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SciELO Books / SciELO Livros / SciELO Libros RENILDO, S. Liberalização do mercado de trabalho. In: Estado e capital na China [online]. Salvador: EDUFBA, 2018, pp. 97-115. ISBN 978-85-232-2002-0. https://doi.org/10.7476/9788523220020.0006. All the contents of this work, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution 4.0 International license. Todo o conteúdo deste trabalho, exceto quando houver ressalva, é publicado sob a licença Creative Commons Atribição 4.0. Todo el contenido de esta obra, excepto donde se indique lo contrario, está bajo licencia de la licencia Creative Commons Reconocimento 4.0. Capítulo IV Liberalização do mercado de trabalho Renildo Souza

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SciELO Books / SciELO Livros / SciELO Libros RENILDO, S. Liberalização do mercado de trabalho. In: Estado e capital na China [online]. Salvador: EDUFBA, 2018, pp. 97-115. ISBN 978-85-232-2002-0. https://doi.org/10.7476/9788523220020.0006.

All the contents of this work, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution 4.0 International license.

Todo o conteúdo deste trabalho, exceto quando houver ressalva, é publicado sob a licença Creative Commons Atribição 4.0.

Todo el contenido de esta obra, excepto donde se indique lo contrario, está bajo licencia de la licencia Creative Commons Reconocimento 4.0.

Capítulo IV Liberalização do mercado de trabalho

Renildo Souza

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CAPÍTULO IV

Liberalização do mercado de trabalho

Ecriou-seomercadodetrabalho!Eacriatura,comosesabe,éo cerne do capitalismo. A China, então, foi virada de ponta-cabe-ça,comareformadaregulaçãoestataldotrabalho.Foiconstruídoo caráter de mercadoria da força de trabalho, a despeito de suas características especiais. As reformas tornaram a força de traba-lho chinesa, plenamente, uma mercadoria que, com os capitalistas consumindoseuvalordeuso,geraumvalormaiordoqueoseupróprio (da força de trabalho) valor. A reinvenção do mercado e da propriedade privada na China não é uma simples volta à mí-tica economia de mercado smithiana da China de séculos antes das guerrasdoópio, conforme a impressionante imaginação e odesejo deGiovanni Arrighi (2008).Mercado e propriedade pri-vada, criaturas sociais contemporâneas, engendram, na China,gradual e inevitavelmente: o fetichismo da mercadoria, as rela-ções “pelas costas dos produtores”, a caracterização do trabalho comoumapropriedadedamercadoriaecomoalgoestranhoaos

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trabalhadores, a alienação do trabalho, a exploração do trabalho pelo capital, a teleologia absoluta do lucro. Institucionalizou-se,na China contemporânea, a assimetria estrutural, tipicamente ca-pitalista, entre a demanda e a oferta da força de trabalho, com a concorrência aberta entreos trabalhadores e coma insegurançasocial da sobrevivência, disciplinadora, diante da necessidade de preservaçãodoemprego.

As reformas liberalizantes criaram certas características de exploraçãodos trabalhadores chineses, que guardamalguma se-melhança com outros processos de desenvolvimento capitalista. Além disso, o contexto do neoliberalismo no mundo e a queda do socialismo real na União Soviética favoreceram o apelo a velhas e novas torpezas contra os trabalhadores. Internacionalmente, na década de 2010, no cortejo da sucessão de novas fases da crise do sistema capitalista, recrudesceu o ataque ao trabalho, com retro-cessos nos direitos trabalhistas e previdenciários, a exemplo dos episódiosnaGréciaeEspanhaatéasreformas legais,apartirde2015, na França e no Brasil. Foi retomada a importância da extra-ção da mais-valia absoluta no mundo, a despeito dos revolucioná-riosavançostecnológicosnoprocessodeprodução,comameaçaspavorosassobreoempregonoséculoXXI.Assiste-seàrenovadafúriadeexploraçãocapitalista,semasrestriçõesdopassado:aslu-tas do movimento operário, no mundo, por direitos e reformas so-ciais, de um lado, e a presença da União Soviética e a experiência dagranderevoluçãochinesa,deoutro.

A exploração acentuada também ocorre na China, apesar de suas particularidades, embora a economia chinesa desfrute de exu-berantemodernizaçãoeconômicaeprogressotécniconasúltimasdécadas.AChinaindustrializa-se,enquantoalgunsoutrospaíses,sejam os Estados Unidos, seja o Brasil, desindustrializam-se. Se a exploração como fonte do lucro não fosse tão elevada na China não teriahavidoavertiginosaegigantescaexpansãodoexércitoativo

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de operários fabris, em contraste com o drástico encolhimento do número de trabalhadores no chão da fábrica nos países centrais.

