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IN ILLO TEMPORE: O MITO E A EMERGÊNCIA DO MUNDO HUMANO ALEXANDRO F. SOUZA MEMBRO DO NÚCLEO DE ESTUDOS IBÉRICOS E IBERO-AMERICANOS DA UFJF. FORMADO EM FILOSOFIA PELA UFJF. ALUNO DO CURSO DE MESTRADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO DA UFJF. ALEPHSOUZA@GMAIL.COM Introdução Aos olhos de um ocidental do século XXI, instalado em meio às conquistas tecnológicas, o estudo do mundo das representações míticas pode parecer um mero passatempo. Nada além de curiosidades superficiais pode suscitar essas velhas estórias, absurdas à primeira vista, que compõem o mundo mítico. Por vezes nos deparamos com tais relatos que, apesar de belos e comoventes em sua forma, são tidos apenas como estorinhas de tempos de ignorância. Entretanto, cabe-nos resgatar o viço que os relatos míticos possuíam no passado, a força paradigmática com que eram revestidos pelos homens que não possuíam nenhum outro tipo de conhecimento a não ser o advindo das narrativas míticas. Elemento primordial no processo de adaptação do homem ao mundo, o relato mítico possui uma enorme riqueza para aqueles que se dedicam ao estudo do homem e da formação da cultura humana. Este breve trabalho pretende abordar a narrativa mito-poética através da perspectiva de alguns importantes pensadores ocidentais, tais como Mircea Eliade e Ernst Cassirer. A abertura do diálogo entre a sabedoria de outrora e o pensamento ocidental pode, como demonstram tais autores, trazer novas e instigantes perspectivas sobre o homem e sua cultura. A nós, latino-americanos, o diálogo entre a perspectiva mítica dos

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IN ILLO TEMPORE: O MITO E A EMERGÊNCIA DO MUNDO HUMANO

ALEXANDRO F. SOUZA

MEMBRO DO NÚCLEO DE ESTUDOS IBÉRICOS E IBERO-AMERICANOS DA UFJF. FORMADO EM FILOSOFIA PELA UFJF.

ALUNO DO CURSO DE MESTRADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO DA UFJF. [email protected]

Introdução

Aos olhos de um ocidental do século XXI, instalado em meio às conquistas

tecnológicas, o estudo do mundo das representações míticas pode parecer um mero

passatempo. Nada além de curiosidades superficiais pode suscitar essas velhas estórias,

absurdas à primeira vista, que compõem o mundo mítico. Por vezes nos deparamos com

tais relatos que, apesar de belos e comoventes em sua forma, são tidos apenas como

estorinhas de tempos de ignorância. Entretanto, cabe-nos resgatar o viço que os relatos

míticos possuíam no passado, a força paradigmática com que eram revestidos pelos

homens que não possuíam nenhum outro tipo de conhecimento a não ser o advindo das

narrativas míticas. Elemento primordial no processo de adaptação do homem ao mundo, o

relato mítico possui uma enorme riqueza para aqueles que se dedicam ao estudo do homem

e da formação da cultura humana.

Este breve trabalho pretende abordar a narrativa mito-poética através da

perspectiva de alguns importantes pensadores ocidentais, tais como Mircea Eliade e Ernst

Cassirer. A abertura do diálogo entre a sabedoria de outrora e o pensamento ocidental

pode, como demonstram tais autores, trazer novas e instigantes perspectivas sobre o

homem e sua cultura. A nós, latino-americanos, o diálogo entre a perspectiva mítica dos

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povos que aqui habitavam e o pensamento ocidental pode ser encarado como uma busca de

nossa própria face cultural, possibilitadora de uma autêntica tomada de posição frente à

hegemonia das culturas européia e norte-americana. Não uma posição de enfrentamento,

antagonismo, mas uma posição de co-laboração, de troca de perspectivas de mundo, de

concepções sobre o homem e o mundo da cultura; co-laboração essa que nos permita

superar o aparente estado de submissão demonstrado frente à hegemonia de tais culturas.

I - A Presença do sagrado

Talvez a tarefa de investigar os modos característicos com os quais a categoria

do sagrado se apresenta dentro do pensamento mítico se nos apresente como uma

perspectiva bastante rica e instigante na tentativa de uma abordagem filosófica desse

mesmo tipo de pensamento. Em sua obra “O sagrado”, Rudolff Otto parece ter levado a

cabo tal empreendimento, resultando daí uma maravilhosa obra que, pelo âmbito da

experiência sensível do sagrado, oferece a todo aquele que atraído pela vivacidade e brilho

do pensamento mítico-religioso, deseja se debruçar ante às questões suscitadas por tais

tipos de construções.

O sagrado se manifesta naquilo que ultrapassa o homem. Poderíamos eleger tal

afirmação como síntese da constatação da categoria do sagrado por parte do homem.

Estaríamos dizendo assim que o sagrado se manifesta naquilo que ultrapassa a força, a

capacidade humana. Diante dessa constatação, desse sentimento de nulidade

experimentado frente àquilo que o ultrapassa, o homem sente-se apequenado e subjugado

por essa estranha força que o domina e o arrasta em sua determinação. O sagrado se

manifesta naquilo que é inapreensível na existência quotidiana do homem consigo mesmo

e com as coisas do mundo: o nascimento, a morte, a força da natureza; e diante dessa

estranha manifestação, o homem parece não possuir nenhum modo de interferência eficaz.

Cabe-lhe apenas a postura de espectador passivo e assombrado diante do espetáculo do

sagrado que se desenrola ante seus sentidos. Essa constatação de forças que se colocam em

uma esfera inacessível ao domínio e ao conhecimento humano curiosamente se dá por um

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amálgama de sensações que já há bastante tempo nos acostumamos a considerar como

contraditórias; geralmente tal percepção daquilo que o ultrapassa desencadeia no homem

das sociedades míticas um misto de sentimentos do tipo atração e repulsão, medo e

fascinação. Em sua lúcida e profunda análise sobre o sentimento religioso, R. Otto vai

nomear esse misto de impressões de mysterium tremendus, de majestas; é a constatação de

uma realidade outra, diferente daquela experimentada na quotidianidade pelo homem das

sociedades míticas. O sentimento do sagrado, a percepção da presença do numinoso,

aparece então como algo que afugenta, mas que, ao mesmo tempo atrai a atenção do

homem para as forças que escapam ao seu entendimento e domínio. O sagrado, o

mysterium tremendum, como nos diz Otto, “designa unicamente o que está escondido, o

que não é manifesto, aquilo que não é nem concebido nem compreendido, o extraordinário

e o estranho, sem indicar com precisão a qualidade”1.

Uma experiência terrífica, irracional e profundamente instigante, tal parece ser

a experiência do sagrado. Ao experienciar de uma força estranha une-se a constatação de

eficácia, de força plena e transformadora, capaz de operar importantes mudanças no espaço

quotidiano. É-nos lícito afirmar que, diante desse confuso feixe de impressões, diante da

observação da eficácia do sagrado, tem-se a expressão do Ser em toda sua plenitude. O

arrebatamento oriundo do encantamento provocado pelo encontro com o sagrado equivale

à observação da eficácia e plenitude dessa mesma categoria. Como nos chama a atenção

Mircea Eliade, “o sentimento de pavor diante do sagrado, diante desse mysterium

tremendum, dessa majestas que exala uma superioridade esmagadora de poder”2 é a

expressão perfeita da plenitude do Ser.

Plenitude, eficácia e presença, tais são as características principais do Ser,

advindos da experiência sensível do sagrado; poderíamos dizer também que, dessa

experiência surge também a característica que marca o sagrado como fundamento de toda

realidade, como substrato de onde toda a realidade se pode dar. Real seria, portanto, aquilo

que se expressa de modo análogo ao sagrado, aquilo que se apresenta e se reveste da

mesma eficácia e plenitude do ser, e que possui o mesmo poder de arrebatamento, temor e

atração do sagrado. Aquela característica que desencadeou o sentimento de presença do

sagrado, aquela característica de plenitude diante do objeto desencadeador do sentimento

1 - OTTO, Rudolf. O sagrado, p. 22; 2 - ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano, p. 16;

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de nulidade e ineficácia do gênero humano torna-se o índice denotador da realidade por

excelência. Real é tudo aquilo que se apresenta como pleno, eficaz, é tudo aquilo que está

cheio de Ser, onde toda manifestação sagrada se pode dar e onde o homem deseja

alimentar-se, tomar contato com o primordial de onde advém toda a realidade, todo o

mundo circundante.

Tal estabelecimento, ou antes, tal observação da presença do sagrado acaba por

dicotomizar o mundo no qual se insere o homem das sociedades míticas. Ao sagrado, ao

índice de toda plenitude e eficácia, opõe-se o espaço profano, ineficaz e carente onde quer

que se manifeste. O homem que vive no e a partir do pensamento mítico opõe agora o

Profano, o irreal, ao Sagrado, o real e fonte de toda justificação e eficácia. Enquanto a

categoria do sagrado torna-se a medida de toda ação significativa, o profano se estabelece

como índice de desagregação, a decadência desse caráter primordial e originário do

sagrado. Como tal, o profano deve ser abandonado, desprezado, e toda ação que se deseja

significativa, eficaz, deve pautar-se por aquela eficácia demonstrada pela manifestação

primordial do sagrado. O sagrado equivale ao Cosmos, o presente, o eficaz, o Ser em toda a

sua plenitude, enquanto que o profano corresponde ao Caos, ao amorfo, à não presença, ao

não ser e ao devir constante do qual é preciso, se possível, afastar-se. É interessante

notarmos como essa oposição entre o sagrado e o profano se dá nas sociedades orientadas

pela concepção mítica de mundo; em um mito kaiapó, por exemplo, assim fica expressa

essa oposição entre sagrado e o profano:

A nação indígena dos Kaiapós habitava uma região onde não havia o Sol e

nem a Lua, tampouco rios ou florestas, ou mesmo o azul do céu. Alimentavam-se

apenas de alguns animais e mandioca, pois não conheciam peixes, pássaros ou frutas.

Certo dia, estando um índio a perseguir um tatu-canastra, acabou por

distanciar-se de sua aldeia. Inacreditavelmente, à medida que o índio se afastava, sua

caça crescia cada vez mais.

Já próximo de alcançá-la, o tatu rapidamente cavou a terra, desaparecendo

dentro dela. Sendo uma cova imensa, o indígena resolveu seguir o animal, ficando

surpreso ao perceber que, ao final da escuridão, brilhava uma faixa de luz. Chegando

até ela, maravilhado, viu que lá existia um outro mundo, com um céu muito azul e o sol

a iluminar e a aquecer as criaturas; na água, muitos peixes coloridos e tartarugas. Nos

lindos campos floridos, destacavam-se as frágeis borboletas; florestas exuberantes

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abrigavam belíssimos animais e insetos exóticos, contendo ainda diversas árvores

carregadas de frutos. Os pássaros embelezavam o espaço com suas lindas plumagens.

