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Queimando as bruxas Luciel Henrique Ribeiro Jacutinga, 29 de agosto de 2011

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Queimando as bruxas

Luciel Henrique Ribeiro Jacutinga, 29 de agosto de 2011

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Para meus pais, Lair e Maria Donizete

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fogueira foi acesa para o júbilo da multidão. Naquela noite de sexta-feira treze, mais uma bruxa seria executada pelo tribunal da inquisição. Sobre as madeiras flamejantes, Vera,

uma senhora de setenta e sete anos, esperava amarrada ao pau, o seu inevitável, não menos que terrível, fim.

Sentado em sua cadeira de senhor das leis divinas e terrestres, padre Rodolfo, assistia com deleite ao fogo subindo pelos pés da velha bruxa. Também com deleite se deleitava com um cacho de uvas.

— Apreciem moradores de Vila Terezinha – bradou o sacerdote – apreciem a justiça divina caindo feito martelo na cabeça desta pobre alma perdida.

O povo urrava de alegria erguendo suas tochas. A carne de Vera começava a derreter-se, mas antes que as chamas lhe fizessem morrer, proferiu a seguinte maldição para o sacerdote Rodolfo:

— Antes que se complete o período até a próxima sexta feira treze, uma bruxa virá exterminá-lo. Seu corpo arderá nas chamas do demônio e não morrerás até que seu último fio de cabelo esteja queimado.

O padre Rodolfo não deu confiança, fez um gesto com a mão de desprezo e gritou para os guardas:

— Joguem aguardente nesta fogueira, façam as chamas do senhor subirem até os céus para mandar logo essa velha pros quinto.

As ordens foram cumpridas sem demora. Atiraram um barril de aguardente na fogueira, as chamas do senhor subiram até os céus e Vera foi direto pros quintos do inferno.

Na casa da família Colina, Jorge Henrique lia a bíblia ajoelhado no

milho por ter dito a seus pais que a Igreja Católica não seguia os exemplos de Jesus Cristo. O castigo foi lhe imposto por seu pai, Moisés Colina, católico fervoroso, que depois de chegar da execução da bruxa Vera juntamente com sua esposa Judite, falaram assim ao jovem de dezoito anos:

— Meu filho, tu perdestes a maior execução que já teve por estas bandas. Padre Rodolfo fez churrasquinho da bruxa – falou o homem rústico gargalhando.

— Precisava ter visto ela queimando em carne viva, gritando de dor, pagando por seus pecados – derreteu-se Judite fazendo o sinal da cruz – e o cheiro de carne humana queimada... O cheiro da justiça divina... É tão divino.

A empolgação dos pais não empolgaram Jorge Henrique, que naquele instante saboreava uma sopa de batatas e respondeu:

— Certa vez, vendo uma adúltera prestes a morrer por apedrejamento, Jesus entrou na frente das pessoas e provocou: “aquela que não tiver pecado, que atire a primeira pedra”. Será que todos os católicos de Vila Terezinha se esqueceram desta passagem?

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— O que insinuas seu insinuador? – estarreceu Moisés abraçando Judite, que também se estarreceu dizendo:

— Insinuas que não seguimos a palavras do Nosso Senhor. — Nem vocês e nem o padre Rodolfo, igualmente a todos os

católicos desta Vila – disparou Jorge Henrique para o desespero de seus desesperados pais.

— Mas que moleque atrevido – disse o velho erguendo a calça até altura do umbigo – tu vai se ajoelhar amanhã em milho, e lerá a Bíblia desde o cantar do galo até o cair do dia para aprender os ensinamentos do filho de Deus!

— Quem sabe assim – arrematou Judite – tu comeces a seguir as palavras do Senhor e nunca mais te pense erguer a voz contra padre Rodolfo, santo homem que veio purificar nossa vila dos pecadores.

O santo homem, Padre Rodolfo, sacerdote belo e ambicioso, cabelos

negros, lisos e sedosos, olhos castanhos cor de mel, feições angelicais de anjo, este milagre de homem alisava seu cavanhaque andando preocupado de um lado para o outro em sua sala na casa paroquial.

— Diga padre, o que lhe tira o sossego? – perguntou Daniel, jovem seminarista de olhos azuis.

— As palavras daquela bruxa, meu lindo Daniel – respondeu padre Rodolfo parando perto do crucifixo – que Deus me queime nesse momento se eu estiver mentindo, mas sonhei essa noite que eu era queimado vivo numa fogueira.

— Não! – assustou-se o seminarista. — Pois sim Daniel, a maldição daquela bruxa me atormenta. Ela

disse que até a próxima sexta feira treze, uma bruxa irá me matar e eu não morrerei antes que o último fio desses meus cabelos de Apolo fique queimado. Ou seja, vou sofrer o diabo até morrer.

— Deus não permitirá tal sacrilégio meu mestre. — E não irá – disse o sacerdote com os olhos faiscantes – antes que a

próxima sexta feira treze chegue, queimarei todas as bruxas de Vila Terezinha, não importa a idade, não importa a cor nem a classe social.

— Benditos seja por tal idéia – suspirou o seminarista caindo aos pés do seu sacerdote.

— Levanta-te meu anjo querubim – disse o padre levantando Daniel – nada no mundo irá me afastar desses lindos olhos azuis cristalinos – revelando sua paixão, padre Rodolfo beijou a face de Daniel.

— Agora vá querubim, e mande entrar a senhorita Lurdinha que me aguarda já algum tempo para confessar seus pecados e receber o meu sagrado perdão.

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O seminarista saiu feito borboleta, flutuando pelo ar de paixão, e logo entrou Lurdinha, mocinha recatada e bonita, no limiar de sua mocidade, bochechinhas coradas, cabelos curtos e mãozinhas delicadas.

— Sua benção padre – disse Lurdinha educadamente beijando o anel do reverendo – vim confessar.

— Não é por menos minha doce criatura – falou o padre pegando no queixinho dela –esta minha sala transbordou-se de energia negativa quando entrastes por aquela porta, creio que deverei lavar seu corpo dos pecados.

— Lavar meus pecados padre? – angustiou-se a mocinha. — Sim querida, venha comigo. Padre Rodolfo a levou para a sala de banho, onde já estava preparada

uma banheira com água quente rodeada por velas acesas. — Tem certeza que preciso tirar a roupa? – indagou a mocinha

assustada depois da ordem do clérigo. — Nada temas minha querida, que esta banheira está inundada de

água benta, água que irá libertar seu corpo da carga do demônio. Lurdinha religiosamente obedeceu, tirou seu vestido, mostrando a

saúde de um corpinho enxuto de dezoito aninhos. Padre Rodolfo ajudou ela a entrar na banheira, depois, tirou seus paramentos e também entrou nu na banheira, sentando-se atrás da pecadora.

— Agora minha jovem, conte seus pecados enquanto eu ensaboarei o seu corpo sujo para limpá-lo do pecado com meus beijos. Só então, lhe darei o perdão e a purificarei com o meu cajado.

E depois dessa confissão, Vila Terezinha perdeu mais uma virgem.

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próxima sexta-feira treze cairia dali a sete meses e assolado por pesadelos terríveis, padre Rodolfo decretou que toda denúncia de bruxaria, feitiçaria e curandeirismo fossem

levado a cabo pelo Santo Ofício, e os réus, julgados e condenados. Para aumentar o efetivo do quartel e prender o máximo de bruxas,

todos os jovens católicos de dezesseis a vinte anos foram recrutados como soldados. Jorge Henrique foi um deles. Juntamente com mais quatro companheiros, entraram ao cair da noite na Floresta Cinzenta, local freqüentados pelas senhoras bruxas e magos.

Jorge Henrique, Paulo, Ferdinando, Raul e João iam a passos medrosos pela floresta dita mal assombrada pelos antigos, carregando tochas, não enxergando um palmo além da cinzenta neblina noturna.

— Por misericórdia, o que fazemos por estas bandas afinal de contas? – perguntou Ferdinando para seu companheiro que vinha logo atrás.

— Cassando bruxas – respondeu João atento ao som dos passos de seus companheiros, ele era o último da fila indiana e o chefe da expedição – por sorte voltaremos com pelos uma para felicidade do povo.

— Mas as bruxas sabem de feitiçaria, e se elas nos jogarem um feitiço, nos transformarem em sapos? – lamuriou-se Ferdinando.

— Elas podem saber de feitiçarias – foi respondendo Raul, o mais valente do grupo – mas nós temos Deus ao nosso lado e rifles Winchester.

— E eu tenho fé no amor de Lurdinha que voltarei são e salvo – derreteu-se Paulo suspirando – acho que morreria por ela. Bonita, recatada, de boa família e acima de tudo religiosa. Me casarei tão logo me forme em direito.

— Guarde sua paixão para depois Paulo – repreendeu Jorge Henrique que ia na ponta da fila, desbravando o caminho entre as árvores – agora devemos ficar atentos.

— Atentos a que? – reclamou Paulo – é tarde da noite, estamos andando por esta maldita Floresta Cinzenta, que um raio caia em minha cabeça se houver alguma alma perdida por aqui além de nós.

Um raio não caiu na cabeça do enganado Paulo, porém, um melancólico, esquisito e assaz medonho piar de coruja paralisou a todos. Todos pararam de andar e se entreolharam.

— Qual é pessoal? É só uma coruja, vamos continuar – encorajou Raul tomando a ponta. Só que mal andou dois passos para que outro barulho fosse ouvido, mais horripilante e sinistro, o barulho de alguém mandando fazer silêncio, tipo assobio.

— Quem fez isso? – perguntou João não conseguindo esconder o medo de seu rosto.

Uma forte rajada de ventos transpassou por aqueles jovens, apagando suas tochas.

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— Acendam suas tochas – ordenou João tateando por seu corpo em busca de um fósforo. O único que conseguiu pegar a caixa de fósforo no bolso foi Paulo, que de tão medroso nem conseguia riscá-lo devido a tremedeira de pamonhice.

— Por nossa senhora dos fósforos queimados – exasperou-se o noivo de Lurdinha – pega fogo seu maldito!

Calado em seu desespero, Jorge Henrique tentava manter a calma, mesmo sabendo que corria sério risco ali no meio daquela inóspita floresta em meio a escuridão. Em um momento pusilânime, jogou sua espingarda no chão e se pôs a correr deixando seus companheiros para trás. Corria por sua vida, por medo, corria tanto que tropeçou na raiz de uma árvore, deu vários tropicões e veio a bater de cara num eucalipto. Caiu maduro no chão e ali ficou.

Enquanto isso, depois de várias tentativas infrutíferas, Paulo conseguiu acender sua tocha e depois acendeu de seus companheiros. Perguntaram-se onde estaria Jorge Henrique.

— Olhe João – falou Raul pegando a espingarda do chão. — É assim que elas fazem – foi dizendo Ferdinando com seriedade –

vão pegando um por um, fazendo o bando desaparecer de forma misteriosa, até que sobre pelo menos um para contar a história aos outros. Nosso amigo Jorge Henrique foi o primeiro.

— Senhores – falou João chamando atenção – nossa expedição acaba aqui. Vamos voltar para Vila, amanhã, ao raiar do dia, vamos dar início a busca por nosso companheiro.

— Não podemos voltar assim, sem antes dar uma procurada por ele – falou Paulo – talvez ele esteja por perto.

— Paulo tem razão – reforçou Raul – temos que pelo menos dar uma procuradinha, para que possamos dormir com a consciência tranqüila.

— Tem razão, e se alguém perguntar, falem que por procuramos ele pela floresta inteira – e dizendo essas palavras, João tomou a frente do grupo e todos se colocaram a caminhar devagar, não deram mais que vinte passos até que um gato preto de olhos amarelo passasse roçando pelas pernas deles.

— Isso não é um bom sinal – apavorou-se Ferdinando. — É só a porcaria de um gato de preto – disse o corajoso Raul

chutando o bichano para longe. O gato miou várias vezes e depois silenciou-se. E no silêncio da Floresta Cinzenta, aqueles quatro infelizes ouviram o uivo de um lobo, um uivo agudo e longo, um uivo medonho ecoando por entre as árvores.

— Venha lobo – gritou Raul apontando seu rifle para o meio da floresta silenciosa, e do meio da floresta silenciosa, um lobisomem saiu furioso, com seus olhos vermelhos, pêlos ouriçados, grande e forte, garras e dentes afiados, rosnando e babando de fúria, este lobisomem voou pra cima

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de Raul lhe arrancando o braço com apenas uma mordida. João, Paulo e Ferdinando ficaram atônito diante de tal terrível cena, e nada conseguiam fazer além de observarem aterrorizados terrível cena. A fera agarrou o agonizante Raul e o atirou com voracidade contra o tronco da árvore, que morreu com a pancada. Então a besta de mais de dois metros de altura, não sabendo-se se é urso ou alguma criatura do diabo, voltou-se para o restante do grupo, os três pamonhas que ainda se encontravam em estado de choque.

— Pelo amor dos lobisomens alguém faça alguma coisa – gritou João afinando sua voz em desespero. Paulo, esquecendo-se que estava armado, atirou sua tocha contra o lobisomem, mas usou tanta força em seu bracinho mole, que a tocha nem mesmo chegou a meia légua do bicho. Não pensando duas vezes, Paulo bateu calcanhares na bunda na direção oposta do lobisomem, seus dois amigos, não menos covardes, o imitaram, deixando suas tochas, armas e masculinidade para trás.

Correndo na escuridão, na neblina, tropicando, se desviando de troncos a menos de um palmo do nariz, Paulo, João e Fernando corriam pedindo a Deus que o salvassem, mas se esqueciam de que a Floresta Cinzenta era um lugar esquecido por Ele.

Iam correndo escutando o rosnado da besta cada vez mais perto, suas garras abrindo caminho em meio às madeiras, o som pesado de sua corrida. E logo gritos de terror, de morte, de sofrimento, ecoavam, ressoavam, repercutiam pelas árvores, únicas testemunhas da insanidade que ocorreu depois que o lobisomem alcançou os três.

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floresta cinzenta, extensa e comprida, grande e ampla, amanhecia ao alvorecer cinzento. Em algum ponto desconhecido de tão cinzenta floresta por suas cinzentas

neblinas, Jorge Henrique acordava colocando a mão na cabeça e sentindo um galo na testa. De repente, olhou a sua volta e fez a perturbadora pergunta:

— Onde estou? Levantou-se lembrando-se de que havia entrado na floresta no calar

da noite junto com seus quatro companheiros, Paulo, João, Ferndinando e Raul. Logo que as tochas se apagaram, lembrou-se de ter saído correndo feito uma menininha, depois não lembrou-se de mais nada.

Saiu andando a procura de uma saída daquela estranha floresta, imaginando que seus amigos deviam estar preocupados com seu paradeiro e que seus pais deveriam estar rezando pelo seu bem estar.

Foi andando, assobiando uma alegre canção, pensando alto, quando tropicou e caiu pela segunda vez, procurou que raios o teria feito cair, quando viu um pedaço de braço humano. Aproximou-se, pegou o membro com cuidado, analisou cuidadoso e cheirou. Parecia fresco. Jogou o braço de lado e continuou sua andança. Até deparar-se com os restos mortais de Raul, todo estropiado, desfigurado, caído ao pé de um eucalipto. Percebeu que nele faltava um braço e logo somou dois mais dois.

— Por misericórdia, quem fez tal brutalidade com você e arrancou seu braço? – perguntou-se encafifado e logo falou ao defunto – espere aí amigo, que vou a cidade e trarei ajuda. Vamos emendá-lo e o enterraremos como bom cristão no Cemitério das Almas Perdidas do Sétimo Dia da Ressurreição.

Pegou o braço e o colocou embaixo do corpo de Raul, para que nenhum animal ou pássaro usasse aquele pedaço de corpo como refeição. Jorge Henrique continuou sua jornada, encontrando e recolhendo pedaços de seus outros companheiros. Os colocou um ao lado do outro no chão forrado de folha seca, distinguindo se aquele braço era de Paulo, se a perna era de João ou de Ferdinando, se aquelas tripas seriam de João. Quando terminou de ajuntá-los meio nas coxas, ordenou aos defuntos:

— Fiquem aqui amigos. Vou a cidade trazer ajuda. Vamos emendá-los e vos enterraremos como bons cristãos no Cemitério das Almas Perdidas do Sétimo dia da Ressurreição – e assim, Jorge Henrique continuou sua jornada.

