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UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLNDIA
Instituto de Histria
Programa de Ps-Graduao em Histria
O SAL DA GUERRA: PADRE ANTNIO VIEIRA E AS TPICAS TEOLGICO-
JURDICAS NA APRECIAO DA GUERRA JUSTA CONTRA OS NDIOS
Ludmila Gomides Freitas
Janeiro de 2014
ii
iii
LUDMILA GOMIDES FREITAS
O SAL DA GUERRA: PADRE ANTNIO VIEIRA E AS TPICAS TEOLGICO-JURDICAS NA
APRECIAO DA GUERRA JUSTA CONTRA OS NDIOS
Tese apresentada ao Programa de Doutorado do Instituto de Histria da Universidade Federal de Uberlndia, como requisito parcial para a obteno do ttulo de doutor em Histria. rea de concentrao: Histria Social Orientador: Prof Dr. Guilherme Amaral Luz
Uberlndia
Janeiro de 2014
iv
Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)
Sistema de Bibliotecas da UFU, MG, Brasil.
F866s 2014
Freitas, Ludmila Gomides, 1977- O sal da guerra: padre Antnio Vieira e as tpicas teolgico-jurdicas na apreciao da guerra justa contra os ndios / Ludmila Gomides Freitas. - 2014. 323 f. Orientador: Guilherme Amaral Luz.
Tese (doutorado) Universidade Federal de Uberlndia, Programa de
Ps-Graduao em Histria. Inclui bibliografia.
1. Histria - Teses. 2. Vieira, Antonio, 1608-1697 - Teses. 3. Jesutas - Brasil - Histria - Teses. 4. Livre arbtrio e determinismo - Teses. 5. Jesui-tas - Misses - Brasil - Teses. 6. Brasil - Histria - Perodo colonial, 1500-1822 - Teses. I. Freitas, Ludmila Gomides. II. Universidade Federal de Uberlndia. Programa de Ps-Graduao em Histria. III. Ttulo. CDU: 930
v
Banca examinadora Orientador:
___________________________________
Prof Dr. Guilherme Amaral Luz (Histria UFU)
Banca:
___________________________________________
Prof Dr. Carlos Alberto de Moura Zeron (Histria - USP)
___________________________________________
Prof Dr. Antnio Alcir Pcora (Teoria Literria - UNICAMP)
___________________________________________
Prof Dr. Sertrio de Amorim e Silva Neto (Filosofia UFU)
___________________________________________
Prof Dr Mara Regina do Nascimento (Histria UFU)
Suplentes:
___________________________________________
Prof Dr. Luis Filipe Silvrio de Lima
___________________________________________
Prof Dr. Jean Luiz Neves Abreu
vi
RESUMO
Os discursos jesuticos produzidos nos sculos XVI e XVII traduziram e
interpretaram os encontros com a alteridade indgena americana a partir dos modelos
teolgicos, jurdicos, polticos e retricos prprios do pensamento cristo. Elegemos a
questo da guerra e, por conseguinte, o debate teolgico-jurdico que fundamenta
historicamente esse conceito, como tema principal dessa pesquisa. A incluso do
indgena no corpo mstico e poltico da monarquia crist portuguesa e sua utilizao
como mo-de-obra para a explorao econmica da terra eram projetos polticos que,
embora no excludentes, estiveram em disputa permanentemente, marcando a
relao conflituosa entre jesutas, autoridades coloniais e moradores. Neste cenrio, o
problema da guerra justa mostrava-se central. A partir da leitura dos discursos
parentico e epistolar de Pe. Antnio Vieira investigamos de que maneira o tema da
guerra contra os ndios participava de sua compreenso providencialista e finalista da
histria. Como procuramos demonstrar, o jesuta interpretou a guerra pela via
sacramental e, nesse sentido, como ocasio para a colaborao com o plano divino.
Afinado concepo soteriolgica jesutica que postula a graa, a f e as obras e, por
conseguinte, o papel do livre-arbtrio como condies para a justificao Antnio
Vieira buscou, atravs de seus sermes e atuao poltica, persuadir os portugueses a
dispor sua vontade ao crist, neste sentido, a justia da guerra e a escravido dos
ndios eram partes essenciais na edificao da monarquia catlica portuguesa.
PALAVRAS-CHAVE: Companhia de Jesus, Pe. Antnio Vieira, pensamento
teolgico-jurdico, livre-arbtrio, guerra-justa, ndios.
vii
ABSTRACT
The sixteenth and seventeenth-century Jesuit discourses translated and
interpreted their encounters with the Native American otherness by theological, legal,
political and rhetorical models from the Christian thought. The main subject of this
thesis is the topic of war and, therefore, the theological-legal debate that had based
this concept historically. The introduction of the Indians into the political and mystical
body of Christian Portuguese monarchy and their use as work force for the economic
exploitation of the land were two different political projects in those times. Although
they were not mutually exclusive, they had permanently been in dispute,
characterizing the conflictions between Jesuits, colonial authorities and settlers. The
problem of the Just War became central in this context. How the topic of war against
the Indians compounded Antonio Vieiras providential and finalist understanding of
history is a question that will be traced back from the reading of his sermons and
letters. This aims to demonstrate that this Jesuit priest interpreted war in sacramental
terms and so as an opportunity for men to collaborate with the divine plans. As a
priest, Antonio Vieira sought to persuade the Portuguese settlers to set their will
towards Christian actions. That was in compass with the Jesuit conception of salvation,
which vindicated grace, faith and the role of free will as conditions for justification. In
this sense, the justice of war and the enslavement of Indians were essential issues in
the edification of a Portuguese Catholic Monarchy.
KEY WORDS: Society of Jesus, Priest Antonio Vieira, theological-juridical thought,
free will, just war, Indians.
viii
ix
Agradecimentos
Primeiramente, agradeo ao Prof Guilherme Amaral Luz pela forma acolhedora e
generosa pela qual me recebeu no Instituto de Histria da UFU. Sua orientao, precisa e
atenciosa, foi determinante durante todo o processo de realizao da tese. Agradeo,
especialmente, pela confiana e liberdade que me proporcionou na pesquisa, sempre
disposto a ajudar nos vrios momentos de dvida e nos percalos enfrentados durante o
trabalho.
Agradeo FAPEMIG pela bolsa de estudo concedida.
Meus sinceros agradecimentos aos professores Mara Regina do Nascimento e
Sertrio Neto, pelas sugestes, observaes e indicaes bibliogrficas. Suas participaes
no exame de qualificao foram fundamentais para o desenvolvimento da pesquisa.
Agradeo o apoio dos professores e colegas da Linha de Pesquisa Poltica e
Imaginrio.
Obrigada aos amigos que esto perto e aos que esto longe, em So Carlos, So
Paulo e Campinas. s queridas Liliane e Simone pelo estmulo e pelos momentos de
descontrao fundamentais sade e ao esprito, durante estes anos de trabalho.
Agradeo a meu irmo, Lo, pelo carinho e amizade. s queridas, Tia Maria e Tidinha
pelo apoio, torcida e carinho de longa data. Ao Meia e s crianas, Beba e Samuel,
motivos de alegria e renovao de nossa famlia.
Agradeo com muito amor a meu pai, Luiz, pelo cuidado, apoio, carinho e exemplo de
uma vida inteira.
Meu agradecimento especial minha irm, Luciana, companheira e amiga, que
partilha comigo, desde o comeo, as alegrias, incertezas, dificuldades e conquistas. um
presente da vida ter uma irm como ela.
minha querida me, Carminha. Faltam palavras para expressar o profundo amor e
gratido que sinto. Obrigada por estar sempre ao meu lado; presena generosa e amiga,
meu porto-seguro e exemplo de amor.
Finalmente, ao Sandro, que soube com pacincia e leveza ser parceiro nessa jornada.
Meu amor e meu amigo, que divide comigo a maior alegria de todas: nosso pequeno
Toms. Meu amor, minha fora e inspirao de vida.
x
O Sal da Guerra: Padre Antnio Vieira e as tpicas teolgico-
jurdicas na apreciao das guerras justas contra os ndios
Sumrio
Introduo ................................................................................................... 1
PARTE I....................................................................................................... 13
1. Mistrios e interpretao da histria na soteriologia jesutica ........... 15
1.1. INTRODUO...........................................................................................................15
1.2. A CONSTRUO DO ETHOS JESUTICO ............................................................................16
1.3. LIVRE-ARBTRIO E SALVAO NA ORTODOXIA CRIST.........................................................26
1.4. LIVRE-ARBTRIO E SALVAO NO PENSAMENTO JESUTICO ..................................................35
1.5. OS MISTRIOS NO MUNDO CRIADO: A INTERPRETAO JESUTICA ........................................49
1.5.2. MISTRIOS: SENTIDO, EFICCIA E OCASIO......................................................................51
2. Os sinais divinos e os enganos do mundo nos sermes do padre
Antnio Vieira: cobia versus nimo cristo ............................................ 75
PARTE II...................................................................................................... 99
3. A guerra justa na tradio ocidental e no alvorecer do mundo
moderno .................................................................................................. 101
3.1 INTRODUO..........................................................................................................101
3.2. A GUERRA JUSTA NA TRADIO CRIST OCIDENTAL.........................................................102
xi
3.2.1. A GUERRA JUSTA NO PENSAMENTO DOS PADRES DA IGREJA ......................................109
3.3. A GUERRA JUSTA NO CONTEXTO DAS CONQUISTAS ULTRAMARINAS PORTUGUESAS E ESPANHOLAS
DOS SCULOS XVI E XVII.................................................................................................115
3.4. A ORDENAO DO DIREITO DE GUERRA NO CONTEXTO DO NOVO MUNDO: POLTICA E LEGISLAO
INDIGENISTA PORTUGUESA NOS SCULOS XVI E XVII.............................................................125
4. O mistrio da guerra contra os ndios: ocasio para (in)conformidade
da ao humana no plano divino ........................................................... 149
4.1. INTRODUO.........................................................................................................149
4.2. LEGISLAO INDIGENISTA AMAZNICA E APLICAO DA JUSTIA NAS CARTAS E INFORMAES DO
PADRE ANTNIO VIEIRA..................................................................................................155
4.3. ENTRADAS, MISSO E MISTRIO EM CARTAS E INFORMAES DO PADRE. ANTNIO VIEIRA.....198
5. O mistrio da guerra nos sermes do padre Antnio Vieira.............. 241
Consideraes finais................................................................................ 283
Bibliografia.............................................................................................. 297
FONTES DOCUMENTAIS ..................................................................................................297
SITES (FONTES DOCUMENTAIS) .......................................................................................299
LIVROS E ARTIGOS..........................................................................................................300
xii
xiii
O nobre, o alto, o fino, o maravilhoso da
providncia divina, no fazer a sua vontade
violentando a minha: deixar livre e absoluta a
minha vontade, e com a minha, e pela minha,
conseguir a sua.