Deslumbrado, o índio ficou a admirar aquele paraíso, até o cair da noite.

Entristecido ao acompanhar o pôr-do-sol, pensou em retornar, mas já estava

escuro...Novamente surge à sua frente outro cenário maravilhoso: uma enorme Lua

nasce detrás das montanhas, clareando com sua luz de prata toda a natureza. Acima

dela, multidões de estrelas faziam o céu brilhar. Quanta beleza! E assim permaneceu,

até que a Lua se foi, surgindo novamente o Sol.

Muito emocionado, o índio voltou à tribo e relatou as maravilhas que viera

a conhecer. O grande pajé Kaiapó, diante do entusiasmo de seu povo, consentiu que

todos seguissem um outro tatu, descendo um a um pela sua cova através da imensa

corda, até o paraíso terrestre. Lá seria o magnífico Mundo Novo, onde todos viveriam

felizes3.

Como fica bem expresso no relato mítico, o quotidiano é o profano, onde não há

o Sol e nem a Lua, e onde toda ação parece enfadonha e destituída de um sentido. Ao

contrário, o Mundo Novo, o sagrado, se apresenta como o lugar da beleza e da abundância

por excelência, onde a vida parece se manifestar em todas as suas cores, onde o pulsar da

vida é pleno. O sagrado é um outro mundo de um céu muito azul e abundante de vida,

contrapondo-se ao profano carente, precário e enfadonho. Do cenário do sagrado o homem

não mais deseja se apartar, o que nos leva a afirmar então que, de uma passiva posição de

espectador assombrado diante do bailar da plenitude e eficácia do Ser, o homem das

sociedades míticas assumirá uma posição ativa diante desse mesmo espetáculo, procurando

compreendê-lo e dele fazer uso, procurando uma forma de, sempre que necessário, re-

estabelecer essa manifestação de puro poder e eficácia. Isso talvez se dê no processo de

construção das narrativas míticas, onde, arriscaríamos dizer, que o homem empreende uma

tarefa intelectual de apreensão e sistematização desse sentimento da presença do sagrado.

Ao realizar a oposição entre sagrado e profano, o homem das sociedades míticas realiza

uma primeira diferenciação qualitativa da realidade; daquele substrato de impressões “onde

tudo está pré-contido, mas onde não se efetuou ainda a separação original entre o

verdadeiro e o falso, o ser e o nada, o saber e a opinião, o racional e o não racional”4; o

homem das sociedades míticas realiza uma diferenciação entre o real e o irreal, entre o

precário e a plenitude, entre a eficácia e não eficácia, diferenciação essa que lhe permitirá

compreender e, de certa forma, operar a realidade. 3 - SILVA, Waldemar de Andrade e. Lendas e Mitos dos índios brasileiros; 4 - LADRIÈRE, Jean. Vida Social e destinação, p

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Espaço, tempo e pensamento mítico

Se detivermos nossa atenção sobre as categorias de espaço e tempo, veremos

que, segundo o pensamento mítico, estas também se inserem na dicotomia entre o sagrado e

o profano.

O espaço, segundo o pensamento mítico, se diferencia qualitativamente entre

espaço sagrado e espaço profano, entre espaço onde toda manifestação do Ser acontece e

espaço onde desenrola-se o devir da quotidianidade profana. Segundo o pensamento mítico,

o espaço é heterogêneo, diferenciando-se qualitativamente do espaço profano porque

encerra em si a possibilidade de manifestação da plenitude do Ser. É comum observarmos

nas diversas formas do relato mítico a prescrição de zelar pelo solo sagrado. Tal prescrição

visa recortar, delimitar o espaço sagrado - aquele espaço de onde o Ser irradia toda a sua

plenitude - do espaço profano, o irreal por excelência. Assim, quando Iahwé, no meio da

sarça ardente fala a Moisés, este recebe a advertência de não pisar calçado naquele espaço,

sagrado por excelência e local de manifestação do Ser. Seria interessante contrapor essa

concepção, que se diferencia qualitativamente, da concepção físico-matemática

contemporânea do espaço. Este se difere apenas quantitativamente e, uma vez que é

homogêneo, possui a mesma forma e as mesmas propriedades. Poderíamos dizer que,

enquanto este é um espaço teórico-conceitual, aquele, o espaço do pensamento mítico, é um

espaço concreto, vivido, onde a manifestação do sagrado se dá em toda sua plenitude.

Enquanto o espaço teórico pode ser abstraído, porque é fruto da capacidade simbólico-

discursiva do entendimento humano, o outro só pode ser apreendido em sua concretude

física, em sua manifestação sensível; o signo, no pensamento mítico, está como que fundido

naquilo que procura significar. Não pises em solo sagrado, desfaça-te de todo vestígio de

terra santa, tais advertências nos indicam o posicionamento e o modo como o homem das

sociedades míticas se relaciona, em sua existência, com o espaço.

Voltemos agora a nossa atenção para a questão do tempo nas sociedades míticas;

aqui, como era de se esperar, repete-se novamente a oposição entre o sagrado e o profano,

real e irreal. Enquanto o tempo profano aparece como o tempo de degeneração, o tempo

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sagrado, o tempo fabuloso dos primórdios aparece como o tempo onde o Ser se apresenta

em toda sua completude e eficácia. O tempo profano geralmente está ligado ao tema da

queda, e aqui é possível novamente observar a presença da precariedade; esse tempo

profano é fruto de uma falta original, de um pecado que lança o homem na precariedade e

derelição do tempo ineficaz. Tempo ilusório, degeneração da ordem primordial, esse tempo

tem sua existência marcada pela finitude, ele é limitado pelo tempo sagrado, tempo

fabuloso que é sua origem e fundamento. Esse tempo, o tempo fabuloso do princípio, é o

tempo dos deuses, heróis e antepassados que deram origem ao mundo e que o constituíram

tal como o homem das sociedades míticas o percebe, e que, devido a isso transborda a

plenitude do Ser. Este é o tempo que o homem das sociedades míticas coloca como télos de

sua existência, pois ele é o real, fonte de onde emana a eficácia e o fundamento do mundo.

Novamente, no todo, podemos dizer que o tempo é, para o homem que se orienta pela

perspectiva mítica, um tempo heterogêneo, cheio de fissuras; nele insere-se o tempo

fabuloso do princípio e o tempo precário da quotidianidade. Em “O mito do eterno

retorno”, Eliade nos mostra como as sociedades míticas compreendem o tempo. O tempo

que dá origem ao mito do eterno retorno é o tempo fabuloso do princípio, tempo esse que é

origem e fim de toda existência.

O mito como investigação ontológica

Até aqui afirmamos que o sagrado é, para o homem das sociedades míticas, o

real por excelência, a manifestação do Ser em toda a sua plenitude. Com tais afirmações

preliminares, podemos também caracterizar o pensamento mítico como uma ontologia

arcaica, uma vez que tal pensamento parece preocupar-se com os fundamentos últimos de

toda a realidade. A realidade última das coisas é trazida à luz do entendimento humano pela

força da narrativa mítica. Com Eliade, seria-nos permitido dizer que:

Pouco importa que as fórmulas e as imagens através das quais o

“primitivo” exprime a realidade nos pareçam ingênuas e até ridículas. É o sentido

profundo do comportamento primitivo que é revelador: Esse comportamento rege-se

pela crença numa realidade absoluta que se opõe ao mundo profano das “irrealidades”;

em última instância, aquele não é verdadeiramente um “mundo”, mas o “irreal’ por

excelência, o não-criado, o não existente, o nada.

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Podemos portanto falar de uma ontologia arcaica, e só através dela

compreenderemos – e por isso, não desprezaremos – o comportamento do “mundo

primitivo”, até mesmo o mais extravagante; com efeito, esse comportamento

corresponde a um esforço desesperado para não perder o contato com o ser5.

Ao relato mítico, podemos atribuir um caráter ontológico; a narrativa mítica

proporciona ao homem das sociedades arcaicas a história, a gênese e as formas como o Ser

se manifesta em todas as suas particularidades. Como exemplo de relato que assume esse

caráter de narrativa ontológica podemos citar “A teogonia”, de Hesíodo, narrativa do

surgimento da realidade em todos os seus pormenores. Encontramos, entre os astecas, um

relato que também pode assumir esse caráter de narrativa ontológica. Transcrevo o relato a

fim de melhor ilustrar a questão:

Quetzalcóatl e Tezcatlipoca observaron a Tlaltecuhtlu cuando cruzaba el

océano, mientras buscaba alimento con sus bocas hambrientas. Indignados con la

presencia de ese monstruo repulsivo que acababa con toda la vida que ellos creaban,

decidieron destruirlo. Bajaron del cielo, se transformaron en serpientes gigantescas y

atacaron a Tlaltecuhtlu. Qetzalcoatl asió una pata, Tezcatlipoca tomo la otra y jalaron

en direcciones opuestas, partiendo el monstruo en dos. Con una mitad del cuerpo,

Quetzalcóatl y Tezcatlipoca crearon la tierra, y con la otra el cielo.

Los cabellos de Tlaltecuhtlu se volvieron flores, hierbas y árboles de los

bosques. La piel de la diosa se transformó en hermosos campos; de sus ojos brotaron

pozos, manantiales y se formaron cuevas; las bocas dieron paso al nacimiento de los

ríos y su nariz formó montañas y valles.

Sin embargo, para proporcionar a los hombres los frutos y los alimentos

que los permitieran subsistir, Tlaltecuhtlu exigió un pago en sangre: corazones

humanos. Por esta razón, ofrecer sacrificios humanos a Tlaltecuhtlu era, para los

aztecas, un ritual obligado puesto que, de no practicarlo de manera regular, la diosa

dejaría de producir alimentos y el pueblo moriría de hambre.6

Em nossa sintética análise a respeito da manifestação da presença do sagrado

buscamos observar o sentimento de pequenez e ineficácia do homem diante da irrupção do

mesmo em sua quotidianidade. Para fins de análise, a posição do homem nessas

considerações iniciais caracterizou-se como uma posição de passividade ante o espetáculo

que se desenrola diante de seus olhos. Tal divisão, porém, não alcança o cerne dessa

5 - ELIADE. O mito do eterno retorno, p. 106; 6 - JANUARY, Brendan. Sorpréndete com la mitologia universal.

