REVISTA AVANTE

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A Revista Avante é produto de trabalho de conclusão para a disciplina de Jornalismo Impresso e Online em Comunicação Organizacional - turma 3º semestre , UnB.

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Carta ao leitor

A

primeira edio da revista Avante chega para ilustrar a vida de uma parcela da populao que necessita de ateno e um olhar diferenciado.

com essa proposta que o Projeto GirArte auxilia meninos e meninas de rua a terem uma oportunidade de insero social por meio da qualificao profissional e a criao de uma base de valores. O projeto acontece nos Centros de Convivncia Neide Castanha nas cidades de Brazlndia e Ceilndia. O desejo de apoio temtica veio ao encontro da idia de se produzir uma revista institucional a partir do trabalho dos alunos de graduao em Comunicao Organizacional da Universidade de Braslia (UnB). a partir dessa parceria bem sucedida que foram produzidos os textos desta primeira edio que conta um pouco do trabalho realizado pela ONG. Com contedos sobre o projeto GirArte, as polticas pblicas envolvidas, bem como cenrio nacional no qual est inserido, e com objetivo de aproximar realidades distintas, propomos, com a Avante, um olhar poltico, crtico e cultural sobre o tema, mas, principalmente, humanizado. Esta proposta est presente na matria de capa que abre esta edio, A situao das crianas do DF. Para realiz-la, os reprteres Juliana Ciarlini, Lusa Turbay e Wanessa Negrini, com o apoio da editora Amanda Bittar situam o papel das OnGs na sociedade e seus diversos tipos de relaes com o governo. Trazem uma abordagem plural com a opinio de fontes como o secretrio da Criana e do Adolescente do Governo do Distrito Federal, Dioclcio Campos, a presidente da OnG Liga Solidria, Maria Luiza dOrey, e o socilogo Daniel Crepaldi. Na matria Centro de vivncia Neide Castanha, o leitor poder conhecer um pouco mais sobre o projeto GirArte, as instalaes, funcionamento, jovens acolhidos e s responsveis por sua realizao. E, em entrevista com o reprter Guilherme Tavares, o rapper GOG fala um pouco sobre sua experincia de vida, e sobre como a msica se insere na sociedade e a sociedade se insere na msica. Uma dica: no passeie pelas matrias da Avante seguindo a ordem das pginas. Aproveite para montar o seu caminho e sinta-se vontade! Ana Beatriz Magalhes Editora Chefe

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Opinio

GOGRasgao VerboO msico, representante do rap brasiliense, fala sobre sistemas de produo cultural das periferias, o olhar da grande mdia sobre o movimento hip hop, poltica e msica.

TEXTO | Guilherme Tavares FOTOS | Felipe Bergmann DIAGRAMAO | Guilherme Tavares e Felipe Bergmann

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enival Oliveira Gonalves. Este o nome completo e a origem da sigla GOG, que vem sendo repetida cada vez mais no cenrio da msica brasileira. Considerado o precursor do rap em Braslia e autor de canes de sucesso como Brasil com P e Eu e Lenine (A Ponte), o msico, que nasceu 1965, em Sobradinho, defende o rap e o hip hop como possibilidades democrticas de mudana social. De uns tempos para c, GOG quase no fica mais em Braslia. J h apresentaes agendadas para o ano de 2012. Entre Gerson King Combo, Lenine, Maria Rita e Paulo Diniz, grande a quantidade de parceiros e estilos musicais pelos quais o rapper transita. Alm de prezar pela pluralidade temtica nas msicas, o poeta um defensor vigoroso das temticas afro-brasileiras. Quando se apresenta, ele costuma dizer a seguinte frase: Com o atabaque, a frica se eterniza. Com o sample, a frica evolui. A revista Avante conversou com GOG em dia de celebrao como ele chama os shows no Castelo de Grayskull, na Ceilndia. O msico chega bem antes do horrio marcado ao local, uma construo abandonada, antigo ponto de venda e consumo de crack na cidade. Cumprimenta a todos, j conhecidos articuladores do rap no DF, e apronta-se para o show. GOG est vestido com roupas brancas e procura, insistentemente, seu colar de prata, para complementar o figurino. Depois de caminhar pelo lugar e conversar com uns amigos, o cantor recebe nossa equipe no camarim.

Revista Avante: GOG,falaremos do comeo de sua carreira musical. Como voc descobriu a cultura hip hop? GOG: Eu nasci em Sobradinho e a minha infncia foi no Guar II. Era o Guar das ruas de terra, da dificuldade. Descobri cedo que fazia parte da gerao James Brown. Na TV, a gerao Beatles tinha maior amplitude, mas coisas que eu queria ver estavam na rua. A rua era bem diferente, mais artstica. Era a rua do futebol... Eu descobri, depois de um tempo, que o silncio que eu via, a no contestao, advinha dos anos de chumbo da ditadura. Hoje, penso no tempo em que eu tomei a conscincia do hip-hop. A ditadura levou embora entre 500 e 1.500 pessoas diretamente. Hoje, o extermnio da juventude negra leva isso por semana no Brasil. Ns vivemos uma eterna ditadura e sei que fao msica para combater isso. As asas do racismo e do preconceito, que s fui perceber nos anos 80, so muito fortes e foram alguns dos pilares que nortearam minha carreira hoje. E quando comeou sua relao com a Ceilndia? A minha proximidade com a Ceilndia se d pela famlia. Uma parte dela vive aqui. Mesmo nunca tendo morado, sempre fiz parte da vivncia dessas pessoas. A Ceilndia de 1971, fundada como Centro de Erradicao de Invases. Muitas pessoas falam que era para ser construda uma grande cidade; tenho, para mim, que o plano real de Ceilndia era o de afastar os pobres, os negros e as negras do centro da cidade. Braslia criada, a princpio, para no ter tenso social. No por acaso que ns temos cidades-satlites a 30, 45, 50 quilmetros. E o rap funciona como diluidor das distncias? Como? Claro. O que se sofre na Ceilndia, a Samambaia no ouve. O que se sofre na Samambaia, Planaltina no vai nem ficar sabendo. A politizao serve exatamente para a gente combater os males que o sistema coloca. E, talvez, o maior deles seja o de

colocar irmo contra irmo, favela contra favela. A Ceilndia abraou o hip hop de uma forma nica. O movimento , praticamente, o primeiro dialeto da cidade. Ns temos um fenmeno interessante: antigamente falavam muito de Braslia e muito pouco da periferia. Hoje, ouvimos muito sobre a periferia. Temos, no entanto, uma cena muito forte no Entorno, no vista pela grande mdia. Talvez o Entorno seja a nova Ceilndia. Como se deu o reconhecimento da msica negra na cidade do rock? O rock msica negra. As negras razes esto sempre vivas. Mesmo quando Braslia tinha o ttulo unnime da cidade do rock, ela j era uma capital black, s que nunca isso no era dito. Vivemos hoje o crescimento do movimento hip hop propriamente, e, com isso, o aumento da visibilidade. O problema da mdia enxergar as manifestaes culturais como produtos. A mdia tenta sempre melhorar esse produto sua maneira, no sentido de embranquec-lo. A Ceilndia consegue resistir a tudo isso, bem como as periferias de todo o DF e do Brasil. Como se d a produo e comunicao independentes na periferia? A necessidade gera criatividade porque se confunde com a sobrevivncia. Em 1993,

