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1 Para uma Perspectiva da Cultura Portuguesa Fernando de Mello Moser * Para uma Perspectiva da Cultura Portuguesa ** 1. Nas reflexões que se seguem, proponho-me apresentar, sinteticamente, a tentativa de conciliação, interpretativa, de alguns modelos que têm sido aplicados à análise de elementos integrantes da Cultura Portuguesa e a esta no seu conjunto. Para evitar ambiguidades, começo por esclarecer qual o conceito, ou conceitos, de cultura, subjacentes a todas estas reflexões. Cultura será, no presente contexto, a «herança so- cial», como a definem os antropólogos, ou ainda «o conjunto de comportamentos e modos de pensar próprios de uma sociedade» ( 1 ), ou ainda: «o conjunto de expressões e manifestações de actividade humana, que, em determinado espaço e / ou tempo define, por contraste, uma originalidade» ( 2 ). De acordo com qualquer das definições citadas, uma cultura existe diacronicamente, processa-se no tempo, sendo herdada, foi, necessariamente transmitida. É um fenómeno dinâmico, um devir, um ser tornando-se. Claro que é sempre possível o estudo sincrónico de uma cultura. Mas esse estudo representará como que um corte transversal, numa determinada fase, do passado, ou da actualidade que passa enquanto está a ser observada. No decurso das minhas reflexões, procurarei situar a Cultura Portuguesa no espaço e no tempo, recordando factos sobejamente conhecidos, mas modificando, talvez, as ênfases; ao fazê-lo, sublinharei aspectos que considero particularmente relevantes no modo de relacionação da Cultura Portuguesa com outras culturas, em diversas fases e momentos, sobretudo pelo que se refere aos dois movimentos, por vezes simultâneos, mas de intensidades diferentes e variáveis, que designarei por movimento centrípeto e movimento centrífugo. 2. A Cultura Portuguesa, propriamente dita, surgiu «onde a terra acaba e o mar começa», num território junto do Atlântico, mas já muito próximo da entrada do Mediterrâneo. A localização e o relevo deram ao habitat da Cultura Portuguesa aquelas três variantes geográficas que Mestre Orlando Ribeiro classificou como de três tipos: o atlântico, o mediterrânico e o continental. Com uma linha de costa muito extensa, relativamente ao perímetro do país que emergiu no século XVI, entre o Atlântico e

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Para uma Perspectiva da Cultura Portuguesa

Fernando de Mello Moser *

Para uma Perspectivada Cultura Portuguesa * *

1. Nas reflexões que se seguem, proponho-me apresentar,sinteticamente, a tentativa de conciliação, interpretativa, dealguns modelos que têm sido aplicados à análise de elementosintegrantes da Cultura Portuguesa e a esta no seu conjunto.

Para evitar ambiguidades, começo por esclarecer qual oconceito, ou conceitos, de cultura, subjacentes a todas estasreflexões. Cultura será, no presente contexto, a «herança so-cial», como a definem os antropólogos, ou ainda «o conjunto decomportamentos e modos de pensar próprios de uma sociedade»(1), ou ainda: «o conjunto de expressões e manifestações deactividade humana, que, em determinado espaço e / ou tempodefine, por contraste, uma originalidade» (2).

De acordo com qualquer das definições citadas, uma culturaexiste diacronicamente, processa-se no tempo, sendo herdada,foi, necessariamente transmitida. É um fenómeno dinâmico, umdevir, um ser tornando-se. Claro que é sempre possível o estudosincrónico de uma cultura. Mas esse estudo representará comoque um corte transversal, numa determinada fase, do passado,ou da actualidade que passa enquanto está a ser observada.

No decurso das minhas reflexões, procurarei situar a CulturaPortuguesa no espaço e no tempo, recordando factossobejamente conhecidos, mas modificando, talvez, as ênfases;ao fazê-lo, sublinharei aspectos que considero particularmenterelevantes no modo de relacionação da Cultura Portuguesa comoutras culturas, em diversas fases e momentos, sobretudo peloque se refere aos dois movimentos, por vezes simultâneos, masde intensidades diferentes e variáveis, que designarei pormovimento centrípeto e movimento centrífugo.

2. A Cultura Portuguesa, propriamente dita, surgiu «onde aterra acaba e o mar começa», num território junto do Atlântico,mas já muito próximo da entrada do Mediterrâneo. A localizaçãoe o relevo deram ao habitat da Cultura Portuguesa aquelas trêsvariantes geográficas que Mestre Orlando Ribeiro classificoucomo de três tipos: o atlântico, o mediterrânico e o continental.