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experiência em sua totalidade e seria de uma enorme arrogância tentar abarcar a totalidade

dessa experiência em tão despretensioso ensaio. Onde começa a expressão e termina a

impressão é-nos impossível dizer, entretanto, assim dividida, a análise se apresenta como

tarefa menos hercúlea. Talvez seria mais acertado falarmos de uma impressão que já é

uma expressão, um primeiro deixar-se tocar pela manifestação do sagrado que, ao mesmo

tempo, já encerra em si uma evocação expressiva, uma tomada de posição. A expressão, a

tentativa de resposta dada a essa vivência de uma situação que é limite para o homem

talvez se dê na formulação das narrativas míticas, que apareceria-nos como uma tentativa

humana de organizar, orientar e tornar perene tais impressões.

A paixão do mito

Para o homem que vive e se orienta a partir da perspectiva mítica, a

manifestação arrebatadora do sagrado tem um caráter concreto e, portanto, afetivo. Este é

tocado sensivelmente pelo sagrado que, por sua vez, também só pode se manifestar preso à

materialidade. A natureza se lhe apresenta como um jogo de forças, como um grande

embate de desejos, de sentimentos. Se a terra treme é porque a serpente sagrada se move,

se a seca se abate sobre a plantação é porque o deus está zangado por algum motivo. Com

Cassirer, poderíamos dizer que:

O mundo do mito é dramático – de ações, forças e poderes conflitantes. Em todo

fenômeno da natureza nada mais vê que o embate desses poderes. A percepção mítica está sempre

impregnada destas qualidades emocionais: o que se vê ou se sente é cercado de uma atmosfera

especial – de alegria ou tristeza, angústia, excitação, exaltação ou depressão. (...) Todos os objetos

são benignos ou malignos, amigos ou inimigos, familiares ou sobrenaturais, encantadores e

fascinantes, repelentes ou ameaçadores7.

Claro que, depois de nossa sucinta análise sobre o sentimento da presença do

sagrado torna-se uma redundância reafirmar o caráter emotivo desse sentimento. Dissemos

acima, que a constatação da presença do sagrado em algum objeto é fator desencadeador

de um amálgama de sentimentos que arrebatam o homem das sociedades míticas.

Entretanto, voltar a afirmar tal característica parece extremamente importante para 7 - CASSIRER, Ernst. Antropologia Filosófica, p. 128;

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compreendermos o modus operandi do mito e a concepção de mundo advinda desse modo

de operar a realidade. Poderíamos dizer que o pensamento mítico é uma forma de

pensamento holístico/afetiva, uma vez que procura compreender o mundo em sua

totalidade e uma vez que compreende esse mesmo mundo como um constante embate de

forças divinas. Assim, em muitos relatos míticos, a criação do homem se liga ao tema da

solidão de deus, o surgimento desta ou daquela montanha tem sua origem numa disputa de

amor. Exemplifiquemos a questão com alguns relatos míticos, este que se segue, pertence

à tradição dos aborígines dos Andes peruanos:

Sucedió en la región de Huanuco.

Una gran sequía, que duró muchos días, hizo que todas las plantas

perecieran, incluidos los líquenes y los musgos. La tierra se cuarteó polvorienta, sin

árboles que dieran sombra a los animales. La flor de kantu, la que brota en la aridez del

desierto, sintió que sus pétalos morían. Un capullo, aún intacto y reacio a morir,

comenzó a transformar sus pétalos en alas y agitándolos durante toda una noche,

consiguió desprenderse de la planta calcinada convertido en colibrí.

Se dirigió hacia la cordillera i llegó hasta el lago Huacracocha, cuyas

aguas se habían secado. Contempló la superficie, admiro el lugar y voló durante días

hacia la cumbre del cerro Huaitapallana. Ya cansado, se poso en la cima helada por el

viento y en su último esfuerzo suplicó piedad al espíritu de Huaitapallana y salvación

para la sequía. Luego el colibrí murió.

El cerro se mostró acongojado por esa muerte y por la tierra estéril y

devastada. Sintió en su cima al aroma fresco de la flor de kantu y se entristeció; esa flor

solía adornar los atuendos de los hombres en la fiesta que le tributaban antes del

invierno. Su dolor fue tal que lágrimas de dura roca resbalaron hasta la superficie del

lago Huacracocha. Enseguida las aguas se abrieron haciendo resonar la tierra.

El estruendo y las lágrimas del cerro Huaitapallana llegaron hasta el

fondo del lago y despertaron al Amaru, que descansaba con su largo cuerpo enroscado a

lo largo de la cordillera y su cabeza sobre el fundo del lago.

Los días que el Amaru se desperezaba, la tierra se movía con violencia.

Así se sucedió en la laguna; de inmediato sus aguas se agitaron en un oleaje

tempestuoso. Entre la espuma de la superficie apareció la cabeza del Amaru y luego su

cuerpo de serpiente alada con cabeza de llama y cola de pez. Los ojos cristalinos, el

hocico rojo.

Entonces el Amaru se elevó en el aire eclipsando el sol y el mundo vio sus

ojos que estallaron de ira. Diez mil guerreros con corazas e flechas se lanzaron a

combartilo. La lucha duró muchos días y noches; desde entonces el mundo se pobló de

nuevos elementos. Del hocico del Amaru surgió la niebla que habita los cerros de las

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montañas, del movimiento de sus alas, la lluvia; de su cola de pez, el granizo y de los

reflejos dorados de sus escamas, el arco iris.

Así renació la vida cuando ya parecía extinguida. Así renació la tierra y se

colmaron de agua clara los arroyos.

Todo estaba escrito en las escamas del Amaru, la vida, las palabras, las

noches, el destino, los sueños…8

Ou ainda esse próximo relato, pertencente à tradição dos já extintos Selknan,

que habitaram a Terra do Fogo:

Kenós era un coloso de extraordinaria altura.

Habito la Tierra durante los tiempos en que solo se veía un inmenso y

desolado desierto. Su padre era Temaukel, el creador del universo. Había enviado a

Kenós para que diera forma y creara vida sobre la superficie del mundo. Luego de

mucho tiempo de vivir en soledad, sintió la necesidad de un compañero. Miró con

tristeza hacia el cielo de la noche fría y Temaukel entendió su lamento. Le concedió la

capacidad de criar otros dioses grandes e semejantes a él.

En poco tiempo, Kenós creó tres hermanos gigantes. Sus nombres fueron:

Cenuque, Cóoj e Taiyín. Con ellos recorrió el mundo formando montañas, cubriendo

con nieves sus cumbres, creando los bosques, los animales grandes e pequeños, los que

vivían de día y de noche. Formaron todas las plantas: las que tienen raíces afirmase por

sí solas y las que cuelgan desde los árboles. Cada uno de los seres de la tierra fue obra

de Kenós, Cenuque, Cóoj e Taiyín.

Las infinitas travesías agotaron el cuerpo de Kenós. Un día, sintiéndose

muy viejo y cansado llamó a sus tres compañeros para avisar que había llegado el

tiempote su muerte. Pidió a sus hermanos que lo acompañaran hacia el sur, ya que

mirando el sur mueren los guerreros.

Emprendieron lo camino.

Cuando llegaron al lugar elegido por Kenós, éste les indicó la manera en

que debían darle sepultura. Tenían que cavar el suelo durante tres días y acomodar su

cuerpo de manera tal que pudiese mirar a Temaukel.

Cuando la fosa estuvo lista, Kenós miró a sus tres hermanos ancianos y

antes de descender les dijo:

- Todas las formas tienen su tiempo. Aguarden y entenderán.

Los colosos se marcharon. Pero luego de seis inviernos vieron a Kenós

pararse en sus pies. Comprendieron, entonces, que eran inmortales y que cada cantidad

de años siempre volverían ser jóvenes.

8 - JANUARY, Brendan. Sorpréndete com la mitologia universal.

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Los gigantes vivieron su destino de dar color y forma al desierto. Esa tarea

estaba a punto de concluirse cuando Cóoj el más enérgico, el más puro, se acercó a

Kenós y le dijo:

- Otra vez ha llegado mi hora de reposo. Ahora, sin embargo, no deseo

volver a renacer. Mi cuerpo está muy cansado y mi alma anhela su sitio final junto a

Temaukel.

Kenós lo miró con tristeza, pues sabía que su naturaleza de inmortales los

condenaba a estar lejos de Temaukel. Así se lo hizo saber a Cóoj. El reposo de sus

almas no podía encontrar su lugar definitivo en la tierra.

Nada supo decir Cóoj.

No comprendía el significado de inmortal y se marchó muy triste.

Caminó rumbo al este, derramando con amargura ríos y ríos de lágrimas

que cayeron sobre la tierra cubriéndola de agua salada. Era un agua que el calor del sol

no alcanzaba a secar.

Aquel sentido llanto anegó las quebradas y los valles de oriente.

Su pena fue tan grande que cuando detuvo su marcha y miró hacia

poniente pensando en regresar junto a Kenós, no vio los territorios por los que había

andado.

Aquellas lágrimas habían formado enormes lagos.

Entonces Cóoj entendió cuál había sido su último gran trabajo y supo del

destino final de su alma. Con un último esfuerzo inclinó su cuerpo sobre las orillas,

besó por última vez la roca seca y se sumergió en el mar9.

Os relatos acima transcritos felizmente não são uma exceção dentro do

universo das narrativas míticas, parecem que são, aliás, uma regra do proceder mitológico.

O emotivo liga-se ao tempo fabuloso do princípio e a natureza nada mais é do que

resultado da paixão do mito ocorrida in illo tempore.

Mito e homogeneidade da vida

Outro ponto característico do pensamento mítico encontra-se no fato de ser ele

um pensamento que abarca a vida em toda a sua diversidade. Para o pensamento mítico

não há uma divisão fixa entre ao variadas espécies e, até mesmo, entre seres animados e

inanimados. Toda a realidade, sendo sagrada, é plena da manifestação primordial do Ser 9 - JANUARY, Brendan. Sorpréndete com la mitologia universal.

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da qual tudo se originou e que ainda se mantém presente na quotidianidade; isso basta,

portanto, para que todo objeto que emana a presença do sagrado seja considerado “vivo”

para o pensamento mítico. Montanha, mar, animais, todos eles comunicam-se com o

homem, e essa comunicação é instaurada pelo caráter sagrado que todos encerram em si;

seus seres são resultados da criação original, estes estão repletos de Ser, nada mais natural,

portanto, que a comunicação entre os vários níveis da vida e os vários níveis da natureza

seja possível. Homens que se transformaram em montanhas, deuses que se fazem homens,

animais que se tornam grandes guerreiros e vice e versa; tais temas são constantes dentro

das tradições míticas e isso, talvez se dê pelo fato de todos se unirem pelo laço do sagrado.