Ia assobiando uma canção tranquilamente quando deparou-se com algo que fez gelar sua espinha, dar um frio no estômago e paralisar todos os seus músculos diante de tal coisa lhe era imensamente estranha e desconhecida. A meia légua de Jorge Henrique jazia uma mocinha, completamente nua, deitada de bruço, com o corpo todo arranhado. Era loira de cabelos longos, dourados, lisos, sedosos. Sua pele pálida, deixava

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transparecer suas veias arroxeadas. Era magrinha e de corpo esguio. Vendo aquele fruto, Jorge Henrique não sabia que resolução tomar.

— Eu não sei quem você é – disse ele – mas com certeza você é a coisa mais linda que eu já vi, depois do por do sol – romantizou o jovem aproximando-se temeroso e não se contendo em reparar nas redondinhas nádegas. Jorge Henrique se agachou, não sabendo se ela estava morta ou vida, tirou os cabelos para revelar seu rosto, vendo a perfeição em traços angelicais e perfeitos que qualquer princesa teria.

— Princesa – suspirou Jorge Henrique que viu nos lábios de sua realeza, manchas de sangue – o que você andou comendo meu anjo?

Girou a moça para que ela ficasse de barriga pra cima. O moço pasmou-se, assustou-se espantado para logo se espicaçar, desejar e ter comichões, ao ver dois mamilos e a região de cabelos pretinhos no começo do vão das pernas.

— Obrigado meu Senhor – murmurou levando seus dedos para tocar em tal perfeição divina. Bem perto de se concretizar o que seria o maior e inesquecível momento de vida, a jovem mocinha tossiu sangue, o fazendo recuar de seu intento.

— Tenho que levá-la a cidade, está tremendo de frio, deve receber cuidados minha princesa – tirou seu casaco e cobriu a mocinha, a pegou no colo, não conseguindo tirar os olhos daquela perfeita criaturinha de Deus, falou:

— Fique tranqüila meu anjinho, vou cuidar de você.

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orge Henrique andou por muitos quilômetros trazendo a loirinha nos braços. Teve que parar pelo menos umas dez vezes para descansar e recuperar o fôlego. Já se ia por volta do meio dia

quando chegou em Vila Terezinha, os moradores e curiosos vieram ao seu encontro, querendo saber do que se tratava aquela moças em seus braços, e mais, queriam saber dos outros quatros.

— Contarei tudo e mais um pouco, mas antes levem essa criatura dos céus até o médico e cuidem dela.

Como pedido, levaram a estranha moça até o médico, onde lhe deram curativos e roupa nova, Jorge Henrique por sua vez foi levado até a presença do grande padre Rodolfo. Diante do sacerdote e do seminarista Daniel, explicou o que acontecera aos seus companheiros. Relatou também sobre a desconhecida que encontrou nua no meio da floresta.

— Uma desconhecida? – interessou-se o sacerdote – e como ela era? — Ah padre, nunca vi um anjo em minha vida, mas se o visse,

acredito que seria igual a ela. Os cabelos dourados, a pele macia, sensível, delicada, francamente meu padre, é a moça mais bonita que meus olhos já viram depois do por do sol.

— Se assim for, eu pessoalmente irei visitar essa pobre alma e lhe darei conforto espiritual, agora pode se retirar meu filho.

Com a saída de Jorge Henrique, padre Rodolfo virou-se para Daniel. — Mas quem teria feito tal heresia, matar cruelmente aqueles lindos

rapazes? – indignou-se padre Rodolfo para seu pupilo Daniel. — Parece obra do demônio – comentou o seminarista. — Elementar – replicou o padre acariciando seu cavanhaque – forças

malignas impregnam como odor podre no nariz em nossa cidade. Mas este poder maligno tombará ante o meu poder. Temos poucos meses antes da próxima sexta feira, treze. Precisamos passar a peneira na Floresta Cinzenta para pegar essas malditas bruxas ou então estarei lascado.

— A Floresta Cinzenta é enorme meu querido padre, nem mesmo os antigo moradores conseguem dizer qual seria sua imensidão, e muitos contam cada história daquele lugar, que muitos preferem nem passar perto.

— Bruxas são como ratos Daniel, vivem em bandos nojentos, escondidos nos ralos, nos buracos, cheirando a excremento. Só preciso encontrar um ratinho que me aponte o esconderijo. Então... – padre Rodolfo bateu suas palmas, fazendo um grande estalar – exterminarei todas de uma vez. Só é preciso prender uma bruxa e colocá-la na cadeira de pregos para que ela conte tudo em menos de quinze minutos.

Nesse momento a porta foi aberta no escritório entrou Dona Geralda, pisando duro. Essa senhora era a mais fanática de todas as mulheres de Santa Terezinha, ia todos os dias a missa, confessava uma vez por semana, rezava o terço três vezes ao dia, jejuava na sexta-feira, e no alto de seus

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sessenta anos, ainda conservava o selo da pureza. Foi imediatamente até a mão do padre e a beijou seu anel de ouro.

— Que a graça do senhor esteja com a senhora – saudou o padre. — Padre, peço perdão pelo incomodo, mas tenho uma séria denúncia

de bruxaria. O padre Rodolfo imediatamente entreolhou para Daniel, em uma

olhada confidencial. — Pois diga minha boa senhor – pediu o clérigo, em tão, em voz

baixinha de fofoca, Dona Geralda falou: — Eu moro ao lado da senhora Marli, e todos os dias vejo ela e sua

família tomando banho. — E...? – perguntou o padre não entendendo a denúncia. — Ora padre, as pessoas limpas não têm de se lavar, muito menos

todos os dias. E mais, ela anda lavando toalhas de sexta-feira. — Faz sentido, mas a senhora Marli e sua família são católicos que

pagam em dia os dízimos – ponderou o sacerdote. — Será que o senhor se esquece de Levítico capítulo dezenove

versículo trinta e um? – inquiriu Dona Geralda.

— Não vos virareis para os adivinhadores e encantadores; não os busqueis, contaminando-vos com eles. Eu sou o senhor vosso Deus – lembrou-se da passagem, e dizendo essas palavras, o clérigo resignou-se ao pedido da velha senhora. Virando-se para o seminarista Daniel, disse:— Mande o capitão Edmundo prender a senhora Marli e todos seus familiares. Se ele perguntar o motivo, diga que os acusados costumam tomar banho e lavam a toalha de sexta-feira.

Os corpos dos quatro jovens foram trazidos da floresta até a cidade, acompanhado pelo povo comovido. Foram todos enterrados no cemitério das Almas Perdidas do Sétimo Dia da Ressurreição. Antes que os ataúdes fossem enterrados, padre Rodolfo se dirigiu a multidão falando com sua voz de trovão:

— Que a morte desses quatro jovens não passem em vão meus filhos. Precisamos todos juntos vingar a morte deles, lavar com sangue e justiça a morte deles. Não fechem os olhos para o pecado, não deixem passar em branco nada, suspeitem de tudo e todos, as bruxas podem estar em cada esquina, no mercado, na escola, na loja ou até mesmo ao seu lado agora.

A população assustada começou a se entreolhar uma as outras em pânico.

— Desconfiem da própria sombra – pediu o pároco do alto de uma carroça – e denunciem, pois as bruxas serão julgadas com justiça e piedade.

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— Amém – gritou Daniel erguendo os braços, inflando a multidão e todos juntos gritaram em coro: AMÉM!

Jorge Henrique não escutava o sermão do padre Rodolfo, pois estava

na Santa Casa segurando a mãozinha de sua doce desconhecida. Não desgrudou dela a noite inteirinha, era como se estivesse arrebatado em atração por aquela linda jovem. Quando ela abriu seus olhos, exibindo duas pérolas azuis, o coração do moço disparou.

— Graças a Deus que acordou – disse Jorge Henrique cheio de emoção – como se sente?

— Quem é você? – perguntou a princesa. — Me chamo Jorge Henrique, a encontrei na Floresta Cinzenta,

estava nua e cheia de escoriação, a trouxe nos braços até aqui. — Não me lembro de nada – disse a mocinha apertando sua cabeça –

minha cabeça dói tanto. — Sabe me dizer seu nome e da onde é? — Sara, moro além da Floresta Cinzenta. — O que aconteceu Sara, alguém lhe atacou? Assaltantes? — Não me lembro Jorge Henrique, sei que apenas estava deitada na

choupana em que moramos, e depois, só vejo escuridão. Jorge Henrique apertou mais forte a mãozinha de Sara, e suavemente

as beijou, para que ela soubesse que ali estava alguém para confiar, e para reforçar sua confiança proferiu:

— Quero que saibas que não reparei em suas partes intimas. Sara sorriu e disse: — Veja só que indelicadeza, nem lhe agradeci por ter me salvado,

muito obrigada meu anjo protetor – e assim, beijou as mãos de Jorge Henrique que arrepiou-se inteirinho, estremecendo de excitação.

— Vou levá-la de volta para sua casa – prometeu o jovem encarando fundo naquele mar azul nos olhos de Sara.

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nternada há três dias na modesta Santa Casa de Vila Terezinha, Sara enfeitiçava a todos com sua beleza inocente, desde o médico até o faxineiro, até mesmo os moribundos se apaixonavam por

ela. Todos se prostravam em elogios a bela mocinha. Mas essa princesinha só tinha atenção para Jorge Henrique, seu bravo salvador, que não arredava o pé da cama por nada. Dona Judite Colina trazia comida para o filho e sua amiga, não escondendo admiração por Jorge Henrique estar de amizade com tão bela jovem.

— Finalmente nosso menino vai desencalhar – dizia ela para Moisés Colina, seu marido.

— Tomara, só espero que a mocinha seja católica. — Se não for nós a batizaremos – e crescia cada dia mais a esperança

da mãe de Jorge Henrique em vê-lo casado com Sara. Porém, no último dia em que a mocinha ficaria no hospital, veio-lhe

visitar ninguém menos do que o homem mais poderoso e santo de Vila Terezinha, padre Rodolfo. Foi passando pelos doentes, com sua típica túnica preta, com um lenço tampando sua boca e nariz para não sentir a fedentina da moléstia, enquanto fazia sinais das cruzes aos infelizes que pediam um pouco das bênçãos dos céus. Entrou no quarto de Sara mostrando seus dentes amarelados em meio ao seu cavanhaque negro.

— Que a paz do Senhor esteja convosco – saudou abrindo os braços, imediatamente sendo tragado para dentro dos olhos de Sara, que lhe sorriu e o balançou. Jorge Henrique, como bom cristão, correu para beijar sua mão e pedir a benção.

— Sim, sim, sim, está abençoado agora me de licença para conversar com essa boa jovem – pediu o sacerdote desfazendo do pobre Jorge Henrique, que obedeceu religiosamente e saiu do quarto. O padre Rodolfo foi se aproximando, passando a mão pela beirada da cama, examinando com cuidado aquele pedaço de carne.

— Quer dizer que seu nome é Sara? – perguntou sentando-se na cadeira e passando a mão pela fronte da mocinha – Sara é um nome árabe, sabe o que significa Sara?

A moça fez que não com a cabeça. — Princesa, Sara significa princesa, e não é por menos minha

querida, você é uma verdadeira princesa – foi falando enquanto acariciava o rosto da bela jovem, que permanecia impassível aos cortejos do reverendo. O reverendo que sentia seu corpo transpirar de excitação, não conteve que seus dedos chegassem até o pescoço nu de Sara. Não conteve que seu rosto se aproximasse ao dela e não conteve que sua boca beijasse os lábios inquietantes e tentadores dela. Ao beijá-la, sentiu os braço dela envolvendo sua cabeça e depois uma pontada em sua cabeça, como se uma mecha de seus cabelos fossem arrancados. Com um beijo de poucos

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segundos, o cura sentiu todas as suas energias se esvaziarem naqueles beiços carnudos e erguendo-se com falta de ar, encostou na parede tomando um grande fôlego. Viu que Sara continuava impassível, o encarando, parecendo rir por dentro. Não tendo forças nem pra falar, padre Rodolfo saiu do quarto, correndo para fora do hospital para respirar ar puro. Depois que se recompôs não teve coragem de voltar ao quarto de Sara. Seu peito inflava apenas com a lembrança do beijo quente dela. Não se permitiria a perder a cabeça por causa de uma jovem, isso seria o seu fim. Precisava manter distância para não sucumbir aos vícios da carne.

Já no quarto de Sara, ela se divertia brincando com os cabelos do

padre Rodolfo, seus olhos brilhavam vendo aqueles cabelos sedosos de pecado e religião. Os escondeu rapidamente quando Jorge Henrique entrou.

— Falei com o médico e ele me disse que você já pode partir – avisou o moço sentando-se na cadeira.

— Obrigada Jorge Henrique, nem sei como poderei pagar pelos préstimos do doutor.

— Não se preocupe com isso minha cara, apenas quero que descanse que irei levá-la até sua casa.

— Mas ela fica além da Floresta Cinzenta, vai um terço do dia para se chegar até o vale onde fica a choupana onde moro e no mais, a floresta é muito perigosa, cheia de bruxas e outros animais do mal.

— Nem que eu tenha que enfrentar cem bruxas ou ter que enfrentar o demônio em pessoa, eu a levarei através da Floresta Cinzenta até a sua casa.

— Nunca conheci um homem tão valente assim – falou a mocinha passando a mão pelo rosto recém escanhoado de Jorge Henrique – nada temerei ao seu lado.

E pegando nas mãos do jovem metido a valente, mas que temia a escuridão feito o vampiro odeia o dia, Sara beijou os dedos e os colocou em seu peito.

— Você estará pra sempre em meu coração, Jorge Henrique – finalizou a mocinha para suador do pobre rapaz que não agüentando a pressão retirou rapidamente as mãos daquela parte tão tentadora.

— Virei logo de manhã, partiremos cedo – disse Jorge Henrique não escondendo seu nervosismo antes de ir embora pra casa e praticar o seu tão valoroso vício solitário.

Quem também praticava o vício solitário idealizando Sara era o

padre Rodolfo, aproveitando da escuridão da noite em seu quarto. Fantasiava os mais diversos lugares, na cama, na escada, na mesa do jantar, no sofá e até um lugar um tanto quanto pervertido e proibido, no confessionário. Estava quase no ponto máximo, pronto para o êxtase,

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quando fortes batidas na porta de seu aposento, o tirou de toda a magnitude de seu ato solitário.

— Quem é? – gritou enfurecido guardando o negócio pra dentro da cueca.

— É o capitão Edmundo – respondeu a voz de trovão do homem da lei do outro lado.

— E o que quer por santo pai? — Prendemos um homem nas proximidades da Floresta Cinzenta,

parece ser um grande feiticeiro. — Grande feiticeiro? Já estou indo – pulou da cama o sacerdote,

rapidamente vestindo seus paramentos sacerdotais. Juntamente com o capitão Edmundo e seus guardas, padre Rodolfo

se dirigiu até a masmorra do Castelo Redentor, o qual tinha esse nome, pois ali, os pagãos, hereges, bruxas e outros inimigos da Igreja, recebiam sua redenção através de torturas que consistiam no pêndulo, cadeira da inquisição, sala de sova, esmaga cabeça e outros aparelhos nada agradáveis usados pelo Santo Ofício.

Desceram até as masmorras onde os gritos de dor, de agonia e aflição eram abafados pelas enormes pedras rochosas. Capitão Edmundo levou o sacerdote até a cela de Galeano, um velho de barbas longas cor de lã, sobrancelhas grandes e peludas, usando manto velho e surrado. Galeano, este velho matusalém, estava deitado no chão imundo da escura cela daquela masmorra torturante. Os guardas pegaram o velho pelos braços e o ergueu.

— Este é o grande feiticeiro de que me falastes capitão Edmundo, esse trapo imundo, esse matusalém, esse velho sujo...

— Sim reverendo, ele proclamou que o sol não gira em torno da terra, mas sim que a terra gira em torno do sol.

Nesse instante, Galeano ergueu sua cabeça para fitar o rosto consternado do padre Rodolfo.

— Tal blasfêmia deve ser severamente punida – falou o padre em tom calmo – mas não vejo nada que o caracterize como bruxo ou feiticeiro. Deverá se retratar diante da multidão de sua proclamação, só assim receberá o perdão.

— Perdão reverendo – interferiu o capitão – mas o encontramos perto da floresta usando um canudo que tinha um olho mágico que fazia as estrelas ficarem mais próximas da terra.