Pe. Antnio Vieira, Sermo das Cadeias de
So Pedro.
E quando a F se prega debaixo das
armas, e sombra delas, to Apstolos so os
que pregam, como os que defendem; porque uns
e outros cooperam salvao das Almas.
Pe. Antnio Vieira, Sermo do Esprito
Santo.
Introduo
As primeiras narrativas dos ibricos sobre os encontros com Novo Mundo
apreenderam as sociedades indgenas inscrevendo-as na memria europeia. O passado, o
presente e mesmo o futuro desses povos foram assimilados pelos quadros cultural,
teolgico e poltico prprios do europeu, e, por essa razo, como partes da narrativa
histrica crist. As terras e as humanidades reveladas a partir dos descobrimentos
somente tinham sentido se interpretadas como um restabelecimento da comunicao
crist interrompida em tempos imemoriais. A despeito da surpresa e do estranhamento
resultantes dos encontros, no incio dos tempos modernos, a universalidade da religio
crist no estava colocada em questo.
Seria realmente impensvel que os primeiros conquistadores, colonizadores e
missionrios espanhis e portugueses pudessem compreender os diferentes povos
que encontraram na Amrica fora dos modelos definidos pela cultura de seu tempo. Um
julgamento relativo ou o reconhecimento da singularidade do outro seriam operaes
impossveis para eles. Como assinalou Anthony Pagden,
(...) os observadores do mundo americano, como os observadores de
qualquer coisa culturalmente desconhecida, para qual existem poucos
antecedentes facilmente identificveis, tinham que classificar antes de poder
ver corretamente; e, para isso, no tinham mais alternativa que acudir a um
sistema que j se utilizava. E era este sistema, no a estrutura inata do
mundo, o que determinou as reas que selecionaram para descrev-las. 1
As representaes dos ndios contidas nos discursos europeus dos sculos XVI e XVII
formam um quadro mltiplo e contrastante por vezes simultaneamente em um mesmo
1 PAGDEN, Anthony. La caida del hombre natural. El indio americano y los orgenes de la etnologa
comparativa, Trad. esp. Madri: Alianza Editorial, 1988, p.25. (traduo nossa)
2
autor ; imagens ora positivas, ora depreciativas; ora sentimentos de confiana em
relao integrao do ndio ao corpo mstico e poltico da Igreja e do Estado, ora repulsa
diante de sua natureza considerada irreversivelmente brbara. Imagens distintas e
contraditrias, pois distintos foram os sujeitos que as enunciaram, e com propsitos
tambm distintos. parte as diferenas entre as representaes, todas elas tinham em
comum a busca de uma explicao, que, contudo, s poderia ser formulada a partir dos
modelos teolgicos, jurdicos e polticos da poca. Tais modelos explanam conceitos que
foram forjados na longa tradio clssica e crist, e, ao serem mobilizados para traduzir
as experincias com os ndios, puderam, em parte, manter sua ortodoxia, ao mesmo
tempo em que sofreram adaptaes em decorrncia das novas experincias.
No caso da Amrica portuguesa, os jesutas foram essenciais no processo de
ocupao da terra e de submisso dos ndios ordem colonial; ademais, conferiram o
propsito evangelizador e civilizatrio colonizao. Podemos afirmar que os discursos
jesuticos conformam um campo privilegiado para a escritura do outro nos sculos XVI e
XVII, e, por esta razo, so fontes incontornveis para os estudos cujas temticas passam
pela traduo e incorporao do gentio americano ordem colonial. Nesta tese,
elegemos como objeto os escritos jesuticos dos sculos XVI e XVII e, mais
especificamente, as cartas e sermes do padre Antnio Vieira.
fundamental pontuarmos que a ao missionria da Companhia de Jesus tinha por
finalidade instaurar a ordem crist nas terras do Brasil. No caso de Antnio Vieira, seus
sermes tinham claramente o sentido pedaggico de inspirar os colonos para a ao
crist. Para isso, a exposio reatualizada e reinterpretada dos mistrios revelados
(atravs dos sacramentos e da oratria sacra) visava despertar nos portugueses a
conscincia de sua responsabilidade e cooperao na evangelizao dos ndios,
condenando, desta feita, suas aes escravistas, sobretudo, aquelas oriundas das guerras
injustas.
Podemos dizer que os discursos jesuticos, de maneira geral, apresentam contedos
de carter tico-jurdico e teolgico-moral. Neste sentido, possuem uma plasticidade no
modo de enunciar e dispor seus conceitos e, portanto, devem ser entendidos a partir das
tpicas que os constituem. Essas tpicas, de caractersticas retrico-poticas delimitadas,
eram mobilizadas conforme a especificidade das circunstncias histricas e das
necessidades suasrias.
3
Dentro do universo de temticas a respeito dos ndios presentes nos escritos
jesuticos, elegemos o tema da guerra e, por conseguinte, o debate teolgico-jurdico que
fundamenta historicamente esse conceito, como o tema principal dessa pesquisa.
Propomos refletir sobre a representao da guerra contra os ndios a partir das tpicas
que eram mobilizadas de modo a comunicar os verdadeiros sentidos que tal dispositivo
deveria assumir na arquitetura do projeto poltico e teolgico para os ndios. A guerra
para ser justa dependia de critrios definidos, cujo substrato era a tradio jurdica
clssica e crist, alm disso, deveria ser usada como um dispositivo de exceo. Sua
prtica desenfreada e apartada da justia abalava a finalidade evanglica da colonizao.
Portanto, entendemos que a discusso sobre a guerra encerrava uma srie de
argumentos (tpicas) prprios e comuns aqui pensados nos moldes da retrica
aristotlica2 que eram dispostos de modo a enunciar seu sentido legtimo. Como
lugares prprios do discurso sobre a guerra, entendemos os argumentos fundados na
doutrina e nas ideias jurdicas e teolgicas. J as tpicas do justo/injusto, amor/desamor,
cobia/nimo cristo, vcio/virtude, avareza/liberalidade etc., ao explanarem os juzos
morais e ticos que informavam a mentalidade crist, sero, neste estudo, entendidas
tambm como lugares comuns que conformam a discusso sobre a guerra.
Neste sentido, a pesquisa no se volta a mapear a transformao das ideias, mas os
diferentes contextos de aplicao de tpicas duradouras que, fundadas na tradio
neoescolstica e jesutica, particularmente, operavam com distintas finalidades
cabendo por vezes a contradio para justificar a guerra justa, a liberdade e a
escravido dos ndios. Ao situarmos a anlise dos documentos no jogo e movicidades das
2 A retrica, para Aristteles, a arte de bem argumentar comparvel dialtica. Os meios de
persuaso so basicamente trs: os derivados do carter do orador (ethos); os derivados da emoo
despertada pelo orador no auditrio (pathos); e os derivados de argumentos verdadeiros ou provveis
(logos). Em conjunto estes trs elementos de prova contribuem para o raciocnio entimemtico. Sendo
os entimemas os veculos por excelncia da argumentao retrica, as suas premissas so
materialmente constitudas por tpicos: os tpicos especficos, aplicveis a cada um dos gneros
particulares de discurso (judicial: justo/injusto; deliberativo: til/intil; epidtico: belo/feio); e os tpicos
comuns, aplicveis indistintamente a qualquer um dos trs gneros (possvel/impossvel; real/irreal;
mais/menos). Texto de apresentao, Manuel Alexandre Junior. In ARISTTELES, Retrica. Lisboa:
Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2010, Coleo Obras Completas de Aristteles, vol.III, tomo I,
coordenao Antnio Pedro Mesquita. (ver Livro I).
4
tpicas, esperamos escapar da armadilha de pensar em separado ideia/teoria e
realidade/experincia. Como procuraremos demonstrar, era constitutivo da tradio
neoescolstica, e tambm do modo de proceder jesutico, considerar o universo mstico-
espiritual (e dentro dele a doutrina) e a realidade histrica circunstanciada da ao
humana (poltica) no mundo, no como apartados, mas como instncias justapostas. A
inteno, enfim, no estudar as ideias jurdicas e teolgicas, mas v-las em uso na
prpria dinmica de compreenso jesutica do mistrio envolvido na misso junto aos
ndios.
A tese est organizada em duas partes. Na primeira, composta por dois captulos, os
temas discutidos giram em torno do conceito de livre-arbtrio e seu papel central na
soteriologia jesutica e de mistrio tpica essencial da hermenutica sacramental do
mundo criado. A reflexo estar pautada pela bibliografia, mas tambm pela anlise de
sermes de padre Antnio Vieira. Na segunda parte da tese, o tema da guerra ser
explorado em trs captulos sobre diferentes enfoques. Alm da parentica, sero
analisados os discursos epistolares do jesuta no perodo em que esteve frente das
misses do Maranho e Gro-Par (1653-1661).
No captulo 1, nossos objetivo ser compreender a singularidade da Companhia de Jesus
no que diz respeito a seu projeto apostlico, da a importncia de apresentarmos, ainda que
sumariamente, a estrutura de sua unidade institucional, o sentido universalista das misses,
e a concepo humanista de sua doutrina. Outro objetivo, e podemos dizer o mais central,
ser compreender a concepo soteriolgica do pensamento inaciano. Neste sentido, duas
exigncias se faro presentes. A primeira ser contextualizar a fundao da ordem num
momento particularmente delicado da histria da cristandade: a poca das Reformas. O
vis de anlise desse perodo turbulento dar-se- pela discusso da teoria da Graa divina e
o processo de justificao. Neste sentido, e a encontramos a segunda exigncia, nosso
objetivo ser entender o conceito de livre-arbtrio tal como formulado pela tradio
filosfica crist, e, sobretudo, a polmica em torno deste conceito no bojo das Reformas.