A antropomorfização da natureza e de seus processos, da vida em suas mais variadas

formas seria, nesse sentido, apenas uma imagem ilusória do mundo mítico. O homem das

sociedades míticas não se coloca no centro da realidade, não estende sua forma aos

fenômenos que o cerca, antes, tal plasticidade torna-se possível justamente pelo fato de

toda expressão da vida ser abundante do mesmo Ser. Homem e animal, mar e montanha,

todos trazem a presença do sagrado, que é sua fundamentação última e origem comum. O

pensamento mítico, nesse âmbito, revela-se então como um pensamento do Cosmos, é a

ordem advinda do tempo fabuloso, daquele fiat originador de toda a realidade que

possibilita a comunicação e a transformação entre as mais variadas formas de vida. No

mito encerra-se um pensamento que se enraíza profundamente na natureza, uma natureza

que só se torna compreensível pelo fato de comunicar-se com o homem. O homem é, de

certa forma, imagem da natureza e está aberta comunicativamente a ela. Essa característica

nos fica bem expressa no relato abaixo:

Sinaá, o mais poderoso pajé da tribo Juruna, era filho de mãe índia e pai

onça. Do felino herdara o poder de enxergar também pelas costas, o que lhe permitia

observar tudo o que se passava ao seu redor. Caminhava com sua gente por toda a

região, ensinando seus companheiros a serem bons e bravos.

Seu povo alimentava-se de farinha de mandioca, raspa de madeira, jabutis

e sucuris, cobras imensas que habitam na água.

Certa vez, uma enorme sucuri foi capturada e queimada por haver

devorado diversos índios. Inesperadamente brotaram de suas cinzas diversas espécies

de vegetais, como a mandioca, o milho, o cará, a abóbora, a pimenta, e algumas plantas

frutíferas, até então desconhecidas para aquela tribo. Foi um pássaro surgido do céu que

os ensinou a utilizar e preparar tais alimentos e também a fazê-los multiplicar-se. A

partir daquele dia, fartas roças se formaram.

Page 14: Alexandro F. Souza - In Illo Tempore O Mito e A Emergência do Mundo Humano

Para garantir o sustento de seu povo, sinaá, em face das fortes chuvas e da

ameaça de inundação, construiu uma imensa canoa, onde plantou mudas de cada

espécie. Em poucos dias o rio transbordou e a enchente cobriu toda a região, mas o

grande pajé livrou seu povo da fome.

Já mais velho, Sinaá casou-se com uma aranha, que lhe teceu novas vestes

para melhor abrigá-lo. Chegando a atingir idade bastante avançada, já ostentava longas

barbas brancas. Seus poderes, porém, permitiam-lhe remoçar a cada banho de

cachoeira, para que pudesse viver até o fim de seu povo, como tanto queria. Quando

isso ocorresse, Sinaá derrubaria a forquilha de uma enorme árvore que apontava para o

céu, sustentando-o. O céu desabaria sobre todos os povos e o mundo teria chegado a seu

fim10.

É importante ressaltarmos essa característica da comunicabilidade entre

homem e mundo, entre homem e coisas do mundo. Aí talvez se encerre o ponto mais

característico da sistematização operada pelo pensamento míticos nos vários níveis da

realidade. Poderíamos dizer que essa visada da existência de uma forma de comunicação

com o mundo e as coisas desse mundo é que traz ao homem a possibilidade de construir, a

partir dessa comunicação, um sistema de conhecimento que lhe permita influir nos

processos da realidade. Se a natureza lhe fala, se o mundo e o homem pulsam num mesmo

ritmo, o ritmo cósmico, torna-se possível, de certa forma, penetrar nos mistérios dessa

mesma natureza; ela, não sendo tão insondável assim, talvez possa apresentar fissuras que

possibilitem a intervenção do homem. Por ser acessível ao homem, o ritmo cósmico pode

também ser por ele modificado. Através da observação estrita de tais ritmos e a apreensão

de suas mais fortes características torna-se possível ao homem, de alguma forma, superar a

passividade inicial e o sentimento de derelição que este experimenta ante a presença do

sagrado.

10 - SILVA, Waldemar de Andrade e. Lendas e Mitos dos índios brasileiros;

Page 15: Alexandro F. Souza - In Illo Tempore O Mito e A Emergência do Mundo Humano

II - O mito e a emergência do mundo humano

Acabamos de afirmar que o homem das sociedades míticas, pelo laço do

sagrado que o une a todos as coisas da natureza, percebeu que elas lhe falam, que lhe

transmitem seus ritmos vitais, e até mais, que o próprio homem pulsa no mesmo ritmo,

uma vez que ambos compartilham da mesma origem comum. Essa descoberta pode,

portanto, levar o homem a, de certa forma, dominar a natureza, colocá-la a seu serviço;

para tanto basta observar mais atentamente aquilo que a natureza lhe comunica, aquilo que

ela diz de si ao homem. A natureza aberta à comunicação com o homem permite-se ser

compreendida e permite que o próprio homem se compreenda ao compreendê-la. De uma

postura passiva experimentada ante a manifestação da presença do sagrado, o homem

percebe que, agora uma nova face da natureza se lhe abre e se lhe mostra aberta à sua

influência. Essa grande e revolucionária descoberta, pode–se dizer que é “a descoberta de

si presente na totalidade e a descoberta da totalidade presente na intimidade do si. Ou

ainda, é a experiência da abertura enquanto tal, a descoberta do ser finito e da realidade

infinita, é pois o ultrapassar da finitude e da temporalidade e também o ultrapassar da

experiência de derelição”11.

Dissemos mais acima que essa tentativa de superação da heterogeneidade do

mundo se dá com a sistematização da experiência da presença do sagrado num complexo

de narrativas míticas que organiza e direciona as forças do Ser que se manifestam nessa

experiência. Podemos dizer, portanto, que o mito é um veículo possibilitador da

compreensão do mundo e do homem, bem como uma forma de prescrever modos eficazes

de interferência nos processos cósmicos e de se organizar o todo social. Com a forma do

mito, o homem vislumbra a possibilidade de, sobre o mundo natural, instaurar um mundo

humano ideal, um mundo do seu tamanho, onde se torna possível interferir e guiar os

processos do mundo natural segundo seus desejos. Podemos dizer que a emergência de um

mundo mítico é que torna viável a emergência de um mundo humano. Ao mundo da

natureza, ou entre ele e o mundo humano, o homem contrapõe o mundo mítico que:

11 - LADRIÈRE, Jean. Vida Social e destinação, p. 41;

Page 16: Alexandro F. Souza - In Illo Tempore O Mito e A Emergência do Mundo Humano

Tornando compreensível o mundo da cultura (...) permite ao homem

compreender-se, dizer a sua própria situação e apreender-se como ser mediador,

enraizado na natureza, mas ao mesmo tempo capaz de instaurar uma ordem de regras e

símbolos que já não é mais a da natureza, mas ligada ao mundo das potências sobre-

humanas, porém ao mesmo tempo instalada em seu próprio reino que é precisamente

um lugar intermediário, totalmente mediação12.

Com um conjunto de narrativas míticas, o homem tem acesso à história do

surgimento do mundo em todos os seus detalhes e, ao relatar a gênese de tudo aquilo que

é, de certa forma o mundo narra o processo que deu origem ao próprio homem. Com

Eliade poderíamos dizer que:

Os mitos relatam não só a origem do mundo, dos animais, das plantas e do

homem, mas também todos os acontecimentos primordiais em conseqüência dos quais o

homem se transformou naquilo que é hoje, ou seja, um ser mortal, sexuado, organizado

em sociedade, obrigado a trabalhar para viver e trabalhando segundo determinadas

regras. Se o Mundo existe, se o homem existe, foi apenas porque os Seres Sobrenaturais

desenvolveram uma atividade criadora nas “origens”13.

Ao derivar toda a sua situação atual de um acontecimento mítico ocorrido no

tempo fabuloso, o homem sacia a sua própria sede de sentidos para a sua existência e se

arma de formas eficazes de construir o seu próprio mundo, pois, sendo imagem da criatura

divina, tendo em si a aura mítica que emana das coisas sagradas, o homem pode também

construir um mundo propriamente seu, o mundo da cultura. Uma nova dimensão da

realidade se abre ao homem com o poder do mito; agora ele não mais se encontra à mercê

dos acontecimentos cósmicos, mas, por conhecer a gênese do real, pode colocar algo como

mediação entre ele e a natureza. “O pensamento mítico” – diz Cassirer – “apreende uma

estrutura inteiramente determinada, concreta e espacial, a fim de, a partir dela, levar a

termo o conjunto de “orientação do mundo””14. Aquele sentimento de pura passividade e

nulidade, o escorrer do acontecer fenomênico do mundo natural, que era sentido como

algo ultrapassante e inapreensível torna-se, com a força do relato mítico, uma realidade

capaz de ser conhecida pelo homem; e com esse conhecimento da realidade trans-humana

torna-se possível a articulação de um horizonte dotado de sentido e menos hostil ao gênero

12 - LADRIÈRE. Op. cit., p. 205; 13 - ELIADE, Mircea. Aspectos do mito, p.17; 14 - CASSIRER, Ernst. Filosofia das formas simbólicas. Vol. II – O pensamento mítico, p. 167;

Page 17: Alexandro F. Souza - In Illo Tempore O Mito e A Emergência do Mundo Humano

humano. Diríamos que o mundo mítico é o esteio do mundo humano; um alicerce que

permite ao homem instaurar um mundo seu sobre o devir constante da realidade

fenomênica. Há uma realidade maior, mais eficaz, originadora que cerca o homem, e o

conhecimento dessa realidade permite a superação da dominação dessa mesma realidade:

A existência do Mundo é o resultado de um ato divino de criação, as suas

estruturas e os seus ritmos são conseqüência de acontecimentos que ocorreram no início

do Tempo. A Lua tem a sua história mítica, e também o sol e as Águas, as plantas e os

animais. Todo o objeto cósmico tem uma “história”. Isso significa que é capaz de

“falar” ao homem. E porque “fala” de si mesmo, sobretudo de sua “origem”, do

acontecimento primordial em conseqüência do qual passou a existir, o objeto torna-se

real e significativo, Já não é um “desconhecido”, um objeto opaco, inapreensível e

desprovido de significado, em suma, “irreal”. Ele participa do mesmo “Mundo” do

homem.