Guardadas as grandes diferenças das épocas históricas, podeser feito um paralelo no que concerne à exploração do trabalho em cursonaChina, comocomeçoda industrializaçãona Inglaterra.O queensinaahistória?Aesserespeito,pode-setomaremconside-raçãooesclarecimentodeFriedrichEngels,mostrandoqueocon-textodo“estágio juvenildeexploraçãocapitalista”,naInglaterra,foimarcadopelaexploraçãosemlimitedoiníciodagrandeindús-tria.(ENGELS,197-?ou198-?d,p.214)Engelsexplicouque,poste-riormente,nonovoestágioeconômico, jáavançado,asastúciasepequenos roubos contra os operários já não faziam sentido, porque jásecontavacomoprogressodagrandeindústriainglesaeosmer-cados mais amplos. (ENGELS,197-?ou198-?dp.213)Paraagrandeempresa,surgiuanecessidadedecertamoralidadecomercialedeconcentrar o seu tempo e atenção em aspectos mais relevantes dos negócios.Sóospequenosfabricantesaindaseatiravamaostostões,aos truques mesquinhos, para tentar sobreviver. Na etapa produti-va avançada, ocorreram as reformas sociais, como o fim do truck sys-

tem(pagamentodotrabalhoemprodutos)eaaprovaçãodaleidasdezhoras.Essasmedidasde regulamentaçãopúblicado trabalhocontrariavam o espírito do liberalismo desenfreado, mas, paralela e paradoxalmente,reforçavamosgrandescapitalistasemdetrimentodosconcorrentesmaisfrágeis,analisavaEngels.

Anecessidadedegrandenúmerodeoperáriosnasmaioresem-presas levou os mais importantes empresários industriais a preve-nirconflitosinúteiseaceitarossindicatos,observouEngels.Tudoisso estava em conformidade com o movimento de aceleração da concentração do capital e supressão dos concorrentes menores. E depois? E agora? No “capitalismo juvenil” em países periféri-cos reconhecem-se, como na atual retomada produção ca pitalista na China, o retorno às torpezas, além da exploração estrutural

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da relação social entre capital e trabalho. Isso é demonstrado so-bejamentepelavidae trabalhodosmigrantes,pelossaláriosbai-xos, pelo crescimentodadesigualdadededistribuiçãode renda.Tambémestáassociadoàsprecáriascondiçõesdevidadegrandesmassas trabalhadoras, sobretudo camponeses emigrantes traba-lhadores chineses, apesar dos reconhecidos avanços da China na redução da assim chamada extrema pobreza.

No período das reformas do Estado e da dominação do capital na China, as mudanças no que diz respeito às relações sociais de produçãotornaram-sefundamentais.Eraprecisoadaptaraorgani-zaçãoeagestãodoprocessodetrabalhoaocontroleempresarial.Erapreciso contar com uma força de trabalho disciplinada, submetida à hierarquia. A autonomia da direção das empresas, reafirmando a divisãodotrabalho,seriaumensaio,umaliçãodecasa,preparan-do as futuras mudanças na propriedade das empresas para entroni-zar o controle sobre o trabalho e o produto. As práticas, nos moldes capitalistas, de incentivos monetários, a despeito da predominân-ciadossaláriosbaixos,substituíramosoutroraapelosideológicossocialistas.Emborauniversalmentetãodivulgadoselembrados,os“incentivosmonetários”sãoumaexpressãodemasiadamenteenga-nosa, como atesta a realidade salarial inferior dos chineses em com-paração aos ganhos dos trabalhadores dos países desenvolvidos.Os bônus,asgratificaçõeseossaláriosporproduçãoforamadota-dos, desde 1979, nas empresas estatais da China. Implementaram-se fórmulas de intensificação da jornada do trabalho. O trabalho mais intenso ou o aumento da produtividade do trabalho passaram a coexistircomapossibilidadeformaldodesemprego,quesetornouaceito,assimilado,normal,comoumfatodanatureza,emboraogo-verno chinês, típica e corretamente, esteja sempre atento e ativo à necessidadeeconcretizaçãodageraçãodeemprego.

NaConstituiçãode1982,proibiu-seoexercíciodagreve,comouma resposta ou uma prevenção para a resistência dos trabalhadores

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diantedaliberalizaçãotrabalhista.Prosseguemsempreaspressõespor mais rodadas de aprofundamento da liberalização da contrata-çãoda forçade trabalho.Aprimeira legislação trabalhistaabran-gente tardou.Só foi aprovadapeloCongressoNacionaldoPovo(CNPouANP,AssembleiaNacionalPopular)em1994.ParaYingZhu(1995,p.37),oprocessodeaparecimentodediversasformasdepropriedade e de organização das empresas gerou, consequente-mente,sistemasvariadosdegerenciamento.9 Em razão desse movi-mentodemudançasgerenciais,asrelaçõestrabalhistastornaram-semais complicadas, diversificadas, o que contribuiu para dificultar a simpleseconvencionalfiscalizaçãodanovalegislaçãotrabalhista.