Para isso, discutiremos a contenda entre catlicos e protestantes pela afirmao e recusa
do livre-arbtrio, respectivamente. A seguir, nos debruaremos sobre os efeitos dessa
polmica, agora vivida no prprio seio da Igreja, com os embates entre jesutas e
dominicanos.
5
Entender o conceito de livre-arbtrio e a centralidade que ele assume no interior da
concepo soteriolgica dos jesutas ser um dos objetivos principais da primeira parte
deste trabalho. Por esta razo, ser fundamental explicar o lugar ontolgico do gnero
humano na ordem da Criao, para, assim, entendermos as especificidades de seu ser: a
razo natural, o livre-arbtrio e sua participao no Ser de Deus, ou seja, a graa. As obras
de tienne Gilson sero fundamentais para essa reflexo.3 Outro conceito que ser
detalhadamente examinado ser o de mistrio, uma vez que ele ascende, no interior da
concepo sacramental do mundo criado, como o sinal divino que auxilia a vontade humana
para as escolhas condizentes com o Bem.
No humanismo jesutico, o homem abonadamente qualificado no sentido de que,
dotado de vontade e razo natural, pode no somente conhecer os desgnios divinos, como
tambm ser agente nas etapas histricas que levam a esse Fim. De acordo com a
espiritualidade inaciana, a unio com Deus no alcanada apenas pela vida contemplativa
nos mosteiros, pelo contrrio, ela definida, sim, pela graa da F, mas necessariamente
implica a postura ativa do homem no mundo, que, agindo conforme a sua vontade, realiza a
Vontade divina. Enfim, obrar com f e caridade , por excelncia, a disposio perfeita e
congruente ao caminho de Deus.
Veremos com Alcir Pcora que, no interior da hermenutica jesutica, especialmente em
Antnio Vieira, est pressuposto que pela via do mistrio que so sinalizados ao arbtrio
dos homens os desgnios de Deus: ao tornar tangvel o que divino, o mistrio capaz de
comover e mover os homens a agir voluntariamente em busca da Verdade.4 Vale ressaltar
que a decodificao dos mistrios, bem como a mediao do encontro do fiel com o Criador,
d-se exclusivamente no interior da Igreja; cabe aos homens, portanto, manter estreita
obedincia a ela para que a unio mstica possa acontecer.
Pcora argumenta que, se por um lado, os sacramentos ministrados durante a liturgia
so ocasies seguras para a ocorrncia do mistrio, por outro, temos que o modo
sacramental se espalha por ocasies insuspeitas da histria e da natureza. Portanto, a Igreja
no a depositria exclusiva da presena divina em meio humano, ainda que o seja
3 GILSON, tienne. O Esprito da Filosofia Medieval. So Paulo: Martins Fontes, 2006. GILSON, E. A
Filosofia na Idade Mdia. So Paulo: Martins Fontes, 1995. 4 PCORA, Alcir. Teatro do Sacramento. A unidade teolgico-retrico-poltica dos sermes de Antnio
Vieira. Campinas: Editora Unicamp/ So Paulo: Edusp, 2 ed., 2008.
6
essencialmente, pois h a possibilidade do mistrio ocorrer no que h de mais vrio e cho
dentro do universo criado, dotando-lhe de uma densidade sagrada. Em suma, o modo
sacramental, no interior da hermenutica jesutica, constitui-se como uma forma essencial
de leitura do mundo sensvel e de sua relao com o transcendente.5
A exposio da hermenutica misteriosa (ou do universo sacramental em modo)
justifica-se pelo fato de que os mistrios tm seno a finalidade providencial de ensinar o
livre-arbtrio a desejar e a agir na direo do plano divino. Como veremos, a razo humana
(imperfeita desde a Queda admica) mostra-se incapaz de julgar corretamente e, neste
sentido, a opacidade da verdade em relao aos sentidos s pode ser superada mediante o
mistrio dos objetos de f institudos pela magnanimidade de Deus. Os mistrios sinalizam
para as aes prudentes a serem assumidas em acordo com a Providncia. Contudo, isso
no se d de forma coercitiva aos homens, uma vez que deixa em aberto o espao para o
arbtrio, cujo desdobramento correto e natural depende de uma orientao ajuizada da
vontade dos sujeitos que escolhem.
O captulo 2 est inteiramente voltado s relaes que se estabelecem entre os
enganos do mundo, a razo natural falvel dos homens e o papel corretivo e pedaggico da
oratria sacra. Para isso, elegemos como fontes alguns sermes de Antnio Vieira pregados
durante o perodo em que esteve frente das misses no Estado do Maranho e Gro-Par
(1653-1661). De acordo com sua funo bsica de ensinar e mover, o sermo promove a
adeso dos fiis ao providencial e, no caso dos sermes aqui tratados, as aes dizem
respeito participao dos colonos na consagrada misso de civilizar e converter os ndios
americanos. Vieira investe contra a corrupo, a cobia e a violncia que pautam o modo de
viver daqueles colonos portugueses. Veremos que ao repor os sentidos teolgicos
verdadeiros ao fiel pecador, a oratria sacra almejava despertar a reflexo, a auto-censura e,
por fim, a mudana das aes na direo dos desgnios de Deus. Naquela poro da colnia,
todos os males e pecados estavam relacionados violncia e escravido pelas quais os
moradores subjugavam os indgenas.
A guerra contra os ndios foi, inevitavelmente, tema essencial das discusses
decorrentes descoberta e conquista do Novo Mundo, estando no bojo da polmica sobre a
5 Idem. Ver, especialmente, os captulos II (Razo do Mistrio) e III (Oficina Universal, Armazm
Divino).
7
legitimidade do domnio portugus e espanhol sobre as terras e povos americanos. A
segunda parte da tese, organizada em trs captulos, ser dedicada a essa temtica e
buscaremos analis-la em suas vrias dimenses: o conceito de guerra justa na filosofia e na
tradio jurdica crists, bem como suas transformaes e permanncias no contexto da
expanso ultramarina; finalmente, a poltica e a legislao indigenistas portuguesas. Essas
discusses ajudaro a subsidiar a anlise dos discursos de Antnio Vieira, epistolar e
parentico, que referiram-se s questes indgenas.
Veremos, no captulo 3, que a tica e o direito de guerra mobilizados na situao de
embate contra os ndios reportaram-se, necessariamente, a uma longa tradio jurdica, e,
longe de ser condenada ou proibida, a guerra foi considerada necessria e, por vezes,
sagrada. Dentro dessa tradio, a distino entre fiis e infiis consistia no elemento
definidor da tica-moral da guerra justa. Porm, ainda que o direito de guerra medieval
previsse critrios para os casos de guerra contra pagos, no contexto americano, a guerra
contra os ndios suscitou problemas no descritos at ento. Nesse sentido, interessa-nos
investigar a maneira como as tpicas da guerra justa foram agenciadas para dar conta de
situaes bastante especficas do contexto histrico colonial, especialmente nas reas de
missionao de Antnio Vieira, o Estado do Maranho e Gro-Par.
Se comparada tica de guerra medieval contra o infiel, temos que a guerra justa
definida no contexto americano, no visava o extermnio do ndio hostil. Ao invs disso, tal
dispositivo era pensado como um meio de submisso que, em ltima instncia, possibilitava
a entrada do indgena na ordem colonial. Assim, no lugar da sentena de morte (ainda que
muitas fossem decorrentes dos combates), era sob a condio jurdica de escravo legtimo
que o ndio passaria a fazer parte da sociedade colonial. Se por um lado, as razes
econmicas para essa poltica so evidentes, por outro, essencial demarcar que a
condio de pago impunha alternativas condizentes com a misso evangelizadora e
civilizatria da monarquia portuguesa ps-tridentina. Diferente dos infiis, as almas dos
pagos americanos no estavam irreversivelmente condenadas e, portanto, mesmo sob a
condio cativa poderiam os ndios tornar-se cristos e sditos produtivos para a economia
colonial.
Ainda no captulo 3, teremos um item dedicado exclusivamente a apresentar o
panorama da poltica e da legislao indigenistas portuguesas nos sculos XVI e XVII.
Optamos por no nos fixar na anlise detida das leis, primeiramente, por se tratar de uma
8
massa documental consideravelmente volumosa e dispersa; segundo, pelo carter repetitivo
do contedo de leis, bandos, regimentos e alvars. Ao invs disso, pontuaremos nossa
anlise rejeitando a interpretao que simplesmente qualifica a legislao indigenista como
ineficaz e contraditria. Nosso interesse ser perscrutar a lgica interna que ditava o
anncio sucessivo dos dispositivos legais e que devero, portanto, ser compreendidos luz
do universo jurdico e doutrinrio da poca. A nosso ver, o movimento oscilante da poltica
colonial refletido nas leis de liberdade irrestrita e escravido buscou, sobretudo, conciliar
demandas distintas, porm igualmente necessrias para o desenvolvimento da empresa
colonial: a incluso do indgena no corpo mstico e poltico da monarquia crist portuguesa e
a viabilidade da explorao econmica da terra. Embora no excludentes em tese, fato que
os projetos polticos estiveram em disputa todo o tempo, marcando a acirrada relao entre
jesutas, autoridades coloniais e moradores.
No captulo 4 nos aproximaremos das especificidades da poltica e das leis indigenistas
do Estado do Maranho e Gro-Par. Nosso caminho metodolgico ser compreender, a
partir das cartas e informaes de padre Antnio Vieira, a implementao da lei e da justia,
bem como as tenses da decorrentes entre autoridades coloniais, moradores e jesutas. A
leitura dos escritos do perodo amaznico6 permite-nos acompanhar o conflito dos projetos
polticos para os ndios, as disputas pelo poder temporal sobre as aldeias, as contendas pela
distribuio da mo-de-obra, entre outras questes. Contudo, como procuraremos
demonstrar, essas fontes tambm expressam, ao cabo, o modo sacramental pelo qual Vieira
concebe e intervm na realidade histrica da qual participa.