Uma tal comparticipação não só torna o Mundo “familiar” e inteligível,

torna-o também transparente. Através dos objetos deste Mundo, o homem apercebe-se

dos vestígios do Seres e dos poderes de um outro mundo. É por isso que (...) para o

homem arcaico o Mundo é simultaneamente aberto e misterioso. Falando de si mesmo

o Mundo remete para os seus autores e protetores e conta a sua “história”. O homem

não se encontra num mundo inerte e opaco, e, por outro lado, ao decifrar a linguagem

do Mundo, ele conforta-se com o mistério. Porque a “Natureza” desvenda e camufla

simultaneamente o “sobrenatural”, e é aí que, para o homem arcaico, reside o mistério

fundamental irredutível do Mundo. Os mitos revelam tudo o que aconteceu, desde a

cosmogonia até ao estabelecimento das instituições socioculturais15.

Nessa sucinta afirmação podemos perceber o inestimável valor do mito; como

a partir de suas formas, o homem pode sair da opaca e hostil plenitude do mundo natural

dos acontecimentos e fundar um mundo que lhe seja permitido direcionar. Como Cassirer,

citando Max Muller, nos diz, “seria completamente impossível agarrar e reter o mundo

exterior, conhecê-lo e entendê-lo, concebê-lo e designá-lo sem esta metáfora fundamental,

sem esta mitologia universal, sem este ato de insuflar o nosso próprio espírito dentro do

Caos dos objetos, e refazê-los, voltar a criá-los, segundo a nossa própria imagem”16.

15 - ELIADE. Aspectos do mito, p. 121; 16 - MULLER, Max apud CASSIRER. Linguagem, mito e realidade, p. 105;

Page 18: Alexandro F. Souza - In Illo Tempore O Mito e A Emergência do Mundo Humano

Caos e Cosmos

Geralmente encontramos nas narrativas míticas o contraste primordial entre o

Caos e o Cosmos, entre o Nada e a Criação. “Naquele tempo” – dizem as narrativas

míticas – “só havia água sobre a superfície da Terra, até que deus decidiu, sentindo-se só,

criar todas as coisas”. Tais relatos contam como, nos fabulosos tempos do princípio, um

deus, um herói ou um antepassado civilizador fizeram surgir a ordem de um estado

amorfo, onde ainda nada se podia vislumbrar. Ao proferir o fiat instaurador de toda ordem,

o deus, o herói ou o antepassado faz emergir do Caos indiferenciado a ordem apresentada

pelo mundo na perspectiva do homem das sociedades míticas. Atrelado sempre ao “como”

cada coisa veio a existir, o relato mítico explica também o “por quê” tal coisa veio à

existência. Junto à sua origem encontra-se o télos justificador do objeto em questão. O

contraste entre Caos e Cosmos apresenta-se como uma categoria interessante às nossas

observações, pois é desse momento primordial que se origina toda a realidade, e também

por esse evento ser a demonstração cabal da eficácia dos Seres divinos. Esse aspecto salta

à nossa observação pelo fato de ser essa eficácia a medida para toda ação humana que se

deseja significativa. O fiat originador do Cosmos constitui um modelo primordial para

toda ação humana justamente pelo fato de ser abundante da plenitude e do poder

transformador manifestado in illo tempore. O contraste entre Caos e Cosmos, não-

existência e existência surge-nos, portanto, como uma das principais, quiçá a principal,

característica do pensamento mítico. Ao narrar o modo como as coisas vieram à

existência, ao narrar o combate primordial entre o elemento agregador e o elemento

desagregador, o mito aponta o modo como o homem deve agir na sua atividade criadora,

onde quer que esta se dê. Para onde quer que olhemos, dentro da perspectiva mítica toda

ação transformadora segue esse mesmo princípio, é preciso transformar o Caos em

Cosmos, ou seja, é preciso fazer com que o real venha à existência, e isso se faz

principalmente pela ação transformadora do mito.

Rito e tempo sagrado

Page 19: Alexandro F. Souza - In Illo Tempore O Mito e A Emergência do Mundo Humano

É interessante notar como se articulam as categorias do rito, do espaço e do

tempo sagrado nas sociedades que se orientam pela perspectiva mítica. Acabamos de

afirmar o aspecto modelar do mito e aqui apontamos como o rito se constitui o elemento

possibilitador da evocação desse fiat originário. Nos detivemos também, mais acima, nos

aspectos heterogêneos do tempo, do modo como a consciência mítica articula tempo

sagrado e tempo profano. Dissemos que enquanto o tempo profano é aquele tempo

precário, onde a ordem estabelecida pelo ato cosmogônico se deteriora, o tempo sagrado é

o tempo forte onde ainda se pode perceber a total manifestação do Ser. O tempo fabuloso

do princípio é o tempo pleno, eficaz e indeclinável, que se situa nos primórdios do Mundo,

mas que ainda pode ser sentido na manifestação da presença do sagrado. A narrativa

mítica bem expressa essa dicotomia uma vez que:

O mito explica o mundo presente vinculando-o, pela força da narrativa, a

um tempo original em que este mundo foi talhado a partir de um elemento anterior,

informe e indiferenciado. O tempo original não é o tempo atual, de cujas propriedades

profundamente difere: o tempo atual é a passagem, deterioração, queda, desagregação,

iminência sempre ameaçadora de um desmoronamento radical, de um retorno ao

indiferenciado, enquanto o tempo original é a capacidade sempre ativa, força

organizadora sempre atuante, operando no atual, capaz de reefetuações indefinidamente

repetidas, sempre suscetível de ser chamado do fundo do seu passado imemorial, desde

sempre revolvido, para vir salvar o presente da dissolução que o ameaça. O tempo

presente está aqui, mas instável e sem força. O tempo original está indefinidamente

longínquo, mas sempre ativo e indeclinável. A origem está, portanto, distante e próxima

ao mesmo tempo, é estabelecida numa descontinuidade radical com este mundo, dentro

do qual, porém, ao mesmo tempo é sempre interpelável, e sua reatualização assegura

que este mundo se mantenha na figura ordenada que é a sua17.

Como bem expressa Ladrière, o tempo fabuloso das origens pode ser evocado,

tornado presente novamente; ao tempo que deve a sua heterogenia à dicotomia entre tempo

sagrado e tempo profano, podemos somar também esse caráter de descontinuidade do

tempo sagrado. É o mito do eterno retorno que nos aparece em sua mais clara configuração.

O tempo fabuloso do princípio pode ser re-efetuado; a plenitude do ser pode ser novamente

evocada através desse princípio simples de retorno ao indeclinável e pleno tempo de

origem. O tempo profano, como tempo desagregador, que tende a levar o Cosmos

17 - LADRIÈRE, Jean. A articulação do sentido, p. 191;

Page 20: Alexandro F. Souza - In Illo Tempore O Mito e A Emergência do Mundo Humano

novamente para a forma indiferenciada, pode ser anulado ou revertido com o processo de

evocação do tempo fabuloso das origens, manifestação plena do elemento agregador,

civilizador. Essa evocação faz-se por intermédio do rito, que possui por função justamente

evocar esse tempo fabuloso dos primórdios. Através do rito, o homem das sociedades

míticas instala-se novamente naquele tempo primordial, pleno de eficácia e de onde tudo se

originou. Ele bebe novamente da fonte primordial de onde emanou a vida. Ao fazer uma

regressão ao início dos tempos, o homem das sociedades míticas anula os efeitos

degradantes do tempo profano, re-instalando o mundo naquele momento mágico onde

ocorreu a separação entre Caos e Cosmos. O momento mítico da cosmogênese pode ser

repetido indefinidamente, o Cosmos pode ser re-atualizado. Ao evocar esse tempo fabuloso,

o homem re-engendra o mundo, cosmiciza-o novamente, dá-lhe o mesmo vigor de outrora.

Como bem nos diz Eliade, esse tempo fabuloso dos primórdios “é a suprema manifestação

divina, o gesto exemplar de força, superabundância e criatividade. O homem religioso é

sedento de real. Esforça-se, por todos os meios, para instalar-se na própria fonte da

realidade primordial, quando o mundo estava in statu nascendi”18.

Essa tentativa de instalar-se novamente no viço do mundo in statu nascendi é

conseguida pela força re-engendradora, re-constituidora do mito. O tempo fabuloso das

origens está presente, por exemplo, no tempo litúrgico onde homem experimenta a força do

real em seu primeiro aparecer.

Se seguirmos um pouco mais adiante em nossa análise, perceberemos que não só

o regresso ao fabuloso tempo do princípio é possível; assim como é reversível, o tempo

pode também ser acelerado em seu processo de desagregação. Assim como regredir,

avançar no tempo profano e acelerar o seu processo de destruição também é possível. A

prática da aceleração do processo de degradação do Cosmos tem sua expressão mais forte

nos mitos que relatam, ou prescrevem, a forma de se cultivar a terra. Nesses momentos

torna-se preciso re-engendrar o Cosmos, torna-se necessário fazê-lo regredir ao estado de

pura indeterminação, onde nada está criado, mas onde tudo se pode dar. Assim, quando se

faz a semeadura, tem-se uma imagem desse retorno ao amorfo, ao indiferenciado da

natureza, de onde a planta poderá surgir como uma nova vida, um novo Cosmos, pleno da

manifestação do sagrado. É aí que têm lugar os ritos de aceleração da ação degenerativa do

18 - ELIADE. O sagrado e o profano, p. 72;

Page 21: Alexandro F. Souza - In Illo Tempore O Mito e A Emergência do Mundo Humano

tempo profano. Geralmente, tais ritos se caracterizam pela degeneração da ordem social

estabelecida, vive-se um momento de caos frenético que se assemelha ao Caos inicial de

antes da criação. Estes são os ritos de bebedeira, de orgias, onde pela experiência do frenesi

orgiástico tem-se lugar a desagregação do Cosmos, a sua volta ao estado caótico da

indiferenciação. Os ritos de ano novo geralmente se inscrevem nessa descrição, quando as

festas tomam conta dos rituais e onde acontece a degradação total do ano velho e

possibilita-se o surgimento do ano novo em toda a sua plenitude. Temos, num mito chibcha,

uma versão interessante desse processo de degradação:

El deporte que más acostumbraban los chibchas era el atletismo, pues les

gustaba hacer las carreras atléticas en los días de sus fiestas. Su deidad patrono de las

carreras era el dios Chaquén.

En los días de fiestas especiales dedicadas a las carreras los indígenas

concurrían con el cacique de cada tribu o parcialidad. Traían danzas con música de

flautas, fotutos y tambores. Sus vestidos eran adornados con mucha plumería y pieles de

animales, con diademas de oro fino en la cabeza que eran a modo de medias lunas, con

las puntas hacia arriba. Gustaban mucho las invenciones nuevas en las danzas. Hacían en

el camino mil entremeses y juegos con gran regocijo.

Cuando llegaban a la meta en las carreras, los ganadores recibían mantas

como premios. Asimismo, recibían premios las mejores danzas, juegos de regocijos y

vestidos vistosos y bien arreglados. En estas fiestas tomaban mucha chicha y brindaban

con alegría por su dios Chaquén.