Anteriormente, no âmbito da planificação econômica de tipo socializante,constavamoempregopermanentee,marginalmente,oemprego temporário.Osdepartamentosde trabalhodoestadoregulavamorecrutamento,transferênciasedemissões.Asempre-sas estatais e coletivas garantiamo emprego e assumiamamplasresponsabilidadesdeseguridadesocial.Todavia,comasreformas,os contratos começaram a substituir o statusdeempregoperma-nente. Instituiu-se a liberalização do recrutamento e demissões. Estabeleceu-seumanovaefrágilformadesistemasocialdeseguri-dade,inclusiveparaosdesempregadoseaposentados,diminuindoasobrigaçõesdiretasdeseguridadesocialdasempresasnoscustosde reprodução da força de trabalho.

Gigantesco reservatório de mão de obra no campo

Osistemaderegistrododomicílio(hukou) ainda existe, mas já se encontra bastante modificado e reduzido nas cidades e nas aldeias.

9 Osadministradoresegerentescontavam1,2%daforçadetrabalho,em1978,epassarampara3,6%,em1999.(TOGETrichisglorius.,2002,p.2002)

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Ele ajudava a evitar o êxodo descontrolado para as cidades, impe-diaaconcentraçãodegrandesmassasdapopulaçãocomacriaçãodefavelas,comoocorreunasmegalópolesdospaísesdaperiferiacapitalista,aexemplodoBrasil,Méxicoe Índia,comaexpulsãodos trabalhadores do campo. (AMIN, 2001) Durante o períodomaoísta, o registrodamoradia e, em especial, a coletivizaçãodaagricultura, viabilizaram a estabilidade de uma extensa rede devilasealdeiaseasseguraramascondiçõesdetrabalho,produçãoesobrevivênciadagigantescapopulaçãoruralnaChina.

As cidades simplesmente não comportariam o deslocamento imediatode imensamassapopulacionalchinesa.Mas,aala libe-ralnaliderançadaChina,nocursodasreformas,sóenxergavaeenxergaessesistemaderegistrocomoumobstáculoaofluxodamão de obra, prejudicial à constituição de um mercado de trabalho livre e unificado em toda a China. O hukou era visto simplesmente comoumentraveparaograndeobjetivodomercadodetrabalhonacional, com a livre circulação da força de trabalho pelas áreas rurais e urbanas. O problema, para os reformistas liberais, não era exatamente a liberdade de movimento do indivíduo, um direito democrático fundamental, mas a mobilidade da força de trabalho. Ignoravam-seascircunstânciasespeciais,ascaracterísticasdemo-gráficas,oslimiteseaspossibilidadesdaeconomiaemcertomo-mento da história chinesa. Assim, em contraste ao liberalismo, o hukou deveria, na verdade, ser compreendido como uma medida transitória, uma restrição temporária, uma imposição penosa das circunstâncias, um sacrifício provisório do direito de mobilidade do cidadão. Com o hukou, as pessoas, é claro, podiam circular no país, mas isso era sacrificado, lamentavelmente, na prática pela fi-xaçãolegaldaresidência.

Amédioe longoprazo,umaconvincenteeeficientepolíticadedesconcentração econômica e regional, inclusive com forte emoderna industrialização, favorecendo o desenvolvimento social,

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teria sido uma forma mais adequada para incentivar a permanência dessasgrandesmassasdehabitantesemsuasregiões,aldeiasevi-las, com urbanização sem desestruturação social. O en frentamento das desigualdades regionais teria desvanecido a necessidade docontrole da mobilidade das pessoas. Uma política dessas para a desconcentraçãoeconômicaeseguridadesocial,porém,éadversaàlógicadaespacialidadedaalocaçãocapitalistadosrecursos.

Portanto,odesmontedosistemaderegistrodamoradia(hukou) é um avanço democrático e ao mesmo tempo uma reforma para li-beralizar,cadavezmais,osfluxosmigratórios,semassegurar–eisso é fundamental – condições satisfatórias de trabalho, de remu-neração,deseguridadesocialedeliberdadepolíticaesindicalparaamaioriadosmilhõesdemigrantestrabalhadores.Mas,dopontode vista do interesse do capital, o desmonte do hukou não deve ser completo.Nessesentido,é importantemanterumasegmentaçãonomercadode trabalho, discriminando-se osmigrantes.Assim,nasegundadécadadoséculoXXI,persistem“cercade17%dapo-pulação da China, ou 230 milhões de pessoas, como ‘população flutuante’,quevivenascidadesmasnãopossuioregistro(hukou) local”.(LOONEY;RITHMIRE,2016,p.2)

Milhõesdepessoassaemdocampo,temporáriaoupermanen-temente, para buscar qualquer tipo de ocupação na cidade “criando oportunidadesparaosempregadoresdosetorprivadoexploraremamão-de-obra”,afirmaYing(1995,p.44).Odesmontedasanterio-resestruturasprodutivas socializantesnocampo,odesemprego,a pobreza e as privações produziram, no contexto das reformas, a necessidadeeacoerçãodemigraçãoparagrandesmassasdetra-balhadores.São“proletárioslivrescomoospássaros”,diriaMarx(1988b, p. 253). Assim, como se fosse uma reedição da acumulação primitiva de capital, constituiu-se essa nova classe proletária, com decisiva influência da oferta da mão de obra barata advinda do

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campoedemandadapelasfábricasnaregiãocosteira,inclusivenasZonasEconômicasEspeciais.