Com uma linha de costa muito extensa, relativamente aoperímetro do país que emergiu no século XVI, entre o Atlântico e

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o Mediterrâneo, entre a Europa e a África, como também entre aEuropa e as Américas por descobrir, na zona temperada do Norte,mas na vizinhança da zona tórrida, o povo português possuía noseu habitat factores propícios ao que, por vezes exageradamente,se tem chamado uma vocação marítima, a par de umcondicionalismo que talvez tenha dotado os portugueses de váriasépocas com apreciáveis qualidades de adaptação a outras lati-tudes e outros climas, qualidades que influenciaram eprovavelmente continuam a influenciar a sua presença e o seudestino no Mundo. Sem perfilhar totalmente as interpretaçõesdo eminente antropólogo brasileiro Gilberto Freyre, não possodeixar de considerar sugestivas as suas ideias sobre o valorpositivo do habitat português entre os factores que permitiram anossa adaptação nas Sete Partidas do Mundo. Aliás, acomponente mediterrânica, a componente continental e acomponente atlântica desempenharam um papel relevante narealização dos Descobrimentos marítimos, já que a umaexperiência de navegação mediterrânica se juntaram osconhecimentos reunidos de outras proveniências, nomeadamentea continental, sobre matemática e astronomia, desenvolvidosuma e outros à luz da experiência gradualmente adquirida naexploração do Atlântico.

Uma vez lançados à descoberta dos Oceanos e de novasterras, os portugueses iniciaram uma espécie de Diáspora, quejamais parou, muito embora tenham mudado as razões e ascondições das suas viagens e da sua emigração, temporária oudefinitiva.

Foi então que adquiriu novas dimensões o processo decontactos e interpenetração cultural, com a aquisição, permutae retransmissão de conhecimentos ¯ geográficos, botânicos,zoológicos, etc., ¯ com a aquisição, assimilação e retransmis-são de experiência.

Então, a Cultura Portuguesa projectou-se para fora do seuhabitat original, umas vezes aculturando, outras vezes sofrendoaculturações, de um modo especial naquelas latitudes, áreas eambientes em que, mais uma vez segundo Gilberto Freyre, surgiuo fenómeno que ele chamou Luso-Tropicalismo, uma culturaprópria do encontro do Português com os Trópicos, com o climatropical, com a flora e a fauna dessas regiões e com os povosque contactou, com os quais aprendeu, e com os quais semisturou.

(Não cabe aqui abordar o problema das causas damiscegenação praticada pelos portugueses, ainda recentementeobjecto de um estudo, polémico aliás, de Charles Boxer. Mas

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talvez se possa recordar o dito popular: «Deus fez o branco e opreto, e o português fez o mulato» ¯ a que Gilberto Freyreacrescentaria com entusiasmo: e sobretudo a mulata!)

A Cultura Luso-Tropical começa e parte do Velho Portugal,evoluindo em contacto com as culturas autóctones que encon-trou, adquirindo uma identidade própria e reconhecível nasvariantes locais, do Minho e Douro a São Salvador da Bahia, aOlinda, na África como na Índia (e não apenas em Goa), emMacau como, em vestígios maiores ou menores, através de todoo Oriente, incluindo, nomeadamente, Shri Lanka (ou Ceilão) e oImpério do Sol Nascente. Sem falar nos Estados jovens deexpressão oficial portuguesa, onde a permanência da nossagente foi mais prolongada, onde continua, em novas condições,a presença de Portugal, dos portugueses, da Cultura Portuguesaatestada por vestígios linguísticos, por recordações históricas,por monumentos, por tradições de amizade e convivência, emáreas consideráveis, pela persistência dos efeitos de umaevangelização que teve profundas implicações culturais ¯ comono Brasil e em Goa, por exemplo.

Ao transferir-se do seu habitat europeu, atlântico-mediterrânico, a Cultura Portuguesa não só acompanhou oprocesso histórico português dando «novos mundos ao Mundo»,mas tornou-se, ela própria, um fenómeno de significado mundial,à escala mundial.