Cuando se acababan las fiestas, regresaban a sus bohíos y las terminaban

con grandes borracheras.

El dios Chaquén también era el vigilante de los linderos de las sementeras

de los indios muiscas.

En los primeros meses del año, celebraban sus fiestas agrícolas “en las

cabas de sus labranzas”, esto es, en los límites de los sembrados. Se realizaban fiestas

mágicas para lograr buenas cosechas, y el dios protector de estas fiestas en los lindes de

los sembrados era Chaquén.

Las fiestas eran principalmente de las cosechas, para lograr la bendición de

los dioses. En ellas bailaban en grupo y “asíanse de las manos hombres con mujeres,

haciendo corro y cantando canciones, ya alegres, ya tristes, en que se referían las

grandezas de los mayores, pausando todos a una y llevando el compás…al son de flautas

y fotutos…: tenían en medio las múcuras de chicha, de donde iban esforzando a los que

cantaban otras indias que estaban dentro del corro, que no se descuidaban de darles de

beber. Duraba esto hasta que caían embriagados y tan excitados a la lujuria con el calor

del vino, que cada hombre y mujer que se juntaba con el primero que encontraba, porque

Page 22: Alexandro F. Souza - In Illo Tempore O Mito e A Emergência do Mundo Humano

para esto había general licencia en estas fiestas aun con las mujeres de los caciques e

nobles”.

Las fiestas de la cosecha alrededor de los lindes de los sembrados eran de

carácter mágico-religioso, pues eran propiciatorias para la fertilidad agrícola. A su

alrededor los ritos sexuales de libertad se manifestaban como un costumbre social para

el estímulo mágico de la fertilidad. De acuerdo con el ritual de los dioses chibchas, al

dios Chaquén se le ofrecían los adornos de la borrachera y de las fiestas, con toda la

plumería que usaban en ellas y en las guerras.

Los chibchas acostumbraban los juegos en las fiestas de las siembras o

cosechas. Les gustaba llevar disfraces de animales; unos iban representando osos; otros

figuras de leones o de tigres u otros animales. También les gustaba llevar máscaras.

Saltaban de alegría, diciendo que el sol les concedía muchas gracias. Según sus

creencias, estos juegos eran vigilados y protegidos por el dios Chaquén.19

Rito e cosmicização do espaço

Com o espaço o mesmo esquema se repete e, antes de habitá-lo é preciso

cosmicizá-lo, retirar dele todo aspecto de estranhamento e hostilidade, todos aspecto de

incriado, pois só o sagrado é digno de ser habitado pelo homem. Assim, se foi a

manifestação do sagrado que, num tempo fabuloso dos primórdios, fundou ontologicamente

o mundo, da mesma forma é preciso fundar novamente esse espaço desconhecido que agora

se quer habitar, é preciso trazê-lo à existência ou, como nos diz Eliade, “para viver no

Mundo é preciso fundá-lo – e nenhum Mundo pode nascer no “caos” da homogeneidade e

relatividade do espaço profano”20. É preciso então consagrá-lo, dotá-lo da manifestação e

força do Ser, possibilitando assim, que este se torne habitação para o homem, pois “se todo

território habitado é um “cosmos”, é justamente, porque, de um modo ou outro, esse

território é obra dos deuses ou está em comunicação com o mundo deles”21. Se a dimensão

sagrada é a justificação do espaço humano, se é a dimensão vertical que orienta e justifica a

realidade horizontal, torna-se necessário então fazer com que o espaço torne-se um espaço

sagrado, comunicando-o com a dimensão transcendente pela força do cosmicização e, nesse

sentido, “o ritual pelo qual o homem constrói um espaço sagrado é eficiente à medida que

19 - JANUARY, Brendan. Sorpréndete com la mitologia universal; 20 - ELIADE. O sagrado e o profano, p. 26; 21 - ELIADE. Op. cit., p. 33;

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ele reproduz a obra dos deuses”22, pois é justamente a presença do sagrado que torna

possível a “fundação do Mundo”, pois, “lá onde o sagrado se manifesta no espaço, o real se

revela, o Mundo vem à existência”23.

Como podemos perceber, para o pensamento mítico, portanto, espaço e tempo

são re-constituíveis e reversíveis em sua força, em seu viço; e se essa força se manifesta no

ato cosmogônico, então é esse que novamente tem lugar quando se processa o rito. Quando

plantam, quando constroem, nascem ou morrem, os homens das sociedades míticas re-

engendram o Cosmos, repetem o ato original do deus, do herói ou do antepassado. O

mundo, poderíamos dizer, perpetuamente começa para a consciência mítica.

A ação modelar do mito

Dizíamos há pouco que o ato primordial através do qual se originou todo o

Cosmos se coloca para a consciência mítica como paradigma para toda ação humana que se

queira eficaz. O homem tem, no sistema mítico, um apanhado de conhecimentos que

possibilitam que o mesmo possa exercer a sua ação no espaço de maneira eficaz. Através do

re-engendramento do Cosmos, da evocação do tempo fabuloso das origens e da observância

dos modos como os deuses, os heróis ou os antepassados míticos se portaram, o homem das

sociedades míticas tem as formas paradigmáticas de seu modo de ser no mundo. Ele deve

de todas as formas tentar igualar-se aos deuses, heróis e antepassados míticos e, uma vez

que aqueles lhe são próximos pelos laços do sagrado que os unem, esse igualar-se aos

deuses torna-se completamente viável. O culto e o rito equivalem, portanto, a uma re-

atualização do gesto primordial originador do Cosmos. Mais que simples encenação e

simbolismo, mais que evocar aquele tempo fabuloso dos primórdios, o rito e o culto tem por

função tornar presente novamente o contraste primordial entre o Caos e a Criação. Como

percebido em nossa sucinta abordagem do tempo e do espaço:

Para o homem das sociedades arcaicas, aquilo que se passou ab origene é

suscetível de se repetir pelos ritos. Para ele, portanto, o essencial é conhecer os mitos.

Não só porque os mitos lhe fornecem uma explicação do Mundo e da própria maneira de

22 - ELIADE. Op. cit., p32; 23 - ELIADE. O sagrado e o profano, p. 59;

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estar no Mundo, mas, sobretudo porque, ao recordar, ao reatualizá-los ele é capaz de

repetir o que os Deuses, os Heróis ou os Antepassados fizeram ab origene. Conhecer os

mitos é aprender o segredo da origem das coisas. Por outras palavras, aprende-se não só

como as coisas passaram a existir, mas também onde as encontrar e como fazê-las

ressurgir quando elas desaparecerem24.

O conhecimento mítico é, portanto, um reservatório de saber cultural, uma

instância que indica modos de ser no mundo, que orienta o todo social em seu devir

quotidiano. É claro que, como manifestação daquilo que é sagrado por excelência, o mito é

uma instância orientadora da conduta humana. A perspectiva de sociedade, de vivência

comunitária é, certamente dada pelo mundo das narrativas míticas. Toda a organização

social, todo modo de se portar no mundo é perpassado pela influência da esfera sagrada, ela

é que indica a realidade, a significância e a eficácia da ação. Se foi assim que fizeram os

antepassados, se tal ou tal deus se portou dessa maneira diante de determinada situação,

essa é, portanto, a medida da eficácia da ação. O gesto do antepassado, do deus ou do herói

deve ser seguido, uma vez que ele é o substrato de toda ação transformadora, realmente

capaz de interferir na realidade. Novamente, com o auxílio de Eliade, poderíamos dizer que:

O mito garante ao homem que aquilo que ele se prepara para fazer já foi

feito, ajuda-o a dissipar as dúvidas quanto ao resultado de seu cometimento. Por que

hesitar perante uma expedição marítima, uma vez que o Herói mítico já a efetuou num

Tempo lendário? Basta seguir o seu exemplo. Do mesmo modo, por que temer instala-se

num território desconhecido se se sabe o que é necessário fazer? Basta repetir o ritual

cosmogônico e o território desconhecido transforma-se em “Cosmos”, passa a ser uma

imago mundi, uma “habitação” ritualmente legitimada. A existência de um modelo

exemplar em nada entrava a atividade criadora. O modelo mítico é suscetível de

aplicações ilimitadas25.

É somente através do mito, portanto, que o homem pode lançar-se criativamente

no mundo das coisas, somente através do ato primordial, referência de ação que, sobre o

mundo natural, o homem das sociedades míticas vislumbra a possibilidade de um mundo

humano.

24 - ELIADE. Aspectos do Mito, p. 19; 25 - ELIADE. Op. cit., p 120;

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Com o relato mítico, com a narrativa de seus feitos nos fabulosos tempos dos

primórdios, os deuses deixaram aos homens as formas pelas quais estes podem seduzir a

natureza e colocá-la a seu serviço, como nos diz Eliade:

À primeira vista o homem das sociedades arcaicas não faz mais do que

repetir indefinidamente o mesmo gesto arquetípico. Mas, no fundo, ele está a conquistar

infatigavelmente o mundo, está a organizar e a transformar a paisagem natural em meio

cultural. Graças ao modelo exemplar revelado pelo mito cosmogônico, o homem torna-

se, por sua vez, criador. Parecendo votado a paralisar a iniciativa humana, os mitos

incitam, no fundo, o homem a criar, abrem continuamente novas perspectivas ao seu

espírito inventivo26.

Mito e destino pessoal

Muito já foi dito sobre o caráter coletivo do mito; este seria uma forma de

organização que não permite a expressão singular de criatividade, pois, se todo ato

cosmogônico é ato modelar por excelência, então a irrupção de novas formas de agir torna-

se inútil, insignificante. Realmente o ato modelar do gesto cosmogônico é o único no qual o

homem das sociedades míticas tem garantida a eficácia de sua ação. Como metáfora

fundamental da ordem total, o mito não conhece a expressão singular da criatividade

humana e, sendo assim, a vida só é vida em comunidade. O destino pessoal de cada

indivíduo deve se ajustar ao destino do clã, essa é a forma na qual ele deve se engajar. Se

não há uma expressão singular nisso, há no entanto, uma responsabilidade que só ao

individuo das sociedades míticas cabe. Unir o seu destino ao destino coletivo equivale a

zelar pela integridade do Cosmos, equivale a assumir responsabilidades no tocante à tarefa

diária de manter a ordem primordial desse Cosmos, salvando-o da degradação pela qual este

é constantemente ameaçado pelo tempo e espaço profanos. Ele mesmo não se vê fora dessa

comunidade vital e, para o pensamento mítico, como nos diz Cassirer:

O eu sente a si mesmo apenas na medida em que se compreende como

membro de uma comunidade, na medida em que se vê unido outros na unidade de um

clã, de uma tribo, de uma liga social. Somente nesta unidade e através dela, ele possui a

si mesmo; sua vida e existência próprias estão ligadas, em cada uma de suas

26 - ELIADE. Aspectos do mito, p 120;

Page 26: Alexandro F. Souza - In Illo Tempore O Mito e A Emergência do Mundo Humano

manifestações, à vida do conjunto que os abrange, como se por laços mágicos

invisíveis27.