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criei o selo independente S Balano, que lanou vrios grupos. A primeira coisa que a gente descobre que ser independente aprender a ser dependente das relaes sociais: do parceiro, da parceira, do boca-a-boca, da rdio comunitria. s vezes, o que pirata para o Plano Piloto, para ns a comunitria da quebrada. Essa rdio aquela que diz: Z Maria, sua esposa t avisando que o feijo j t pronto. Depois do futebol, pode levar o pessoal que ela preparou um rango a mais... So coisas simples que o que oficial no v. J chegamos a ter, s na Zona Sul de So Paulo quatro mil rdios comunitrias piratas. Isso num tempo em que os Racionais MCs venderam um milho de cpias. Quem faz isso a teia da comunicao, no por acaso. O sistema sabe que comunicao transformao, ebulio social. Da comeam a dizer que rdio comunitria derruba avio, que promove temas questionveis. Querem manter o poder sobre a comunicao. O mundo mudou muito e a periferia dialoga com as novas formas de comunicar. E a internet? Como voc analisa o uso desse meio? Para mim, a internet o meio mais democrtico. O que se coloca no Youtube, cai no mundo, no tem jeito. Infelizmente, j esto se organizando, com leis, que limitam o acesso divulgao de trabalhos. Ns temos a Lei Azeredo [projeto de lei de autoria do deputado Eduardo Azeredo que tipifica crimes cometidos na internet], que o AI-5 digital. Voc criminalizado por download, por colocar certa msica na Internet... Eu tenho parceiros que j foram processados e multados por cantarem suas prprias msicas porque no avisaram ao Ecad. H mais espao, hoje, para se perceber o hip hop como movimento de transformao social? Sim, e isso muito bacana. Mas pode se perceber o quanto o preconceito existe e o quanto o mercado quer moldar o movimento. O hip hop consiste em quatro elementos: o break, o grafite o rap e o DJ. O rap nasce da verborragia do protesto, do problema da escola, da violncia policial e da falta de informao. Essa msica no interessa para uma sociedade que quer vender a democracia social. A eles [a

mdia] deixam o movimento e a msica rap de lado, e colocam tudo como sendo hip hop. A partir da, a msica, antes de protesto, passa a trafegar por letras mais pacficas, mais ordeiras, superficiais. O hip-hop passa a ser uma trilha a ser seguida. E a todos que esto fora dessa trilha, eles dizem: olha, o mundo t ruim, mas voc no precisa colocar essas letras. Ento, a nova viso de hip hop est quebrando o diferencial de protesto do movimento. claro que ns vivemos amor na periferia. claro que ns no queremos falar s de violncia policial. E como voc analisa o trabalho das pessoas que no tm seguido a trilha? Ns ainda queremos falar das polticas para negros nas universidades, em aes afirmativas, na importncia de Zumbi dos Palmares e dos que esto vivos. Falar de Abdias do Nascimento [ator, poltico e ativista social brasileiro, falecido em maio de 2011, e que dedicou a vida luta contra o racismo] e outras pessoas que nortearam o caminho por um Brasil mais brasileiro. Comea-se a ter, ento, no hip-hop, uma linha mais politizada e de base. Essa linha comea a dialogar muito mais com movimentos sociais do que com a TV, por exemplo. Com o MST, com movimentos latino-americanos e africanos. E como se d essa articulao entre os rappers no-envolvidos no sistema da grande mdia? Agora, por exemplo, a gente tem a ideia de criar uma liga africana. A falta de oportunidade do negro advm do fato de no termos trabalhado bem nossa autogesto no passado. A populao negra consome mais discos de Roberto Carlos do que de Jovelina Prola Negra. Elza Soares uma desconhecida na casa em que todos conhecem Claudia Leite. responsabilidade do hip hop trazer esse debate mesa de brasileiros negros e negras no-negros e no-negras tambm para que possamos discutir, dentro de um pacto social, oportunidade para todos. Ento o pacto social a ser firmado e reafirmado pelo hip hop representa uma busca por igualdade? Acredito que no. Ns, negros brasileiros no queremos igualdade. Queremos reafirmar uma diversidade que seja respeitada e percebida como algo contributivo na salada cultural que a nossa vivncia. A Ceilndia, por exemplo, , hoje, um dos maiores plos consumidores do Brasil, geradora de empregos e tudo. Por que que a cidade continua discriminada dessa forma? Os moradores de Ceilndia tm que reclamar. E j que vivemos no sistema capitalista, temos que parar de comprar em alguns lugares, parar de consumir alguns produtos at que nos procurem e passem a ter uma verdadeira responsabilidade social e, mais do que isso, que possam pensar em um amor social. O rap contribui para a formao consciente. Mas quem ensina isso tudo? De onde vem a vontade de mudana? Sai dos olhos das pessoas, das suas necessidades. A busca por algo que no um avano social, mas um retorno ao ser humano. O meu crescimento pessoal e profissional fez com que eu retrocedesse, com que eu me desintoxicasse de tudo que estava dentro. Deve-se retroagir para se perceber. Se algo doeu, porque di nos outros tambm.