Ao se reportarem a situaes de conflito especficas da sociedade colonial situaes
de conflito aberto entre padres e colonos, de guerra contra os ndios, descimentos etc.
poderemos, por meios dessas fontes, mapear o contexto e os usos das tpicas do direito de
guerra, de escravido e liberdade indgenas ento mobilizadas. Nesse sentido, teremos aqui
a possibilidade de atestar o carter casusta do discurso vieiriano, apto a responder a
questes divergentes postas em jogo. Veremos que a conciliao, tpica to prpria ao
6 Convencionamos chamar de espao amaznico a extensa poro territorial da colnia que
compreendia o Estado do Maranho e Gro-Par. Essa regio poltico-adminstrativa foi criada em 1654,
como um Estado independente em relao ao Estado do Brasil. Alm disso, convencionamos chamar de
perodo amaznico os anos entre 1653-1661, durante os quais Vieira missionou no Maranho e Par.
9
modo de proceder jesutico, mostrava-se como um instrumento fundamental da
engrenagem discursiva e da ao poltica de Antnio Vieira.
Iremos acompanhar o modo como eram feitos os contatos, as misses, as entradas e as
guerras junto aos ndios. Enquanto as misses e os descimentos foram narradas como aes
edificantes, as entradas e guerras movidas pelos colonos atestavam o desprezo da
finalidade crist que, em primeira instncia, justificava a colonizao e submisso dos povos
americanos. Poderemos atestar que as cartas e as informaes no raro acionavam a tpica
do mistrio para ler a realidade que descreviam.
Cabe dizer que ser fundamental perceber que os modelos retricos e os padres
teolgico-polticos que informavam a interpretao de mundo no sculo XVII compunham
parte essencial da escritura dos discursos. Na esteira de Alcir Pcora e Joo Hansen,
entendemos que as cartas jesuticas escritas no espao americano devem ser interpretadas
luz dos elementos retrico-poticos que compem o gnero epistolar nos sculos XVI e
XVII.7 Nosso objetivo passa ao largo de uma discusso exaustiva dos princpios de
composio dos gneros discursivos, contudo, cremos que alguns apontamentos nesta
direo so fundamentais para o entendimento global dos documentos. Essa temtica ser
melhor desenvolvida no segundo item do captulo 4, sobretudo quando discutirmos o valor
da experincia e do exemplo histrico como lugares de autoridade e prova dos discursos.
No captulo 5, nos ocuparemos de alguns dos sermes do Pe. Antnio Vieira. Como dito
anteriormente, uma das finalidades da oratria sacra era desvelar os mistrios e, assim,
poder instruir e dispor o fiel ao crist. Embora dos mais centrais, este no o papel
exclusivo da oratria sacra. No caso jesutico, a comunicao dos sentidos teolgicos
7 PCORA, Alcir. Cartas Segunda Escolstica. In: A Outra Margem do Ocidente. Adauto Novaes (org).
So Paulo: Companhia das letras/ Minc. Funarte, 1999, p. 373-414. PCORA, Mquina de Gneros.
Novamente descoberta e aplicada a Castiglione, Della Casa, Nbrega, Cames, Vieira, La Rochefoucauld,
Gonzaga, Silva Alvarenga e Bocage. So Paulo, Edusp, 2001. HANSEN, Joo Adolfo. Vieira e os estilos
cultos: ut theologia rhetorica. In Revista Letras, n43, jul/dez de 2011.
http://w3.ufsm.br/revistaletras/artigos_r43/artigo_01.pdf
HANSEN. Correspondncia de Antnio Vieira (1646-1694): o Decoro. In Discurso. Revista do
Departamento de Filosofia, FFLCH USP. So Paulo, n 31, 2000, p.259-284. HANSEN, texto de
apresentao de Cartas. Alcir Pcora (org). So Paulo: Hedra, 2003. Ver tambm: LONDOO, Fernando
Torres, Escrevendo Cartas Jesutas, Escrita e Misso no Sculo XVI. In: Revista Brasileira de Histria.
V.22, n.43, So Paulo, 2002.
10
verdadeiros ao juzo imperfeito dos homens era uma dimenso essencial; da a
interpretao adequada da doutrina contida nas Escrituras, a exposio do lugar ontolgico
dos seres na ordem da Criao, a traduo do sentido figural dos eventos da histria.
Porm, h pelo menos uma outra dimenso que no pode ser desprezada: a oratria sacra
visa recolocar o auditrio diante dos mistrios, movendo-o afetivamente na direo dos
seus sentidos espirituais profundos, em suma, promover a experincia mstica de
comunho com o divino. Aqui a liturgia e, sobretudo, o ministrio dos sacramentos so os
vetores principais desta experincia.8 Estas questes no fazem parte do escopo desta tese.
No entanto, necessrio esclarecer que nossa interpretao rejeita a reduo da oratria
sacra sua dimenso (teo)lgica.
Enfim, no propomos a centralidade da teologia na oratria, mas acreditamos que h
uma indissociabilidade entre a hermenutica jesutica da situao colonial e a hermenutica
jesutica do mistrio, que base da orientao lgica da sua oratria. sob esta
perspectiva que entendemos a construo da inveno da guerra na oratria, como sendo
inveno teolgica da histria e como concepo misteriosa da poltica, definida pela moral
crist.
Estas ideias so o ponto de partida para compreendermos a leitura de Vieira sobre a
guerra contra os ndios. Acreditamos que o jesuta a concebe como tendo um lugar na
histria escatolgica crist e que, no ofcio de seu apostolado, este era um enigma
misterioso a ser esclarecido. A partir de sua prdica, Vieira intentava conciliar a vontade e a
ao dos colonos vontade divina. No caso da Amrica portuguesa, esperava-se dos
colonos aes que ajudassem o projeto poltico dos jesutas: inversamente ao que
praticavam, cabia-lhes participar da integrao dos ndios ordem colonial; etapa inicial
para resgat-los da gentilidade. A guerra, neste contexto, um problema central pelo fato
de ser um dos principais meios de se capturar escravos. A questo de sua justia era, por
um lado, a clivagem da legalidade da utilizao do indgena como mo-de-obra em uma
economia escravista. Por outro lado, era tambm a garantia de que o sentido evangelizador
da colonizao fosse mantido.
Neste captulo analisaremos os sermes de padre Vieira que, implcita ou
explicitamente, testemunham seu olhar sobre a guerra contra os ndios. Na colnia,
pecados como a cobia, a vaidade, o desamor, a avareza etc., conformavam a degradao 8 PCORA, Teatro do Sacramento, Op.Cit., ver captulo I, 4 De uma Trindade Perfeita.
11
em que vivia aquela sociedade. Em vista desse ambiente, a guerra precisa ser pensada no
interior de um sistema soteriolgico anlogo aos planos divinos para a histria. Nesse
sistema, a guerra, ou melhor, os juzos a respeito dela e as escolhas a ela relacionadas,
possuem profundas implicaes ticas e morais. Isso porque, as escolhas so determinantes
dentro de um sistema salvfico que impe as boas obras como uma condio para a
justificao. Propomos pensar a guerra como uma tpica, o que significa que a
compreendemos como sendo um lugar que encerra um conjunto de argumentos voltados
tomada de posies e ao, tica e moralmente ordenadas conforme princpios
evanglicos explanados pelo pensamento jesutico.
Demonstraremos que, para Vieira, a guerra estava na origem de todos os pecados que
enredam os colonos do Maranho e Gro-Par. Admoestar contra a cobia, censurar a
vaidade, condenar os cativeiros ilegtimos, denunciar a injustia da guerra postar-se
contra os nimos e as aes distanciadas do bem cristo que, ciclicamente, enredavam
aquela sociedade condenada. Neste sentido, os sermes propunham inteleco
imperfeita dos homens o reconhecimento do mistrio, que, por sua vez, era a mediao dos
desgnios ocultos da Providncia. Ao jesuta, como membro e porta-voz da Igreja, cumpria
anunci-lo e decifr-lo ao auditrio de fiis. Para isso, expe a adequada interpretao da
doutrina e traduz os sentidos figurais dos eventos histricos (da a base teolgica da
parentica), investe contra os enganos e vcios que corrompem as conscincias, comove e
consola o esprito dos homens levando-os a comunho com o Criador. Lanamos, assim, a
hiptese de que os sermes, ao comunicarem a guerra pela via misteriosa, a entendiam
como uma ocasio em que os colonos poderiam, pela escolha do livre-arbtrio, realizar ou
contraditar o plano divino. Se na concepo do mistrio temos que o divino sacramenta as
mais diversas substncias e circunstncias, a guerra oferecia os elementos duais e
contraditrios prprios expresso do universo sacramental cristo. Para Vieira, o mistrio
sinalizava e o pregador evanglico desenganava, aos homens, contudo, restava escolher e
agir em conjunto com a Providncia. Com isso, podiam ou no colaborar para sua prpria
salvao e para o destino da monarquia catlica portuguesa.
12
13
PARTE I
14
15
1. Mistrios e interpretao da histria na soteriologia jesutica
1.1 Introduo
Esse captulo se prope a compreender como a tpica do mistrio fundamental para
hermenutica jesutica se constituiu como um mecanismo privilegiado de compreenso do
mundo nos sculos XVI e XVII. O mistrio entendido como a forma pela qual Deus sinaliza
para os homens sua presena constante no mundo criado, indicando e comunicando seus
desgnios. Para tanto, parte-se da ideia de que os homens so seres especiais dentre todas
as criaturas: sendo fruto de uma escolha amorosa de Deus, os homens so capazes de uma
unio com o transcendente. Como veremos, segundo a filosofia crist, isto s possvel
atravs da graa que institui a participao do homem no Ser de Deus.
Nosso objetivo ser demonstrar que, no interior do pensamento cristo e, mais
especificamente jesutico, haveria uma compreenso humanista do homem que o
capacitaria a conhecer e agir na direo do Bem. Mais importante, pelo uso prudente da
razo, ser-lhe-ia possvel adequar a sua vontade e a sua ao vontade de Deus. Nesse
sentido, caberia aos homens o papel de coadjutores da Providncia para a consecuo do
reino de Deus na terra.