Depoisde 1983,cadavezmais,os funcionáriosdoMinistériodo Trabalho raramente fiscalizam se os novos contratados nas em-presas urbanas possuem o cartão de identidade domiciliar (hukou). Masotrabalhadortemqueexibirocartãoderegistrodemoradiaparateracessoaosserviçospúblicos.Assim,nasgrandescidades,concentra-seumagrandemassadetrabalhadoresmigrantes,comose fossem clandestinos em seu próprio país. A despeito disso, há a experiênciaemalgumascidadesdeconcessãodecartãoderesidên-ciaparaosmigrantesquecomprovamoemprego“permanente”.Surgiu,ainda,aprópriaoficializaçãodavendadehukou, pelas au-toridades das cidades, desde meados de 1980.

As próprias transformações no sistema produtivo, nas cidades e no campo, conduzem objetivamente à liberação de mão de obra daagricultura.Assim,registra-sequecercadeum1/3daforçadetrabalhoruralocupava-seematividadesnãoagrícolasnofinaldosanos1990. (FLEISHER;YANG,2003,p.426)A“corridapelo lu-cro”dasunidadesfamiliaresnaexploraçãoagrícola,adominaçãodas relações de mercado e as demandas resultantes do crescimento globalda rendana sociedade forçam, inevitavelmente, amarchapelamecanizaçãoetecnificaçãodaagriculturacomoobjetivodeelevar a produtividade. Entre os diversos efeitos desse amplo pro-cesso de transformação econômica no país, há obviamente esse problemadaliberaçãodeumimensocontingentedemãodeobraparaascidades,naspeculiarescondiçõesdemográficaschinesas.Contudo,omaiscontundentegolpedeliberaçãodaforçadetraba-lho, a partir do campo, parece que está sendo preparado, conforme osestudosdogovernoenovasleis,sobreacriaçãoeliberalizaçãocompletadomercadodeterras,estabelecendograndesemodernasempresasagrícolasprivadas.(SARGESON,2004)

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Phillip Anthony O’Hara (2006, p. 401-402) argumenta que oprocesso capitalista chinês de criação das classes de trabalhadores assalariados e de capitalistas depende da expansão do mercado de trabalho com os fluxos demigrantes do campo para as cidades.A OCDE(2005,p.374)estimavaumfluxodepelomenos10milhõesde pessoas das áreas rurais por ano. O’Hara chama a atenção de que, no ritmo de crescimento econômico de 9% ao ano, o reservatório dos supostos, pelo menos 150 milhões de trabalhadores rurais exce-dentes,seesgotaria,relativamente,entre2020e2022.O crescimen-to econômico desacelerou-se, mas mantém em nível ainda elevado. Jánadécadade2000estavaocorrendoummovimentodesubsti-tuição do trabalho pelo capital, apesar dos baixos salários, lembra o próprio O’Hara. O crescimento dos investimentos, o aumento da produção e o acirramento da concorrência já estariam levando ao aumentodacomposiçãoorgânicadocapitaleaosseusefeitosso-bre a lucratividade. O crescimento mais rápido da massa de capital, em contraste com a menor expansão da disponibilidade da força de trabalho, já estaria pressionando a taxa de lucro na China, mas a queda relativa do ritmo de crescimento da economia desde 2012 afrouxa essa pressão da demanda por força de trabalho.

Contudo, seguramente, aindapor algum tempo razoável, in-dependentementedealgumasestimativassobreofuturodomer-cado de trabalho chinês nas próximas décadas, as condições do mundo do trabalho continuarão muito desfavoráveis ao conjunto dos trabalhadores, sobretudo os migrantes, em comparação àsvantagensusufruídaspelosempresários.Ascentenasdemilharesde empresas estrangeiras, sobretudodeorigem tambémasiática,instaladasna região costeiradaChina, ao longodoperíododasreformas, representaram e continuam representando uma atração detrabalhadoresmigrantesdasprovínciasdoOesteedoCentrodopaís.Essesmigrantesconstituemaparcelamajoritáriaocupadana manufatura trabalho-intensiva que caracteriza mais de 70% das

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empresasestrangeiras,inclusiveasfirmasdepropriedadedoscapi-tais da diáspora chinesa.