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Essa preocupao com o outro e com a estrutura do sistema direta em sua obra, que se apresenta despida de preconceitos. Qual a sua motivao para continuar no rap? Guevara j falava: a gente tem que ser duro, mas com ternura. Ns devemos perceber a necessidade. Quando eu falo em cotas para negros em universidades, porque ns temos um promotor que nasce no Lago Sul e vai julgar um menino que mora em guas Lindas. Por melhor que seja sua inteno, esse promotor no vai saber o que fome, o que um prato de comida vazio. Eu nunca passei fome, mas meus pais passaram. A minha conscincia como ser humano diz que eu tenho a fome dentro do meu gene. Ento, tenho respeito por todos os que passam fome como se eu tivesse passado, porque meus pais tambm esto dentro de mim. A referncia hoje da mquina que produz rpido, doendo ou no. Ns, do rap, queremos reproduzir, a gente quer recriar, reescrever a histria. Como suas msicas esto sempre calcadas na pluralidade temtica e de estilo, vlido perguntar quem o seu pblico. Voc consegue defini-lo? No sei quem . O meu pblico me surpreende porque vai desde o moleque da Ceilndia que ouve minha msica na internet ao professor ps-graduado da UnB. Pode ser aquela senhora de 80 anos de idade que chega dizendo: eu gosto do GOG porque no tem palavro nas letras.... Ou uma criana que levou a msica Brasil com P pra escola e a professora pode ver, agora, que o rap se aproxima da poesia tambm. E o engajamento poltico. Quais os riscos desse envolvimento? Ns fazemos poltica a partir do momento em que nos relacionamos. Diante do sistema em que vivemos, no h como no ter uma relao poltica. Se a rua no est asfaltada, porque ningum mandou verba. No temos condies financeiras de comprar o asfalto, comprar as pedras e montar. Essa a funo delegada ao Estado. Ns temos que relatar isso ao Estado e temos que mostrar fora poltica para encaminhar as aes. O hip hop, hoje, representa politicamente milhes de pessoas, que querem e precisam um dilogo. Por outro lado, eu vejo como uma complicao muito grande ter integrantes do movimento hip hop exercendo cargos polticos. Quando, por um acaso, houver algum que cometa um erro ou que entre em algum problema relacionado corrupo, diro: olha o hip-hop a, tambm est envolvido... Se a gua da chaleira a poltica, ns somos o fogo que a aquece. De fora, podemos abaixar e levantar o fogo. Voc assumiria um cargo poltico? Eu no tenho a pretenso de ser deputado ou senador. Acho que ns devemos chegar a eles e dizer: nossa comunidade precisa disso e ns temos um milho de votos para voc. O que voc pode fazer por ns? Assim estabelecemos nossas relaes polticas. Mesmo sem apoio, o jeito se virar. Enquanto ajudas no vm, criamos camisetas, discos, bons para venda, gerando um PIB nosso para que um dia possamos dizer que o terreno nosso, que no precisamos mais de ajuda governamental. Eu passei a no criticar governos, mas atitudes de governos. Qualquer governo comete erros. Como artista, aparte as classificaes de gnero musical e discusses temticas, gostaramos de ouvir sobre outra maneira de se inspirar. Percebe-se a importncia da ideia de famlia em sua obra. Qual o papel deste conceito na construo da identidade do GOG? O conceito da famlia foi muito importante para construir minha identidade. Um dia, ca na real: descobri que famlia no podia ser s a de casa. O conceito de vizinho no s o que mora ao lado. Um grande golpe o do cartrio, que nos diz que esse pedao de terra de um e no do outro. Eu j passei Dia das Crianas e Natal em reas de consumo de drogas, contratado por traficantes porque os moleques, vtimas do trfico, queriam ouvir GOG quando o pai se vai naquela noite. Eu falei pros meus filhos: apesar de serem os meus, eu tenho outros filhos espalhados pelo Brasil. Eles compreendem. A famlia de casa sabe, hoje, que a minha famlia espalhada pelo Brasil.

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Opinio

As no-pessoas e a mdiaTEXTO | Viviane de Melo Resende DIAGRAMAO | Guilherme Tavares e Felipe Bergmann

modos como compreendemos os problemas sociais de nosso tempo. Por meio de classificaes que legitimam a desigualdade de oportunidades, a injustia social naturalizada e deixa de ser questionada como injustia, passando a ser compreendida como um estado natural de coisas. Isso pode ter o efeito de destituir grupos em situao de precariedade de sua condio essencial de sujeitos de direitos, e de minar suas possibilidades de articulao e resistncia. Por outro lado, a mdia pode tambm ser uma ferramenta poderosa na luta por direitos. Exemplos disso so os jornais de rua, ou street papers. No Brasil, h quatro iniciativas vinculadas Rede Internacional de Jornais de Rua, a International Network of Street Papers (INSP). So elas: a revista Ocas, editada pela Organizao Civil de Ao Social, de So Paulo e Rio de Janeiro; o jornal Boca de Rua, produzido pela Agncia Livre para Informao, Cidadania e Educao, de Porto Alegre; o jornal Aurora da Rua, iniciativa da Igreja da Trindade, de Salvador; e o jornal O Trecheiro, da Rede Rua, de So Paulo. As trs primeiras publicaes so street papers no sentido estrito: significa dizer que so publicaes vendidas nas ruas, por pessoas em situao de rua, para as quais revertem pelo menos 50% do preo de capa. O caso de O Trecheiro distinto: trata-se de jornal de distribuio gratuita, totalmente voltado para a temtica da situao de rua. Todas essas iniciativas carregam o potencial da construo de representaes alternativas da situao de rua, o que pode ser relevante para uma compreenso mais adequada da complexidade do problema. E por que to importante compreender adequadamente essa questo? Ora, pelo princpio da reflexividade, nossa compreenso dos processos sociais tem implicao sobre os modos como agimos em relao a eles. Se conseguirmos compreender que a pobreza extrema consequncia de um ciclo de injustias a que parcelas da populao esto submetidas, ento precisaremos assumir o compromisso tico de agir para sua superao.

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egundo a Organizao das Naes Unidas, em documento referente a sua conferncia sobre habitao, mais de 100 milhes de pessoas esto em situao de rua no mundo, e um bilho em moradias inadequadas. Todos os dias, 50 mil pessoas ao redor do mundo, em sua maioria mulheres e crianas, morrem em consequncia da falta de saneamento bsico. Entretanto, o problema da situao de rua vem sendo naturalizado, apagado ou distorcido em diversos textos publicados nos jornais ou transmitidos em outros veculos miditicos. A naturalizao da situao de rua, que deixa de ser percebida como um problema, e o expurgo de pessoas em situao de rua, que so representadas como categoria a ser apartada da sociedade, so problemas sociais parcialmente discursivos porque a representao discursiva da situao de rua, por exemplo na mdia, influencia os modos como percebemos e reagimos precariedade social, e os modos como identificamos pessoas em situao de rua e nos identificamos em relao ao problema. Por outro lado, e como a relao entre linguagem e sociedade de mo dupla, essas mesmas representaes, materializadas em textos miditicos, tambm so efeitos de prticas e relaes sociais, isto , esto plamadas em estruturas prvias. Alm de impactarem sobre as identidades pessoais e sociais, essas representaes, muitas vezes repetidas em diferentes tipos de textos, tambm tm efeitos potenciais nos modos como agimos em relao situao de rua. Estudos realizados em Braslia mostram que, nesse contexto, pessoas extremamente pobres passam a ser consideradas economicamente desnecessrias, socialmente incmodas e politicamente ameaadoras. Ser considerado desnecessrio, incmodo e ameaado, muitas vezes implica tornar-se tambm passvel de eliminao, simblica ou mesmo fsica. Esses grupos sociais passam a no ter reconhecidos seus direitos de cidadania, ou seja, sua condio de privao de direitos reconhecidos para outros grupos naturalizada, passa a no ser percebida como um problema de injustia. Como sabemos, a construo de identidades e de identificaes tambm est ligada aos processos representacionais de classificao, de elaborao discursiva de semelhanas e diferenas. Alm disso, a classificao influencia os modos como as pessoas agem e pensam sobre uma dada situao, por isso a preocupao com a questo da representao de atores sociais em contextos de desigualdade e precariedade social essencial. nesse sentido que entendemos que os textos que circulam na mdia no s so efeitos de prticas e estruturas sociais prvias, mas tambm tm efeitos sobre a sociedade, especialmente sobre os

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Viviane professora do Departamento de Lingustica da UnB e coordenadora do Ncleo de Estudos de Linguagem e Sociedade. Est frente do projeto de pesquisa Publicaes em lngua portuguesa sobre a situao de rua: anlise de discurso crtica

H, ainda, muita discusso em torno das relaes entre governo, polticas pblicas e sociedade. De quem a responsabilidade de garantir os direitos da populao, afinal? Qual o papel da sociedade civil nesse cenrio?