Neste contexto, é interessante recordar o papeldesempenhado pela língua portuguesa como língua franca,sobretudo no Oriente. A propósito, permito-me citar um passoda advertência ao Leitor, da Gramática Ingleza, de CarlosBernardo da Silva Teles de Menezes, impressa em Lisboa em1762. Aí se lê que:

«A Lingua Ingleza, que até os fins do século passadoera não somente desconhecida dos estrangeiros, masdesprezada dos seus próprios naturaes, se acha ojetão polida, e tão abundante por benefício dos grandesAutores que nella tem effeito desde o principio doséculo presente, que merece ser entendida de todos,para se utilizarem dos excelentes originaes que nelase achão impressos.»

E mais adiante, o ponto que mais nos interessa, ressalvadoalgum exagêro:

«[Os Inglezes] tem differentes gramáticas da língua

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Portugueza; quazi todos a aprendem, especialmenteaqueles (e he a mayor parte da nação) que se aplicamao commercio.»

Talvez venha a propósito recordar que, aproximadamente poresta altura, Os Lusíadas era exaltado em Inglaterra como epopeiada criação do comércio mundial, por poetas, intelectuais e pelopróprio tradutor William Julius Mickle, que empreendeu atradução, em parte, com o objectivo de conseguir um bomemprego na East India Company!

3. Por motivos de ordem geográfica, ou histórica, ou deambas, algumas culturas são mais abertas, mais permeáveis,que outras. Além disso, poderão alternar, em alguns casos, fasesde abertura e fases de fechamento ¯ o que é flagrante, porexemplo, se atentarmos na característica insularidade da culturainglesa, interrompida temporariamente em determinadascircunstâncias, com consequências notáveis.

Enquanto «fechada», uma cultura pode, não obstante, estarinserida num contexto cultural mais vasto e, nesse caso,constituirá uma subcultura relativamente a esse mesmo contextomais vasto, que constituirá uma supercultura. Esta terminologia,desenvolvida por Philip Bagby (3) permite-nos considerar aCultura Portuguesa nos seus dois aspectos fundamentais: comosubcultura da cultura europeia ocidental, e como superculturaenglobante e integrante, projectada para o Mundo recém-descoberto, para as áreas que Gilberto Freyre designou, em títulode livro, como «O Mundo que o Português Criou».

A situação que o referido antropólogo e sociólogo brasileiroestudou encontra-se hoje, sob numerosos aspectos, claramenteultrapassada, mas a presença da Cultura Portuguesa como fac-tor e componente de culturas, que possuem um vigor próprioindiscutível, é um facto, que o estreitamento das relações com omundo de expressão oficial portuguesa testemunha, cimenta econsolida.

Enquanto cultura, com identidade, capaz de assimilarinovações trazidas através dos contactos, em especial com asculturas mais próximas ou afins, particularmente aquelas que seinserem na mesma supercultura, a Cultura Portuguesadesenvolveu a força que chamarei centrípeta, ao passo que nomovimento de projecção a distância, acompanhando a Diásporados portugueses, ela tem desenvolvido, e pode / deve continuara desenvolver uma força centrífuga.

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O movimento centrípeto é, evidentemente, uma constanteao longo da História: se e quando cessasse por completo, aprópria cultura, como identidade evolutiva, chegaria ao fim. Omovimento centrífugo, pelo contrário, é particularmente óbvioem determinados momentos da História, e a ele se prende, emcerta medida, o próprio futuro da Cultura e da Língua Portuguesasno Mundo.

Até aqui, insisti sobretudo nos resultados da projecçãoportuguesa no Mundo, que resultaram dos DescobrimentosMarítimos, pondo ênfase na Cultura Portuguesa comosupercultura, e como veiculadora, intermediária de aculturações,numa dimensão mundial, no desenvolvimento da forçacentrífuga. Por esse facto incorri, de certo modo, numa inversãocronológica, que agora me proponho remediar, transferindo anossa atenção para a Cultura Portuguesa como subcultura daCultura Europeia Ocidental, pelo menos por algum tempo.

Aliás, enquanto Estado, Portugal regressou ao espaço dovelho habitat, com as Ilhas Atlânticas. Mas o Mundo sofreu, nodecurso destes séculos, profundas transformações, a que osportugueses não foram alheios, e que importa considerar maisadiante, relativamente às «idades» da História, numa visãoactualizada.