Portas abertas para a exploração do trabalho

Essenovosegmentodaforçadetrabalho–osmigrantesemmassa–surgidoemmeioàsreformas,resultouemdiversificaçãoeflexi-bilizaçãodomercadode trabalhourbano.Eles sãoatingidosporviolentaexploração,combaixossalárioseprolongamentoexces-sivo das jornadas de trabalho. (YUCHAO, 2004) As condições de trabalhoespecíficasdosmigrantestornam-se,nochãodafábrica,comuns, extensivas, emcertamedida, emcertograu, a todosostrabalhadores, inclusive os já tradicionais operários advindos, eventualmente, das demissões das empresas estatais, por exemplo. Como funciona esse mecanismo de nivelamento por baixo das condições salariais e de trabalho, a partir da força do exemplo dos migrantes?Emimagem,écomosefosseumêmbolo(asegmenta-ção, desproteção e especificidade dosmigrantes), deslocando-separabaixo(rebaixandoeesmagandoascondiçõessalariaisedetra-balhoparaosoperáriosemgeral)ecircunscritoàsparedesde umcilindro ou envoltório (interior da fábrica, longe da regulação eproteçãolegalsocialexterna).

Os abusos trabalhistas são marcantes, destacadamente nas pequenas e médias empresas estrangeiras, muitas originárias dechinesesdeHong-Kong.Háausênciade instalaçõesparahigienebásica, acidentes de trabalho frequentes, ambientes superlotados, exposição à poluição, alta temperatura e barulho, falta de equipa-mentos de proteção, ocorrência de doenças profissionais, hora- extra compulsória, metas de produção muito elevadas, remunera-çãoabaixodosaláriomínimo,atrasosdepagamento,admissãodetrabalhadoressemregistro, imposiçãodemultasporausênciaemcasosdedoençaetc.Minqi(1999,p.63)denunciaque

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[n]os anos 80, os direitos dos trabalhadores foram continuamenterevogadosnamedidaemqueaburo-cracia [estatal] impunha a ‘administração científica’ nas empresas estatais – na verdade, a disciplina do trabalho, no estilo capitalista – e quebrava o iron rice

bowldoempregoseguro.

A Federação dos Sindicatos da China (All-China Federation ofTradeUnions–ACFTU)é aorganização sindicaloficial.Elatemsidoineficaznadefesadagrandemassademigrantesenasal-vaguarda dos interesses do conjunto dos trabalhadores.Osmi-grantestêmtomadoiniciativasautônomascomogreves,petições,denúncias e manifestações de protesto, enquanto o Estado proíbe ereprimequalquerorganizaçãosindical independente.Sãocres-centesasgrevesespontâneasdostrabalhadoresemgeral.

A Federação Sindical contava com 103 milhões de filiados em 1994,mas,comoeradeseesperar,essaorganizaçãooficialencon-tra-semergulhadaemtensõesvariadas.AFederaçãoépuxadadeumladoparaooutro:os interessesedescontentamentodostra-balhadores em contraste com o apoio às reformas econômicas. As dificuldadesdosindicalismooficialseagravaramcomoavançodadominação do capital na economia, ameaçando a coesão naciona-listachinesa,jáqueautoridades,intelectuaisegerentespassamaassumirosinteressesdagrandeemodernaempresaestrangeiraounacional (internacionalizada), em detrimento dos interesses dos patrícios trabalhadores. Nesse quadro de conjunto, acumulam-se ascondiçõesparaosurgimentodealgumasorganizaçõessindicaisnão oficiais, como já tem, limitadamente, ocorrido.

A assim chamada “flexibilização contratual”

Em1983,alémdoiníciodassubstituiçõesdoempregopermanentepelocontratodetrabalhoeadoçãodosempregostemporários,foi

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criado um mecanismo para incentivar a dispensa, assim chamada voluntária,dosempregados.Essemecanismode1983permitiaaotrabalhadorsairdaempresaestatal,procurarempregoemalgumafirmanãoestatal,naqualsemantinhaempregado,enquanto,du-rante dois anos, detinha o direito, se assim preferisse, de voltar paraseulugarnaestatal.Nessesdoisanos,otrabalhadornãorece-bia o salário da empresa estatal nem a maioria de outros benefícios, comoaassistênciamédica,masgeralmentemantinhaamoradia.Foramcriadosórgãosespecíficos,comocentrosparaadministraressas“trocasdeemprego”.Issocresceuejáexistiam30mildessescentrosaté1996.(GANG;LUNATI;O’CONNOR,1998,p.33)

Em1985,osempregados,sobcontrato,contavam3,7%daforçade trabalho nas empresas estatais, passando para 18,9% em 1992. Em1986,oscontratosdetrabalhoforamadotados,naprática,emtodoopaísparaosnovosempregados.Depoisdasprivatizações,fusõesereorganizaçãodasempresasestatais,restarampoucostra-balhadorescomempregopermanente.Oobjetivoeraageneraliza-çãodoscontratostemporáriosdetrabalho,que,apósoCódigodeTrabalhode1994,foramimpostos,comonormaobrigatória,paratodas as novas contratações em todas as empresas.