— Já disse que é uma luneta – respondeu Galeano. — Calado seu herege do inferno – vociferou padre Rodolfo erguendo

a mão, ameaçando dar um safanão nele – malditos astrônomos, querendo destruir as escrituras com a ciência.

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— A ciência é o único caminho para chegar a verdade – arrematou o velho para ira do sacerdote que lhe cuspiu na cara.

— A única verdade é aquela que a Igreja determina, a verdade das sagradas escrituras, aquele que não aceita ou recusa, é considerado herege. Agora me responda Galeano – falou o padre pegando no queixo do velhinho – da onde provém a mais pura verdade, tão limpa e clara como água cristalina?

— Da ciência – respondeu ele sem pestanejar. — Você está cego homem, o demônio tapou seus olhos com a

ciência. Mas sou um homem generoso e vou lhe fazer enxergar o lembrando de Marcos capítulo nove, versículo quarenta e sete: “E, se um dos teus olhos te faz tropeçar, arranca-o; é melhor entrares no reino de Deus com um só dos teus olhos do que, tendo os dois seres lançado no inferno”. Sendo assim, não o deixarei entrar no inferno com seus dois olhos, e sim, o mandarei para junto do Pai sem nenhum.

O velho homem entrou em desespero e tentou desesperadamente se soltar dos guardas, nisso, padre Rodolfo começou a gargalhar.

— Arranque as vistas desse velho feiticeiro capitão Edmundo, e jogue seus olhos diabólicos para os porcos comerem.

— E depois, o que fazemos com ele? — Devolvam-no aonde o encontraram, seguirá sua penitência pelo

resto da vida para que possa entrar de alma limpa dos reinos dos céus. E continuando a rir, padre Rodolfo fez menção de se retirar. — Agora preciso ir, preciso terminar o que comecei usando minha

mão direita através de minha imaginação. — Estás a escrever um livro reverendo? – perguntou inocentemente

capitão Edmundo. Pego com tal pergunta, padre Rodolfo respondeu: — Isso mesmo, um livro, um livro sobre práticas de bem estar da

alma. Conforme prometido, ao alvorecer do dia seguinte, Jorge Henrique

se pôs em caminhada para levar Sara de volta a sua casa além da Floresta Cinzenta. Antes mesmo que o sol apontasse no horizonte, os dois jovens se colocaram a caminhar. Não podiam ir de carroça, nem a cavalo, pois o caminho não era mais do que uma trilha sinuosa por entre as grandes árvores da floresta. Munido de espingarda, levando comida em seu bornal, Jorge Henrique estava preparado para uma viagem de quatro horas mata adentro pelo desconhecido, levava comida de sobra, bolo, pão e queijo que sua mãe havia preparado. Sara vestia um vestido negro até os tornozelos, vestido que foi dado por Judite Colina, vestido que realçava a pureza, escondendo até o pescoço de pele bonita de Sara. Usava uma toca encobrindo o dourado de seus cabelos. Jorge Henrique ainda a olhava com

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desejo, lembrando-se de que por baixo daquele vestido, existia a mais perfeita criação de Deus.

Eles iam caminhando de costas para Vila Terezinha, cada vez mais se afastando dos limites da cidade, e cada vez mais se aproximando da ameaçadora Floresta das bruxas. Atrás deles, uma negra fumaça se erguia de Vila Terezinha, Sara percebeu e comentou:

— Será que alguma casa está pegando fogo? — Não, nenhuma casa está pegando fogo – respondeu Jorge

Henrique sorrindo para confortar Sara – é apenas uma queima de bruxa. Todas as manhãs, antes que o sol se levante, a igreja queima uma bruxa.

— E quem seria a bruxa? — Me parece que era uma mulher que tomava banho todos os dias,

isso é um grave sinal de bruxaria. — Porque? — Minha mãe me disse que os puros de alma não precisam se lavar.

Só quem é ímpio e herege que se lavam todos os dias. — Odeio bruxas – falou Sara com voz raivosa – meus pais foram

mortos por um feitiço. — Meus Deus! É verdade – surpreendeu-se Jorge Henrique

demonstrando mais surpresa do que deveria. — Certo dia, uma velha veio pedir pousada tarde da noite, meus pais

não aceitaram, pois eram católicos fervorosos e desconfiaram daquela senhora. Antes de partir, a velha jogou um tipo de pó em nossa porta, e uma semana depois, meus pais faleceram inexplicavelmente.

— Mas isso é uma coisa hedionda, sinto meu estômago remexer de tanta fúria que estou sentindo ahora – disse Jorge Henrique fechando o seu punho – se eu pudesse, mataria com minhas próprias mãos cada bruxa dessa floresta maldita.

— Conheço um lugar no meio da Floresta Cinzenta, onde vive um grupo de bruxas más. Sei disso porque uma vez me perdi por entre as árvores, e tentando achar o caminho de volta para minha casa, encontrei por acaso um tipo de vilarejo, com várias cabanas, onde vi as bruxas sacrificando animais inocentes ao diabo.

— Saberia me dizer exatamente onde fica esse vilarejo? — Tenho medo Jorge Henrique, as bruxas sabem de tudo –

lamentou-se a mocinha lhe dando as costas – tenho medo delas. Temo por minha vida.

— Não se preocupes Sara – disse o mocinho colocando as mãos nos ombros dela – nada vai lhe acontecer, me indique o caminho para se chegar no esconderijo das bruxas. Desta forma avisarei padre Rodolfo e reuniremos toda a força policial e também a população para linchar essas ratazanas.

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— Jorge Henrique, meu anjo – disse Sara virando para fitar o seu salvador nos olhos, o envolveu em seu abraço e falou ao pé do seu ouvido – sim, eu lhe mostrarei onde fica esse vilarejo e lhe serei eternamente grata se queimares vivas todas as bruxas que encontrarem.

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s dois se embrenharam na Floresta Cinzenta. Segundo Sara, o Vale das Bruxas ficava no centro da nebulosa floresta, pra lá do meio, antes da metade, lugar onde o sol nunca brilhou e

nenhuma flor floresceu. Jorge Henrique ia seguindo Sara, percebendo que quanto mais eles

adentravam na brenha, mais seca ficavam as árvores, até que chegaram em uma região onde não se via mais nenhuma folha nos galhos, não se ouvia mais o barulho da mata, o canto dos pássaros, nem de insetos, era apenas silêncio com o barulho seco dos galhos se quebrando.

— Vê essas manchas vermelhas nos troncos – disse a mocinha apontando para uma mancha vermelha, quase despercebida no casco do tronco. Jorge Henrique analisou de perto e comentou:

— Se você não me dissesse, nunca iria perceber. — Para se chegar ao Vale das Bruxas, basta seguir as manchas –

explicou Sara. — E quem teve a brilhante idéia de marcar o caminho até o Vale das

Bruxas? — Isso não importa Jorge Henrique, vamos andando pois temos um

longo caminho pela frente. Continuaram a jornada, seguindo as marcas nas árvores, andaram por

horas por meio de uma neblina que mais parecia uma fumaça até chegarem perto de um grande muro de arbustos.

— É aqui – disse ela em voz baixa. Jorge Henrique que vinha logo atrás, se achegou mais perto. A mocinha, com suas mãos delicadas, abriu um buraco no meio dos arbustos revelando uma clareira onde ficava o Vale das Bruxas.

Jorge Henrique viu um monte de choupana, construídas com madeira e teto de palha. Por ali havia um poço de pedras, onde duas mulheres retiravam água em baldes. Elas usavam vestes negras, tocas brancas na cabeça, já outras de mais idade, usavam chapéu preto.

— É esse o Vale das Bruxas? – perguntou Jorge Henrique não vendo mais um bando de mulheres inofensivas.

— Pode até parecer um lugar inocente – respondeu Sara mantendo a voz baixa – mas não se engane pelas aparências, essas mulheres são bruxas da pior espécie.

— Meu Deus, mas há muitas! – exclamou o jovem vendo vários tipos de bruxas, das mais velhas, até as mais novas, notando que não havia nenhum homem por entre elas, apenas mulheres. Algumas lavando roupa a beira de um tanque, outras regando uma pequena horta, muitas sentadas em bancos de pedras conversando e viu uma velha, uma bruxa, cabelos grisalhos, de túnica preta, de chapéu na cabeça, mexendo num grande caldeirão esquentado por lenha.

O

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— Quem é ela? – perguntou Jorge Henrique fazendo menção com a cabeça para aquela estranha figura.

—Naquele caldeirão essas bruxas cozinham crianças vivas para comerem no almoço. Notastes por acaso que há alguma criança correndo por ai?

Não mais assustado do que aterrorizado, Jorge Henrique, agora pálido, fazia sim com a cabeça.

Os dois espiavam pelo buraco no muro de arbustos, quando subitamente todos os olhares da bruxa se voltaram para eles, como se todas soubessem que eles estavam ali as observando.

— E agora? – perguntou Jorge virando-se para o lado e não vendo Sara.

— Sara! – chamou o nome de sua amada, mas apenas viu o som de uma pomba alçando vôo pra o céu – Sara, cadê você?

Jorge Henrique voltou a olhar no buraco, vendo cerca de doze bruxas aproximando-se do muro. Elas eram idênticas, com suas vestes cinzentas esfarrapas, todas usando tocas brancas e colares com pentagrama. Aproximavam-se a passos lentos com suas caras enrugadas.

— E agora? – falou desesperado o jovem que voltou a se virar para procurar Sara, olhou atentamente por entre as árvores, mas a moça havia sumido sem deixas rastro. Resolveu dar uma última espiada, assustando-se ao ver as bruxas mais perto do muro, como se tivessem apressado o passo enquanto não as observava. Caiu de susto quando viu surgiu no buraco bem em frente ao seu rosto, a feição asquerosa de uma bruxa, com seu pele ressecada e seus olhos amarelados com um grande sorrido podre nos lábios. Levantou-se apressadamente e saiu correndo pela floresta sem se atrever a olhar para trás.

Correu tanto que chegou em Vila Terezinha ante do pôr do sol. Mal

colocou os pés em sua casa e caiu de cansaço ao chão sendo acudido por seu pai Moisés e sua mãe Judite. De língua de fora, respirando fundo, pelo nariz e pela boca, Jorge Henrique balbuciava o que tinha acontecido, foi-se mais de uma hora até que o velho Moisés Colina conseguisse entender o que seu filho queria dizer. Imediatamente foi chamar Padre Rodolfo, que no momento, interrogava uma acusada de bruxaria no Castelo Redentor. A vítima estava pendurada de cabeça para baixo, amarrada pelos tornozelos. Tratava-se de uma mulher de quarenta anos, viúva de grandes posses, que foi pega em adultério com o marido de outra mulher de quarenta anos, que sendo muito católica, decidiu se vingar da viúva a denunciando ao Tribunal da Inquisição. Padre Rodolfo, que não dava ponto sem nó, resolveu que poderia tirar proveito da situação matando dois coelhos com uma cajadada só, além de se livrar de uma possível bruxa, confiscaria todas as propriedades e herança da viúva para a Igreja.

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— Então como vai ser minha boa Gertrudes? – foi dizendo o sacerdote, tranquilamente sentado em uma cadeira estofada, saboreando um cacho de uva, assistindo a tortura daquela pobre mulher – onde estão suas colegas?

— Quantas vezes vou ter que repetir que não sou uma bruxa... Por favor, me libertem! – clamou Gertrudes no fim de suas energias.

— Minha filha, encontrarás sua liberdade no fogo, a menos que me fale sobre o paradeiro de outras bruxas.

— Eu não sei – disse a mulher em soluços. — Parece que precisa de mais um tempo – disse o clérigo fazendo

sinal para o torturador suspender o pêndulo. A mulher gritava de dor e agonia, quando um guarda chamou padre Rodolfo dizendo que um certo Moisés Colina trazia um recado importante sobre o esconderijo das bruxas na Floresta Cinzenta.

A penumbra do pôr do sol encobria os céus de um tom róseo, frio e

triste. Homens, mulheres, todos cristãos aproximavam-se da Matriz de Vila Terezinha com suas tochas acesas, escutando o repicar dos sinos, o chamado de Padre Rodolfo, um alerta contra as forças do mal. Ao largo da Matriz reunia-se todos os soldados do quartel.

Da sacada da igreja, apareceu Padre Rodolfo, que erguendo os braços, assim se dirigiu a multidão:

— Irmãos e Irmãs, Deus me enviou os sinais para encontrar o antro da perversão, da maldade, da subversão dos nossos valores cristãos. Nessa noite, entraremos na Floresta Cinzenta e eu pessoalmente os conduzirei por entre as árvores até a morada do mal, até a morada das mulheres de satã. Onde todos juntos, daremos o julgamento final as bruxas.

A multidão bradou em coro erguendo as tochas ao ilustre sacerdote. Dali da Igreja, todos seguiram rumo em procissão para a Floresta Cinzenta. Padre Rodolfo foi na ponta, carregando uma cruz que os protegia de todo e qualquer mal. Logo atrás do clérigo vinha Jorge Henrique apontado discretamente as árvores com manchas vermelhas. Aquele grupo formado de pouco mais de cem pessoas, atravessaram a floresta rezando, cantando, até chegarem aos muros de arbustos que escondiam o Vale das Bruxas. Capitão Edmundo deu a ordem e os guardam rasgaram os arbustos com golpes de facão, abrindo um portal por onde passou o grupo.

O Vale era sossego e paz, nas choupanas lampiões clareavam as

janelinhas, e não se via por ali nenhuma alma viva, nem sinal de bruxa. Tomando a cruz a sua frente, Padre Rodolfo foi caminhando com passos firmes em direção as choupanas enquanto falava em voz alta:

— São estes os estatutos e os preceitos que tereis cuidado em observar na terra que o Senhor Deus de vossos pais vos deu para a

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possuirdes por todos os dias que viverdes sobre a terra. Certamente destruireis todos os lugares em que as nações que haveis de subjugar serviram aos seus deuses, sobre as altas montanhas, sobre os outeiros, e debaixo de toda árvore frondosa; e derrubareis os seus altares, quebrareis as suas colunas, queimareis a fogo os seus aserins, abatereis as imagens esculpidas dos seus deuses e apagareis o seu nome daquele lugar – e apontando em direção a uma bruxa que acabava de sair de um banheiro de fossa, ordenou a todos – “Não deixarás viver a feiticeira”.

Homens, mulheres, guardas, todo correrão com seus alfanjes, pedaços de pau, garfos, cimitarra, rifles e facões em direção as moradas das bruxas.

As indefesas mulheres foram pegas de surpresa, surpreendidas na cama, sem tempo para fugir. Os homens nem mesmo perguntavam, entravam atirando , em outras, trancavam as portas e janelas e ateavam fogo no teto de palha. Muitas bruxas foram trazidas nuas para fora e espancada pelas cristãs de Vila Terezinha até a morte. Padre Rodolfo pessoalmente colocava fogo nas choupanas, se divertindo em ver as bruxas ardendo no fogo, já Jorge Henrique observava tudo de longe com os pensamentos longe dali, imaginando onde estaria Sara, moça loira de olhos azuis que conquistou seu coração.

Os tiros dos rifles, o estalar do fogo na madeira, os gritos de dor, de sofrimento das bruxas, as risadas dos homens, os xingamentos das mulheres, se alastravam noite adentro naquele cenário tenebroso. Os corpos das vítimas eram amontoados no meio do vale, onde se fez uma grande montanha e no alto dessa montanha de carne humana, fincaram uma cruz na barriga de uma bruxa velha. E sem cerimônia, Padre Rodolfo ateou fogo aos corpos, fazendo o vale se encher do odor de carne queimada. As estrelas foram escondidas pela densa fumaça negra.

O grupo se reuniu para voltar a Vila Tereza, mas antes os guardas vasculharam cada metro do Vale em busca de alguma sobrevivente, foi Capitão Edmundo que encontrou uma jovem em meio aos destroços de uma choupana, seu corpo estava cheio de ferimentos, seu rosto manchando em sangue pela surra que levou. Capitão Edmundo a pegou pelos cabelos dourados a levando até para perto de Padre Rodolfo, falou:

— Talvez o reverendíssimo queira um troféu em sua estante – disse o Capitão tirando a espada da bainha e erguendo a cabeça da mocinha para que seu pescoço ficasse a mercê do fio cortante da espada. Padre Rodolfo, sem mesmo ver o rosto da moça, pediu ao capitão que guardasse a espada.