Contudo, a despeito da graa (disponvel a todos os homens) e da razo natural, o
homem (em decorrncia do pecado original) permaneceria incapaz de conhecer plena e
isoladamente a Verdade. Por essa razo, a magnanimidade divina institui os mistrios no
mundo criado. A Igreja e seus membros seriam, exclusivamente, os mediadores da
comunicao humana com o divino, realizada atravs do ministrio dos sacramentos e da
oratria sacra. Ao sacerdote caberia, portanto, o papel de ajudar os homens na busca da
salvao de suas almas, que, catlica e tridentinamente, d-se pela graa, pela f e pelas
obras. Enfim, os mistrios revelados no mundo, e interpretados pelos padres, teriam a
funo de advertir os homens sobre os enganos e os vcios, sinalizando, enfim, para as aes
prudentes consoantes vontade de Deus. Todavia, como procuraremos deixar claro, os
mistrios no agem de forma coativa aos homens, pelo contrrio, h aqui a afirmao do
livre-arbtrio e de seu valor moral tpica esta genuinamente inaciana.
16
A apresentao do entendimento teolgico-cristo sobre a salvao e os mistrios,
notadamente no pensamento jesutico, dar o fundamento doutrinrio e teolgico
necessrio para compreendermos o sentido missionrio e o carisma que animavam a ao
da Companhia de Jesus junto aos ndios e colonos da Amrica portuguesa no sculo XVII.
Como procuraremos demonstrar atravs da anlise dos discursos do padre Antnio Vieira,
os mistrios desvelados em seus sermes tinham o sentido de desenganar os colonos contra
os vcios que enfraqueciam o real motivo de sua presena no Novo Mundo, qual seja,
promover a incorporao dos ndios ordem colonial e, assim, facultar-lhes a entrada no
grmio da Igreja e do Estado na condio de sditos cristos. Cumprindo esta misso
providencial, estariam eles mesmo colaborando para sua prpria salvao.
1.2. A construo do ethos jesutico
O fundamento missionrio dos pilares mais centrais por meio dos quais se institui a
Igreja Catlica, estando isso evidente na efuso do Esprito Santo nos Apstolos no dia de
Pentecostes9. O Evangelho diz: ir anunciar a obra e a palavra do Mestre a todas as gentes
(Mt 28, 20) Tal fundamento , sem dvida, parte essencial na construo do ethos da
Companhia de Jesus. Fundada por Santo Incio de Loyola em 1534, na esteira da Contra-
Reforma10, a ordem constituiu-se como herdeira da vocao apostlica num momento em
9 O Pentecostes a celebrao da efuso do Esprito Santo. Para os cristos, o Pentecostes marca o
nascimento da Igreja e sua vocao para a misso universal. Pentecostes Tendo-se completado o dia
de Pentecostes, estavam todos reunidos no mesmo lugar. De repente, veio do cu um rudo como o
agitar-se de um vendaval impetuoso, que encheu toda a casa onde se encontravam. Apareceram-lhes,
ento, lnguas como de fogo, que se repartiam e que pousaram sobre cada um deles. E todos ficaram
repletos do Esprito Santo e comearam a falar em outras lnguas, conforme o Esprito lhes concedia se
exprimissem. (At 2, 1-5). 10 Na viso de OMalley, o surgimento da Companhia no deve ser entendido como uma resposta ou
reao catlica Reforma, embora seu destino tenha sido fortemente marcado pelo movimento da
17
que as fronteiras do mundo conhecido se dilatavam: ir pregar aos novos gentios, era a
missio colocada aos jesutas.
Diferente das outras ordens religiosas, a Companhia de Jesus representa um modelo
de espiritualidade e de ao que se projeta no mundo. O monasticismo, onde a experincia
com Deus se d claustro, abandonado pelos jesutas, que introduzem a ideia de uma
ascese no mundo11. At ento, acreditava-se que, pela contemplao, o homem purificava-
se, mas, ainda assim, a salvao era uma graa de Deus. Mesmo a escola mstico-asctica,
que introduz pela primeira vez um caminho prtico (exerccios ascticos) em oposio a
uma mstica exclusivamente passiva, considerava que uma tal via purgativa preparava o
Contra Reforma (ou como prefere o autor, Reforma Catlica). Para ele, a Companhia teria existido
independentemente da Reforma. Para o autor: No h necessidade de acentuar que a Reforma
influenciou a imagem da Companhia de Jesus, que de fato frequentemente descrita como tendo sido
fundada precisamente para opor-se ao protestantismo. Esta descrio, obviamente, erra o alvo. (p.36)
E mais: Em muitas partes do mundo, o impacto direto da Reforma sobre os jesutas varia do mnimo
at o inexistente. O impacto indireto outra questo totalmente diferente e muito mais complexa.
Ainda sobre esta questo, o autor entende que o programa institudo pelo Conclio de Trento no
coincide exatamente com o da Companhia: Nem todas as caractersticas que associamos ao
catolicismo tridentino encontram comprovao na Companhia de Jesus. Mais especificamente, apesar
do envolvimento de alguns poucos jesutas lderes no Conclio de Trento e do evidente apoio da
Companhia ao Conclio, os jesutas como um corpo tinham caminhos significativamente diferentes para
alcanar as metas comuns que compartilhavam com o Conclio. Para o autor, os jesutas no seguiram
risca a agenda tridentina, pois tinham sua prpria agenda. OMALLEY, John W. Os Primeiros Jesutas.
So Leopoldo, RS: Editora UNISINOS; Bauru, SP: EDUSC, 2004, p.37-38. 11 Em um dos textos fundadores da Companhia de Jesus, a Frmula do Instituto, ficava estabelecido que,
contrariamente a outras ordens religiosas, a Companhia no obrigaria seus membros a recitar e cantar
em conjunto em longas jornadas litrgicas. Por outro lado, como nos informa John W. OMalley, a
Frmula estipulava que os jesutas (...) tinham que pronunciar um voto especial a Deus que os
comprometia a percorrer qualquer lugar do mundo para realizar o ministrio, quando assim ordenado
pelo Papa. Segundo o autor, esse documento oficial da ordem um dos menos conhecidos entre
queles atribudos a Igncio de Loyola. A redao da Frmula (1539) contou ainda com o auxlio de um
comit, cujo destaque foi a contribuio do jesuta Joo Alfonso de Polanco, secretrio de Loyola. Aps a
morte de Loyola, o documento foi revisado em 1550. Nessa segunda verso foram incorporadas
algumas clarificaes e introduzidas mudanas decorrentes da experincia missionria, que ocorriam
desde 1540. Idem, p.21-22.
18
homem, no melhor dos casos, para receber a inspirao divina. A unio com Deus
continuava, pois, como um dom extraordinrio e voluntrio de Deus.
A novidade trazida pelos jesutas , justamente, um modelo de espiritualidade que v
no homem aptides para se alcanar a perfeio. Isto no significava em absoluto a
negao do ato divino da graa, porm introduzia a ideia de que era possvel um
aperfeioamento espiritual, fruto de uma escolha racional, que se constituiria numa
condio pra a justificao. Conforme o estudioso da Companhia de Jesus, Ren Flop
Miller,
Segundo essa concepo, o homem no estava mais condenado a
esperar pacientemente se e quando essa visio Dei viria ter com ele; pelo
contrrio, foi atribuda vontade humana essa fora que, anteriormente, se
buscara apenas na ao de uma transfigurao sobrenatural.12
Assim escreve Loyola a um irmo da ordem: Todas as vezes que eu quiser, poderei
encontrar a Deus.13 Basta para isso que o homem aspire a Deus de forma adequada, onde
alm do fervor, haja necessariamente o uso acertado das aptides naturais. Assim como,
(...) pelo caminhar, a marcha e a carreira o corpo pode ser treinado, assim tambm
possvel preparar a vontade por meio de exerccios, a fim de que ela encontre a vontade
divina.14
Encontrar a vontade divina tambm se postar como soldado militante, empenhado
na luta pelo Reino e pela Glria de Deus. Nos Exerccios Espirituais, o Jesus Cristo descrito
por Igncio de Loyola no aparece como objeto de meditao contemplativa, mas sim como
um Rei em luta contra as foras infernais. Cristo dirige a palavra aos exercitantes e exige
deles deciso e ao: os jesutas devem ser, pois, os seus mais devotados soldados em
12 MILLER, Ren Fllop. Os Jesutas: seus segredos e seu poder. Traduo Alvaro Franco. Rio de Janeiro/
Porto Alegre/ So Paulo: Edio da Livraria do Globo, 1946, p.22. Sobre essa obra, importante salientar
que, em nossa opinio, o autor por vezes exagera ao descrever a autonomia da vontade para a
justificao, encolhendo, consequentemente, o papel da graa neste processo. Voltaremos a esse ponto
adiante. 13 LOYOLA apud Miller, Idem, p.22. 14 LOYOLA apud Miller, Idem, p.22 (grifo nosso)
19
campanha. O Reino todo deve ser trazido verdadeira F; a converso dos gentios ,
portanto, dever dos soldados.
Sobre a imagem da Companhia como um exrcito militante, OMalley nos esclarece
que:
Porque as meditaes [parte do texto dos Exerccios Espirituais]
empregam imagens blicas, elas tm ajudado a sugerir a interpretao de que
a Companhia de Jesus foi concebida segundo um modelo de exrcito. Nessa
mesma exortao, como tambm em outros lugares, Nadal apoiou tal ponto
de vista quando, por exemplo, perguntou: Voc no v que estamos em
guerra, que estamos em luta? Ele fez assim ainda mais enfaticamente quando
chamou a Companhia de esquadro. Em outros documentos jesuticos, tal
imagem ocorria repetidamente e tinha at mesmo certa proeminncia.