4. Enquanto subcultura da Cultura Europeia Ocidental, aCultura Portuguesa despontou inserida numa vastamovimentação sócio-cultural, na transição do chamado períodomonástico para o período cavalheiresco, muito próximo, notempo, da chamada Renascença do Século XII, que entre assuas manifestações inclui, precisamente, a ascensão das línguase literaturas românicas, o aparecimento do estilo gótico, a culturaprovençal, enfim, um conjunto de manifestações / expressõesde actividade humana, que entre nós se afirmam maisnitidamente no século XIII. Dos substratos culturais, além doscomuns a toda a área românica, poderão talvez salientar-se ovisigótico, o árabe e os núcleos de originalidade espalhados pelafaixa costeira.

Nesse mesmo século XIII, três portugueses se notabilizarãoa nível internacional, com raro e prolongado prestígio: SantoAntónio de Lisboa, autêntico pioneiro da vocação missionária euniversal dos portugueses; Pedro Hispano Portucalense, filósofoe médico, cujas obras foram lidas e consultadas durante algunsséculos, e que já dá lugar de relevo à observação e à experiência;finalmente, o rei D. Dinis, que o povo cognominou de Lavrador,por uma das tónicas da sua acção governativa, fundador da

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Universidade, cultor da poesia trovadoresca, e que impressionouDante a ponto de o ter colocado no Paraíso.

Não é possível, evidentemente, numa breve apresentaçãocomo esta, historiar todas as grandes relações internacionais daCultura Portuguesa como subcultura da Cultura EuropeiaOcidental, aliás, ainda insuficientemente estudadas ouesclarecidas em muitos pormenores. Só o período final da IdadeMédia nos daria um material vastíssimo, dadas as implicaçõesculturais de factos de natureza política, militar, diplomática e,evidentemente, económica. Assim, por exemplo, haveria quereferir as relações entre Portugal e a Inglaterra durante a Guerrade Sucessão de Castela, com o Tratado de Tagilde e o início daAliança mais antiga do Mundo: haveria que recordar a inserçãoda crise de 1383-85 no contexto da Guerra dos Cem Anos, e nodo Grande Cisma do Ocidente, ou ainda no das revoltas popularesque sacudiram a Europa na fase final do feudalismo. Por outrolado, está ainda por esclarecer, no pormenor, o alcance dasconsequências do casamento de D. João I com D. Filipa deLancastre. Mais conhecidas são as relações com a Flandres,em torno do casamento de Isabel de Portugal com o Duque Filipe-o-Bom, a que não faltou a viagem a Portugal de Jean van Eyck;enfim, as relações de Portugal com a Hansa os interesses dosfinanceiros europeus nomeadamente os Fugger, nodesenvolvimento dos Descobrimentos, as relações com a feitoriada Flandres, que também tiveram aspectos culturais, porexemplo, através da amizade entre o rico comerciante portuguêsRodrigo Fernandes e Albrecht Dürer; a introdução da Imprensa;finalmente a gradual introdução do Renascimento em Portugal.

Enquanto subcultura da Cultura Europeia Ocidental, a CulturaPortuguesa reflectiu, dando-lhes características próprias, osgrandes movimentos ideológicos, intelectuais, literários, artísticose científicos, adentro de condicionalismos próprios. Assim, porexemplo, das complexas movimentações do movimento daReforma, foram mais marcados os efeitos da Contra-Reforma;da união política com a Espanha, durante 60 anos, resultaramtanto influências como manifestações de rejeição; movimentoscomo o Iluminismo e, mais tarde, o Romantismo projectaram-seentre nós com algum atraso, e consequentes distorções ouafastamentos.

Ao longo de todo este processo, substratos e elementos ex-tra-europeus nomeadamente através do exotismo, contribuírampara a originalidade da Cultura Portuguesa, projectando-semesmo, algumas vezes, para outras subculturas do OcidenteEuropeu, sobretudo, como seria de esperar durante o

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Romantismo, época em que assuntos, temas e motivosportugueses conheceram larga popularidade, em diversaslínguas.

A força centrípeta, trabalhando os elementos inovadores eassimilando-os aos tradicionais, dotou a Cultura Portuguesa deoriginalidade, que foi investigada, nas manifestações literáriassobretudo, por especialistas que produziram trabalhos muitofecundos. Recordem-se aqui, a título de exemplo, os nomes deFidelino de Figueiredo, Aubrey Bell, João de Castro Osório,Hernani Cidade, Orlando Ribeiro, Jorge Dias, Jacinto do PradoCoelho, Maria de Lourdes Belchior ¯ para citar apenas os donosso século, e incompletamente. Para os seus trabalhos remetotodos os que estiveram verdadeiramente interessados no estudoda Cultura Portuguesa e da Literatura Portuguesa.