P b l i Po l t i c a s a s

Esta editoria se prope a discutir esses questionamentos. H a necessidade de se desmistificar o envolvimento e o papel do Estado nas aplicaes de polticas pblicas e na garantia dos direitos fundamentais. As leis existem, mas seu cumprimento relativizado ou negligenciado e, por isso, elas deixam a desejar. O que preocupa o fato de a populao, principalmente as crianas, terem de arcar com as consequncias de possveis inconsistncias governamentais. Nessa situao, o Terceiro Setor pode se apresentar como uma alternativa s relaes tradicionais entre a Sociedade Civil e ao Estado, o que pode resultar em boas alianas, como se ver nas reportagens que se seguem. Amanda Bittar

Polticas Pblicas

Olhai por nsNas ruas da Capital Federal, crianas e adolescentes entregues prpria sorte, expostos a toda forma de violncia, com direitos e cuidados negados sistematicamente, parecem invisveis ao Estado e sociedade.TEXTO | Juliana Ciarlini, Luisa Turbay e Vanessa Negrini FOTOS | Vanessa Negrini DIAGRAMAO | Vanessa Negrini

A rodoviria do Plano Piloto abriga dezenas de jovens viciados em crack

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rianas e adolescentes em situao de moradia nas ruas tm seus direitos fundamentais violados cotidianamente no Brasil. No h dados estatsticos exatos, mas um olhar atento revela que elas esto por toda parte tambm no Distrito Federal. Nos cantos da rodoviria, debaixo de pontes, nas entrequadras, nas paradas de nibus. Mas, de quem a responsabilidade por essa tragdia social? De acordo com a Constituio Federal, assegurar s crianas e aos adolescentes seus direitos fundamentais, alm de coloclos a salvo de toda forma de negligncia, discriminao, explorao, violncia, crueldade e opresso dever de todos: da famlia, da sociedade e do Estado. No entanto, os atuais esforos desses atores parecem no surtir efeito. Por outro lado, cada vez menos entidades se dedicam execuo de programas voltados a essas crianas e adolescentes, ao trabalho de aproximao socioeducativa, de reinsero familiar e comunitria ou de seu acolhimento institucional. Para o secretrio de Estado da Criana do Distrito Federal, Dioclcio Campos Jnior, infelizmente, a infncia brasileira no reconhecida como uma faixa etria de absoluta prioridade de investimentos por parte do Estado, da famlia e da sociedade como um todo. Para ele, a criana vive em situao de rua fundamentalmente por ser integrante de uma faixa populacional a qual so negados direitos. Campos acredita que a falta de cuidados na primeira infncia est no cerne da problemtica de crianas e adolescentes em situao de rua e em conflitos com a lei. Os seis primeiros anos de vida, mais o perodo gestacional, correspondem ao perodo em que o equipamento essencial para a formao do indivduo, sua converso em pessoa e sua transformao em cidado acontea, explica lembrando ser a primeira infncia a faixa mais exposta negao de direitos. Alicerce seguro O secretrio, que j foi presidente da Sociedade Brasileira de Pediatria, destaca um estudo do Prmio Nobel de Economia James Heckman que confirma sua tese. Heckman acompanhou por dcadas dois grupos de crianas nascidas na periferia pobre dos EUA expostas, portanto, s mesmas variveis sociais. A diferena foi que um grupo teve acesso cuidados na primeira infncia e outro grupo no. Comparando os dados do grupocontrole, de crianas que tiveram estimulao e proteo na primeira infncia, com as crianas que no tiveram acesso a esse tipo de beneficio, as diferenas foram contundentes. A concluso que 36% das crianas que tiveram educao infantil chegam at ao equivalente da 4 srie do ensino brasileiro, enquanto que, no outro grupo, isso ocorre com apenas 13%. Alm disso, 67 % dos que chegaram ao ensino mdio passaram pela educao infantil, contra 51% dos que no tiveram acesso a creches e pr-escolas. A pesquisa provou que as crianas com acesso ao programa de educao infantil, no futuro, tiveram mais que quadruplicada a probabilidade de alcanar salrios maiores. Heckman tambm concluiu que

A infncia brasileira no reconhecida como uma faixa de absoluta prioridade de investimentos por parte do Estado, da famlia e da sociedade em geralAVANTE 15

cada dlar investido pelo governo na primeira infncia, em tempo integral, de crianas pertencentes a famlias de baixa renda, representou um retorno de 17,00 dlares para a sociedade. Mas, para o secretrio, a cultura brasileira no de investimento, de retorno imediato. A sociedade brasileira no se d conta disso ainda. difcil convencer as autoridades, os gestores pblicas, de que essa a prioridade, afirma Campos. Ele destaca que o Distrito Federal a primeira unidade da federao a instituir uma secretaria especfica voltada para a criana e os adolescentes, o que, segundo ele, facilita na defesa de polticas pblicas para a rea. Para Campos, formar um cidado um processo de construo, uma verdadeira edificao. Toda construo, para que seja de qualidade, slida e resista, comea por uma etapa, que o alicerce. E s h um momento para voc fazer o alicerce de uma construo. At se pode fazer uma construo sem alicerce, mas o resultado ser instvel, inseguro e pode at cair, compara. De acordo com o secretrio da Criana do Distrito Federal, para ser uma construo segura, produtiva e duradoura, o cidado precisa de um bom alicerce. Enquanto a sociedade no entender isso, vai continuar enxugando gelo, tratando das consequncias da negao de direitos na primeira infncia.

Para se tornar uma construo segura, produtiva e duradoura, o cidado precisa de um bom alicerce na primeira infncia.

Secretaria pioneira A Secretaria da Criana no Distrito Federal pioneira no Brasil. Alm do papel de proteo, desempenhada por meio dos Conselhos Tutelares, a Secretaria nasce com as atribuies de cuidar das medidas socioeducativas para crianas e adolescentes em conflito com a lei. De acordo com o secretrio, a prioridade da Secretaria o Projeto de Desenvolvimento Integral da Infncia e da Adolescncia. O objetivo, em mdio prazo, reduzir as demanda das medidas socioeducativas e dos Conselhos Tutelares. Esse trabalho consiste na identificao e no acompanhamento de gestantes, por uma equipe multiprofissional qualificada, que visa o acompanhamento da criana desde antes de seu nascimento. Embora singelo, o projeto deve enfrentar grandes desafios para ser implantado. O Distrito Federal possuiu cerca de 150 mil crianas com at 3 anos. Entretanto, apenas 10 mil so atendidas em creches pblicas ou conveniadas. A ideia do governo expandir a rede, valendo-se de convnio com Governo Federal, com a construo de novas unidades pblicas, mas tambm se valendo de convnios com a sociedade civil, incentivando-a a ampliar sua capacidade de atendimento. Uma possvel soluo seria o governo local viabilizar uma melhor estrutura para uma Secretaria que se anuncia como prioritria. Por falta de espao adequado, o secretrio da Criana do Distrito Federal executa suas funes na sede da Sociedade Brasileira de Pediatria. Um comeo difcil para a nova Secretaria. Afinal, como qualquer criana, a Secretria tambm precisa de um bom alicerce para prosperar. O Estado no d conta A desigualdade social, a fome e a pobreza so um problema do Estado, e, por isso, deveriam ser cuidadas pelo governo. Porm, observa-se no Brasil a criao de uma grande quantidade de organizaes da sociedade civil para atuar na prestao de