Contudo, no os domina como um motivo condutor. 15
Enfim, a reforma crist do mundo, segundo os Exerccios, dependeria da ao
afirmativa dos jesutas como um homem completo. Pois (...) s o homem completo, sem
renunciar a quaisquer de seus dotes, intelectivos, sensveis e ativos, poderia esperar
encontrar o caminho para aquele que o criou nessa inteireza.16
Em outro texto fundador da Companhia, as Constituies17, est estabelecida a relao
que h entre a salvao dos membros da ordem e a salvao dos outros: a primeira no
ocorre sem o trabalho assduo e dedicado na direo da segunda a busca pela salvao do
15 OMALLEY. Op.Cit. p.75. 16 PCORA, Alcir. Teatro do Sacramento. A unidade teolgico-retrico-poltica dos sermes de Antonio
Vieira. Campinas: Editora Unicamp/ So Paulo: Edusp, 2 ed., 2008, p.68. 17 A primeira impresso das Constituies, na sua verso latina, data de 1558-1559. Segundo OMalley,
as Constituies (...) articulavam os princpios gerais segundo os quais a Companhia esperava alcanar
suas metas e traduziam as generalidades da Frmula para estruturas e procedimentos concretos.
Alcanaram isso principalmente enfocando a qualidade essencial que a pessoa deveria ter para o
sucesso dessa associao voluntria. (...) As Constituies esto estruturadas, em grande parte, sobre
princpios de desenvolvimento espiritual com a ideia de que o jesuta cresceria espiritualmente e que
as diferentes orientaes seriam adequadas aos diferentes tempos e etapas do percurso espiritual.
Segundo o autor, o secretrio de Incio de Loyola, Jernimo Nadal, teve papel fundamental na redao
do documento. OMALLEY. Op.Cit. p.24.
20
prximo, como ato caritativo e participao na coautoria da Providncia, meio para se
buscar a remisso prpria. O modelo da espiritualidade jesutica, enfim, volta-se para a
alma do prximo e, nesse sentido, a misso a expresso exata dessa vocao.18 Podemos
evidenciar o imbricamento entre a santificao pessoal e a atividade apostlica em um
documento anterior mesmo s Constituies:
O fim da Companhia no somente ocupar-se da salvao e perfeio
das almas prprias com a graa divina, mas tambm com a mesma, procurar
intensamente ajudar a salvao e perfeio dos prximos.19
importante notar que a santificao pessoal do jesuta continua sendo, antes de
mais nada, obra da graa. Jesus Cristo, como juiz justssimo e misericordioso, quem
justifica e santifica, conforme uma perfeio de juzo indisponvel aos homens. De maneira
anloga, a salvao do prximo tambm depende do ato divino e da vontade de cada fiel.
Nesse sentido, o papel do missionrio, como descrito no documento acima, no salvar,
mas procurar intensamente ajudar a salvao e perfeio dos prximos; para isso, enfim,
que o jesuta desempenha seu ministrio, numa clara vocao apostlica.
Presente desde o incio da expanso ultramarina das monarquias ibricas, a
Companhia de Jesus levou suas misses aos quatro quadrantes do Orbe, sendo, no caso
portugus, a ponta de lana para a consolidao dos empreendimentos coloniais. A
construo de uma unidade jesutica se deu, portanto, pari passu fragmentao
18 importante ressaltar que, paralelamente vocao missionria, os jesutas assumiram um papel
pioneiro e fundamental no campo da educao, com a fundao de inmeros colgios ao redor do
mundo. Assim, ao longo dos sculos, a Companhia de Jesus orientou seus objetivos no somente para a
instruo de seus prprios membros, mas tambm dos jovens em geral. Desta maneira, como explica
Josette La Roche, os jesutas buscaram (...) ensinar as letras e a virtude juventude, com o objetivo de
faz-la um meio de promoo dos valores defendidos pela Companhia, em seu mundo. LA ROCHE,
Josette Riandire. La formation de lenfant par les jsuites. Lexemple du collge dOcaa. In:
REDONDO, A. (org.). Formation de lenfant en Espagne au XVIe et XVIIe sicles. Paris: Publications de la
Sorbonne, 1996, p. 194. Citado em CASTELNAU-LESTOILE, C. Operrios de uma Vinha Estril. Os jesutas
e a converso dos ndios no Brasil 1580-1620. Bauru: SP: EDUSC, 2006. 19 LOYOLA, Incio de apud LEITE, Serafim. Histria da Companhia de Jesus. Rio de Janeiro: Ed. Civilizao
Brasileira, 1950, tomo I, p.9.
21
caracterstica de sua atividade itinerante. Isto s foi possvel graas a uma particular
organizao poltica-institucional e identidade espiritual, definidas modelarmente em seus
textos fundadores: as Constituies e os Exerccios Espirituais.20 A frmula expressa no
nosso modo de proceder (noster modus procedenti) representa bem a interpretao moral e
institucional da vocao inaciana. Nela esto, essencialmente, a combinao entre a
obedincia e a adaptabilidade, por um lado, e a instituio epistolar, por outro.
A obedincia exigia uma reflexo e reconstruo das ordens dadas pelos superiores,
possvel pelo exame minucioso do argumento, algo bastante diferente de uma aceitao
passiva comum obedincia vivida nos monastrios. Dentro do modo de proceder jesutico,
a obedincia deveria ser acompanhada da prudncia, que, dessa forma, abria espao para o
casusmo, os exerccios da razo prtica e da tomada de decises acertadas. Enfim, a
obedincia em conjunto com a prudncia dava ensejo adaptabilidade condio essencial
para o sucesso das misses em contextos culturais e geogrficos to dspares.21
Sobre essa questo, OMalley nos informa que o documento jesutico Chronicon
Societatis Jesu uma fonte exemplar que desfaz o esteretipo de uma ordem fundada em
uma obedincia cega. Para ele, o documento:
Substitui esta imagem com o quadro de uma vasta rede de indivduos
empreendedores, que mantendo estreita comunicao com seus superiores
20 Para um bom estudo dos contedos dos textos jesuticos fundadores, as Constituies e os Exerccios
Espirituais, ver: MILLER, Op. Cit.; CASTELNAU-LESTOILE, Op.Cit.; OMALLEY, Op.Cit. 21 Miller nos oferece uma boa explicao para o sentido jesutico de obedincia: Distingue Incio,
cuidadosamente, diferentes graus de obedincia: o grau mais baixo, a obedincia do ato, puramente
exterior, consiste em que o subordinado se limite a executar a ao de que foi incumbido; essa
obedincia, designava-a Loyola como muito imperfeita. O segundo grau caracterizado pelo fato de
que o subordinado torna sua a vontade do superior; esse grau j proporciona alegria ao ato de
obedecer. Mas quem quiser dedicar-se por inteiro ao servio do Senhor, dever oferendar, alm de
sua vontade, tambm o seu raciocnio: Haver mister que ele chegue ao ponto de no se limitar,
apenas, a querer a mesma coisa que o superior, mas tambm a pensar da mesma maneira que ele, que
o seu julgamento se submeta ao do seu superior, na medida que a vontade entregue possa dobrar a
inteligncia. MILLER, Op.Cit., p.39.
22
e recebendo deles orientao e consolao adaptam-se s necessidades
locais e tentam aproveitar as oportunidades como se apresentam.22
As cartas, por sua vez, tinham um papel fundamental para a unidade institucional e
doutrinria da Companhia de Jesus, sendo, sem exageros, a espinha dorsal da ordem.23 As
cartas eram a forma exclusiva de comunicao e registro, essencial organizao e controle
do corpo hierrquico, pois mantinham a conformidade da prtica missionria s normas da
instituio. Esta correspondncia circulava em dois sentidos, da hierarquia na Europa s
provncias em todo o mundo, e dessas provncias para as autoridades eclesisticas
europeias. Por fim, mas no menos importante, as cartas promoviam a unio dos irmos
em uma s vontade, alcanada, pois, pelos efeitos consoladores e edificantes presentes nas
cartas. O estilo discursivo das cartas obedecia a um rigoroso enquadramento retrico-
potico, fundado na ars dictaminis medieval. 24
22 OMALLEY. Op.Cit., p.30. O Chronicon Societatis Jesu foi escrito pelo secretrio de Incio de Loyola,
Joo Alfonso de Polanco, um dos jesutas mais importantes da primeira gerao e que produziu um
legado profundo para as geraes posteriores. Como secretrio da Companhia, valia-se da vasta
correspondncia trocada entre os membros para compor cartas circulares, na qual resumia as atividades
mais importantes dos jesutas nas diversas misses espalhadas pelo mundo. Segundo OMalley, o
trabalho mais extenso de Polanco foi a Chronicon, ditado a outros secretrios entre os anos de 1573-
1574. O trabalho (...) uma crnica detalhada das atividades dos membros da Companhia, casa por
casa, provncia por provncia, pas por pas, ano por ano, desde 1537 at a morte de Incio em 1556. (...)
Polanco relatou na crnica, quando podia, o nmero de jesutas em cada casa, seus sucessos e fracassos
nos ministrios, seus relacionamentos com as classes altas e baixas da sociedade. Polanco pesquisou os
arquivos da correspondncia que lhe havia chegado para sua informao, que conhecia melhor do que
qualquer outro. O Chronicon contm as imperfeies de todos os documentos desse gnero.
OMALLEY, Op.Cit. p.29-30. 23 CASTELNAU-LESTOILE, Op.Cit., p.72. 24 Para o entendimento da Companhia de Jesus como uma instituio epistolar, ver: LODOO, Fernando
Torres, Escrevendo Cartas Jesutas, Escrita e Misso no Sculo XVI. In: Revista Brasileira de Histria.
V.22, n.43, So Paulo, 2002. Para uma boa apreciao dos estilos e partes das cartas, ver: PCORA,
Cartas Segunda Escolstica. In A outra margem do Ocidente. Adauto Novaes (org). So Paulo:
Companhia das letras/ Minc. Funarte, 1999, p. 373-414. PCORA, Alcir. A arte das cartas jesuticas do
Brasil. In Mquina de Gneros: novamente descoberta e aplicada a Castiglione, Della Casa, Nbrega,
Cames, Vieira, La Rochefoucauld, Gonzaga, Silva Alvarenga e Bocage. So Paulo: Edusp, 2001, p.17-68.