— Amarre-a num pau e a carregue até Vila Terezinha, talvez ela possa nos revelar mais esconderijos de bruxas, quero que ela seja bem alimentada e bem cuidada para que sobreviva aos interrogatórios. Depois a julgaremos e a queimaremos para servir de exemplo.

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Quanto todos se foram, um gato preto entrou naquele Vale destruído. Ele foi passando com suas patinhas por entre os corpos incinerados das bruxas, parou apenas para brincar com um pedaço de carne, da onde tirou umas beliscadas. Depois, num piscar de olhos, este lindo gato preto cresceu, ficou de pé, seus pêlos encolheram até desaparecer e todo seu corpo transformou-se em Sara, a bela jovem de cabelos loiros que fora salva por Jorge Henrique e que por ela se apaixonou.

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a masmorra do Castelo Redentor, a jovem bruxa recebia os flagelos por sua raça. Amarrada em correntes a uma cadeira de ferro, ela tremia de frio pela água gelada que os guardas

despejam em sua cabeça a cada pergunta não respondida pelo inquisidor. Cansado com a petulância da garota, o homem alto, magro, pele

morena, levantou-se com toda a sua autoridade, aproximando-se da moça, agarrou seu delicado queixo e ameaçou:

— Quer sentar-se na cadeira da inquisição minha querida? Uma cadeira cheia de pregos, sabe o que colocamos embaixo dela? Sabe? – perguntava o inquisidor com grande furor – embaixo dela acendemos uma fogueira. Pode imaginar a sensação da sua carne nua sendo perfurada por inúmeros pregos quentes?

A bruxinha ficou em silêncio, encarando firmemente seu algoz nos olhos.

— Já imaginava – disse o inquisidor soltando o queixo dela, depois, virando-se para os guardas, ordenou:

— Levem-na para a cadeira da inquisição. Os guardas retiravam as correntes da bruxa para levá-la a seu castigo,

no instante em que entrou na cela padre Rodolfo, acompanhado de seu pupilo Daniel.

— O que conseguistes? – inquiriu o padre ao inquisidor. — Nada ainda, ela nem mesmo falou seu nome. Mas vejamos se ela

agüenta quinze minutos em silêncio na cadeira da inquisição. — É pena que tenhamos que chegar a esse extremo – riu padre

Rodolfo não escondendo o seu escárnio por aquela indefesa mocinha tentando se soltar dos fortes guardas, mantendo a cabeça baixa, deixando seus cabelos molhados jogados por cima de seu rosto. O clérigo foi até ela e puxou seus cabelos para trás fazendo-a mostrar o rosto, ao ver as feições da prisioneira, afastou-se assustado, não podendo acreditar no que seus olhos viam. A prisioneira ali na sua frente, de cabelos dourados, de traços angelicais, olhos azuis cor de mar, não era ninguém mais do que sua amada Sara.

— O que foi meu senhor? – perguntou o seminarista Daniel acudindo o padre.

O sacerdote nem conseguiu responder devido ao seu estado de choque. Recompôs-se e disse firmemente ao inquisidor:

— Não será preciso que se coloque essa bruxa na cadeira da inquisição. Levem-na para a casa paroquial, onde pessoalmente a libertarei de todo o seu mal.

— Mas padre – assustou-se Daniel muito assustado – ela é uma bruxa, uma serva de satanás.

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— Eu sei meu querido Daniel, mas Deus quer todos os seres humanos sejam salvos.

E sem mais questionamentos, Sara foi levada para a casa paroquial, deram-lhe banho, cuidaram de suas feridas e a colocaram numa cama quentinha. Por vias da dúvida, dois guardas ficaram de sentinela a par da porta do quarto. Assim que a noite caiu, padre Rodolfo foi visitá-la, sentou-se ao lado da cama e colocando sua mão sobre as pernas dela, sussurrou assim ao seu ouvido:

— O que você fazia naquele Vale das Bruxas minha princesa? — Tire as mãos de mim seu porco – rosnou Sara para divertimento

do sacerdote. — Ora essa meu anjo, sabe que eu lhe posso salvar da fogueira,

então acho melhor ser boazinha comigo – foi dizendo ele enquanto beijava o pescoçinho dela. Sara tentava se esquivar do assédio do padre, mas entregou-se aos charme do reverendo pedindo:

— Tira ele pra fora. Sem demora, padre Rodolfo se livrou de seu hábito negro, ficando

apenas de ceroula. E obedecendo a ordem de Sara, tirou o negócio ereto pra fora.

— Como é lindo – falou a mocinha agarrando ele com as duas mãos. Padre Rodolfo se deliciava com o toque de fada em seu órgão, parecendo ver anjinhos a sua volta, querendo que ela não se demorasse em colocar os lábios nele, ia se excitando, cada vez mais duro, quando sentiu as mãos dela segurando com firmeza seus bagos e de um só golpe violento, ela arrancou os testículos do padre que acordou todo a vizinhança com seus gritos.

O rosto de Sara estava por demasiado roxo, que a moça nem mesmo

conseguia abrir os olhos nem podia caminhar sem o auxílio dos guardas de tanta surra que levou do eunuco Padre Rodolfo.

Muitos católicos compareceram ao julgamento daquela bruxinha, e todos viam a fúria estampada no rosto do juiz, o sacerdote e pároco de Vila Terezinha.

— Que se apresente a ré, acusada de heresia e subserviência a satanás! – vociferou o reverendo do alto da tribuna. Os guardas então arrastaram Sara, tão mole quanto um saco de estopa vazio, pelas correntes até uma grande balança em frente a mesa julgadora. Com rudeza, jogaram a moça em cima do prato da balança, ali ela ficou imóvel, agonizante e miserável. Padre Rodolfo, com toda a sua pompa e arrogância, desceu da tribuna e se dirigiu a passos curtos e doloridos por causa do machucado no vão das pernas, até a balança, trazendo nas mãos um exemplar volumoso da Bíblia Sagrada.

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— Todos vocês e Deus dos céus, são testemunhas deste julgamento justo. Se esta mulher for honesta e de alma limpa, o seu peso se equivalerá ao peso da bíblia, porem se passar, isto provará que sua alma está carregada de iniqüidades, pecados e de heresia – e acabando de dizer estas palavras, padre Rodolfo realizou o mesmo julgamento que fazia com todos os acusados de heresia, colocou a bíblia no contra peso e como sempre acontecia, o peso do acusado era superior ao do livro sagrado.

— Culpada! – julgou Padre Rodolfo com o veredicto da balança. Os presentes no tribunal aplaudiram de pé, dizendo em coro “Aleluia”.

— Como sentença de seus pecados – continuou o eunuco clérigo – eu a condeno a morrer viva na fogueira em brasa a meia noite de amanhã, até nessa hora de sua morte redentora, ficarás expostas na entrada da cidade, presa no tronco, debaixo do sol e da chuva, para que todos conheçam a sua desgraça.

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onta-se que em Vila Terezinha vivia a moça mais bonita do mundo. Sua beleza fazia inveja as princesas e fadas de epopéias gregas. Diziam alguns que tal criatura só poderia ter

sido colocada no mundo pelas próprias mãos de Deus. Ela se chamava Soraia, nome que significava estrela da manhã.

Tal moça bonita não passava de uma camponesa, que cuidava do rebanho de ovelhas da família. Vivia alegre e feliz, passeando pelas pradarias, campos, menos pela Floresta Cinzenta, lugar que sua mãe proibira terminantemente de entrar sem dizer o motivo. Como toda jovem, Soraia era dada a curiosidade, e num dia qualquer a tardizinha, resolveu passear pelas cinzentas árvores da floresta proibida. Foi caminhando alegre, saltitante, levando nos lábios uma canção e quando deu por si, estava perdida no meio da neblina. Desesperada a mocinha começou a correr, mas quanto mais corria, mais parecia que dava círculos e não se chegava a lugar nenhum. Sentando-se ao pé de uma árvore seca, se pôs a chorar copiosamente. Apareceu-lhe então uma senhora alta, de fartos cabelos brancos, usando trapos de roupa e se apoiando em um cajado para se sustentar em pé.

— Porque choras minha criança? – perguntou a velha senhora. — Eu estou perdida e não consigo encontrar a saída desta floresta –

explicou Soraia com olhos vermelhos. — Pobre criança – se doeu a senhora – és tão bonita, nunca vi tanta

beleza em uma só mocinha... Sempre desejei ter uma filha tão bonita e com esses olhos azuis pra mim. Seria uma pena que tal brilho de beleza morresse de fome no meio dessa floresta abandonada por Deus.

— Isso nunca – desesperou-se Soraia – eu sou capaz de fazer qualquer coisa para sair dessa floresta.

— Qualquer coisa? – perguntou maliciosamente a velha mulher. — Sim, qualquer coisa – respondeu decidida Soraia. — Eu posso lhe mostrar o caminho para sair daqui, mas preciso que

faça algo muito importante para mim. — O que é? Pode pedir qualquer coisa! — Não é necessário que seja hoje, nem amanhã, no tempo certo lhe

pedirei este favor... Agora para sair desta floresta e voltar para sua querida casa, apenas tem que seguir o gato preto.

— Que gato preto? — Este atrás de você – indicou a senhora apontando a sua mão

enrugada para trás de Soraia. A mocinha se voltou-se, não vendo nenhum gato preto, virou-se para falar com aquela senhora, mas tudo que viu, foi um gato preto no lugar dela. Não se importando muito com o sumiço da velha, Soraia seguiu o gato até encontrar a saída da floresta. Saindo dela, jurou nunca mais voltar lá...

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Os dias, meses e anos passaram, Soraia se esqueceu daquele estranho encontro com a velha na floresta, seguiu sua vida, se casou com um forte lenhador, construíram uma casa grande de madeira e logo nos primeiros meses de matrimônio, ela ficou grávida. A maior felicidade do casal foi quando as gêmeas nasceram, uma tão bonitinha que a outra, as duas loirinhas e de olhos azuis. Soraia as batizou como Sara e Samara. Logo depois do batizado, veio bater em sua porta ao anoitecer, a mesma velha que a encontrou na Floresta Cinzenta há muitos anos.

— Vim cobrar o meu favor – disse a velha de cara. No mesmo instante, Soraia lembrou-se dela e com assombro percebeu que ela não havia envelhecido um cabelo branco desde aquele dia.

— Faz tanto tempo, não acha que está um pouco tarde? – disse Soraia enquanto pajeava Sara em seu colo.

— Nunca é tarde para se pagar um favor – respondeu a velha – vim cobrar o meu favor. Você disse que faria qualquer coisa para sair da floresta, não disse?

— Disse – respondeu Soraia constrangida, um tanto nervosa por aquela visita inesperada – e o que quer?

— Quero que me dê uma de suas filhas. — Está brincando? – perguntou dando risadas, mas ao perceber que a

velha permanecia impassível, se encheu de medo daquela estranha e segurou firmemente Sara em seu colo – vá embora daqui.

— Vejo que não irá cumprir com sua palavra. Eu já esperava por isso – foi dizendo a velha enquanto vislumbrava com carinho para a pequena criança no colo de Soraia, deu-lhe as costas e saiu caminhando rua a fora com seu cajado, desaparecendo no meio da noite. A moça fechou a porta angustiada, temerosa daquela inofensiva velha. Não contou para seu marido o que aconteceu, decidindo guardar para si toda a preocupação.

Passados seis anos, Sara e Samara agora eram duas meninas cheias

de saúde e beleza, porém o mesmo não acontecia com seu pais. O marido de Soraia vinha sofrendo de uma doença nos ossos que o impedia de trabalhar, os custos com seu tratamento era alto e Soraia tinha que trabalhar de dia e de noite como doméstica para pagar as despesas da casa, enquanto que seu esposo moribundo cuidava das filhas. Muito doente, o homem costumava apagar por várias horas e enquanto dormia, Sara e Samara se aproveitavam para sair e brincar pelos campos. Certo dia, correram tanto, uma tentando ser mais rápida que a outra, até que chegaram perto da Floresta Cinzenta, com suas grandes árvores que pareciam tocar os céus e sua neblina que fazia parecer fumaça de fogo.

— Vamos ver o que tem lá dentro – disse Sara, mais esperta e traquinas do que Samara, que sendo a filha mais comportada e obediente, retrucou:

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— Mamãe nos proibiu até de chegar perto dessa floresta, vamos voltar.

— Medrosa – desdenhou Sara e depois começou a cantarolar – Samara é uma medrosa! Samara é uma medrosa!

— Não sou não – revidava Samara tentando pegar sua irmã. Elas se agarram pelos cabelos e rolaram pelo chão até que ouviram um assovio, olharam em volta, percebendo atrás de um tronco de árvore da Floresta Cinzenta, a figura da velha.

— Vocês querem maçãs? – perguntou a senhora exibindo uma brilhante e saborosa maça vermelha. Sara se livrou de Samara e foi correndo pegar sua fruta preferida.

— Não Sara! Mamãe... — Calada – respondeu Sara virando-se e mostrando a língua. Ela foi

até a velha, que lhe entregou a maçã e passando as mãos sobre seus dourados cabelos, pediu a ela para que voltasse para a casa. A menina obedeceu e voltou para junto da sua irmã, que perguntou onde ela havia encontrado aquela maçã.

— Uma velha que estava ali atrás da árvore que me deu – disse Sara mordendo a fruta – você quer?

— Mamãe falou que não podemos aceitar coisas de estranho. — Eu sei, mas eu estava com fome. Agora vamos antes que papai

acorde. As duas voltaram correndo pra casa e nenhuma delas disse a mãe o

que aconteceu. Poucos dias depois, Sara ficou muito doente, sua febre não abaixava

mesmo com os remédios, tinha fraqueza e não conseguia comer nada. O médico foi chamado e pago com o pouco dinheiro que Soraia tinha guardado, mesmo assim, o doutor não conseguiu encontrar a causa da moléstia e disse para desespero da mãe que sua filha não tinha mais que três dias de vida.

Sem saída, Soraia foi a igreja de Vila Terezinha, rezar para que Deus salvasse sua menina. Ficou ajoelhada por muito tempo, rezando em silêncio e ao sair, topou com uma amiga a quem contou os seus lamentos. Essa amiga escutou tudo pacientemente e depois perguntou a Soraia:

— Quer mesmo salvar sua filha? — Eu daria minha vida por Sara. — Pois escute bem, na Floresta Cinzenta vive uma senhora chamada

Vera, dizem que ela é curandeira e pode curar qualquer mal. Se não há mais saídas minha amiga, não custa nada tentar...

Soraia voltou para a casa pensando que a tal curandeira Vera não

seria ninguém menos daquela senhora que a encontrou na floresta há muito anos e a mesma que pediu uma de suas filhas em troca do favor. Fosse o

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que fosse Soraia concluiu que não poderia deixar Sara morrer, deste modo, ao cair da noite, pegou a menina dormente nos braços, e a colocando na velha carroça de seu marido a levou em surdina até a floresta Cinzenta.

Ali, meio sem saber para onde ia, Soraia foi caminhando pelas estranhas árvores negras em meio a escuridão, iluminada apenas pela cálida luz lunar, até que ouviu uma voz bem conhecida dizer vindo com o sopro do vento:

— Estava a sua espera! Então, a figura da curandeira Vera, uma senhora alta, de cabelos

brancos, semblante fechado e cheio de autoridade, saiu detrás de uma árvore.

— O que lhe trás de volta? – perguntou indolente a mulher. — Sei que é curandeira, vim lhe trazer minha filha Sara, ela tem uma

doença incurável, e você é minha última esperança... — Sabes que me deves um favor – disse Vera aproximando-se da

menina doente – o que ela tem? — Nem mesmo o médico sabe o que ela tem, disse apenas que ela

morrerá em três dias. — Não vai ser fácil achar uma cura sem eu saber do que se trata a

doença. — Se me prometer salva-la, custe o custar, podes ficar com ela como

se fosse sua filha. — Tem certeza? – perguntou com gravidade a curandeira. — Tenho – respondeu firmemente Soraia entregando sua filha Sara

nos braços daquela senhora e sem nenhuma palavra, como se nunca tivessem se conhecido, cada uma seguiu o seu rumo sem olhar pra trás.