Ou, como nos diz Eliade, “o homem das culturas tradicionais só se reconhece

como real na medida em que deixa de ser ele próprio (...) e se contenta em imitar e repetir

os gestos de um outro. Por outras palavras, ele só se reconhece como real, isto é, como

“verdadeiramente ele próprio” na medida em que deixa precisamente de o ser”28.

O mito é a instância instauradora de uma comunicabilidade entre o todo coletivo

e a face singular do homem, assim como é possibilitadora da ação humana sobre o mundo

natural. Essa comunicabilidade, no entanto, outorga responsabilidades ao homem, uma vez

que este deve zelar pela preservação do Cosmos, pela realidade na qual habita e só na qual

pode habitar. Há um mito venezuelano que deixa bem expressa essa característica do relato

mítico:

En el tiempo en que los hombres vivían siglos e siglos existió sobre la

falda del cerro Auyantepuy uno llamado Maichapue. No sabía hacer nada. Ni pescar, ni

tejer cestas, ni colar la harina. Como salía de pesca o de cacería sin llevar arcos, flechas,

redes ni anzuelos, siempre volvía con las manos vacías y los animales y demás hombres

se burlaban de él.

Un día en que no había pescado nada, como de costumbre, se sentó muy

triste a la orilla del río. Un pequeño hombre salió del agua y al ver su desconsuelo le

obsequió con una vasija mágica.

- Cuando pongas un poco de agua en ella, el río se secará y podrás recoger

todos los peces que necesites. Pero ten mucho cuidado, si la llenas todas puede

derramarse el agua e inundar la tierra. No se le enseñes a nadie porque la perderás.

Maichapue hizo lo que le mandó aquel hombre del río y por fin consiguió

muchos peces.

De regreso en el pueblo, los hombres y mujeres se preguntaron unos a

otros:

- ¿Cómo ha hecho para conseguírlos?

A partir de entonces todos quisieron saber cómo hacía para pescar tanto.

Pero Maichapue no dijo nada.

27 - CASSIRER. Filosofia das formas simbólicas – Vol. II: O pensamento mítico, p. 298; 28 - ELIADE. O mito do eterno retorno, p. 49;

Page 27: Alexandro F. Souza - In Illo Tempore O Mito e A Emergência do Mundo Humano

Un día, mientras Maichapue estaba en la selva, la gente del pueblo revisó

su bolsa y halló la vasija. Quien finalmente se la apropió, la llevó al río para beber;

cuando tomó el agua se asustó al ver que el río se secaba. Avisó a todos:

- ¡Así es cómo pesca Maichapue! – dijeron -. Ahora conocemos su secreto.

Volvieron a llenar la vasija, pero como no sabían usarla el agua se derramó

e inundó la tierra.

La vasija fue arrastrada por la corriente, y un pez se la tragó.

Maichapue entristeció. Durante muchos días buscó aquella pieza mágica,

pero no tuvo éxito. Sin ella ya no pudo volver a pescar.

Un día, mientras cazaba, se encontró con un mono que cargaba una

calabaza con semillas en una de sus patas. En un momento, el mono se hirguió sobre sus

patas traseras, hizo sonar la calabaza tres veces y se refugió en su cueva. Enseguida

apareció una manada de tapires. Maichapue los codició, pero como no tenía nada útil

con que cazarlos no pudo hacerse con ninguno. Regresó con una expresión de tristeza en

los ojos.

Tras meditarlo algunos días, decidió conseguir a toda costa aquella

calabaza a fin de poder llamar a los tapires. Así que volvió a la selva dispuesto a

quitársela al mono. Cuando éste asomó su cabeza de la cueva, Maichapue aprovechó

para dar un brinco y quitarle la calabaza. Enseguida comenzó a tocar, pero los tapires no

aparecían. El mono salió de la cueva para ver a quien le había robado. Resignado a no

recuperarla, le aconsejó a Maichapue que no hiciera sonar la calabaza más de seis veces

a riesgo de que los tapires lo rodearan y se la quitaran.

Desde esa tarde Maichapue siempre regresó a la aldea con muchos tapires.

Los hombres, admirados, volvieron a vigilarlo y un día que Maichapue fue a cazar,

algunos lo siguieron sigilosamente y descubrieron su artilugio. En secreto, consiguieron

robarle la calabaza, pero como ignoraban la manera de usarla, los tapires los rodearon y

se la llevaron. Cuando Maichapue advirtió la ausencia pasó varios días buscándola pero

no halló nada. En su camino encontró a un indio araguato que se estaba peinando. A

medida que el araguato se alisaba el cabello, aparecían muchas aves que se posaban

alrededor de él.

Maichapue le pidió el peine pero el araguato respondió que era el único

que tenía. Fueron tantas las súplicas de Maichapue que el araguato terminó por acceder y

se lo obsequió, advirtiéndole que se no peinara más de seis veces seguidas ya que las

aves vendrían y se lo arrebatarían.

Desde aquel día, Maichapue regresó con aves deliciosas. Pero una vez más,

los hombres de la aldea empezaron a vigilarlo. Como vieron lo que hacía pero no como

lo hacía, aquellos que finalmente se apropiaron del peine y trataron de usarlo fueron

rodeados enseguida por miles de pájaros.

Page 28: Alexandro F. Souza - In Illo Tempore O Mito e A Emergência do Mundo Humano

Entonces Maichapue regresó y vio que su peine había desaparecido. Se

puso muy triste y luego muy furioso con toda la tribu y anunció que iba a marcharse ya

que no quería seguir viviendo en la aldea.

Maichapue se fue lejos y conoció infinidad de aventuras. Llegó hasta el

mundo de arriba, que se encuentra más allá de los cielos. Aprendió a cazar, a pescar y a

tejer redes.

Después de mucho tiempo, cuando era viejo, regresó al pueblo. Allí

describió los lugares que conoció y enseñó a la tribu todo lo que había aprendido.

En sus últimos años, Maichapue conoció la veneración de su pueblo.29

Como podemos perceber no relato de Maichapue, ao homem das sociedades

arcaicas cabe preservar o Cosmos e utilizar corretamente os ensinamentos dos antepassados

míticos, uma vez que a não observância dessa orientação pode acarretar a desagregação do

Cosmos. A tribo de Maichapue, no entanto, ao não seguir essa orientação, acaba por

diversas vezes, a atrair graves incidentes para si.

O mito e a memória

Sendo o conjunto de narrativas míticas um reservatório de saber, de formas de se

interferir de modo eficaz nos processos cósmicos, cabe ao homem das sociedades míticas,

portanto, cuidar para que esse apanhado cultural, essa importante ferramenta de organização

da vida humana, não se perca. Nas sociedades que se orientam pela perspectiva mítica e

que, na maioria dos casos, não conhecem escrita, é à memória que cabe esse papel. Não

esquecer dos maravilhosos feitos dos antepassados míticos, de suas grandes proezas

realizadas nos fabulosos tempos dos primórdios equivale a assegurar que o homem terá

formas eficazes de intervenção na natureza e em seus processos. É preciso manter viva a

tradição originada pelo gesto civilizador do Herói mítico, uma vez que essa é a única forma

de se aceder ao real. O conhecimento, portanto é mantido pelas tradições orais, pelas

constantes re-efetuações do Cosmos em sua força primordial. A memória é uma importante

aliada na preservação desse Cosmos, uma vez que é nela que encontra-se depositado os

gestos primordiais do antepassados míticos; esquecer esses gestos equivale a lançar o

Cosmos na escuridão do amorfo, de onde nada significativo pode se originar.

29 - JANUARY, Brendan. Sorpréndete com la mitologia universal;

Page 29: Alexandro F. Souza - In Illo Tempore O Mito e A Emergência do Mundo Humano

III – O mito e a face perplexa do homem diante da realidade

Durante toda essa breve investigação, procuramos observar a perspectiva mítica

pelo âmbito da possibilidade de superação da realidade inapreensível do mundo natural.

Essa realidade, em sua profunda estranheza certamente não poderia constituir refúgio

seguro para a presença do homem e, torna-se necessário então, que este, numa atitude de

distanciamento e reflexão dessa realidade, hostil à primeira vista, procure pontos de fissura

que o possibilitem instaurar uma ordem apreensível. Essa fissura é conseguida através do

próprio sentimento de inapreensibilidade do mundo, uma vez que a partir do sentimento da

presença do sagrado é que o homem intui a existência de uma realidade que lhe é mais

eficaz e que tem o poder supremo de intervir e operar importantes modificações na

realidade. A partir dessa constatação, parece certo ao homem das sociedades míticas tentar

se aproximar compreensivamente dessa totalidade que o circunda, precede e o determina.

Essa é a sua única esperança de orientação diante da polivocidade do escorrer fenomênico

do tempo e espaço naturais. Como grande força transformadora, como eficácia suprema,

esse outro mundo se torna o modelo para a conduta humana, e o homem, para superar a

heterogeneidade do mundo natural, assume a perspectiva sagrada, possibilitando assim a

concatenação da polivocidade do mundo natural em um sistema mítico dotado de

significação.

Alegoria, símbolo e metáfora

Durante a história do pensamento humano, o mito foi abordado sobre várias

perspectivas, desde a aparente oposição radical no florescer da filosofia grega até às

contemporâneas abordagens de nomes de peso como os de Mircea Eliade e Ernst Cassirer.

Duas abordagens se sobressaem nesse apanhado cultural da história do pensamento: a que

vê no mito uma forma alegórica de se compreender a realidade, e a que vê no mito a

primeira tentativa humana de estabelecer um conhecimento através do símbolo. A essas

duas perspectivas, procura-se somar aqui uma outra, a do mito como uma metáfora

fundamental que procura compreender o mundo natural através das experiências vividas

nesse próprio mundo.

Page 30: Alexandro F. Souza - In Illo Tempore O Mito e A Emergência do Mundo Humano

Os sofistas, os estóicos e Platão, para citarmos somente alguns, entenderam o

mito pela forma da alegoria, ou seja, a linguagem do relato mítico é apenas um simulacro

que esconde a significação real do mito. É preciso efetuar uma interpretação das fabulosas

figuras míticas a fim de retirar desse aparente mundo mágico de sonhos e ilusões a verdade

encerrada por detrás dos devaneios da poesia mítica. Literalmente, o mito nada mais é que a

junção de absurdas figuras, fruto da imaginação e da atividade poética do ser humano.

