas tentativas, o objetivo foi frustrado, o evento não ultrapassando a primeira semana. Nas décadas de l930 e l940, também ocorreu uma tentativa econômica com a instalação de uma desfibradora de caroá. Porém, o produto perdeu importância como matéria-prima da indústria têxtil e sua vida foi efêmera.

Nos dias atuais, Pambu possui aproximadamente l00 habitantes e, bem contadas, 43 casas, das quais apenas 20 são habitadas regularmente, um bar, um posto telefônico, uma escola de primeiro grau menor, uma igreja, um cemitério em ruínas e um campo de futebol. As casas foram construídas voltadas umas para as outras, formando um quadro, no centro do qual está localizada a igreja, símbolo do lugar. Às suas costas, à esquerda, o rio São Francisco que, nesse ponto, expõe-se em bela paisagem de águas corredeiras e ilhas. Nos outros quadrantes a caatinga, paupérrima em vegetação, o solo pedregoso e de relevo acidentado. O cemitério, embora mal cuidado, estampa duas sepulturas que chamam a atenção pelos traços arquitetônicos. O povo é acolhedor e simpático, parecendo ser formado por uma só família. À tardezinha, as crianças brincam e abrem os ouvidos com a maior atenção para

516 Pambu dista 110 km da sede do município de Curaçá, l6 km do povoado curaçaense de Pedra Branca – rio acima - e 12 km de Ibó, distrito de Abaré.

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a conversa dos mais velhos. A pequena agricultura, a pecuária e a aposentadoria dos velhos são as principais fontes de renda, senão as únicas.

Indiferentes às formalidades administrativas e políticas do estado, os pambuenses denominam seu lugar pelo nome histórico de Aldeia do Pambu e, muitos, senão quase todos, se dizem índios da nação tumbalalá sem, entretanto, saberem o significado da palavra. O desejo que têm é serem reconhecidos pela FUNAI. Embora, desde tempos imemoriais, alguns habitantes da área dançassem toré na Missão Velha, atualmente esta dança vem envolvendo grande parte dos moradores do Pambu, da Missão Velha e adjacências, em um renascimento histórico e cultural das tradições de seus ancestrais. Mais que uma simples dança, o toré implica em revivificar o passado dos ancestrais indígenas; reencontrá-los através da encarnação de seus espíritos; ouvir seus conselhos; receberem orientações para tratamento de saúde; disciplinar os participantes integrando-os ao grupo e aprender pelos encantos e linhas517, os modos indígenas de viver. Segundo os pajés518 e as pessoas que já se identificam como índias, aquele que tiver sangue índio é forçado, pelos espíritos dos antepassados, a se integrar ao grupo e participar do toré. “Não é preciso chamar, destá que quem tiver sangue índio vem”. Dizem eles, que basta uma pessoa de sangue índio assistir o toré para se ver livre das perturbações da vida ou doenças. Dizem também que Santo Antônio do Pambu é deles, pois apareceu na aldeias que lhes pertence e afirmam que o santo era rico, que tinha muita terra e ouro, mas que os padres, aproveitando-se da inocência dos índios antigos, pegaram tudo.

Um dos caciques disse que desde “há muito tempo não sabiam que

Pambu era aldeia, mas que um pajé da nação trucá, da aldeia da ilha da Assunção, através de um encanto, descobriu. O encanto fez essa revelação e exigiu que eles iniciassem a dançar o toré e que eles obedeceram”.

517 Encanto ou encantado são os espíritos dos índios que já morreram, mas que se apresentam no momento dos rituais, através de encarnação, se enramando no corpo de um dos participantes para fazer revelações ou fazer alguma recomendação. Podem também se apresentarem em sonho. Nessa oportunidade, às vezes, conduzem o espírito da pessoa possuída no sonho até as aldeias antigas para mostrarem o jeito de viver índio e ensinam-lhe novas linhas. Linha são as cantigas rituais. 518 No período em que colhemos essas informações, final de 1998, havia dois pajés e dois caciques em decorrência da disputa pala liderança.

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MISSÃO VELHA E PAMBU

Missão Velha fica na vizinhança de Pambu, a uns 300 metros, e não possui casas agrupadas. Na verdade é uma área onde existem sítios e roças. Dizem os mais velhos que tem esse nome por ter sido lá o local onde, inicialmente, os jesuítas estabeleceram a missão. Há três pistas que dão sentido a esta suspeita: nessa localidade existe uma área que deixa aparecer resquícios de construções com certo alinhamento; o próprio nome Missão Velha, o que pressupõe a existência de uma missão nova e; por último, a história do aparecimento de Santo Antônio, o que implicou na construção de uma capela em novo local, conforme vem sido dito através dos tempos. O certo é que, em Missão Velha, se encontram dois terreiros de toré e também, além dos alicerces já mencionados, encontra-se um terreiro onde, dizem os atuais moradores, dançavam os índios de antigamente. Missão Velha já se situa integralmente no município de Curaçá.