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oraia voltou para a casa preocupada, depois de entregar sua filha a curandeira. Tentava inventar uma desculpa para dar ao seu marido com relação ao desaparecimento de Sara. Mas ele

não acreditou quando Soraia lhe disse que a pequena veio a falecer enquanto ele dormia. Confrontou a mulher e acabou arrancando dela a verdade, desesperado o homem nem se deu ao trabalho de recriminar a esposa, correu para fora da casa para pegar sua carroça e rumar para a floresta em busca de sua filha, mas no seu afã paterno, esquecendo-se de sua doença, seu corpo frágil veio a ruir e aquele que fora um dia um lenhador destemido e forte, faleceu antes mesmo de chegar a carroça.

No enterro, os vizinhos e conhecidos deram por falta de Sara, todos

perguntavam a Soraia e ela sempre respondia que a menina fora morar com parentes em outra cidade.

O abatimento com a morte de seu marido somado ao arrependimento em se desfazer de sua filha, fez de Soraia uma mulher amargurada e ressentida. A moça, outrora bonita e cobiçada, agora não passava de um trapo a ser evitado até mesmo no olhar. Quem sofria com os males de Soraia, era Samara, que na idade de sete anos, não compreendia a perda de sua irmã e nem de seu pai. Não entendia porque tanta tristeza em uma casa onde antes era repleta de risos e amor e também não entendeu quando, ao voltar da rua trazendo nas mãos uma rosa perfumada para alegrar sua mãe, deparou-se com ela pendurada por uma foca na figueira que ficava atrás de casa.

Todos aos seu redor diziam que ia ficar tudo bem, que eles iam cuidar dela, mas Samara não acreditava em ninguém, por isso resolveu fugir do lar para onde a levaram e foi procurar sua irmã Sara na Floresta Cinzenta.

Pela floresta a menina vagou chamando por sua irmãzinha a

encontrando sentada no chão brincando com gravetos. — Sara! – chamou Samara. Sua irmãzinha lhe sorriu e continuou

brincando. — O que aconteceu, porque não voltou para a casa? — Olha só o que eu fiz – disse Sara exibindo uma cruz – minha mãe

que ensinou. — Mamãe e papai morreram – disse a menina – Temos que voltar

para Vila Terezinha antes que anoiteça. — Vila Terezinha é um lugar muito ruim, cheio de pessoas más que

vão a igreja, todos precisam morrer. — Quem disse isso? — Minha mãe. — Mamãe nunca me disse isso.

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— Minha mãe é aquela mulher – falou Sara apontando o dedo para alguém atrás de Samara, a menina virou-se vendo a curandeira Vera. Ela tinha o rosto fechado, impaciente. Estendeu a mão e disse:

— Venha Sara! A menina levantou-se correndo, pegou sua cruz de gravetos e correu

para agarrar a mão de Vera. Como se Samara não existisse, as duas lhe deram as costas e foram embora caminhando entre as árvores. Samara correu atrás das duas, gritando: “Sara! Sara! Sara!”, mas seus gritos se perdiam no vazio.

Entristecida, solitária, ela sentou-se na raiz de uma árvore e chorou com a cabeça baixa. Chorava até que apareceu um sujeito esquisito, usando chapéu de abas caídas, terno maior que seu corpo, calças grandes e sandálias no pé. Ele não era velho, nem moço, não tinha barbas e seus olhos eram escondidos pela aba do chapéu. Estava com um violino grudado em seu pescoço, passando o arco sobre as cordas desafinadas, fazendo um barulho estridente e irritante. Vendo a mocinha chorando com a cabeça entre seus braços, perguntou:

— Por Deus, Nossa Senhora, porque a menina chora? Assustou-se Samara vendo aquela estranha figura e respondeu

contendo seu pranto: — Eu estou sozinha. — Sozinha? Não vês que agora tens a minha companhia? E me

digas, qual o nome de tão bonita menina? — Me chamo Samara – respondeu ela se divertindo com o jeito

extrovertido do estranho músico. — Samara é nome seu, saiba que Samara significa a protegida de

Deus, agora quero que saiba o nome meu, me chamo simplesmente de Amadeu.

— Oi Amadeu, porque fala assim tão engraçado? — Se engraçado for eu falar rimando, sou assim pois vivo cantando,

e rimas passo o tempo inventando para alegrar as pessoas que nessa floresta vão se lamentando. Agora me responda: porque estava chorando?

— Meu papai e minha mamãe morreram, minha irmã foi embora com uma velha ainda há pouco. Não sei pra onde ir e não tenho ninguém para cuidar de mim.

— Não chores mais minha criança, para tudo que existe neste mundo há esperança. E toda canção e música têm uma dança. Dançando a levarei para um lugar cheio de choupanas.

— E que lugar seria este senhor Amadeu? — Venha minha querida que o caminho é longo, e você sabe cantar,

eu suponho... — Sei sim, gosto muito de cantar.

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— Se é assim, melhor pra mim, você canta enquanto eu toco meu violim...

— Não seria violino senhor Amadeu? — Seria, seria – impacientou-se o músico abrindo os braços – mas as

vezes até eu preciso inventar palavra que rima para deixar minha prosa mais bonita. Agora cante menina que meu violino clama por melodia.

E assim, Samara foi cantando, pulando, seguindo o senhor Amadeu

que ia na frente tirando notas horríveis, desafinadas do seu violino, mas sua alegria e descontração, saltitando e pulando como se tirasse as minhas linda melodias de seu instrumento, alegrava tanto a Samara, quanto a ele próprio. E desse modo divertido, chegaram os dois no muro de arbustos que protegia o Vale das Bruxas.

— É aqui senhor Amadeu? – perguntou Samara curiosa olhando aquele muro alto, verde de arbusto.

— Do outro lado desse muro minha amiga Samara, conhecerás sua nova casa.

— E como vamos passar por esse muro, ele é muito alto. — Isso é mais fácil que caçar vaga-lume, basta um acorde para que

se abra uma porta no tapume – e acabando de dizer isso, empunhou seu violino tocando um lindo acorde e ao som das cordas, os arbustos começaram a se mexer abrindo uma passagem. Samara deslumbrou-se ao ver que atrás daquele alto muro, havia um lindo Vale, de planícies verdes, cheias de choupanas bonitas e bem construídas.

— Você vem? – perguntou Samara ao músico. — Não, ainda preciso compor uma canção. E só consigo criar em

minha solidão. — E quando vou te ver de novo senhor Amadeu? — Toda vez que de tristeza se encher o seu coração e seu pranto eu

ouvir na imensidão, virei lhe dar mais uma esperança de meu quinhão. Os dois se despediram com um abraço afetuoso, Samara atravessou a

passagem pelo muro de arbusto e Amadeu desapareceu pela floresta deixando no ar irritantes notas de seu desafinado violino.

No Vale das Bruxas, Samara foi adotada e criada pela irmandade das

Feiticeiras Brancas, um grupo de mulheres simpatizantes da wicca, que estudavam o uso das plantas como uso medicinal e aprendiam feitiços contra pessoas más e maldições. No Vale das Bruxas não era permitida a entrada de homens, e só podiam fazer parte da irmandade, mulheres virgens de corações puros. Ali elas viviam uma vida de pobreza, vivendo do básico, alimentando-se frugalmente, evitando a concupiscência e estudando alfarrábios antigos de bruxaria. Foi neste ambiente que Samara cresceu, cheio de conhecimento e bondade, enquanto que sua irmã gêmea Sara, foi

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criada por Vera, que fora expulsa da irmandade por querer usar os poderes da magia para obrigar as pessoas a praticarem o bem.

Toda mulher que entra na irmandade das Feiticeiras Brancas, recebem um feitiço que a impossibilita de usar seus poderes fora dos limites da Floresta Cinzenta, deste modo, Vera era incapaz de usar sua magia nos moradores de Vila Terezinha. O único modo de dominar as pessoas seria passar seus conhecimentos a uma mulher que não fosse da irmandade e que não tivesse ainda conhecimento do mundo para distinguir o que fosse certo ou errado. Por isso a menina Sara veio a ser conveniente. Ensinou-lhe desde pequena que a raça humana é desprezível, escravos da concupiscência, hipócritas, adoradores do dinheiro, mas que se curvam diante da Igreja por medo do inferno. E quando a menina chegou à idade de treze anos, Vera começou a lhe ensinar todos os tipos de sortilégio, até mesmo a difícil e secreta magia da Transfiguração do Corpo, que permitia a pessoa se transformar em qualquer espécie de animal num curto período de tempo.

Vera passava todos seus conhecimentos a Sara, para que ela um dia pudesse entrar em Vila Terezinha e fazer toda sua população se submeter a uma nova ordem de vida, sem maldades, hipocrisia e devassidão. Mas ela não podia adivinhar que no coração da menina havia um abismo de escuridão e maldade que nem mesmo ela podia mensurar...

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amara foi colocada em um tipo de algemas, feita de madeira, que prendia seu pescoço e mãos na mesma tábua, que estava fixada em cima de um palanque na entrada da cidade, de forma

que qualquer viajante que se aproximasse de Vila Terezinha, a primeira coisa que se aperceberia seria a bruxa na tortura da berlinda. Samara ficou ali presa numa desconfortável posição de joelhos, embaixo do sol impiedoso que batia de frente ao seu rosto, exposta para a vergonha e humilhação. E como era de costume em Vila Terezinha, os populares gostavam de atirar tomates podres na cabeça das bruxas, e não foi diferente no caso de Samara. Ela teve que manter a cabeça baixa enquanto recebia uma chuva de tomates, e com o forte calor que fazia, o cheiro podre ficava insuportável até mesmo para o povo que pouco a pouco foi se dispersando até não sobrar ninguém. Sozinha, com sede, vendo tudo girar ao seu redor por fraqueza, Samara tentava segurar seu pranto. Um urubu desceu rodopiando dos céus, como se sentisse o cheiro de carniça para devorar. Pousou na madeira e bateu com seu bico asqueroso na cabeça da prisioneira. Depois o pássaro transfigurou-se no corpo de Sara.

— Viu só que eles fizeram Samara? Mataram todas da irmandade. Mataram as feiticeiras brancas. Destruíram o seu lar e agora vão te queimar viva na fogueira – falava a moça acariciando os cabelos de sua irmã – pobre Samara, ainda acredita na salvação destes pobres seres? Eles não passam de animais, precisam morrer, mas antes, precisam sofrer. Ajude-me a espalhar o sofrimento, a dor, a agonia, ajude-me a transformar esta vila imunda no verdadeiro inferno. Junte-se a mim irmã.

— Porque você odeia tanto os homens? – perguntou Samara com a voz fragilizada.

— Pra você é fácil fazer essa pergunta, já que sua mãe não lhe abandonou no meio da floresta por causa da pobreza.

— Nossa mãe não lhe abandonou... foi retrucando Samara para ira de Sara que vociferou:

— Nossa não! Sua mãe! Minha única mãe foi Vera que me encontrou jogada no meio da floresta, ao relento, ela quem me curou.

— E que bela forma de agradecer alguém que salvou sua vida a mandando para a fogueira.

— A velha achava que ainda havia salvação para os homens, ainda havia fraqueza em seu coração, não queria me permitir fazer essa raça queimar viva na fogueira como fazem conosco. Quis que ela sentisse na pele do que são feito os seres humanos. Não há compaixão, não há bondade, apenas iniqüidades, principalmente os da igreja que deixam o povo na escuridão para desfrutem de sua servidão e de seus dízimos. É preciso fazer esse povo enxergar a verdadeira luz da estrela da manhã. Junte-se a mim irmã e salvarei de sua morte certa.

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— Você nem sabe o que está falando Sara – respondeu a irmã com um laivo de riso no rosto – você está louca, ainda vai se arrepender de tudo o que está fazendo de mal.

— Desculpe se eu não presenciar a sua morte lenta e dolorosa mais tarde. Vou estar muito ocupada fazendo um bonequinho de vodu que irá me dar plenos poderes sobre os moradores de Vila Terezinha, que ironia, a única pessoa que poderia salvar estes pobres idiotas do sofrimento, é a mesma que será queimada por eles. Fabuloso! – concluiu Sara se transformando outra vez em urubu e alçando vôo.

Samara baixou sua cabeça, cheia de tristeza e sem nenhuma esperança. Lembrou-se de Amadeu, querendo que ele aparecesse tocando seu violino desafinado, dizendo suas rimas em prosa. Mas ele não apareceu e o sol já se achava a descansar no horizonte. Sabia que a meia noite seria amarrada em um tronco, e sobre seus pés acederiam uma fogueira. Divertir-se-iam vendo seu corpo ser devorado pelas chamas, sem saberem que estariam selando um futuro de sofrimento e dor. Neste comenos escutou o trotar de um cavalo aproximando-se. Não conseguia ver quem era, até que viu surgir a sua frente um moço que lhe era estranho, tinha feições femininas e cabelos longos até os ombros. Trazia nas costas uma espingarda, usava roupas de caçador, botas cano largo, havia bainha de facão em sua cintura. Apeou do cavalo e subiu no palanque trazendo nos olhos um brilho de ternura e compaixão.

— Mais uma vez Sara serei seu salvador – riu Jorge Henrique mostrando os dentes enquanto desembainhava seu facão. Samara que nunca tinha visto aquele homem, surpreendeu-se ao vê-lo arrebentar com muito custo o forte cadeado de ferro que a prendia nas algemas. Quando terminou sua empresa, Jorge Henrique estava ensopado de suor, pois não era dado a serviços braçais.

— Venha Sara, vamos fugir antes que dêem por sua falta – disse ajudando a moça descer do palanque. Subiu no cavalo a colocando a sua frente, bateu esporas segurando firme nas rédeas e saiu a galope fugindo com sua amada para a Floresta Cinzenta.

Quando já estavam seguros em meio as grandes árvores envoltas pela

neblina, Jorge Henrique parou seu cavalo e apeou-se ajudando a Samara a descer, como a moça estava muito fraca, a fez sentar-se na raiz de uma árvore.

— O que aconteceu Sara? Porque padre Rodolfo lhe acusou de bruxaria quando tu não passas de uma estrela de tão linda e formosa – disse Jorge Henrique pegando nas delicadas mãozinhas de sua amada. Samara que até o momento não entendia o porquê de ele a chamar de Sara, decidiu por bem deixá-lo em sua fantasia, desconfiando de que sua irmã já havia usado aquele belo moço para alguma de suas trapaças.

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— Me denunciaram injustamente, fui vítima de inveja das outras mulheres que me viam como ameaça para seus maridos, mal sabem elas que sou apenas tua – disse Samara agarrando sutilmente nos cabelos do inocente Jorge Henrique.

Na irmandade das Feiticeiras Brancas, Samara aprendeu como se defender das más intenções de rapazes mal intencionados. Juntando a saliva em baixo da língua, a feiticeira apenas teria que dizer as palavras “oscula et dormi” para que a vítima caísse em um sono profundo após o beijo. Ela tencionava usar essa magia em Jorge Henrique para fazê-lo dormir e voltar ao Vale das Bruxas para achar o livro onde continha o feitiço para aprisionar Sara para sempre e evitar que ela destruísse Vila Terezinha. Porém, para que o feitiço desse certo, a vítima teria que ter a iniciativa do beijo.

— Meu coração bate mais forte quando te vejo – forçou Samara aproximando seu rosto ao dele, fechou os olhos e fez beicinho já juntando a saliva, esperando que Jorge Henrique avançasse o sinal e desse os últimos passos, mas ele permaneceu imóvel olhando para os lábios de sua adorada.

— Seus lábios são tão bonitos Sara, vermelhos cor de rosas, parecem macios feito pão amanhecido e carnudos feito coxa de galinha – poetizou o moço não se atrevendo ao beijo. Samara abriu os olhos ouvindo aquelas asneiras em tom de romance, e decidiu suplicar:

— Beije-me logo rapaz! — Tá bom – falou Jorge Henrique fechando os olhinhos e

aproximando seus beiços ao dela. Quando os lábios estavam quase se tocando, Jorge Henrique recuou dizendo:

— Desculpe Sara mas não posso lhe beijar. — Por que não? – exasperou-se a menina. — Eu nem pedi sua mão em namoro para seu pai – ia dizendo Jorge

Henrique de cabeça baixa, envergonhado, raspando o pé pela terra – Nem conheço sua família. A gente nem se conhece direito. Não é certo a gente sair por aí se beijando.

— Mas você salvou minha vida, e eu te amo tanto. Beije-me, por favor – ajoelhou-se Samara abrindo os braços – beije-me logo.

— É que eu tenho vergonha – ruborizou-se Jorge Henrique dando as costas para a moçinha.