Cabe, ao filósofo, ao sábio, saber penetrar as entranhas do relato mítico, abrindo caminho

entre os seres fantásticos e buscando a verdade que se esconde no fundo da narrativa.

Assim, Platão, quando lança mão das figuras míticas para expressar o seu pensamento,

deixa expresso em que sentido ele as usa. No mito da caverna, por exemplo, o Sol é

equivalente à verdade, as imagens no fundo da caverna são o mundo da opinião e o seu

exterior equivale ao mundo do conhecimento, ao mundo da realidade. As figuras míticas só

possuem sentido num relato que se “esconde” por detrás das mesmas. Sem a referência a

um metarelato, o relato mítico, do ponto de vista alegórico, passa a ser nada mais que uma

fábula absurda destinada a alimentar a imaginação e os sonhos dos homens.

Já o símbolo, podemos dizer, opera uma ruptura radical entre signo e

significado. O significado passa a ser independente do signo, do substrato onde se

manifesta. Esse é o modo pelo qual opera a filosofia e a ciência modernas. O caráter

universal de seus enunciados já não mais dependem da expressão física; o signo não está

fundido àquilo que procura significar, podendo inclusive ser usado em várias outras

relações de sentidos diferentes. O signo passa a ser uma ferramenta importante, uma

ferramenta que possui muitos equivalentes que podem se permutar sem o detrimento

daquilo que procuram significar. Essa característica do simbolismo é uma conquista enorme

para o conhecimento humano, pois permite que este abandone as configurações particulares

dos fenômenos e empreenda uma gloriosa aventura rumo aos universalismos e à eficácia

maior de sua linguagem e de seus processos de conhecimento da realidade. Sendo o sentido

completamente independente de sua expressão particular, novas e variadas formas de

transmiti-lo podem se dar, formas mais ágeis e mais eficazes.

Na metáfora, porém, temos ainda uma coincidência total, uma fusão entre o

signo e entre aquilo que ele procura significar, e esse é, justamente, o modo pelo qual opera

a perspectiva mítica. Por ser uma experiência que afeta religiosamente o homem, o mito

não pode se desprender daquilo que proporciona e experiência do sagrado, essa é ainda uma

experiência de uma consciência que se guia fundamentalmente pela emoção e não de uma

Page 31: Alexandro F. Souza - In Illo Tempore O Mito e A Emergência do Mundo Humano

consciência capaz de abstrações e construções teórico-discursivas. Apesar de já ensaiar um

distanciamento da imediaticidade do mundo natural, apesar de já ser uma forma mediadora

de relação, o conhecimento mítico não consegue, entretanto, se desprender da magia da

manifestação e da experiência do sagrado. Sobre essa questão, em A articulação do sentido,

assim se expressa Ladrière:

É realmente o visível em sua totalidade que assim é atingido, não como

uma soma, mas como uma organização, como um todo figurado. Deste modo, na

representação mítica da cosmogonia encontramos uma tematização daquilo que constitui

a unidade da natureza, isto é, do cosmos. Está aberto o domínio no qual o pensamento

cosmológico poderá liberar-se. Contudo, este domínio, como tal, não é ainda pensado,

somente no exercício o mito nos encaminha a ele. O mito é um pensamento que está

envolvido numa operação, significa em executando30.

É por essa razão que mais atrás dizíamos que o rito é um processo pelo qual se

torna possível trazer o mundo novamente à tona, justamente pelo fato de a palavra ritual

ainda conter a força do gesto primordial realizado pelo antepassado mítico. Ao proferir tais

palavras, ao realizar o mesmo gesto primordial do antepassado mítico, o homem das

sociedades míticas efetua o movimento mais uma vez, e não apenas aponta para o mesmo,

simbolizando-o, lembrando-se de um tempo fabuloso onde o fato ocorreu. O gesto contém a

força do tempo fabuloso dos primórdios e evocá-lo significa torná-lo presente, real e eficaz

novamente. O pensamento mítico ainda não pode expressar-se de uma maneira abstrata

justamente pelo fato de ainda alicerçar-se no mundo das emoções da experiência do

sagrado. Como jogo divino, a natureza não pode ainda mostrar-se como uma realidade que

o homem pode, a seu bel-prazer, interferir. Uma atitude como essa só é permitida com a

licença dos deuses, é o próprio mundo natural que deve “conceder” ao homem a permissão

de nele intervir.

Esse caráter metafórico do mito se dá pelo fato de o horizonte lingüístico do

homem das sociedades míticas ser ainda um horizonte precário, não desenvolvido o

bastante para abarcar um conhecimento abstrato do tipo metafísico; daí então, podemos

dizer que é só através da forma metafórica, de figuras retiradas da sua realidade quotidiana,

que o homem das sociedades míticas pode expressar a sua intuição da presença do sagrado.

Somente com o alargamento desse horizonte lingüístico é que a forma mítica, ou antes, a

30 - LADRIÈRE, Jean. A articulação do sentido, p. 192;

Page 32: Alexandro F. Souza - In Illo Tempore O Mito e A Emergência do Mundo Humano

experiência que a forma mítica descreve, pode ser esboçada num conhecimento do tipo

abstrato-teórico. Essa afirmação pode ser melhor aclarada se for estendida ao cenário da

Grécia dos filósofos pré-socráticos, onde também encontraremos um discurso que, apesar

de já ser um distanciamento da forma mítica de expressão, ainda não consegue abarcar o

todo da realidade de uma maneira teórico-abstrata. Como bem nos lembra Nietzsche, tal

processo pode ser observado na filosofia de Tales de Mileto e a sua proposta de unidade,

que encontra a dificuldade de se exprimir de modo “filosófico”, ou seja, abstrato. Ao falar

da Água como princípio de onde tudo provém, o filósofo jônico realiza um procedimento

ainda puramente mítico; a sua proposta de arché ainda se alicerça num modo mítico

metafórico de expressão:

A filosofia grega parece começar com uma idéia absurda, com a

proposição: a água é a origem de todas e a matriz de todas as coisas. Será mesmo

necessário deter-nos nela e levá-la a sério? Sim, e por três razões: em primeiro lugar,

porque essa proposição enuncia algo sobre a origem das coisas; em segundo lugar,

porque faz sem imagem e fabulação; e enfim, em terceiro lugar, porque nela, embora

apenas em face de crisálida, está contido o pensamento “Tudo é um”. (...) Assim,

contemplou Tales a unidade de Tudo o que é: e quando quis comunicar-se, falou água!31

Assim, temos na forma metafórica do pensamento mítico - que é já um sair da

imediaticidade do mundo natural para a mediaticidade do pensamento discursivo - uma

proto-matéria do pensar simbólico que caracterizam a filosofia e a ciência modernas:

O processo do pensamento filosófico se move tipicamente, desde uma

primeira apreensão inadequada mais ardente, de alguma idéia nova, expressa

figurativamente, para uma compreensão cada vez mais precisa, até que a linguagem

alcança a introvisão lógica, prescinde da Figura e a expressão literal toma o seu lugar.

Conceitos realmente novos, desprovidos de nomes na linguagem corrente, sempre fazem

seu primeiro aparecimento em afirmações metafóricas32.

O surgimento do pensamento abstrato-teórico seria, então, um desenrolar

da primeira intuição do mundo mítico em direção a formas outras de se responder ao

espanto primordial do homem face à realidade natural que se lhe apresenta no

quotidiano. Poderíamos dizer ainda que, “o mundo das imagens míticas, assim como os

mundos da linguagem ou da arte, serve aqui como um dos instrumentos fundamentais

31 - NIETZSCHE apud SOUZA, Jose Cavalcante de, (org), Os pensadores, pág, 43-46; 32 - LANGER, Susanne K. Filosofia em nova chave, p. 12;

Page 33: Alexandro F. Souza - In Illo Tempore O Mito e A Emergência do Mundo Humano

através do qual se realiza a “contraposição” entre eu e mundo. Essa contraposição se dá

na medida em que a figura do deus ou do salvador, de certa forma, se interpõe entre o eu

e o mundo; ela igualmente os vincula e os separa33.

Assim como a filosofia, a ciência, a arte ou a religião, o que move a consciência

mítica é o desejo humano de superar o sentimento de profunda estranheza em face da

realidade. Perplexo diante do desenrolar fenomênico, aparentemente impenetrável e

profundamente indiferente ao gênero humano, o homem procura uma fissura que

possibilite o seu estabelecimento nessa realidade e a construção de um mundo mais

aprazível à sua existência. O espanto primordial com a realidade é um só, entretanto, várias

são as formas de se explicar esse primordial espanto, originador de todo movimento

construtor de conhecimento. O homem constrói o seu mundo ao tentar apreender e reter a

forma do mundo natural, ao tentar estabelecer uma comunicação com o mundo natural. As

formas várias com que o homem tenta responder aos desafios da realidade e estabelecer

uma relação com essa mesma realidade nos revelam a grandeza desse empreendimento. O

pensamento, se movendo em várias direções diferentes, precisa de variadas formas de

expressão; sendo assim, às vezes torna-se necessário “nos voltarmos para outras formas de

expressão humana, para a pintura, a música, a poesia, para dizer a dor, evocar os poderes

terríveis, conjurar os demônios do abismo, também para cantar (...) as misteriosas criaturas

que anunciam na angústia”34.

33 - CASSIRER, Ernst. A filosofia das formas simbólicas, Vol: II – O pensamento mítico, p. 345; 34 - LADRIÈRE, Jean. Vida social e destinação, p. 30.

Page 34: Alexandro F. Souza - In Illo Tempore O Mito e A Emergência do Mundo Humano

Bibliografia:

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Biblioteca para niños e jovene. Biblioteca Pública de Nueva York, 2003

- LADRIÈRE, Jean. A Articulação do sentido. Tradução: Salma Tannus

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Oliveira da Conceição Silva. São Paulo: Editora Convívio, 1979;

- LANGER, Susanne K. Filosofia em nova chave. Tradução: Janete Meiches e

J. Guinsburg. São Paulo: Editora Perspectiva, Coleção Debates, 1989;

- OTTO, Rudolf. O sagrado. Tradução: João Garcia. Lisboa: Edições 70,

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- SILVA, Waldemar de Andrade e, (org). Lendas e mitos dos índios brasileiros.

Apresentação de W. Andrade e Silva; Introdução de Joya Eliezer; Prefácio de Orlando

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- SOUZA, Jose Cavalcante de, (org). Os pré-socráticos. Coleção Os pensadores.

São Paulo: Editora Nova Cultural, 1996.