Informalidade massiva

AtentativadoCódigodoTrabalho,de1994,deexpressarharmo-nização com as normas trabalhistas internacionais não tem sido, nempoderiaser,umobstáculoparaqueoEstadochinêspersigauma lógicadesenvolvimentista,noâmbitodaconvencional rela-ção entre o capital e o trabalho. Portanto, as políticas públicas, em geral, inclinam-se em favordos interessesdas empresas, compa-rativamenteaosdostrabalhadores.Quandoogovernoquebrouocontrato de direitos da “tijela de arroz de ferro”, enfraqueceu a pro-teção social e criou os mais diversos tipos de contrato de trabalho,

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o resultado só poderia ser a insegurança para os trabalhadores.Essa insegurança, vulnerabilidade, torna os trabalhadores umapresa fácil para a intensificação da exploração capitalista. Impõe-se mais flexibilidade no mercado de trabalho, mais disciplina aos trabalhadores, mais pressão produtiva.

Alegislaçãotrabalhistaseguiuomodeloconvencionalburguês.Oscontratossãoestipuladoscomaprevisãolegaldapossibilidadedasuarescisãoaqualquermomento.Nãohágarantiadeemprego,aempresa pode demitir livremente, mediante aviso prévio e indeniza-ção.Ajornadalegaléde8horaspordiae44horasporsemana,comliberdade para horas-extras. Os sindicatos negociam convençõescoletivas.Tudoissoéoquerezaoformalismolegal.Mas,naprática,atémesmoaabrangênciadacoberturadoCódigodeTrabalhoémi-noritária,porqueatingeapenasosetorformalurbano.Asleistantodotrabalhoquantodasempresas,promulgadasem1994,permitirama liberdade das empresas para tomar suas decisões, no âmbito das relaçõesdetrabalho,semingerênciagovernamental.

Conforme a OCDE, baseando-se no anuário estatístico da Chinade2004,haviaumaesmagadorainformalidadenomercadode trabalho. (OCDE, 2005, p. 375, ver tabela 11.1.) Apenas cerca de 1/5dostrabalhadoresestariamenquadradosnanovalegislaçãodotrabalho. Essa minoria era formada pelo pessoal da administração pública, das empresas estatais, das empresas coletivas urbanas, das sociedades anônimas, das empresas mistas, das empresas de capi-tal estrangeiroepartedos trabalhadoresdaspequenasempresasurbanasregistradas.Nofinalde2003,os744milhõesdetrabalha-doreseram,aproximadamente,repartidosem49%paraaagricul-tura,17%paraatividadesnãoagrícolasnaárearural,15%nosetorformal urbano, 13% para outros setores urbanos, 7% para profis-sionais independentes e assalariados de pequenas empresas urba-nas.Reconhece-sequeomercadodetrabalhoformalélimitadoeargumenta-se,comosefossealgodapróprianatureza,inevitável,

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que essa é uma característica de todos os países ditos em desenvol-vimento.Quasesejustificaqueasáreasruraiseinformaissãome-nos produtivas e por isso seria natural que os trabalhadores nes-sessetoressejammantidosafastadosdequaisquerdireitoslegais. (OCDE, p. 371)

Asinspeçõesdetrabalho,porpartedeagentesdogoverno,sãomuito precárias em relação a problemas como jornadas excessivas, salários abaixo do valor mínimo e atrasos salariais. Isso reforça as denúncias, sobretudo dos sindicatos de países concorrentes, acer-cadaatraçãodefirmasestrangeiraspelaChinaemrazãodosbai-xos padrões trabalhistas.

Desemprego nas estatais

A reforma nas empresas estatais é como se fosse sinônimo de desempregoemmassa.Areestruturaçãoprodutivaéumahistóriasem fim, um movimento permanente e expressa-se sobretudo como mudança na estrutura produtiva do Estado. Essa reforma im-plicou, paulatinamente, nas mais diversas medidas de libe ralização econômica,desdeacontrataçãoegestãodaforçadetrabalho,auto-nomia dos administradores, até a privatização e a atração do afluxo doinvestimentodiretoestrangeiro.“Namedidaemqueareformadas empresas públicas se acelerou na China no curso dos últimos anos, uma parte crescente da mão de obra se tornou ‘supérflua’”, constataramGang,LunatieO’Connor(1998,p.7),nasegundame-tade dos anos 1990. Estimava-se que 20% a 25% eram mão de obra tornada redundante nas empresas estatais.