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servios e na defesa de causas, como a reduo da desigualdade e a incluso social. As Organizaes No Governamentais (ONGs) constituem um dos principais exemplos nesse processo, e encontram-se distribudas por todo o pas. De acordo com Dioclcio Campos, as ONGs configuram parte fundamental do Estado. Sem as entidades da sociedade civil inimaginvel alcanar a cobertura das necessidades de todos, afirma. Exemplo disso o trabalho desenvolvido pela Liga Solidria, que beneficia diretamente 3.400 pessoas por dia e cerca de 13.600 pessoas indiretamente. Organizaes como a Liga, com 87 anos de histria, fundada com objetivo inicial de oferecer assistncia apenas criana, juventude e mulher, e que, nos dias de hoje, atua de forma mais abrangente no desenvolvimento de programas sociais direcionados para crianas, jovens e adultos que residem em reas de alta vulnerabilidade social so exemplos de como a sociedade civil se organiza. Formalmente constitudas de estrutura bsica no-governamental, sem fins lucrativos, de gesto prpria e, pelo menos, uma parcela de trabalho voluntrio, os projetos realizados pelas ONGs costumam interessar os dois lados, na medida em que pode auxiliar o Estado no oferecimento de servios que supram as necessidades bsicas da populao. Segundo a presidente da ONG, Maria Luiza dOrey Esprito Santo, o peso da ao das ONGs crescente. Sentimos cada vez mais a nossa responsabilidade como uma das mais antigas e maiores ONGs que trabalham na cidade de So Paulo, afirma. Para ela, fica claro que no bastaria ampliar a ao na comunidade, mas tambm, zelar pela presena da ONG nos entes governamentais que a auxiliam, como o Conselho Municipal e Assistncia Social (COMAS), e tambm nos Fruns e Redes que os representam. Esse relacionamento existente entre organizaes e Estado pode ser entendido de diferentes maneiras. Por parte deste, a parceria pode ser vista como uma forma de terceirizao, uma vez que a ONG estaria realizando suas atividades a partir de verbas pblicas. Dessa forma, a ONG capaz de aumentar sua rea de atuao, cooperando diretamente com o trabalho do governo. Porm, pensando na viso interna destas organizaes, existem casos em que a parceria com o Estado vista como algo nocivo, uma vez que poderia acarretar na influncia demasiada do governo em seu andamento. Maria Luiza dOrey ressalta que, por vezes, a falta de polticas por parte do Estado tem como resultado a transferncia de responsabilidades para a sociedade, principalmente para as organizaes do terceiro setor. Percebemos que a Liga poder assumir o papel de articuladora a fim de ajudar a preencher os atuais vazios das polticas pblicas na regio e no pas, afirma. O auxlio do Estado geralmente no suficiente, o que leva cada organizao a se autogovernar e buscar capital de formas variadas, como por meio de doaes e realizao de projetos. No caso da Liga Solidria, existem seis unidades

A falta de polticas por parte do Estado resulta na transferncia de responsabilidades para a sociedade, em especial para as ONGs,

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provedoras, entre elas o Lar SantAna, o Colgio Santa Amlia e o Recanto Monte Alegre. Essas unidades constituem uma estrutura interna geradora de receitas prprias, contribuindo, em 2008, com 39% do valor necessrio para manter os postos de atendimento social, enquanto os outros 61% foram provenientes de doaes, arrecadaes e parcerias com a iniciativa privada. O fato das demandas das ONGs serem, por vezes, maiores do que o auxlio dado pelo governo faz com que estas busquem melhores condies e maior ajuda financeira. Muitas organizaes lutam para que o seu trabalho se torne uma Utilidade Pblica Federal, o que concede a ela benefcios perante o Estado. As dificuldades de muitas dessas organizaes tm gerado debates, a reivindicao por parte do Terceiro Setor, atualmente, em maior escala, a criao do Marco Regulatrio das ONGs, que busca, dentre vrias outras coisas, maior autonomia e auxlio financeiro do Estado. Cenrios de escndalos Vrios problemas figuram na relao entre Estado e Terceiro Setor. Situaes envolvendo desvio de dinheiro pblico foram protagonizados recentemente por membros do governo que, por sua vez, se utilizaram de entidades no governamentais fictcias para extraviar verbas milionrias. O caso mais recente o do ex-dirigente da pasta, Orlando Silva, acusado de desviar recursos do Ministrio para o Partido Comunista do Brasil (PCdoB). Estipula-se que mais de 20 milhes de reais tenham sido extraviados para o partido por meio de convnios fechados entre o programa Segundo Tempo, do Ministrio do Esporte, e as ONGs, que funcionaram como mecanismo de desvio. No de hoje que escndalos desse tipo so desmascarados. No ano de 2002, as ONGs abocanharam cerca de 1,4 bilho de reais de recursos pblicos. Ou seja, h quase uma dcada a bandeira do voluntariado vem sendo usada como libi para encobrir falcatruas, fato que prejudica as organizaes compromissadas e no-corruptas. Os ministrios do Desenvolvimento Social, da

Para uma relao mais sadia entre o Estado e as ONGs, preciso uma legislao mais rigorosa na aplicao de recursos.

Marco Regulatrio para as ONGs Os escndalos dos ltimos anos reacenderam tambm as discusses sobre o marco regulatrio como forma de controle das atividades que provm de instituies privadas. No dia 28 de outubro de 2011, o decreto 7.592 suspendeu todos os repasses para entidades sem fins lucrativos pelo perodo de 30 dias, com o objetivo de avaliar e cancelar convnios irregulares com ONGs. De acordo com a Associao Brasileira de Organizaes no Governamentais (ABONG), a deciso foi arbitrria, na medida em que penaliza tambm as instituies que realizam trabalhos srios. A luta da ABONG , primordialmente, por um marco legal que regule, legitime e reconhea o trabalho das entidades sem fins lucrativos e o acesso a fundos pblicos. A Associao acredita que, assim, ser possvel proceder com uma poltica de transparncia e de fortalecimento da participao civil no processo de consolidao da democracia.