Não podendo contar com a colaboração de Jorge Henrique, a moça decidiu fazê-lo dormir do jeito mais fácil, pegou um pesado galho do chão, levantou-se e aproveitando que ele estava de costas pra ela, ergueu o galho para dar uma porretada na cabeça de Jorge Henrique, mas no momento em que ia estraçalhar o pau com toda força na cabeça daquele inocente, ouviu trotes de cavalos aproximando-se, tendo a certeza de que seriam os guardas da inquisição atrás dela, e como não sabia andar a cavalo, iria precisar de Jorge Henrique para fugir.

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— Os guardas estão vindo atrás de nós – desesperou-se ela. Jorge Henrique virando-se vendo ela com um pesado galho na mão, perguntou:

— Pra que está segurando este galho? — Para que tu não tropeces nele – disse ela atirando o galho para

longe – agora vamos. Os dois subiram no cavalo e partiram a galope antes da chegada dos

guardas da inquisição, que vinham no rastro da bruxa fugitiva.

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ando murros na parede de seu escritório, Padre Rodolfo não conseguia engolir a notícia que seu pupilo Daniel lhe dera ainda a pouco. Sem meias palavras o seminarista contou que

a bruxa Sara havia fugido, aquela mesma que havia arrancado seus culhões. — Mas como essa traiçoeira conseguiu fugir sem ser vista? Como?

Como? Como? – perguntava e reperguntava de si para si, quebrando tudo que encontrava pela frente. Daniel encolhia-se em seu medo, temendo que a ira de seu mestre acabasse sobrando pra ele.

— Ela deve ter usado algum feitiço para escapar das algemas – sugeriu o seminarista, fazendo com que o sacerdote viesse até ele bufando de raiva e o pegasse pelos colarinhos o erguendo contra a parede.

— Está zombando nas minhas fuças? – encolerizou-se padre Rodolfo – por acaso deu de acreditar em contos de fadas? Esse negócio de bruxaria, feitiços e magias não existe, tudo não passa de subterfúgios para amedrontarmos os cristãos e políticos para que cedam as vontades da igreja.

O padre soltou o jovem seminarista e caminhando de um lado para o outro, respirava fundo enquanto pensava no que fazer.

— É bem capaz que aquele rapaz, me esqueci o nome, aquele que a encontrou desmaiada na Floresta Cinzenta e a trouxe para o médico daqui, tenha se metido a besta de tirá-la da berlinda. Sei bem que um homem apaixonado é capaz da maior burrice pela amada.

— O nome dele é Jorge Henrique Colina senhor – lembrou-lhe Daniel satisfeito em ser útil.

— Mande o capitão dá uma busca na casa desse Jorge Henrique e ver lá o que se descobre – pediu padre Rodolfo. Em menos de uma hora, Daniel voltou ao escritório paroquial acompanhado de Moisés e Judite Colina, pais de Jorge Henrique. Os dois ajoelharam-se aos pés do padre pedindo bênçãos que o clérigo fez questão de negar.

— Levantam-se e conte logo a verdade, vosso filho ajudou Sara fugir?

— Bem senhor padre, não posso dedurar meu filho, porque isso seria uma grave falta que seria punida por Deus – foi falando Moisés em seu linguajar xucro – o que se deu foi que nosso filho saiu de casa com meu cavalo e levou muita comida no alforje, diria que levou comida para passar uma semana, além de uma garrafa de vinho e cantil de água.

— É tudo verdade o que meu marido disse – complementou Judite – ele não falou nada em salvar aquela moça loira de quem tanto falava que ia se casar um dia. Nem sei porque ele levou um facão grande e afiado na bainha, ele não é de briga.

— Ele deve ter ido caçar e esqueceu de nos avisar – disse em tom descontraído Moisés, dando uma piscada para o padre – ele deve ter ido caçar na Floresta Cinzenta.

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Padre Rodolfo que escutava tudo com muita impaciência, de tão nervoso não conseguiu entender o que os pais de Jorge Henrique realmente queriam dizer com toda aquela falsidade. Chamou os guardas e mandou levar o casal para o Castelo Redentor para que colaborassem na investigação.

— Quem sabe alguns dias na masmorra o façam desembuchar – sentenciou o padre para desespero de Moisés e Judite.

— Mas o senhor não entendeu – ia gritando Moisés enquanto os guardas lhe arrastavam – ele foi caçar na Floresta Cinzenta, ouviu bem, Floresta Cinzenta.

Depois que os guardas levaram aquele casal embora, padre Moisés refletiu com o seminarista Daniel:

— Pode ser mesmo que Sara tenha fugido para a Floresta Cinzenta, vamos vasculhar aquela floresta e também o Vale das Bruxas.

Feito de espiga de milho, gravetos e grama, Sara fez um bonequinho

de vodu chamado padre Rodolfo. E como todo vodu só funciona com algum objeto particular da pessoa a ser amaldiçoada, a feiticeira retirou da sua boca a mecha de cabelos que havia arrancado do padre quanto este a beijou.

Depois de feito, colocou o boneco num pequeno altar, diante deste altar estava um pedestal com uma vela vermelha. Assoprou três vezes no bonceco e proferiu em latim: * “tibi animam tuam in vitam et ad me pater Rodolfo”.

Neste momento a vela se acendeu sozinha. Segundo as leis da feitiçaria, o domínio de Sara sobre padre Rodolforo duraria até o fim da cera ou se acaso ela fosse apagada por alguém.

Aproximando-se do bonequinho, ela sussurrou: — Está me ouvindo padre? Sou eu, Sara. Irás fazer tudo o que eu

ordenar. Você está sob meu controle, a partir de agora serei sua consciência, seu deus, sua palavra. Escute com atenção minha ordem. Castigue a todos de Vila Terezinha, crianças, homens, mulheres e anciões, ricos e pobres, sãos ou doentes, pois todos se configuram como hereges e merecem punição, merecem encontrar a redenção através do sofrimento da carne. Joguem-nos nas masmorras, castiguem-nos feito animais, pois somente assim serão salvos! É o que manda seu deus.

Com a escuridão e neblina pela frente, sem meios de continuar a fuga

pela floresta, Jorge Henrique parou seu cavalo ao pé de uma árvore e desceu ajudando Samara.

— Vamos passar a noite aqui Sara, não correremos perigo, os guardas já devem ter voltado para Vila Terezinha. Quando amanhecer o dia, a levarei para onde lhe for mais favorável e seguro.

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— Mais uma vez obrigada – respondeu a moça preocupada, pois ali em meio a Floresta Cinzenta, sua irmã era mais forte do que ela. Tinha que chegar o quanto antes no Vale das Bruxas, onde Sara não poderia usar seus poderes além dos muros de arbustos. Esperaria Jorge Henrique adormecer e sairia à surdina.

— Deite-se aqui minha querida – falou o bom rapaz tirando seu casaco e o estendendo no chão – assim não sujarás mais ainda esse vestido sujo que usas.

— Ainda bem que está uma noite amena – sorriu Samara deitando-se sobre o casaco. Jorge Henrique pegou no alforje dois pedaços de pão e algumas fatias de queijo.

— Não é muito, mas dá para encher o bucho – riu ele entregando a comida para sua amiga, que devido a fome, devorou tudo com sagacidade. Depois Jorge Henrique lhe deu um pouco de vinho para ajudar na digestão. Quando ela se deu por satisfeita, o rapaz veio se deitar ao lado dela no chão de terra.

— Nunca vi tanta beleza em minha vida Sara, me apaixonei por você desde o primeiro momento em que a vi.

— Eu também Jorge Henrique, agora feche os olhos e durma. — Jamais, ficarei de sentinela caso venha algum guarda traiçoeiro

nos perseguir no breu da noite. Samara soltou um longo suspiro de enfado. — Se é assim dormirei mais tranqüila – resignou-se ela, até

apreciando a doçura e o carinho em que era tratada por aquele belo rapaz e que além do mais, havia lhe salvo a vida. Mas após alguns minutos silenciosos, Samara ouviu um baixo ronco, virando-se e abrindo os olhos, viu Jorge Henrique dormindo despreocupadamente.

— Meu herói! – desdenhou levantando-se cuidadosa. Saiu de fininho, e seguiu para o Vale das Bruxas onde tencionava achar o Livro de Todas Maldições, alfarrábio que continha a quebra de encantos, feitiços e outros diabos a mais que ajudariam Samara a prender sua irmã gêmea e impedir seus planos maléficos contra o povo de Vila Terezinha, que naquela altura, já estava condenado pelo Padre Rodolfo.

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o amanhecer de mais um dia, Sara despertou no chão de terra. Estava deitada próximo ao muro de arbustos, aonde chegou e não conseguiu passar diante de sua fraqueza e

cansaço. Temerosa do que encontraria no seu antigo lar, a moça transpassou o muro de arbusto com grande agonia, deparando-se com o que sobrou do que um dia fora um lindo vale, o Vale das Bruxas. Aproximando-se das choupanas queimadas, tombadas ao chão, ela viu as cinzas de suas irmãs espalhadas por todo o lugar. Ajoelhou-se pegando com as mãos as cinzas misturadas a terra, e sozinha naquele cenário funesto, cheirando a carne queimada, Samara chorou. Deixou que as lágrimas molhassem seu rosto e vestido. Chorava até que ouviu um som que há muito tempo não escutava. Era o som estridente do desafinado violino de Amadeu. Virando-se para trás, ela viu o músico sentado numa rocha, usando as mesmas calças grandes, terno maior que o corpo, chapéu de abas caídas escondendo seus olhos morteiros. Em nada mudara desde quando o encontrou há dez anos continuando com as mesmas feições e roupas. Ele parou de arranhar as cordas de seu violino e veio cabisbaixo até Samara.

— Há quanto tempo Samara! Bem se vê que queimaram sua casa – disse Amadeu olhando para aquele Vale desolado.

— Porque eles fizeram isso Amadeu? Porque mataram minhas irmãs sendo que elas nada faziam de mal, só queriam praticar o bem. É justo que aqueles que vêem em nome do Senhor destruam e matem em nome Dele?

— O homem com uma faca de dois gumes se parece, realiza o bem e o mal quando lhe concerne, dentro da igreja ajoelha-se em prece, pede o que lhe falta e depois de atendido, desaparece. E fora da igreja pode ser capaz de matar por sua messe, com dinheiro e ganância ele se enriquece.

— Minha irmã está certa, eles merecem sofrer, comer o pão que o diabo amassou. Não existe salvação para o homem. O mais certo a fazer é deixá-los a custa do destino.

— Se julgas que ao homem tu podes julgar, se julgas errada pois vou te falar: que só Deus pode o homem vir a sentenciar. Cabe as pessoas de bem o mal reparar, estradas endireitar e cristãos cegos pela igreja, salvar – e acabando essas rimas de rimar, Amadeu tirou um arpejo triste em ré menor bem afinado de seu violino – pois em verdade em verdade eu vos digo, que não cabe a nós separar o joio do trigo, cabe ao dono da colheita realizar tal serviço, a nós resta apenas continuar o cultivo.

— Esta me pedindo para salvar Vila Terezinha e esquecer a maldade de seus moradores?

— Em nada lhe posso pedir, tu já é grandinha para sozinha decidir, mas uma coisa quero sugerir... Que tu venha a seu coração seguir.

E sem mais nenhuma rima, aquele músico desafinando e não menos destrambelhado, começou a se afastar tirando notas desafinadas e irritante

A

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de seu violino. Samara lhe observou até que ele desaparecesse em meio as grandes árvores.

Logo que acordou, se espreguiçando todo, o bom Jorge Henrique deu

pela falta de sua amada Sara. Primeiro pensou que ela tivesse se escondido para fazer suas necessidades, mas com a demora, tirou essa idéia da cabeça. Concluiu que os guardas traiçoeiros vieram na calada da noite e a raptaram-na para levá-la de volta a Vila Terezinha. Em um piscar de olhos subiu ao seu cavalo com facão na bainha e espingarda nas costas, porém, parou ao refletir que se os guardas tivessem vindo, com toda certeza eles não o deixariam livre e o levariam junto com Sara. Empertigou-se em cima do cavalo, agora mais calmo em seus pensamentos e sem mais nada pensar, decidiu seguir floresta adentro, pois um dia Sara lhe disse que sua casa ficava além da Floresta Cinzenta e achou por bem ir averiguar se ela havia concluiu sua viagem de volta ao seu lar.

Ao passo lento do cavalo, Jorge Henrique atravessava as grandes e imponentes árvores negras, cobertas por uma densa neblina trazendo a memória cada gesto gracioso de sua amada Sara. Ia assim tranquilamente quando deparou-se com um velha choupana construída de pedras. As janelas e a porta estavam abertas, e de dentro, Jorge Henrique podia ver a luz amarelada de uma chama iluminando o interior daquela casinha. Apesar de lhe aparecer abandonada, Jorge Henrique desceu cavalo para ver se morava alguém ali para lhe dar informação sobre Sara. Diante da porta aberta, bateu palmas e chamou. Ninguém respondeu, resolveu entrar por conta própria. No limiar da porta viu no chão de madeira o desenho de um pentagrama tendo no centro a figura de um bode, também chamou sua atenção um pequeno altar de pedras onde em cima havia um bonequinho de espiga de milho preso com fios de cabelo. Em frente ao altar estava disposto um pedestal com uma vela vermelha da onde provinha a iluminação amarelada daquela choupana. Jorge Henrique percebeu que mais no fundo da casinha tinha uma porta aberta que dava para outro cômodo, foi até lá ver se encontrava alguém. Caminhou até lá tomando cuidado para não pisar em cima do desenho do pentagrama o qual achou muito bonito. Chegando à portinha, transpassou a soleira vendo uma moça loira encostada de frente ao canto da parede. Ela usava um longo vestido preto que Jorge Henrique logo distinguiu ser o vestido que sua mãe dera a Sara. Feliz por reencontrá-la, ele foi até ela e pegando no seu ombro perguntou:

— O que está fazendo Sara? A moça se virou pra ele mostrando seu rosto pálido e suado, cheio de

veias arroxeadas e duas bolas brancas esbulhadas estavam no lugar de seus olhos azuis.

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Jorge Henrique caiu no chão com o susto em ver Sara daquela forma. Ela fechou os olhos e ao abri-los, suas feições angelicais e seus olhos azuis voltaram ao normal.

— Você? O que fazes aqui? – perguntou surpreendida. — Eu vim procurá-la, eu acordei e não te vi, queria saber onde foi

que você se meteu – respondeu um Jorge Henrique afobado e assustado. — Como assim acordou e não me viu? — Não se lembra que ontem a livrei da berlinda a salvando de sua

morte certa na fogueira. Fugimos para a Floresta Cinzenta onde nós resolvemos passar a noite para continuarmos a fuga ao amanhecer, e hoje cedo quando acordei não te vi... – explicou o rapaz recuperando o fôlego depois da rápida explicação e depois perguntou – Mas o que você está fazendo nesta choupana que mais parece uma cabana de bruxa e porque seus olhos estavam brancos?

Compreendo a situação rapidamente, Sara se deu conta que Jorge Henrique havia libertado Samara ajudando-a a fugir para a Floresta Cinzenta e também que aquele mancebo era ingênuo ao ponto de não perceber a diferença entra ela e sua irmã.

— Preciso lhe contar uma verdade querido Jorge Henrique – foi dizendo a bruxa arquitetando uma sofisma – eu tenho uma irmã gêmea chamada Samara. Você não me libertou da berlinda e tão pouco me ajudou a fugir. Aquela que libertou em Santa Terezinha nada mais é do que minha irmã tentando se passar por mim.

— Não pode ser – resmungou o moço confuso – uma irmã gêmea? Mas não notei nenhuma diferença.

— Vá por mim, Samara é uma pessoa terrível, enganadora, ínfima, e pra minha vergonha, ela também é uma bruxa dessas que jogam maldições em cima de pessoas de bem.

— Olha só como estou todo arrepiadinho – disse Jorge Henrique mostrando os pêlos eriçados de seu braço – e porque não me disse isso quando nos conhecemos?

— Tive medo de sua reação meu querido – respondeu Sara pegando nas mãos dele – naquele dia em que me encontrastes desacordada na floresta, o que acontecera foi que fui vítima de minha invejosa irmã. Sabe aquele Vale das Bruxas o qual lhe mostrei o caminho?