ParaJean-FrançoisHucheteYanXiangjun(1996,p.599),haviade 30 a 40 milhões de trabalhadores excedentes nas empresas esta-tais,em1996.Nesseano,asempresasdemunicípiosealdeiasem-pregavam20%daforçadetrabalho,enquantoasempresasestataisocupavam16%. (WING, 1999,p. 15)Asmulheres, representando

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36%da forçade trabalhonasempresasestataisem1996,eramasmais vulneráveis às demissões. Comparativamente aos homens, as mulheres tinham menor qualificação, ocupavam postos secundá-rioseerammaissujeitasaempregostemporários.

Uma certa proporção de trabalhadores era afastada das suas atividades nas empresas estatais, caracterizando, na prática, a de-missão. Eles (os xiagang), contudo, mantinham o vínculo formal deempregadonasempresasestatais.Assim,nãoeramregistradoscomodesempregadose,porisso,nãotinhamacessoaoseguro-de-semprego.Recebiamumauxíliomonetário,menordoqueseuúlti-mosalário,emantinhamalgunsbenefíciossociaisqueaindarestas-semnaempresa.Portanto,nãoestavamtotalmentedesprotegidos.Esses efetivamente demitidos constituíam a parcela de maior peso nodesempregonaChina,emboranãoaparecessemnataxaoficialdedesemprego.(GANG;LUNATI;O’CONNOR,1998,p.48)

Jánosprimeirosanosdadécadade1990,houvedemissõesemmassa nas empresas estatais, em uma conjuntura de precarização dosrecursosdeseguridadesocialeaumentodadistânciaentreri-cos e pobres. (CHEN, 2003, p. 117) As empresas estatais dispensa-ram cerca de 30 milhões de trabalhadores, entre 1998 e 2004. Sem emprego,21,8milhõesdetrabalhadoresurbanos,noiníciode2006,sobreviviamcomumirrisórioauxíliogovernamental.O valordes-se auxílio era de somente 19 dólares por mês, enquanto o salário médio dos trabalhadores urbanos era de cerca de US$ 165, emjunhode2005.(HART-LANDSBERG,2006,p.14)

Adistribuiçãodo emprego, conformeo tipodepropriedadeda empresa, mostra claramente que as empresas estatais já tinham sido abandonadas como principal fonte de ocupação para a força de trabalho, refletindo a privatização da estrutura produtiva chi-nesa, inclusive o fim das comunas populares e da coletivização no campo. Em 1997, a participação das empresas estatais no total de empregos já tinha sido esmagada para apenas 15,9%, com dados

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do Banco Asiático de Desenvolvimento, uma fonte insuspeita, do ponto de vista do capital.10

Em 2002, o setor não estatal já era responsável por 90,3% dos empregosnaChina,conformeasinformaçõesdoBancoAsiáticode Desenvolvimento. Dentro desse setor aparecia, nas explorações agrícolasfamiliares,agrandeparceladeemprego,cercade44%em2001, na qual grassavam a plena informalidade e o subemprego.Vale chamar a atenção para um fato importantíssimo: a empre-sa integralmente privada, tão elogiada pela sua modernizaçãoe eficiência, é uma decepção no quesito geração de empregos.Comprovadamente, ela só compareceu com ínfimos 3,7% de par-ticipaçãonototaldeempregosem2001.Eissocontrastaflagran-tementecomsuagrandepresençanaprodução,exportaçõeselu-cros, no processo de crescimento econômico acelerado na China, sob as reformas de mercado.

As mudanças no sistema de propriedade e na distribuição do emprego geraram muitas implicações, a começar pelas novas eacrescidasdificuldadesparaaspolíticasdeplenoemprego.Emcon-trastecomopassadosocializante,odesempregodeixoudeserumaheresia na China, e passou a ser encarado como uma decorrência daresponsabilidadedecada indivíduo.Mas, simultaneamente,apolítica econômica bem-sucedida do Estado pela modernização e crescimentodaproduçãoresultouemconstanteemassivageraçãodeempregos.

10 VernoestudodoBancoAsiáticodeDesenvolvimentoatabelasobreonú-merodeempregosemempresasconformeotipodepropriedade(emmilhõesdepessoaseem%),de1997até2002.In:ADB.PrivateSectorAssesstement–PRC.AsianDevelopmentBank.(ADB,2003,p.6)

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Desmonte da seguridade social

Oobjetivodeflexibilizaromercadodetrabalhoexigiaque“o sis-tema de seguridade social fosse dessolidarisado da empresa”.(GANG;LUNATI;O’CONNOR,1998,p.7)AOCDEdestacoucomo um dos principais efeitos das reformas econômicas na China a“evoluçãodopapeldosempregadores”,jáqueagoraasempresaspoderiam se concentrar nas suas atividades específicas. (OCDE, 2005,p.371)Asempresasteriamsidoliberadasdosencargossociaise administrativos que anteriormente eram assumidos pelas unida-des de trabalho (danwei), uma herança do período maoísta.