23
A espiritualidade jesutica que se projeta no mundo exterior atravs da misso guarda
no apstolo Paulo uma particular fonte de inspirao. 25 A identificao mais primria e
evidente apresenta-se na figura do gentio, alvo dos apostolados jesutico e paulino, no
obstante as diferenas histricas e culturais que distanciam tais gentios. O ministrio
jesutico voltava-se, sobretudo, ao cuidado das almas das ovelhas perdidas, fossem elas
pags ou hereges. No que diz respeito a essa questo encontramos as palavras de OMalley,
que afirma:
(...) assim como o evangelizador Paulo e os primeiros discpulos de Jesus
foram modelos operativos mais poderosos na auto-imagem do jesuta do que
o modelo do soldado cristo, sua vocao, como as Constituies colocavam,
era viajar atravs do mundo e viver em qualquer parte dele, onde houvesse
esperana de maior servio a Deus e de ajuda s almas.26
Vejamos num rpido exemplo, como o entendimento que o apstolo tem dos pagos
influenciou o modo como os primeiros jesutas interpretaram os ndios da Amrica
portuguesa.
So Paulo, em sua Epstola ao Romanos, reconhece que os pagos tm acesso a certos
conhecimentos de Deus, independentemente de qualquer revelao:
Pois, o que de Deus se pode conhecer, bem o conhecem eles; porque
Deus lho ensinou. Com efeito, o que nele h de invisvel, contempla-o a
inteligncia em suas obras desde a criao do mundo: o seu poder sempiterno
e a sua divindade. (Rm 1, 19-20).
Voltaremos a discutir a produo epistolar dos jesutas, e de Vieira em particular, no captulo 4, item
4.3. Entradas, misso e mistrio em cartas e informaes de Pe. Antnio Vieira. 25 Vale lembrar que o apstolo Paulo foi tambm fonte de inspirao para a doutrina reformada. Na
teoria da justificao pela f, somente a Graa concorre para a salvao dos homens (predestinao),
no importando, portanto, a iniciativa e esforo humanos. Paulo citado como autoridade desse
argumento; entre uma das passagens podemos citar: Logo isso no depende do que quer, nem do que
corre, mas de Deus, que usa misericrdia (Rm 9,16). Voltaremos a esse ponto a seguir, quando
discutirmos a questo do livre-arbtrio no pensamento jesutico. 26 OMALLEY. Op.Cit. p.118.
24
Ademais, reconhece aos gentios um saber natural acerca da lei moral:
Se os pagos, que possuem a lei, fizerem de modo natural o que pede a
lei, ento eles, que no tm lei, servem de lei a si mesmos; por sinal que
mostram levar gravada no corao a essncia da lei. (Rm 2, 14).
Os primeiros jesutas que travaram contato com os ndios, a despeito do
estranhamento e repulsa causado pelos costumes dos naturais da terra, no deixaram de
afirmar em seus relatos a presena de uma rudimentar ideia de Deus. So famosas as
passagens em que o padre Manuel da Nbrega identifica no mito de Sum as
reminiscncias corrompidas do apostolado de So Tom.27 Haveria, portanto, uma
inclinao crist nos ndios, muito ressaltada nas primeiras cartas, cuja centelha da F
haveria de ser acesa pelo trabalho missionrio jesutico. Creio ser bastante apropriado as
27 Segundo Srgio Buarque de Holanda, o mito de Sum (o apstolo So Tom) foi o nico difundido
pelos portugueses nos primeiros tempos da colonizao, ao passo que coube aos espanhis a inveno
de inmeros outros. O mito de So Tom remonta ao sculo VI com a crena de comunidades crists no
Oriente. Na Amrica o primeiro registro do mito apareceu numa crnica de viagem de 1514. A lenda
difundia que o apstolo teria pregado a Palavra aos gentios em tempos imemoriais, e dessa passagem
pelo Novo Mundo ficaram inscritas as suas pegadas. Essa crena lusa parece ter sido corroborada pelos
ndios que, segundo vrias fontes, insistiam em mostrar aos adventcios os rastros do apstolo. Parece
de qualquer modo evidente que muitos pormenores dessa espcie de hagiografia do So Tom
brasileiro se deveram sobretudo colaborao dos missionrios catlicos, de modo que se incrustaram,
afinal, tradies crists em crenas originrias dos primitivos moradores da terra. Entre os jesutas, os
principais divulgadores do mito foram Manuel da Nbrega e Simo de Vasconcelos. Contudo, h notcias
de So Tom at mesmo nas crnicas do protestante ingls Anthony Knivet. HOLANDA, Srgio Buarque.
Viso do Paraso: os motivos ednicos no descobrimento e colonizao do Brasil. So Paulo: Ed.
Brasiliense, 6.ed., 1994, p.113. Ver p.108-129. Antnio Vieira tambm faz menso ao apostolado de So
Tom: Quando os portugueses descobriram o Brasil, acharam as pegadas de Santo Tom estampadas
em uma pedra que hoje se v as praias da Bahia; mas rasto, nem memria da f que pregou Santo
Tom, nenhum acharam nos homens. No se podia melhor provar e encarecer a barbaria da gente. Nas
pedras acharam-se rastos do pregador, na gente no se achou rasto da pregao; as pedras
conservaram memria do apstolo, os coraes no conservaram memria da doutrina. VIEIRA,
Antnio, Sermo do Esprito Santo, So Lus do Maranho, 1657. Alcir Pcora (org). So Paulo: Hedra,
2003, tomo I, p.422.
25
aproximaes entre os jesutas e So Paulo, no que toca razo do apostolado entre os
gentios.
No entanto, sobretudo a concepo paulina de comunidade crist (ekklesia) que os
jesutas parecem mais se aproximar, pois nela que encontraram o princpio que definiria
sua misso apostlica como uma misso universalista. So Paulo, a despeito de seu
importante papel na teologia crist, foi antes de tudo um pregador e fundador de
comunidades: suas sete cartas, compostas ao redor dos anos 50 e 60 do sculo I,
testemunham a viso do apstolo sobre a vida religiosa das igrejas dos primeiros tempos.
Segundo o historiador Adoni Agnolin, o fulcro do pensamento paulino pode ser
expressado pela seguinte sentena: F certeza nas coisas esperadas, demonstrao das
coisas que no se vem (Hebreus 11, 1). Trata-se da f e esperana na existncia do Reino
dos Cus e na imortalidade da alma, que, assim, tem a possibilidade de fazer parte dele. A
f na admisso da alma do fiel no Reino de Deus (interpretao bastante diferente da
veterotestamentria) estende a possibilidade da salvao. Para o autor, a eclsia paulina
(...) encontrava-se aberta em direo ao exterior e, ao mesmo tempo, caracterizava-se por
uma mobilidade scio-religiosa que englobava o mundo, quase sem limites.28 parte as
distines tnicas, sociais ou de origem, a eclsia mostra-se receptiva e abrangente, sua
unidade, pois, era decorrncia da transformao interior dos homens, experimentada,
sobretudo, no momento litrgico. Na Carta aos Romanos diz Paulo: No vos identificais
com o esquema deste mundo, mas transformai-vos atravs da renovao da mente. (Rm
12, 2). Segundo Agnolin:
No se tratava, portanto, de substituir (subverter) o esquema do mundo
dado, mas de transformar o mundo na prpria interioridade (o homem
interior, segundo a repetida expresso do apstolo), vivendo uma realidade
diferente e sobrenatural inspirada na forma de Cristo. Nesse sentido,
segundo Paulo, no havia um projeto poltico de transformao da plis, mas
havia um projeto de transformao interior do homem que se fundamentava
28 AGNOLIN, Adoni. Jesutas e Selvagens. A negociao da F no encontro catequtico-ritual americano-
tupi (sc. XVI-XVII). So Paulo: Humanitas/Fapesp, 2007, p.123.
26
no novo polteuma a nova cidadania desejada pelo crente que se
encontrava somente longe deste mundo, nos cus.29
A eclsia prpria da concepo paulina, enfim, abre-se numa perspectiva universalista
(...) peculiar e abrangente, paralela quele do Imprio (romano) no qual de forma
exemplar, sobretudo, com a obra agostiniana se enxertar na (e fortalecer
sucessivamente a) dimenso universal de uma religio finalmente imperial.30
No interior do pensamento jesutico, soma-se, concepo universalista da misso,
uma profunda confiana na participao do homem em sua prpria salvao (j sinalizada
no incio do captulo). Essa crena deve ser entendida no como uma autonomia humana
frente vontade divina, mas, pelo contrrio, como consequncia do ato extremo de amor
divino, que, pela graa, funda no homem a participao em seu Ser, e, assim, dota-lhe da
capacidade de ir em busca do Bem (finalidade de toda criatura). Esta ideia central do
pensamento jesutico de suma importncia para esta pesquisa, por essa razo, iremos a
partir de agora acompanhar a origem de seus argumentos no interior da filosofia crist.
1.3. Livre-arbtrio e salvao na ortodoxia crist
Alcir Pcora, em seu livro Teatro do Sacramento31, identifica um autntico entusiasmo
humanista na Companhia de Jesus, particularmente manifesto na extensa obra
sermonstica do padre Antnio Vieira. Esse humanismo, todavia, precisa ser entendido para
alm da presena de uma vasta rede de autores clssicos (filsofos, poetas, moralistas,
historiadores) que compe as referncias literrias da poca renascentista e barroca.
29 Idem, p.124. Os argumentos expostos pelo autor fundamentam-se na obra Antropologia delle origini
cristiane, dos autores Adriana Destro e Mauro Pesce. 30 Idem, p.122. 31 PCORA, Alcir. Teatro do sacramento. A unidade teolgico-retrico-poltica dos sermes de Antonio
Vieira. Campinas: Editora Unicamp/ So Paulo: Edusp, 2 ed., 2008.