Jorge Henrique meneou a cabeça ainda atônito pela revelação. — Pois era ali que Samara morava em companhia de suas pérfidas

colegas de bruxaria. Pelo que me dizes, minha irmã sobreviveu a queima das bruxas e você ainda a libertou ajudando-lhe a fugir para que ela continues em seu caminho de maldades contra os homens.

— Mas eu não sabia – angustiou-se o rapaz – ela me enganou em não me dizer a verdade, ou o seu verdadeiro nome. Minha alma não poderá

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descansar enquanto tiver em minha consciência o ato que fiz. Como fui idiota em libertar tal desgraça para nossa raça?

Quase se entregando em lágrimas, Jorge Henrique abraçou Sara que o consolou dizendo:

— Pois há uma saída para seu lamento, se quiserdes dormir o sono dos justos, poderei ajudá-lo a tirar essa culpa das costas e lhe dar a redenção.

— Então me digas de uma vez Sara, o que tenho que fazer? — Terás que matá-la por mim – respondeu seriamente a moça. — Matá-la? É pra tanto assim? — Infelizmente minha irmã não me deixa outra saída, eu mesmo a

mataria senão fossemos feita do mesmo sangue. Farás isso por mim? — Não sei – recuou Jorge Henrique lhe dando as costas – só Deus

tem o poder de tirar a vida de uma pessoa. — Entendo Jorge Henrique, tem suas próprias leis e segue suas

regras, é nobre da sua parte em se recusar a matar uma pessoa, mesmo que essa pessoa venha em breve me matar.

— O que dizes? – assombrou-se o mancebo. — Minha irmã sempre teve o desejo de me matar e sei que o

conseguirás em pouco tempo, ela espera apenas pela ocasião certa, percebestes nesta choupana o desenho no chão e o altar de pedra, reparou na vela vermelha e no bonequinho?

— Sim, em tudo. — Pois enquanto aquela chama estiver vermelha e no chão houver

aquele pentagrama, eu estarei a salva de Samara, mas sei que ela encontrarás um jeito de me atacar. E se você não matá-la, eu morrerei. Se me amas verdadeiramente, se me amas de coração, prove seu amor e mate Samara por mim.

— Sim minha querida – acedeu Jorge Henrique enfeitiçado por aqueles azuis de olhos – eu a amo, e provarei que lhe amo mais do que tudo, mais do que meu Deus... Eu matarei sua irmã gêmea.

— E eu te amarei até que minha alma exista neste mundo – respondeu Sara beijando o rosto de Jorge Henrique que se corou todo em timidez.

Sara deu a ele um punhal com manchas de sangue e enferrujado, com

a lâmina cega e a ponta quebrada. — Quer que eu a mate com isso aqui? – perguntou Jorge Henrique

observando a péssima qualidade da arma em sua mão – meu facão corta até pensamento e a minha espingarda atira até nas estrelas, porque tenho que usar este cacareco?

— Pode ser um punhal de má apresentação, mas não se engane com as aparência meu querido – respondeu Sara arrancando um fio de cabelo

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preto da cabeça de Jorge Henrique e pegando o punhal de sua mão – este punhal está lavado com o sangue de bruxas, foi batizado em água benta.

E acabando por dizer estas palavras, Sara deixou cair o fio de cabelo acima da lâmina do punhal fazendo-o partir em dois. Jorge Henrique até esfregou os olhos diante daquela demonstração.

— Só podes matar Samara com este punhal – continuou a moça – pode ferir ela em qualquer parte do porto, basta um arranhão, um pequeno corte, para que ela venha a morrer, pois o corte feito com este punhal não cicatriza e faz com que a vítima morra de tanto perder sangue.

— Fantástico – exclamou Jorge Henrique pegando o punhal de volta. — E tem mais uma coisa meu querido salvador – falou Sara dengosa

colando seus seios ao peito do mancebo – quero que me tragas o coração de minha irmã.

— E devo perguntar porque? – perguntou ele tentando manter a guarda baixa lá embaixo.

—Quero apenas uma lembrança. Pode me fazer mais este favorzinho?

— Seu pedido é uma ordem – aceitou o rapaz coagido sexualmente. Montando em seu cavalo, armado com o punhal mágico, com o

pensamento firme em seu propósito, Jorge Henrique deu de esporas saindo em galope para caçar Samara, que de antemão já sabia que ela deveria estar no Vale das Bruxas.

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Livro de Todas As Maldições era um pequeno alfarrábio de folhas amareladas e capa vermelha. Samara não teve muito trabalho em achá-lo depois de cavar com as próprias mãos

por três horas o chão da antiga capela onde as bruxas se reuniam. Com as unhas cheias de terra ela abriu o livro no índice procurando pela magia para quebrar vodu. E segundo o manual, quebrar o feitiço seria preciso apenas apagar a vela que marcava o tempo em que a pessoa teria poder sobre o bonequinho. Meio irritada, não menos que impaciente, Samara atirou livro pra longe dizendo alguns turpilóquios. Zangou-se porque não fazia idéia da onde tal vela estaria acesa.

De longe ela viu Jorge Henrique aproximando-se em seu cavalo branco. Não ficou muito alegre em revê-lo mesmo sendo ele uma boa companhia, no mais ele poderia ajudá-la a encontrar a vela em algum lugar da Floresta Cinzenta. Mal sabia Samara que o mancebo vinha para matá-la com o punhal mágico.

A cada metro que ele aproximava-se da jovem moça, percebendo a semelhança dela com Sara, Jorge Henrique sentia o frio subir por sua barriga e suas mãos tremerem de frio. Pensava se teria coragem de enfiar um punhal no peito de tão bela criatura de Deus, Samara era tão linda quanto Sara, apesar de ser uma bruxa.

Jorge Henrique parou a uma distância razoável de Samara, apeou do cavalo e veio de encontro a ela disfarçando normalidade. A moça ficou esperando ele se aproximar, tendo a estranha sensação de segurança e conforto agora que estava na companhia dele e de repente se deu conta que nem ao menos sabia o nome do rapaz.

— Olá Sara – cumprimento Jorge Henrique balançando a cabeça. — Oi. — Eu procurei você por toda a parte... – foi dizendo ele ao mesmo

tempo em que enxugava o suor de sua testa com as costas da mão – porque não me esperou acordar?

— Não queria que se desse mal por minha causa, já foi o bastante ter me salvo, já estou livre, pode voltar para sua casa.

O rapaz tirou da cintura o punhal enfeitiçado querendo que tudo acabasse logo. Samara recuou para trás e nisso caiu ao perder o passo numa pedra.

— Você me enganou – acusou Jorge Henrique tentando ficar bravo para matar a moça – você não passa de uma bruxa asquerosa que eu livrei da morte. Seu nome não é Sara, aproveitou-se da minha paixão por sua irmã para me usar para fugir. Não vou permitir que faça mal a ninguém, muito menos a sua irmã, cuja beleza e doçura entreguei meu coração. Vou te matar – e nisso Jorge Henrique veio pra cima da moçinha indefesa com o punhal erguido, ameaçador, fatal. Samara que se encontrava muito fraca, pálida, desnutrida, não conseguia e nem podia reunir energia para fugir ou

O

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se defender. Tinha que fazer Jorge Henrique acreditar que ela era bruxa boa e que sua irmã era a má. Mas não havia modo, não tinha argumentos. O mancebo ajoelhou-se sobre ela erguendo o punhal para o golpe fatal, sentindo o fim, Samara fechou os olhos desejando que seu sofrimento acabasse de uma vez por toda. A vida lhe fora muito injusta, com muitas perdas e poucas alegrias, que sentido tinha em continuar vivendo naquele mundo dominado por pessoas cegas na fé, que usavam do poder religioso para julgar e punir inocentes.

Jorge Henrique estava pronto para descer seu braço com toda força, cravando o punhal no peito magro de Samara, quando algo o fez parar abruptamente... Jorge Henrique viu uma lágrima escorrendo do olho fechado de Samara, uma triste e solitária lágrima. Ele se perguntou como uma bruxa tão má poderia se deixar abater facilmente? E naquela lágrima enxergou bondade em Samara, e concluiu que fora enganado o tempo todo por Sara, que na verdade, ela era a bruxa má, pois nenhuma pessoa pediria a morte da irmã, da própria irmã, mesmo se ela fosse o diabo em pessoa.

— Você não é uma bruxa má? – perguntou o mancebo recuando de perto de Samara que abria os olhos sem entender a situação.

— Eu sou uma bruxa sim, mas não igual a minha irmã Sara – respondeu Samara ainda assustada olhando para o punhal.

— Sara... – riu Jorge Henrique guardando o punhal e sentando-se em uma pedra – porque sua irmã é má?

Samara contou toda a sua história, a história verdadeira para comoção do rapaz que enfim compreendeu o desenho do pentagrama na choupana onde encontrou Sara. Contou a Samara a vela vermelha e o bonequinho em cima do altar.

— Tem certeza que você viu uma vela vermelha diante de um altar com um bonequinho? – surpreendeu-se Samara.

— Sim, e tinha um pentagrama desenhado no chão com a figura de um bode.

— De um bode? — É, parecia a cara de um bode com dois chifres, não sei o que é. — Pois eu sei – refletiu Samara com seus botões e logo depois falou

– vou precisar muito de sua ajuda Jorge Henrique. E logo em seguida, Samara explicou o seu plano ao ingênuo rapaz.

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m sua choupana, Sara passava o tempo encostada de pé ao canto da parede de seu pequeno quarto. Seus olhos ficavam brancos toda vez que entrava em transe para ver o que

acontecia em Vila Terezinha. Por ser sadista, a bruxa gostava de ver o sofrimento das pessoas, sentia prazer ao ver o Castelo Redentor abarrotado de gente de toda espécie e raça, se inflando em gritos desesperadores das torturas extenuantes da inquisição, gostava de ver as fogueiras pelas ruas onde os guardas jogavam ciganos e outros hereges.

Ela estava imersa nesse transe torturante quando sentiu a presença de alguém entrando em sua choupana, saiu de seu quarto vendo Jorge Henrique com um embrulho na mão.

— Conseguiu? – perguntou imaginando ser o coração de sua irmã naquele pacote.

— Deu um pouco de trabalho, mas no fim, eu dei uma lição em sua irmã – respondeu o rapaz.

— E presumo que o que trazes aí na mão seria o que eu lhe pedi como lembrança.

— Sim, tirei o coração dela como me pediu. Agora sabe que eu lhe amo de verdade.

— Nunca duvidei disso, agora pode me dar o embrulho – pediu a bruxa estendo a mão. O rapaz entregou de bom grado o pacote e foi para perto da vela vermelha enquanto prestava atenção no pentagrama no chão. Sara abriu rapidamente o pacote descobrindo um coração de veado. Ela ficou apalpando desconfiada aquele pedaço de carne, deu uma mordida, mastigou, ruminou e tornou a mastigar de novo para então notar através de seu paladar, que aquele não era um coração humano. Virou-se para Jorge Henrique para perguntar-lhe o que tinha feito e o viu ao lado da vela vermelha já apagada.

— O que você fez? – perguntou Sara sentindo o sangue ferver nas veias.

— Chega Sara, seus dias de bruxaria acabam aqui – sentenciou o rapaz sacando o punhal mágico de sua bainha. Decidiu naquele instante não seguir com o plano de Samara, e acabar ele próprio com Sara, para mostrar a sua nova amada que era homem bravo e corajoso. E com laivo de ironia e com ar de quem está por cima, o mancebo continuou:

— Me achou com cara de tonto e imbecil, pensou que podia me enganar, fazer o serviço sujo pra você... Desculpe docinho, mas vai ter que fazer melhor da próxima vez – e acabando de pronunciar tais palavras se lançou contra o corpo de Sara cravando-lhe o punhal no meio dos seios, então se afastou, prevendo que ela cairia dura, agonizante ao chão, porém, a moça continuou em pé, com o olhar fixo no punhal ficado em seu peito. Como se nada tivesse acontecido, ela tirou o punhal sem derramar uma gota de sangue.

E

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— Mas como? – assombrou-se Jorge Henrique. Sara apontou para o pentagrama abaixo de seus pés e falou:

— Este é o meu talismã, o diabo me protege – respondeu ela escancarando os dentes. Desfez-se de seu vestido, ficando completamente nua, abriu os braços, exibindo a ferida do corte feito pelo punhal se fechando como mágica.

— Eu sou imortal – exultou-se a bruxa e depois abrindo um corte em seu pulso, bebeu do próprio sangue para espanto de Jorge Henrique que não prestava atenção em nada do que ela falava por ver uma moça nua a sua frente. Achegando-se perto dele, Sara o abraçou e lhe disse ao pé do ouvido:

— Até que eu gostava de você – e aproveitando-se da alienação do rapaz, fincou-lhe o punhal na barriga e o tirou bruscamente fazendo Jorge Henrique cair de dor. Enquanto ele se contorcia de dor, Sara saiu da choupana, com os pés descalços e os seios ao vento, encontrando-se lá fora com sua irmã gêmea Samara.

— Veio me matar também? – perguntou a bruxa. — Sabe que eu nunca tentaria lhe matar, ao contrário de você. — Me esqueci, você é fraca e burra, feito a sua mãe. Mais burra que

você só o idiota daquele Jorge Henrique. — Cadê ele? — Não sei, porque devia saber dele? – disse Sara em seu cinismo. — O que você fez com ele? — Bom, já que quer saber tanto, ele apagou a vela do meu vodu, e

por conta disso, terei eu mesma que por fim naquelas pragas de Vila Terezinha. Vou despedaçar cada homem, esquartejar cada mulher, comer cada criançinha e dilacerar todo e qualquer ser humano que passar no meu caminho – foi dizendo Sara enquanto se transfigurava num enorme lobisomem de olhos vermelhos, boca cheia de dentes afiados, pêlos negros e ouriçados, e na cabeça dois chifres grandes e pontiagudos.

— Enquanto eu estiver aqui, você não fará nada disso – retrucou Samara com o tom calmo e frio diante de tal aberração do inferno. O lobisomem ficou frente a frente com rosto dela, com a saliva escorrendo por sua boca sanguinária e com sua voz de trovão e rouca, perguntou:

— E o que você vai fazer para me impedir? — As vezes você se esquece que fomos geradas na mesma placenta.

Sabe porque você não pode me matar e eu não posso matar você? Porque nós duas estamos ligadas na vida e na morte. Se você me matar, você morre, e se eu lhe matar, eu morro.

— Me conta uma novidade – retrucou o lobisomem. — O mesmo ocorrerá se eu me matar – falou Samara deixando o

lobisomem bufando ar quente pelas narinas. — Irá se sacrificar por aqueles humanos idiotas?

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— Sim – respondeu Samara sem piscar os olhos. — Jorge Henrique está dentro da choupana, caído no chão, com um

ferimento na barriga feito pelo punhal mágico, irá morrer de tanto perder sangue até o amanhecer de amanhã se você não fizer o curativo nele.

— Está mentindo – falou Samara não conseguindo esconder sua preocupação.

— Vai deixar o homem que lhe salvou de ser queimada na fogueira morrer? – zombou o lobisomem se desviando de Samara e saindo em disparada a saltos furiosos pela floresta. A moça correu para dentro da choupana encontrando Jorge Henrique sentado no chão, tentando conter o sangramento do corte em sua barriga.

— Eu não disse quer era pra você apagar a vela e sair correndo? – zangou-se Samara se agachando para ver o ferimento.

— Pois é, eu achei que podia matá-la e acabar de vez com a história – respondeu Jorge Henrique com a voz engasgada.

— Esse ferimento não vai cicatrizar nunca – disse Samara retirando um pedaço da manga de seu vestido e colocando sobre o corte ensopado de sangue – ele está envenenado pelo sangue que contém o punhal. Você vai perder sangue e morrer nos primeiro raiar do sol de amanhã.

— E até lá vou perder sangue sem parar? – assustou-se o mancebo. — Pois essa é maldição do punhal, você não morrer com o corte,

com o ferimento, você vai morrer agonizando, sentindo o sangue se esvair de seu corpo, ficando fraco lentamente, perecendo com a dor beeeeeeeem devagar – explicou Samara que fez o pobre rapaz arregalar os olhos.

— Mas deve haver um curativo pelo amor de Deus – desesperou-se Jorge Henrique quase indo as lágrimas.

— O único jeito seria se alguém de coração puro derramasse seu sangue sobre o corte, desse modo, o sangue bom lavaria o sangue mal do seu corpo.