Quanto à Arte ¯ Pintura, Escultura, Arquitectura e Artes ditasDecorativas (das quais salientaria a do azulejo e a do mobiliário)¯ coloca problemas específicos, além dos de integração naperspectiva cultural sintética. Recordo aqui os estudos deReynaldo dos Santos, Santos Simões, Robert Smith, JoséAugusto França e ainda dos professores Mário Chicó e JorgeHenrique Pais da Silva, que tão bem sabiam transmitir o seuentusiasmo pelo objecto estudado.

Relativamente à Arte, não quero deixar de salientar um ponto,muito importante no contexto da perspectiva que procuro aquiapresentar-vos: se é certo que a Arte Manuelina está intimamenteligada aos Descobrimentos, é a Arte Barroca aquela que assinalaverdadeiramente a presença portuguesa nas áreas Luso-Tropicais, o que equivale a dizer, na projecção mundial da CulturaPortuguesa. De certo modo, o Manuelino representa a forçacentrípeta, enquanto o Barroco representa a força centrífuga.

5. Resta-me apontar o significado da participação da CulturaPortuguesa a par do papel sócio-económico-político da expansãoportuguesa, na passagem de uma grande «Idade» da Históriapara outra, e isto segundo mais de um critério.

Consideremos, em primeiro lugar, com um grupo dehistoriadores anglo-saxónicos (a partir de uma sugestão docomentador político W. Lipmann) que o Mundo conheceu umafase Mediterrânica (do Egipto, da Grécia, de Roma), depois umafase europeia, à qual se seguiu uma fase atlântica. E desde logoevidente que a passagem da fase europeia para a fase atlânticaarrancou graças aos povos da Península Ibérica, nomeadamente,o Povo Português.

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Se, por outro lado, com o historiador indiano K. M. Panikar,entendermos que os períodos da História devem ser revistos,nas suas balizas e designações convencionais e, com ele, que AIdade Moderna começou em 1498 e terminou em 1947 (isto é,que a Idade Moderna foi a Idade de Hegemonia mundial daEuropa, iniciada com a chegada de Vasco da Gama à Índia eencerrada, simbolicamente, com a saída da Índia das autoridadesbritânicas), temos de novo em evidência o papel histórico doPovo Português, num conjunto de factos históricos de profundasimplicações culturais.

Mas se, com o Professor Orlando Ribeiro, em parte apoiadoem Toynbee, a expansão portuguesa ¯ e a correspondentemudança de dimensão da cultura portuguesa ¯ contribuiu para oinício de uma Segunda Idade do Mundo, de novo sobressai osignificado da participação portuguesa nos destinos do nossoplaneta. Em paráfrase livre, vejamos um pouco a quecorresponde esta noção das «três idades» do Mundo, ou maisexactamente, «Três Imagens do Mundo», na terminologia de O.Ribeiro, em artigo que data de 1960.

Numa primeira idade, as civilizações existiram (nasceram,cresceram, declinaram e muitas vezes extinguiram-se) emcírculos relativamente fechados. Uma ou outra conheceuexpansão territorial notável, apogeu ou duração mais longa, maso isolamento no espaço levou, geralmente, à sua extinção, semdeixar linha de continuidade. Um dos grandes factores deisolamento, porque obstáculo limítrofe, foi o Oceano Atlântico.

Na segunda idade deu-se a abertura, por «mares nunca deantes navegados» e dando «novos mundos ao Mundo»,modificando a própria imagem do Mundo (4) e tornando possível,por uma contribuição directa, um repensar do Universo. Daí pordiante, isto é, depois de completado o ciclo dos grandesDescobrimentos marítimos portugueses e espanhóis, pôde dizer-se, parafraseando Giordano Bruno, que o Universo se tornoumaior (porque infinito) e o Mundo se tornou mais pequeno (porqueconhecido, percorrido, atingido nos seus limites, e relativizado).

Esta segunda idade é, pois, a da interpenetração gradual decontinentes e respectivas culturas. A hegemonia política,económica e cultural ̄ que nem sempre, infelizmente, foi exercidacom o devido respeito pelas culturas autóctones ¯ da Europasobre os povos e nações dos restantes continentes conduziu, nocaso português sobretudo, a uma interpenetração, ou aculturação,na qual os portugueses se revelaram com frequência predispostosa aprender da experiência local, a colaborar nos referidosprocessos de aculturação (Gilberto Freyre).