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Sade, do Meio Ambiente e da Educao so os principais alvos de fraudes deste tipo. De acordo com o professor e socilogo Daniel Crepaldi, para que a relao entre o Estado e as ONGs se torne mais sadia preciso que a legislao seja mais rigorosa no que diz respeito ao financiamento estatal. Ele acredita que o estado no age diretamente sobre determinadas reas, mas, ainda assim, financia aes de grupos privados. A legislao dcil ao permitir liberao de verbas e branda no quesito fiscalizao, afirma Daniel. A grande discusso gira em torno de que liberar dinheiro para a iniciativa privada (ONGs) uma forma rpida de encontrar solues para os problemas que seriam de competncia do Estado. Mas, a burocracia com relao ao processo de repasse de verbas faz com que uma quantia enorme de dinheiro seja desviada mais rapidamente por meio de fraudes. Uma questo a ser avaliada a da descentralizao de polticas pblicas e seu impacto, a partir do momento em que o governo compartilha essa responsabilidade com as entidades do terceiro setor. O socilogo avalia essa transferncia de responsabilidade do Estado para ONGs, em um panorama geral, como negativa, mas afirma que a descentralizao em reas especficas plausvel e positiva. O Estado no deve transferir inteiramente tais responsabilidades para as ONGs, mas sim, t-las como auxiliares no processo de gesto de polticas pblicas, diz o socilogo. interessante, ento, analisar esse ponto

positivo da descentralizao em reas especficas nas quais o Estado no consegue penetrar inteiramente. Porm, medir a transferncia integral de responsabilidades, pois, de certa maneira, o Estado est negligenciando sua responsabilidade constitucional. O secretrio de Estado da Criana do Distrito Federal, Dioclcio Campos afirmou que importante ressaltar que ONGs no tm capacidade de alterar a realidade social de um pas de dimenses como as do Brasil, sendo essa tarefa responsabilidade do Estado. Basicamente, as ONGs possuem capacidade de defender certos pontos de vista bastante determinantes na vida das pessoas, mas, apenas o Estado possui estrutura para direcionar polticas pblicas pelo territrio nacional. Hoje, as entidades capazes de assumir governos e implantar polticas pblicas so os partidos polticos, de onde partem os governantes, que podem estabelecer parcerias com ONGs, assim como, colocar suas reivindicaes, sugestes, estudos ou ideias em planos de governos, a fim de materializ-las.

De ONG para UPFA ONG precisa elaborar uma declarao dirigida ao Presidente da Repblica, seguindo regras do Ministrio da Justia. A organizao deve seguir os requisitos estabelecidos pelo Decreto n 50.517.

A ONG deve se comprometer a prestar contas de como e onde o dinheiro pblico gasto

A ONG se torna UPF por meio de decreto do Poder Executivo

A organizao pode receber doaes da Unio e de suas autarquias, e tem imunidade fiscal.

Este ttulo pr-requisito para que a organizao consiga o certificado de entidade de fins filantrpicos.

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Polticas Pblicas

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ECAH

REALIDADE21 anos e muito trabalho por fazerTEXTO | Monica Nubiato e Daniel Botega FOTOS | Rogrio Marques e Vanessa Negrini DIAGRAMAO | Daniel Botega e Amanda Bittar

muito trabalho a ser feito em prol das crianas e dos adolescentes brasileiros, muitos ainda vivem em situao de risco e marginalizados. Atualmente, 7,6% da populao brasileira so crianas com idade at 5 anos, nmero menor que os registrados pelo levantamento em 2000 (9,8%) e em 1991 (11,5%). A informao do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE), pela realizao do Censo 2010. Dados do Censo 2000 registram 29,60% de crianas com idade de 0 a 14 anos. Em suma, o pas envelhece e preciso assegurar a qualidade de vida das crianas e dos adolescentes. Com 21 anos completos em 2011, desde sua aprovao, a sociedade debate e analisa os artigos da Lei n 8.069, de 13 de julho de 1990, que dispe sobre os direitos que constituem o Estatuto da criana e do Adolescente (ECA). H quem critique os mtodos educacionais embasados na Lei. Por outro lado, de conhecimento de poucos a profundidade de seus vrios termos. A presidente da Associao dos Conselheiros Tutelares do Distrito Federal, Selma Aparecida da Costa dos Santos, 44 anos, atuante h cinco anos na funo de conselheira tutelar em Ceilndia Norte, defende que o cidado sabe muito pouco sobre o significado e a importncia da Lei. Pensam que o Conselho o Governo, que fazemos poltica partidria ou que se trata de um rgo repressor. Se os cidados soubessem qual a natureza do Conselho Tutelar e sua funo entenderiam as aes e compreenderiam que se trata de um dos maiores sistemas de garantia de direito conquistado nas ltimas dcadas, explica.

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Crianas na escola Escolaridade InfantilA pesquisa Nacional por Amostra de Domiclios (Pnad) realizada em 2009 pelo IBGE mostra que 3.630.000 brasileiros no estavam matriculados nos colgios do Brasil. preocupante a situao da populao de 15 a 17 anos. Em 2009, dos 10,3 milhes de brasileiros nessa faixa etria, 85,2% estavam matriculados. Portanto, quase 1,5 milho permanecia fora da escola. Na faixa entre 4 e 5 anos, 1,4 milhes de crianas aguardavam uma vaga nas escolas. Entre as crianas de 6 a 14 anos, 731 mil esperavam a vaga no Ensino Fundamental.

Conselho Tutelar de Planaltina II, onde trabalha desde 2009. Ele conta que, em sua regio de atuao, h uma demanda de situaes de negligncia, violncia sexual e dependependencia qumica. Falta Estrutura Existem dois Conselhos em Planaltina para atender uma populao de 328 mil habitantes, sendo 40 mil estudantes em 63 escolas. Segundo o Conselho Nacional dos Direitos da Criana e do Adolescente (Conanda), a regio deveria ter trs conselhos para atender a demanda. A mdia mensal de 178 atendimentos realizados pelo Conselho, que no conta com o apoio de motorista para realizar as visitas de averiguao de denncias. A grande problemtica de atendimento a falta de estrutura do Estado em oferecer tratamento e acompanhamento suficiente e adequado para estes quando suas famlias no conseguem o fazer, explica Oliveira. As denncias so verificadas por dois conselheiros, que possuem autorizao para dirigir, realizando as visitas quando no h atendimento interno. Isso dificulta a aplicao das medidas em favor dos infantes, sendo morosa at a entrega de documentos que defendem as crianas, ressalta ele. Para Oliveira, a aplicao do ECA pode ser observada quando h uma criana pedindo dinheiro em espaos pblicos ou em situao de vulnerabilidade e o Conselho acionado para tomar as providncias em cumprimento a Lei, que determina ser obrigao da Famlia, do Estado e de todos resguardar o direito da criana e do adolescente, colocando-as a salvo de qualquer risco. O cidado, no dia a dia, no sabe onde e quem procurar diante de uma situao que envolva os direitos de crianas e adolescentes no Brasil. Oliveira diz que isso acontece porque poucas pessoas tm conhecimento sobre a amplitude do ECA. Infelizmente, a Lei s lembrada quando um adolescente pego praticando ato infracional e beneficiado por esta. Mas poucos sabem