Comasmudanças,surgiramasagênciaspúblicasdeemprego.Ainspeçãodascondiçõesdetrabalhoeaseguridadesocialpassa-ram para uma nova forma de suposta responsabilidade do Estado, apósaLeidoTrabalho,de1994.Masissonãofoisóumadistinçãode papéis entre o Estado e a empresa. Na verdade, foi uma distin-ção entre tarefas do Estado, a serviço da acumulação do capital, para a exitosa transformação produtiva do país, e o papel da em-presa privada, cada vez mais dominante na estrutura produtiva da China, com todas suas implicações sociais e políticas. Antes das reformas,nãoerailógicaaresponsabilidadedaempresaestatalcomo conjunto das necessidades materiais e de condições de vida dos trabalhadores. As reformas e a volta das empresas privadas, a assim chamadaevoluçãodopapeldosempregadores,ouseja,doscapita-listas,promoveram,naChina,umanovavisãoglobalsobreoslu-cros e a acumulação de capital, com exploração dos trabalhadores.

O Estado está implantando, em um processo muito demora-do, sem fim, desde meados da década de 1990, os instrumentos de seguridade social comum formatode sistema, embora as re-formaseocancelamentodaantigaestruturadedireitossociaisjátenhamocorrido.Oscincoprincipaisprogramasforamlançadosatravésdapromulgaçãodasleisdoseguro-maternidade,em1994;

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doseguroporacidentedetrabalho,em1996;daaposentadoria,em1997;doseguropordoença,em1998;edoseguro-desemprego,em1999.Ésintomáticoqueoseguro-desempregosótenhaobtidosuaregulamentaçãonacionalelegalaprovadaem1999,depoisdalongacrisedodesempregonasempresasestataisdurantetodaadécadade 1990, e, em especial, após o pico das dispensas em 1998, com a aceleração das privatizações em massa.

Os valores, tanto das contribuições de trabalhadores e de em-presas, quanto dos benefícios, variam entre as províncias e mesmo entre as cidades. (OCDE,2005,p.387-8)Acoberturadosprogra-mas é mínima. A aposentadoria só cobria cerca de 21% dos traba-lhadores,inclusivefuncionáriospúblicos,em2003.Oseguro-de-sempregosótinhacoberturapara14%dostrabalhadores.Oseguropordoença,11%decobertura.Oimportantíssimoseguroporaci-dentede trabalho,6%.O seguro-maternidade, 5%.Constatou-seque o programa de aposentadorias encolheu sua cobertura noperíodode1995a2003.Aseguridadesocialdostrabalhadores,naChina, sobretudo para os mais pobres, vai mal.

O sistema de aposentadoria limita-se à área urbana, com três regimes.Háumagrandedescentralizaçãonosistemaporqueages-tão, inclusive a definição dos valores de contribuições e benefícios, éencargo,namaioriadoscasos,dasadministraçõesdascidades.O primeiroregimeéoderepartiçãocombenefíciosdefinidos,comidadedeaposentadoriade60anosparaoshomensede 50anospara amaioria dasmulheres.O segundo regime é de contribui-ções definidas com contas individuais de aposentadoria. Os assa-lariados depositam 8% de seus salários nessas contas. Os patrões contribuem com apenas 3% de um valor de referência nacional nesseregime.Esseregimedecapitalização,comosesabe,émuitofavorável aomercado financeiro.O terceiro regime é o de pou-pançavoluntária-aposentadoria,oferecidoporalgumasempresascomoumsistemafechadoparaseusempregados.Agrandemassa

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trabalhadora rural está esquecida no atual sistema de aposenta-doria. Para se aposentar, o trabalhador rural deve efetivar, sozinho, os seus depósitos, como uma poupança pessoal e voluntária, tendo direito apenas aos proventos de aposentadoria correspondentes à sua soma de recursos capitalizados na conta pessoal, contando, às vezes,comalgumaajudadacomunidade. (OCDE, 2005, p. 390)

Embora as primeiras experiências de seguro-desempregotenhamsidoiniciadasem1986,eadespeitodasuaposteriorcon-solidaçãolegal,nãohánenhumtipodeseguro-desempregoparaamaioriadaspessoaspobresousubempregadasnaChina.Emumafamíliaruralmédiacomtrêsadultos,háumempregadonosetorruralnãoagrícola,que temsidoquaseaúnicae limitada forma,nomercadode trabalho,dealiviarodesempregoeapobrezanocampo. O auxílio para os demitidos das empresas estatais (xiagang) foitransformadoemconvencionalseguro-desemprego,entre1999e2006.(OECD,2010,p.274)Umaminoriadostrabalhadorestemacesso à habitação, assistência médica, às pensões e à educação.

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