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A terceira idade do Mundo é aquela em que vivemos desde háalgum tempo e corresponde à Idade Contemporânea, dosconceitos de K. M. Panikar e Geoffrey Barraclough, por exemplo.A ascensão do chamado Terceiro Mundo é apenas um dos grandesaspectos e acontecimentos que assinalam o início desta nova era,marcada pelos desencantos e consequências da História recente,sob a ameaça da auto-destruição da Humanidade, e em que aexploração do espaço exterior nos recorda a exploração dos maresna outra fase de grande mudança. A participação sem precedentesdos jovens na vida política das nações é mais um traço distintivo.O desenvolvimento espectacular dos meios de comunicação so-cial, com a consequente repercussão, ou possibilidade derepercussão, quase instantânea, de acontecimentos locais a nívelmundial, é outra característica fundamental do nosso tempo, ligadaa uma interpenetração recíproca das culturas mais variadas e maislongínquas entre si.

Tendo desempenhado um papel importante, a nível mundial,na passagem da Idade Média para a Idade Moderna recém-terminada (pelo critério aqui seguido), ou da idade «fechada» paraa idade da «abertura», Portugal, o seu povo e a sua cultura entramna nova fase com um regresso do Estado português à área departida, com uma presença bem marcada em diversos pontos doGlobo, e com uma Diáspora, motivada por problemas do mercadolaboral, que coloca trabalhadores portugueses em diversos países,de vários continentes, dando o seu contributo, cada vez maisapreciado, aliás, para as sociedades em que constituem elementosactivos, produtivos, economicamente válidos.

6. Nas circunstâncias actuais, chegou o tempo de o PovoPortuguês repensar a sua cultura, tomar plena consciência dela,das suas forças centrípeta e centrífuga, postas à prova no passado,para, assumindo o passado, criticamente, mas sem complexos,consciencializar a sua identidade profunda e, com ela, construir ofuturo.

A História da Cultura Portuguesa é, mais do que muitas outras,a história de encontros enriquecedores, à escala universal. Naassimilação de valores, importa que a força centrípeta continue aexercer-se, para a preservação possível e desejável da identidadecultural e das reservas morais daí resultantes. Mas importa manter,ou porventura criar uma força centrífuga ¯ no sentido figurado dopresente contexto ̄ que lance para o exterior os valores humanos,de carácter universalista, que tantas vezes demonstrámos.

Diversas comunidades de descendentes de portugueses, emvárias partes do Mundo, manifestam de modo crescente a sua

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consciência das Raízes portuguesas, independentemente da suaplena integração nas sociedades onde encontraram acolhimento.

Nas suas melhores expressões, a Cultura Portuguesa afirmou-se no encontro com outras, e não contra as outras. Assim também,a consciência da origem étnico-cultural portuguesa subjacenteem qualquer ponto da Terra, tal como o laço cultural querepresenta a língua portuguesa como língua comum, deverãoconstituir um elo de solidariedade a nível universal, sem prejuízodas solidariedades locais ou nacionalmente adquiridas.

Em jeito de conclusão, gostaria de manifestar a esperançade que um encontro com a Cultura Portuguesa ̄ na sua Arte, nasua Literatura, mas, acima de tudo, no convívio com a nossagente ¯, sirva para estabelecer, ou fortalecer, laços decompreensão, respeito mútuo e verdadeira amizade, na melhortradição do Povo Português.

* Professor Catedrático da Faculdade de Letras daUniversidade Clássica de Lisboa. Presidente do Instituto deCultura e Língua Portuguesa (ICALP) de 1981 a 1984, ano doseu falecimento.

** Lição inaugural do Curso de Língua e Cultura Portuguesapara estrangeiros, proferida na Faculdade de Letras daUniversidade de Lisboa, no ano de 1982.

Notas(1) P. H. Chombart de Lowe, cit. por M. de Lourdes Belchior, H & L II.(2) Adaptado de Kleber & Kluckhon.(3) Culture and History, Londres, Macmillan, 1958.(4) Cf. W. G. L. Randles.

ReferênciaMOSER, F. M. - Para uma Perspectiva da Cultura Portuguesa. RevistaICALP, vol. 1, Março de 1985, 23-32.