SANTO ANTÔNIO

Não se sabe quando o santo apareceu . Segundo indica o livro de João Matos, ocorreu antes de l7l4. Os franciscanos, ao chegarem em Pambu, em l702, nomearam Nossa Senhora da Conceição como padroeira da aldeia, o que nos faz supor que por esta época ainda não houvesse ocorrido o aparecimento do santo. O que sabemos é que há muito e muito, corre de boca em boca, atravessando os tempos, a história que diz que acharam o santo dentro de uma moita de cachacumbi519 sobre uma pedra. Na pedra, segundo a história, havia uma inscrição que dizia assim: “SANTO ANTONIO DO PAMBU, COMBATIDO E NÃO VENCIDO”. Com o achado, o povo todo caiu em admiração e espanto. Os padres levaram a imagem para a capela e a colocaram no altar. No outro dia, quando chegaram lá, o santo não estava. Procuraram e o encontraram novamente dentro da moita, sobre a pedra. Por várias vezes botaram o santo no altar e ele sempre voltava. O povo foi se admirando com aquilo. O santo ganhou fama, começou a fazer milagres e o povo, rio acima, rio

519 Cachacumbi é um cacto espinhento de galhos alongados e finos.

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abaixo, caatinga adentro, caatinga afora, alastrou a notícia. O jeito que os padres encontraram foi fazer uma capela nova para ele, com o altar erguido bem no lugar onde fora achado520. Com o tempo a popularidade do santo cresceu cada vez mais ao ponto de chegar a destronar Nossa Senhora da Conceição e ascender à condição de padroeiro do lugar. Daí em diante, aqueles que construíram novas casas o fizeram ao redor da capela do padroeiro, provocando a transferência do local da missão.

A fama do santo atraía o povo que ia lá, vê-lo, venerá-lo, pagar promessa e Pambu, com isso, angariava mais fama. Como, à época, as dificuldades de locomoção eram muitas e os fiéis se encontrassem espalhados e distantes, alguns devotos intentando tirar esmolas para obras pias. “Viajavam com ele pelas localidades vizinhas. Aí tinha vez que o povo tomava um soninho e o santo vinha embora sozinho521”. Há quem diga que, na fuga, o santo deixava o rastro no chão, o jeito dos pezinhos. Houve um homem desaforado que o desafiou, depois que, por várias vezes, haviam tentando levá-lo para um determinado local, sem sucesso : “Quero ver esse santo fugir agora”. O homem foi a Pambu, pegou o santo o colocou dentro do alforje, amarrou bem a boca e partiu. Não andou 600 metros, morreu. Quando acharam seu corpo foram logo aos alforjes. Que nada! O santo havia desamarrado tudo e ido embora. O povo se abismou. Daí para a frente a temência tomou conta de todos e ninguém mais teve coragem de retirá-lo de Pambu, de seu altar. No lugar onde acharam o corpo do homem que tentara carregar o santo à força, 520 Trata-se da capela erguida em homenagem a Santo Antônio do Pambu, construída em tempos imemoriais, provavelmente ainda no século XVIII. As paredes da nave são de pedras e medem aproximadamente 70 cm. Segundo o Sr. José Plínio, a torre foi construída em 1902 e, nos meados desse século, foram realizadas ampliações nas laterais próximo ao altar. O seu estado de abandono já é secular. Em 1846, o seu vigário, Frei Paulo Maria Genoveva, escrevia: “A respeito da relação do estado desta Matriz cumpre-me dizer a V. Exa. que a dita Matriz se acha em um estado assaz deplorável, até de não se puder mais celebrar o santo sacrifício da missa para não ficar vítima extinta das iminentes ruínas que ameaçam cada dia de vê-la caída por terra, e justamente o meu digníssimo finado antecessor, para remover os perigos que podia acontecer às ovelhas estando dentro da dita Matriz assistindo aos Atos da nossa Santa Religião e os mais que seguem, foi servido mandar tirar fora a coberta da Igreja, que era de telhas de barro, que pelo grande peso que fazia as paredes já se desaplumavam do alinhamento que foram edificadas”. In: Matos, Descripção Histórica e Geográfica do Município de Curaçá, pag.34-35. 521 Esta versão foi contada pelo Sr. José Plínio, mas outras idênticas correm de boca em boca, ecoando longe.

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construíram uma capela e dentro dela um cruzeiro. Esta capela fica bem em cima de um pequeno morro, voltada para a igreja onde reina Santo Antônio. Deram-lhe o nome de Capela da Santa Cruz e fica na área da Missão Velha. Essa capela passou a ser ponto de veneração, de pagamento de promessa. O povo vai lá, leva ex-votos, escreve seus nomes e faz desenhos de mãos, de pernas, etc. nas paredes, com o maior respeito.

O povo continua devoto de Santo Antônio de Pambu. Todo dia há gente indo visitá-lo. Vai gente de todo lugar da região. Seu dia, pelo calendário oficial da igreja católica, é no mês de junho, mas em Pambu a comemoração faz-se no dia seis de janeiro. Por quê? É que, depois que Pambu ficou sem padre, tudo passou a ser complicado. Havia o dia do padroeiro em junho, o dia de Nossa Senhora da Conceição em novembro e o dia dos Reis Magos, que também era bem comemorado pelo povo do lugar, no dia seis de janeiro. Os padres, que davam assistência a Pambu, moravam em Glória522, cujo trajeto,

522 Glória situava-se a, aproximadamente, 200 km rio abaixo, fazendo limite com Paulo Afonso. Em decorrência do represamento de águas para a construção do lago de Itaparica, foi transferida de lugar, estando hoje nas adjacências de Paulo Afonso e recebeu a denominação de Nova Glória.

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além de ser bastante longo, era percorrido à cavalo. Então, pela dificuldade, reduziram todas as comemorações para um dia só: seis de janeiro. No dia cinco à noite há festa. O povo vai chegando e enchendo a rua. “É gente a não caber no mundo. Carro-de-som... Uma festa grande. A noite toda tem zoada de música. A gente não consegue dormir”. No outro dia, o dia do grande dia, muito dessa gente vai embora no clarear. Outras pessoas chegam, em pagamento de promessa por graças alcançadas, fazendo homenagem, se devotando ao santo, para se casar, para batizar os meninos. A igreja fica entupida.

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MAPAS

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