Em defesa do ECA Dia 18 de novembro, comemora-se o dia do conselheiro tutelar. Conforme o artigo 133 do ECA, para a candidatura a membro do Conselho Tutelar, so exigidos idoneidade moral, idade superior a vinte e um anos e residncia fixa no municpio. O conselheiro tutelar age sempre que ocorre violao ou ameaa ao Estatuto, tendo em vista a proteo integral dos direitos da criana e do adolescente. Entre as aes, esto os encaminhamentos realizados para insero de crianas e adolescentes em escola, atividades socioeducativas, acompanhamento mdico, aconselhamento dos pais em situao de numerosas faltas escolares, quando h casos de violncia fsica e psicolgica. Quando no houver soluo, cabe ao conselheiro o encaminhamento ao Ministrio Publico para que seja oferecida representao contra os pais negligentes, onde pode ocorrer dentre outras punies, a perca da guarda. Cada Municpio brasileiro deve ter, no mnimo, um Conselho Tutelar, composto de cinco conselheiros. No Distrito Federal so 33 conselhos e 167 conselheiros, distribudos em vrias das regies administrativa. Aos 25 anos, Marcos Paulo de Oliveira desempenha a funo de coordenador no

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que esta mesma Lei obriga as crianas a terem Escola perto de sua residncia, atendimento mdico prioritrio, proteo quando vtima de todo tipo de violncia entre outras aes positivas, afirma ele. Profisso desregulamentada A atividade de conselheiro ainda no regulamentada. Esta uma discusso promovida pela Associao de Conselheiros Tutelares no DF (ACTDF). Organizada sob a forma de associao civil sem fins econmicos, sem carter partidrio ou religioso, a associao congrega os conselheiros e ex-conselheiros tutelares do Distrito Federal, com a finalidade de reivindicar melhores condies de trabalho para o desempenho das funes em defesa dos direitos da criana e do adolescente. Em Ceilndia Norte, rea de atuao da conselheira Selma Santos, presidente da ACTDF, so atendidos cerca de 20 a 30 casos por dia envolvendo violncia, negligncia, maus tratos, abuso sexual e falta escolar. A conselheira destaca que so bem sucedidas as aplicaes do ECA, quando cumpridos pelo Conselho Tutelar desde programas de incluso, programas sociais, encaminhamento para tratamentos de sade e os programas de incluso, programas sociais, encaminhamento para tratamentos de sade e os programas de proteo ao

adolescente e criana que corre risco de morte. Porm, nesse caminho tambm existem as dificuldades para aplicao do Estatuto. No temos polticas pblicas voltadas especificamente para a criana. O conselheiro requisita servios, mas na maioria das vezes a famlia no atendida ou o servio regrado, diz ela. Para a ACTDF preciso modificar o ECA, principalmente os termos do artigo 134, que trata da remunerao eventual para a funo de conselheiro. Temos estados e municpios onde os conselheiros recebem nem o salrio mnimo. O ECA deixou a cargo dos gestores estaduais, municipais e distrital a responsabilidade de manter administrativamente os conselhos , sem sofrer qualquer tipo de sano, explica a presidente da ACTDF. Santos completa, explicando, que no caso de no implantarem as polticas pblicas/ oramento pblico para a criana e adolescente, os gestores deveriam sofrer algum tipo de sano. No Congresso Nacional, tramita o Projeto de Lei do Senado PLS n 97/2009 que altera o artigo 134 do ECA para prever que o Conselheiro Tutelar da Criana e do Adolescente que atuar em regime de dedicao exclusiva dever ser remunerado. Somos eleitos diretamente pela comunidade para defender com imparcialidade o que est estabelecido pelo ECA, conclui Santos.

Conselheiros Tutelares durante mobilizao por melhores condies de trabalho

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toda criana tem direito ...Perfis de crianas e adolescentes em situao de rua. Opinio e perspectivas de quem, por direito, deve ser protegido.

C

riado a mais de 20 anos, o Estatuto da Criana e do Adolescente (ECA) confere aos jovens brasileiros uma srie de direitos que, por lei, devem ser respeitados. O direito primordial defendido pelo estatuto o direito vida e sade. Mas aps se conquistar esse direito, ser que os outros tantos que vm em sequncia so garantidos? O ECA aplicvel maioria das crianas brasileiras? A histria de diversos meninos de rua espalhados pelo Brasil nos mostra uma imensa lacuna, que separa o Estatuto e sua aplicabilidade na vida dessas crianas que necessitam dele.

Toda criana tem direito LiberdadePara Christian, o trfico trouxe a impossibilidade de servir ao exercitoChuva cair, Christian oferece espao sob a fachada de um prdio. Moreno, aparentemente saudvel, receptivo e inicia um depoimento sem preliminares. Tem 18 anos e acaba de chegar a Braslia foragido da invaso dos policiais Favela da Rocinha, onde fazia o papel de soldado do traficante Nem. Como diz, sua paixo por armas vem de famlia, seu pai e irmos so policiais, eu sou a ovelha negra, debocha. Envolveu-se com faces ainda em Minas Gerais, onde morava. Aos 16 anos, fugiu de casa com a inteno de ser um soldado. Fiz diretinho, sem passar pelos processos de iniciao, fogueteiro, embalador e tal, peguei logo na arma.

Na primeira vez que enfrentou a polcia, diz que temeu e jurou nunca mais fazer. Depois, com as drogas (cocana boliviana), relaxou e comeou a gostar. Ainda com 16, viu pessoas serem esquartejadas. Foi preso por seis meses, mas ganhava cerca de 800 reais por semana. Participava de festas de 90 mil reais organizadas pelos traficantes e isso aos poucos lhe envolveu. Apesar da agitao, no matei ningum, j quis, mas no fiz, desenterra o assunto como quem afirma uma virtude. Decide ento tirar a camisa para mostrar a tatuagem feita pela faco que atuava na Rocinha, a mesma tatuagem que o condena ser foragido agora. Lembra que uma vez na faco, tinha pouca liberdade para sair da favela e para trabalhar. Cheirava p, depois bebia energticos para evitar a overdose. Eu me anestesiava total, era tenso porque a polcia aparecia para matar os soldados, sem d, a gente tinha que reagir na bala mesmo. Faz que sim para responder se vivia sobre presso, depois lamenta a impossibilidade de ser livre agora. Sempre quis servir ao exrcito, agora estou manchado... fazer o que, eu escolhi desse jeito. Christian estudou at o primeiro ano do ensino mdio em escola pblica. No mantm contato com a famlia e evita falar no assunto. Ao ser perguntado sobre o futuro, diz que espera ser convocado para mais trabalho no trfico, no pretende se ressocializar no momento.

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Toda criana tem direito Convivncia FamiliarMoo, no sei quem eu sou no, t esquecendo do mundo. Cobra, como diz ser chamado, fala com voz rouca, poucas palavras, prefere o silncio. No aparenta ter mais de 15 anos. Olhos serrados e remelados, cabea com feridas inflamar, esfora-se para perguntar o nome de quem fala com ele. Seus nicos pertences so as roupas que diz ter comprado. No tem identidade, Apesar da no sabe dizer se tem famlia pouca idade, ou algum responsvel. Cobra no se Conta que fugiu de casa lembra dos pais h muito tempo sem motivos, chegou rodoviria do Plano Piloto em Braslia e por ali ficou. Cobra recebe ajuda de programas sociais. Segundo ele, tem gente que se preocupa, mas as pessoas gostam mais das outras crianas do que dele. Ainda altivo, diz que quem ajuda j foi embora por que ele o pior de todos. Pede uma coca cola que bebe em grandes goladas, depois solta algumas palavras que confessam uma preocupao ntima. Os homens mais velhos lhe batem noite, roubam todo o seu dinheiro. Mesmo os da lei, que deveriam proteger, no entendem que eu sou menor, admite. Senta-se no cho alegando cansao, respira com a boca aberta para suprir as narinas entupidas. Cobra no sabe dizer que direito tem, nem os que j usou, bom se os bacanas me dessem um pouco do dinheiro n?. Parece estar doente, e infelizmente, magoado demais para continuar a conversa.