27
Nota-se que, em Vieira, a referncia aos autores clssicos est condicionada pela forte
influncia da Segunda Escolstica (neotomismo), que foi conduzida, primeiramente, por
pensadores dominicanos e, num segundo momento, pelos jesutas.32
Em um entendimento mais precpuo, o humanismo jesutico deve ser lido luz do alto
sentido da Criatura Humana na inteireza crist do termo 33 o que nos leva de imediato
a considerar a particularidade do homem dentro da obra da Criao. Os homens, enquanto
gnero, foram escolhidos (eleitos) para receberem a graa de Deus, como um ato expresso
de sua Vontade. Desta eleio surge a possibilidade de se estabelecer uma relao de unio
com Deus, que exclusiva dos homens entre todas as outras criaturas. Enfim, o homem
objeto de uma escolha amorosa de Deus e, nas palavras de Pcora, (...) uma escolha
desinteressada que no tem outro propsito seno estender aos homens a participao no
seu Ser.34 Vejamos, de maneira breve, como esse argumento construdo dentro da
ortodoxia crist.
No pensamento cristo, tudo que existe deve necessariamente a Deus o seu ser, que ,
portanto, causa primeira da Criao: (...) Deus o ser primeiro e absolutamente perfeito;
ele deve portanto ser necessariamente a causa que faz ser tudo o que existe.35 Nesta ideia,
a ao criadora no se d a partir de uma matria preexistente, pelo contrrio, exclui toda
suposio deste gnero Deus criou e cria coisas ex nihilo. No mundo cristo, a criao a
32 Este movimento intelectual teve profundo impacto na reordenao catlica dos sculos XVI e XVII
vivenciada, sobretudo, nas monarquias ibricas. Segundo Quentin Skinner, as teorias neotomistas
tiveram grande importncia na fundao do pensamento poltico moderno. Na sua primeira fase, o
neotomismo tem como maiores expoentes os dominicanos Francisco de Vitria, Covarrubias, Melchior
Cano e Domingo de Soto na primeira metade do sculo XVI. J na segunda fase, destacam-se os
jesutas Francisco Suarez e Luis Molina (ambos professores em Portugal, o primeiro em Coimbra, o
segundo em vora). SKINNER, Quentin. As Fundaes do Pensamento Poltico Moderno. So Paulo:
Companhia das Letras, 1996. Ver a parte 5, O Constitucionalismo e a Contra-Reforma, especialmente,
o captulo 14. 33 PCORA, Op. Cit., p.70. 34 Idem, p.71. 35 GILSON, tienne. O Esprito da Filosofia Medieval. So Paulo: Martins Fontes, 2006, p.100.
28
emanao do ser total, a partir do nada, e se d pela (...) evocao de algo fora do nada
pela simples palavra fiat36, exemplarmente expressa nos primeiros versculos do Gnesis.37
No pensamento cristo, somente Deus Ser (...) esse nome pertence a esse ser
nico num sentido que s a ele convm pois somente nele a existncia idntica
essncia38. Disso decorre que somente o Ser capaz de conceber o ser: a criao
portanto a ao causal prpria de Deus, ela lhe possvel e s possvel para ele.39 Se
Deus o Ser, e tambm nico, tudo o que no Deus s pode dele receber sua existncia.
Consequentemente, os seres so, ao mesmo tempo, efeitos da causa primeira e
contingentes. verdade dizer, portanto, que, salvo Deus, tudo o que existe poderia no ser
o que , como passa a ser verdade dizer que, fora Deus, tudo o que existe poderia no
36 Idem, p.92. Ver nota 5, que discute a diferena entre o entendimento platnico e cristo sobre a
criao. 37 Gilson problematiza a questo indagando-nos como pensar esse nada seno como (...) uma
espcie de matria de que o ato criador tira seus efeitos? No pensamos seno a mudana, a
transmutao, a alterao; para pensar a criao, teramos de poder transcender, ao mesmo tempo que
nosso grau de ser, nosso grau de causalidade.. Ainda em nota o autor acrescenta: Estamos portanto
num desses pontos em que uma noo que, por si, racional pode escapar da razo na medida em que
est privada do socorro da revelao. Ver o captulo Analogia, Causalidade e Finalidade, p.123 e nota
7. 38 Gilson explica que a distino entre essncia e existncia foi um ganho da filosofia crist em relao
filosofia grega de Plato e Aristteles. Segundo o autor: A distino real entre essncia e existncia,
embora ela s se formule nitidamente a partir do sculo XIII, ento uma novidade filosfica, a qual,
pode-se dizer, estava virtualmente presente desde o primeiro versculo do Gnese. Num ser criado, por
mais simples que seja, mesmo se fosse uma forma separada e subsistente, como o Anjo, a essncia no
contm em si a razo suficiente da sua existncia, mas precisa receb-la; logo, sua essncia realmente
distinta da sua existncia. Essa composio radical, inerente ao estado da criatura, basta para distinguir
todo ser contingente do Ser mesmo. Ver captulo Os seres e sua contingncia, p.90, ver nota 3. 39 Idem, p.122. Para reforar a explicao, citemos Gilson comentando So Toms: Em resumo, Deus
causa porque ele o Ser e, como ele o Ser que no pressupe nenhum outro ser, ele a causa que
no pressupe nenhuma outra causa. Ora, a causa primeira produz o primeiro efeito; o primeiro efeito,
aquele que todos os outros supem, a existncia; cabe pois com exclusividade ao Ser causar a
existncia, e isso criar. por isso que a criao o ato prprio de Deus. (ver p.122-123, nota 6).
29
existir40. No universo cristo, enfim, a existncia marcada por uma contingncia
radical. Segundo Gilson:
Todo ser contingente deve sua contingncia ao fato de que no mais que
uma participao no ser; ele tem seu ser, mas no no sentido nico em que
Deus o seu. por isso que os seres contingentes no passam de causas
segundas, assim como no passam de seres segundos. (...) Numa palavra, o homo
faber no pode de maneira nenhuma se tornar um homo creator, porque no
tendo apenas um ser recebido, no poderia produzir o que no , nem superar na
ordem da causalidade o nvel que ocupa na ordem do ser.41
Sendo Deus o nico Ser, disso decorre tambm sua perfeio, infinitude e eternidade:
nada pode ser acrescentado a ele ou retirado dele. Os seres, todavia, so contingentes,
submetidos ao devir e mudana; (...) no so portanto seres perfeitos e imutveis, como
necessariamente o Ser.42
No universo cristo, os seres so efeitos de Deus e, necessariamente, anlogos a Ele.
No que diz respeito especificamente ao humano, dizer que o homem anlogo a Deus, no
significa dizer que faz parte Dele, mas sim que participa de seu Ser. Segundo Gilson,
estamos falando de duas ordens de seres que no so capazes nem de adio, nem de
subtrao: (...) eles so, rigorosamente falando, incomensurveis, e tambm por isso
que so compossveis.43 A analogia que aqui se fala significa, segundo o tomismo, uma
participao (ser causado), nunca uma identificao ou coincidncia (tomar parte). O Ser
permanece o mesmo antes e depois da criao, e os seres no so jamais idnticos ao Ser.
Como bem ressalta Gilson:
40 Idem, p.89. A questo aparece mais clara na explicao de Pcora: Na perspectiva crist, como se
sabe, no apenas os seres que existem so contingentes em relao ao seu modo de existncia (isto ,
poderiam ser diversos do que so) como, mais do que isso, tampouco precisariam ser (uma vez que
nada preexiste vontade soberanamente livre de Deus). PCORA, Op. Cit., p.72, nota 35. 41 Idem, p.122. 42 Idem, p.87. 43 Idem, p.129
30
Convm recordar sempre que a semelhana da criatura com Deus nada
mais que a semelhana de um efeito cujo ser to-somente anlogo ao ser
da sua causa e, muito embora anlogo, , infinitamente diferente dela.44
Os filsofos cristos buscaram distinguir cuidadosamente as vrias espcies ou graus
de analogia entre Deus e os seres. No que diz respeito ao homem, a analogia dada por
uma proporcionalidade que se espelha (est contida) na graa. pois, pela graa, que os
homens participam do Ser de Deus. Como dito anteriormente, h a um ato amoroso e
voluntrio de Deus em escolher o homem entre todas as outras criaturas. Essa escolha,
como sinaliza Pcora, qualifica o humano como o que voluntariamente pretendido por
Deus.45 Esta escolha uma glria que resgata o homem de sua condio de contingncia
radical, ao facultar-lhe a possibilidade de conhecer o plano divino.46 Porm, para que isso
acontea, entra em cena uma faculdade (exclusiva e definidora do humano) tambm
anloga ao Ser de Deus: a razo natural.
Deus criou os homens dotados de razo e vontade, com poder de escolha semelhante
aos dos anjos, seres tambm racionais.47 Ao criar os homens, Deus estabeleceu-lhes
44 Idem, p. 129. 45 PCORA, Op. Cit., p.72. 46 Como veremos a seguir, a possibilidade do homem conhecer o plano divino d-se pelo carter
sacramental do universo (um universo em que se leem em todas as coisas os vestgios da divindade).
Nele a prpria natureza um meio seguro de iniciao F. Esse entendimento fica explcito na
seguinte passagem de Vieira: (...) Deu Deus primeiro aos homens por mestra a natureza, havendo-lhe
de dar depois a profecia, porque as obras da natureza so rudimentos dos mistrios da graa, e muito
mais facilmente aprenderiam os homens o que se lhes ensinasse na escola da f, tendo sido primeiro
discpulos da natureza. Antnio Vieira apud Pcora, Op.Cit., p.137. 47 So Toms de Aquino explica na Smula Contra os Gentios, que a razo humana consideravelmente
menor que a razo anglica, visto se tratar de seres ontologicamente diferentes. Assim diz: Ora, a
inteligncia dos anjos supera de muito a dos homens, em proporo muito maior do que a inteligncia
do filsofo mais profundo supera a inteligncia do ignorante mais rude, pois esta ltima diferena
permanece dentro dos limites da espcie humana, limites que a inteligncia dos anjos ultrapassa. O
conhecimento que o anjo possui de Deus tanto mais profundo e perfeito do que o conhecimento que
o homem possa lograr de Deus, quanto o seu ponto de partida um efeito mais nobre, na medida em
que a substncia do anjo, a qual por um conhecimento natural conduz at o conhecimento de Deus,
supera em dignidade as coisas sensveis e a prpria alma humana, que faz a inteligncia humana altear-
31
algumas leis ao mesmo tempo que lhes deu o poder para criar as suas. A vontade humana,
a