— Acredito que você tenha o coração bom, então derrama um pouco de seu sangue, só algumas gotas aqui – encheu-se de esperança o moço mostrando o ferimento derramando de sangue.

— Se fosse fácil, só que a pessoa que doar o sangue para você, morrerá.

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batido por se ver condenado a morte, sem eira nem beira, Jorge Henrique se conformou em ter ao lado Samara, tão linda jovem formosa de cabelos loiros e olhos azuis.

— Você vai ficar do meu lado? – perguntou a moça, que negou seu pedido explicando que tinha que deter Sara transformada em lobisomem que estava a caminho de Vila Terezinha para matar a todos.

— E o que vai fazer? Samara não conseguiu responder a essa pergunta, pois pensava em se

matar para que Sara também morresse e dessa forma, salvar a todos da cidade, mas ao se matar, não poderia valer Jorge Henrique, a quem devia sua vida. Porém se cortasse o pulso e deixasse pingar umas gotas de sangue na ferida dele, morreria em seu lugar o salvando da morte e por outro lado mataria a sua irmã a quem estava ligada na morte. Decidida em sua resolução ela falou ao rapaz:

— Vou lhe dar o meu sangue e salvá-lo, fazendo isso também salvarei a todos de Vila Terezinha.

— Não Samara, não quero que morra – suplicou Jorge Henrique. — Mas é preciso – retrucou ela – e não vejo outra saída, fique aqui

que vou até no seu cavalo pegar o facão para fazer o corte em meu pulso. A moça saiu da choupana indo até o cavalo, da onde retirou do

alforje o facão afiado. Vendo o horizonte por cima das grandes árvores, viu que o dia de quinta-feira já se ia descendo e que lhe restava pouco tempo. Entrou na choupana não encontrando Jorge Henrique, o procurou por toda a casinha, mas nem sinal do jovem cavalheiro. Cheia de angústia, revolveu por toda área envolta da choupana, mas não achou nem pingo de sangue que lhe indicasse a direção dele.

No ínterim em que Samara foi pegar o facão, Jorge Henrique tomou consciência que permitiria a quem tanto amava morrer por ele, por isso saiu na surdina da choupana e se embrenhou no meio da mata ignorando a forte dor que advinha do seu sangramento.

Samara desistiu de procurá-lo e foi andando pela neblina da Floresta

Cinzenta sem saber o que fazer. A cor alaranjada dos céus anunciava o começo da noite. Ela observou o céu melancólico pedindo em pensamento para que Deus lhe ajudasse. Foi quando ouviu de longe alguém gritando:

— Socorro, por favor, me ajudem! – repetia a voz de um homem, e pela altura em que gritava, estava em sérios apuros. Samara correu para acudir o desafortunado deparando-se com um senhor já de idade, cabelos e barba branca, deitado ao chão, magro que só vendo, que não era ninguém menos do que Galeano, o homem que Padre Rodolfo cegara por seu teimosia em defender a ciência.

— O que há? – perguntou Samara erguendo a cabeça do velho logo notando seus olhos cinzentos pela cegueira.

A

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— Por favor – disse Galeano tateando o rosto de Samara – me leves a beira de algum rio ou de algum penhasco para que eu possa me jogar a fortuna do destino que me leve a vida, pois nesta terra não poderei nem mais enxergar o brilho de uma estrela ou o azul de um céu, não sei dizer quando é noite nem quando é dia, nem o que é belo nem o que é feio, só me vejo dentro de uma escuridão que me consome a alma e a vontade de viver.

— Não o levarei a rio e nem a penhasco coisa alguma – respondeu Samara cheia de lástima por aquele pobre coitado – consegues ainda falar, tem pernas para andar e braços com mãos para tatear, olfato para cheirar e sua boca para pedir socorro, se tua visão não mais lhe acalenta o sentido, contenta-se com seus outros quatro que lhe proverão a vida.

— Sim boa jovem – disse Galeano – eu sei que ainda tenho os quatro sentidos para dispor em meu destino, mas o desgosto de viver neste mundo ímpio e hipócrita me traz o desejo de morrer. A religião me deixou cego por eu ter dito que a verdade não se encontra nas escrituras e sim na ciência, onde dois e mais dois são quatro, onde tudo tem uma explicação plausível e nada passa sem antes ter um fundamento, uma razão. Que graça tenho eu de viver onde me cegam, me tiram aquilo da onde tirava meu prazer, que era contemplar as estrelas, os planetas, este universo infinito... Nada desejo senão a morte.

— Alegre-se meu bom homem – falou Samara forçando um sorriso – que nada está perdido até que o fim chegue. Só Deus pode dar cabo da gente, e Ele sabe o que faz... Como gostas tanto de ciência exata, imagine Deus como uma dízima periódica, algo sem explicação e infinito, que existe apenas explicar os cálculos e problemas sem resultados.

— Boa comparação minha cara – riu Galeano passando os dedos sobre o rosto macio de Samara – és uma bela mocinha, pode me dizer seu nome?

— Me chamo Samara e o senhor? — Tenho o nome de Galeano, meus sinceros cumprimentos – disse o

velho homem levantando-se com ajuda de sua nova amiga – agradeço suas palavras de bondade, mas creio que um cego em nada tem de serventia neste mundo de aparências e superficial...

— Engana-se Galeano, há muitas coisas que você pode fazer, um cego por exemplo pode... e dizendo a palavra “cego”, Samara lembrou-se de algo que aprendeu há muitos anos na Irmandade das bruxas Brancas, algo sobre mula sem cabeça e lobisomem.

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ontava-se por aquelas bandas uma lenda sobre mula-sem-cabeça. Essa lenda rezava que toda mulher que fornicasse com algum padre, se transformaria na noite de quinta para

sexta-feira em uma mula com cabeça de fogo flamejante, passando a noite relinchando, perseguindo andarilhos desavisados pelos campos e ao amanhecer, voltaria a ser mulher. O que ninguém sabia por aquelas bandas é que somente uma mula-sem-cabeça poderia deter um lobisomem enraivecido, pois diziam que a fera não suportaria o brilho flamejante das chamas e fugiria rapidamente para algum lugar ermo. E de tudo isso sabia Samara, pois ouvira essa lenda ainda quando estava no Vale das Bruxas. Virou-se para Galeano e falou:

— Mesmo sendo cego, o senhor poderá salvar as pessoas de Santa Terezinha – exultou-se Samara sorridente.

— Salvar? Mas porque? Com essa pergunta, a moça relatou o que se passava para indiferença

de Galeano que respondeu: — Salvar as pessoas de Vila Terezinha quer dizer salvar as pessoas

da igreja, por mim todas elas podem ir para as cucuias que pouco me importa, a igreja me cegou, eles que virem comida de lobisomem – foi dizendo o cego dando de ombros.

— Tudo bem não precisa fazer isso pelos católicos, mas e se no fim, o senhor tiver uma recompensa? – perguntou maliciosamente Samara.

— Que tipo de recompensa? – perguntou ingênuo Galeano. — Para deter o lobisomem vou precisar levar uma mula-sem-cabeça

até Vila Terezinha, e ninguém consegue se aproximar dela por causa do fogo em sua cabeça, só uma pessoa destituída de visão poderia alcançá-la, laçá-la e e levá-la ao trote manso até a cidade.

— E que recompensa eu ganho em quase levar um coice de mula-sem-cabeça se é que tal coisa exista? – perguntou impaciente o ceguinho.

— Vou lhe segredar meu amigo, aquele que tirar o freio da mula-sem-cabeça, livrará a mulher da maldição e se tornará o dono do amor dela, ou seja, esta mulher o amará até a morte. E como geralmente os padres gostam de pegar mocinhas virgens, a flor da idade, vai ser um prato cheio para o senhor.

— Do que me adianta – lamentou-se Galeano – sou cego e não posso mais desfrutar de apreciar tal beleza.

— Como já lhe disse, o senhor tem as mãos para tatear, para pegar, tem a cabeça boa para imaginar, pintar a beleza em sua mente, e de certo, deve ter algo abaixo do umbigo que ainda funcione – presumiu Samara com uma risadinha constrangida.

— Claro! Claro! Sem dúvida – respondeu apressadamente o ceguinho – pois você tem razão, há outras maneiras de se apreciar uma

C

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moça além da visão de sua beleza. Vou lhe ajudar no que tu me pedes... Mas, aonde vai arruma uma mula-sem-cabeça?

— Isso o senhor deixa por minha conta! Agora vamos andando que preciso encontrar uma encruzilhada que contenha uma cruz – respondeu ela pegando no braço de Galeano e o ajudando a caminhar.

— Acho que eu vi uma não sei aonde, acho que foi por ali – disse o ceguinho apontando para uma direção ao vento, divertindo Samara.

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arando em uma encruzilhada de estrada, onde havia um cruzeiro de madeira erguido sobre um pequeno monte, Samara e Galeano descansaram iluminados pela fantástica lua cheia.

— E agora, o que fazemos? – perguntou o ceguinho. — Vamos chamar a mula sem cabeça, se tiver alguma mulher

amaldiçoada por este povoado, ela aparecerá. — E se aparecer, o que fazemos? — Se ela aparecer Galeano, você fica parado aqui no meio da

estrada, sem demonstrar medo, a mula vai relinchar, empinar, fazer o diabo, mas não o atacará. Quando ela sossegar você faz o sinal da cruz e diga em voz alta “ego sum Dominus”, então ela o obedecerá.

— Só tenho que ficar parado no meio da estrada, e quando ela aparecer relinchando que nem o diabo, só tenho que ficar quietinho sem medo e depois que ela amansar preciso dizer ego são Domingo?

— Não é ego são Domingo, é ego sum Dominus – corrigiu Samara. — Isso, que seja, então é só isso? — Nada mais, tão fácil quanto tirar leite onça, está preparado? — Estou. — Então lá vai – falou Samara tomando uma longa distância, mirou

no cruzeiro, respirou fundo e passou correndo em frente a cruz. Ela observou em volta, apenas escutando o vento, ansiosa por ouvir o relinchar da mula.

Do alto da serra, Samara avistou um ponto amarelado, era o animal de cabeça de fogo que vinha no passo largo pela estrada. Samara deitou-se no chão, fechando os olhos e escondendo as unhas. O cego que nada podia ver, apenas ouvia o terrível relinchar e o barulho do trote pesado na terra. Apesar do medo, decidiu ficar parado pensando na bela jovem que ganharia depois que retirasse o freio da mula.

A mula chegou a um palmo de Galeano, dando relinchos altos, estridentes, coices e mais coices, mas não chegou atropelar e nem ferir aquele velho parado no meio da estrada. Percebendo que a mula ia sossegando, Galeano fez o sinal da cruz e falou as palavras “Ego sum Dominus”.

As chamas na cabeça da mula apagaram-se lentamente, desvelando sua cabeça com o freio de ferro em sua boca. Samara levantou-se vindo para perto do animal domado.

— Muito bem, agora vamos logo para Vila Terezinha pegar o lobisomem.

— E como uma mula pode enfrentar um lobisomem? — As chamas da cabeça dessa mula vão se acender e flamejar

quando se deparar com o terrível lobisomem, sairá num galope furioso contra ele, fazendo-o fugir para longe.

— E se ele quiser voltar?

P

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— Mas não vai... – hesitou Samara olhando para a lua cheia – não se eu encontrar ele depois. Agora chega de mais explicações e vamos ter com a fera.

Samara ajudou Galeano a subir na mula, pegou no freio e veio puxando o animal pela estrada até chegarem à entrada de Vila Terezinha.

Na arrebol do dia, Samara entrava em Vila Terezinha, puxando a

mula com Galeano em cima, deparando-se com uma cidade deserta, onde não se avistava uma alma vida pelas ruas ou nas janelas da casas. Chegando na praça central, encontrou as pessoas nas fogueiras recém queimadas, os corpos carbonizados, um grande patíbulo com mais de trinta enforcados, havia ali, cadáveres de crianças, mulheres, velhos, homens, coxos, ricos e pobres, ninguém fora a salvo. Samara coçou a cabeça pensando que chegara muito tarde.

— O que aconteceu? – perguntou Galeano nada vendo da carnificina. — Nada demais, apenas que esta cidade ficou silenciosa e o mundo

melhor – respondeu indiferente para aquela desolação – qual o propósito de viver?

— Está me fazendo uma pergunta? – estranhou o velho ceguinho. — Não há mais nada o que se fazer por aqui, pode tirar o freio da

mula e livrar a mulher da maldição. — Mas e o lobisomem? — Que Sara siga seu caminho por onde mais lhe aprouver, eu sei

apenas que preciso encontrar Jorge Henrique. E dizendo isso saiu caminhando vagarosamente pela rua. Galeano

ouvindo os passos de Samara se distanciando, deu de ombros e desceu da mula, tateando pela cabeça dela, achou seu freio e o retirou.

— O que aconteceu comigo? – escutou a voz fina e suave de uma moça.

— Você havia se transformada em uma mula-sem-cabeça, mas agora eu a salvei de sua maldição – respondeu o ceguinho exibindo o freio em sua mão.

— Obrigada, sabia que aquela história do Padre Rodolfo de lavar meus pecados era furada. Vou lhe amar eternamente.

— E eu a você minha bela jovem dama – disse Galeano pegando na mãozinha delicada da mocinha – qual o seu nome?

— Lurdinha e o seu? — Galeano – mal acabou de responder seu nome, apareceu-lhes o

lobisomem, com a boca ensangüentada, e com suas garras afiadas, ele rasgou os recém enamorados.

Na Floresta Cinzenta, Jorge Henrique encostado na raiz de uma

árvore, olhava por entre os ramos das altas árvores os primeiros raios de sol

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daquela sexta-feira. Estertorava seus últimos suspiros de vida pensando em Samara. Pensando naquela jovem dama de cabelos loiros e olhos azuis, ele a viu surgir tão lida e bela, nem ouviu o que ela lhe dizia por estar perdendo os sentidos por causa de sua hemorragia, apenas fechou os olhos e sorriu.

Rapidamente, Samara cortou seu pulso deixando cair seu sangue no corte de Jorge Henrique. Ele voltou a si, vendo sua amada, já imaginando estar no paraíso. Samara porém o trouxe a realidade, dizendo que deu seu sangue por ele.

— Não posso viver sem você Samara – lastimou o rapaz beijando o corte no pulso dela – eu lhe amo.

— Agora estamos quites, você salvou minha vida, agora salvei a sua, já posso morrer em paz – e dizendo isso, ela beijou o seu salvador.

O terrível lobisomem entrou furioso na igreja, sentindo com seu

olfato aguçado o cheiro do último humano que restava em Vila Terezinha. Passou pelos bancos indo até o confessionário, quebrou a porta com um soco, descobrindo Padre Rodolfo todo encolhido, segurando uma cruz e uma bíblia.

— Por favor, não me mate senhor lobisomem! – suplicou o cura mostrando a cruz. O lobisomem arrancou a cruz dele, depois o pegou pelo pescoço e abrindo sua enorme boca cheia de dentes, preparou-se para arrancar a cabeça do padre na dentada, para desespero do homem que rezava Pai Nosso, Credo e Ave Maria tudo junto.

E, parecendo um milagre, o lobisomem lhe soltou, como se perdesse a força. Caiu no chão com a respiração vacilante enquanto seu corpo peludo se transfigurava em Sara, que morreu nos mesmo instante em que sua irmã gêmea Samara morria nos braços de Jorge Henrique.

Fim

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Epílogo por Amadeu, o músico da Floresta Cinzenta

migos, aqueles que acompanharam esta aventura, talvez queiram saber a fortuna em que se sucedeu a vida de quem não morreu. A isto dão o nome de epílogo, nome estranho e

um tanto ridículo, e começo com o cujo dito, padre Rodolfo o bendito, este desviginador de mocinhas, pároco de Vila Terezinha e um amante de seminarista. Depois de queimar boa parte do povo na fogueira, os acusando de heresia e outras eiras, ele não morreu no dia treze de sexta-feira como fora praguejado pela bruxa Vera praguejeira. Sua fé em Deus o salvou na igreja de ser devorado pela besta, fez voto de pobreza que não durou uma semana inteira.

Já Jorge Henrique ficou sozinho, sem família, nem amigos e sem seu amor que jurou ser infinito. Enterrou Samara em uma colina, lugar de sol e de brisa, lugar onde chorou por sete dias, dali, tornou-se um eremita, sem rumo na vida.

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