Toda criana tem direito educao e profissionalizaoder tem 19 anos, mora na rua desde os 15. Durante esse tempo, enfrentou perigos e o descaso da sociedade. Coa uma ferida na altura do cotovelo, enquanto procura uma palavra complicada para caracterizar a dificuldade que encontra nas ruas. complicado, diz. Depois, solta um sorriso falho de quem conseguiu se superar. No se lembra das poucas vezes que frequentou a escola. Eu no gostava da escola, tinha dia que nem lanche eles davam, a eu sempre fugia. A famlia no o aceita por medo de agresso. J agredi meus pais, eles me mandaram embora, diz. Aparenta desconforto ao falar dos familiares, mas com explcito esforo, lembra que tinha dois irmos, ambos adotados. der conta que poucas vezes ficou doente. Quando teve que ser ajudado, sua madrinha (assistente social) lhe pegou desmaiado na rua. Eu safo dessa, abre o sorriso e ao mesmo tempo tenta esconder o rosto. Ele afirma que nunca procurou ajuda para sair da rua, parece desinteressado quanto reabilitao que, segundos depois, defende como importante para quem est perdido. Diz j ter conseguido abrigo e trabalho como carregador de caixas em um supermercado. J estive para sair da rua, at consegui um tnis bacana, mas fui demitido e os caras do abrigo no esto nem a. De repente, faz uma pausa na conversa e grita para um homem que carregava um saco de lixo: isso ai meu!. der come o que consegue pedindo. Eu tenho dinheiro do sinal, moo, mas no d pra comida no, diz em tom de brincadeira. Ele consegue alimento batendo de porta em porta, salvo os dias que um grupo de pessoas distribui um prato de comida para os moradores de rua ou quando sua madrinha d-lhe ajuda. Antes de se calar completamente, lembra que a maior dificuldade encontrar as pessoas que lhe ajudam. s vezes eu t sem fora para sair por a, rezo para algum de boa me pegar, conta. No meio da conversa, cessou as brincadeiras, disse que tinha que ir embora e saiu.

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Toda criana tem direito ao Respeito e DignidadeCriana igual ona, todo mundo quer proteger, mas tm medo de tocar. assim que Juliano v a atuao do Estado sobre os meninos de rua. Sua viso de quem j viveu a situao na pele, como ele mesmo classifica a experincia de ser preso e condenado a uma vida criminosa ainda na infncia. Sua condio de morador de rua comeou aos 13 anos, quando seus pais se separaram. Ele ficou sob a guarda da me, que o deixava sozinho em casa. Trancado, fugia para rua, indo cada vez mais a lugares distantes. Conheceu pessoas que trabalhavam como engraxates e se envolveu com a rotina; cigarro, lol, maconha. Aos 14, foi preso e levado para o CAJE. L eu vivi situaes humilhantes, muito por conta da insensibilidade dos funcionrios pblicos que no tem vocao para tratar de criana, esto l s pelo dinheiro... eu fui humilhado, tratado como um criminoso com apenas 14 anos, desabafa. Alm de maus tratos e discriminao por parte dos funcionrios, Juliano critica o valor destinado manuteno de um adolescente em instituies como essa e seu real beneficio. So sete mil reais por criana, que serve para pagar um gama de servios que vai de faxineiro psiclogo... um sistema, onde governos e municpios conseguiram encontrar uma forma de lucrar sobre cada criana, no CAJE eu tinha um po para comer e no tinha roupa descente pra vestir. Completou 18 anos e, sem poder de reabilitao na sociedade, foi julgado e enviado Papuda, onde passou 7 anos. Eu completei 18 anos no Caje e l eles me deram duas alternativas, como eu no tinha nenhum auxlio para a recuperao, fui preso novamente, e dessa vez fui pro presdio. Hoje, aos 33 anos, Juliano conseguiu se reabilitar na sociedade, faz faculdade de Direito na Universidade Catlica e coordena aes no Girao, o mesmo projeto que lhe deu condio de socializao h cinco anos.

Juliano resume sua vida carcerria em uma palavra: humilhao

Sua viso crtica sobre tudo que passou faz-lhe condicionado a dizer que existe, ainda, seleo entre crianas. Meninos de rua so tratados com menos afinco do que meninos e meninas abandonados em abrigos. Eu vejo que hoje, criana de rua perde contato com as atividade de sociabilidade (computador, profissionalizao) e o Estado insiste em mostrar a eles que essas coisas esto distantes... Basta ver que nunca dizem a esses meninos que eles podem ser engenheiros, advogados, presidentes, sempre padeiro, marceneiro, essas coisas me indigna.

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O dia a dia de um menino, de uma menina que vive na rua foge do lugar comum da excluso e irrelevncia social. O objetivo dessa editoria mostrar todos os lados desse prisma, contemplar as matrias que apresentam todas as formas de interao desses meninos na sociedade, mostrar os seus problemas, sim, mas tambm seus sonhos, suas perspectivas, todos os fatores que interferem, de fato, no cotidiano de uma criana em situao de rua. A editoria de Cotidiano, na primeira edio da revista Avante, traz uma anlise psicolgica acerca desses meninos, ressaltando o papel das ONGs, que realizam trabalhos de incluso, e tambm da sociedade e sua parte nesse processo. Gabriel Martins

Cotidiano

InfncIa InterrompIda

TEXTO | Luiz Henrique Garonce e Natlia Oliveira FOTO | Caroline Leduc DIAGRAMAO | Gabriel Martins

A realidade de muitas crianas ainda marcada por traumas que as impede de viver dignamente.

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A

situao de vrias crianas no Distrito Federal, que desde j ganham suas vidas nas ruas com o auxlio de esmolas, levam pessoas como Jonatan Silva, 23 anos, lavador de carros, a se questionarem sobre a existncia da infncia. Se todos sabem da importncia da infncia para uma pessoa, se todos admitem que o lugar de criana seja na escola, estudando, brincando, por que ento no fazem nada quando vem crianas nas ruas. Acham que ajudam quando do alguns centavos de esmola?, desabafou o rapaz. Casos como o relatado por Jonatan no so difceis de serem percebidas no DF. Seja em um restaurante, quando se abordado por uma criana pedindo dinheiro para se alimentar, seja no trnsito, ao aguardo na faixa do semforo quando uma criana ensaia alguns movimentos de capoeira na frente do carro e em seguida pede dinheiro pela demonstrao, o dia a dia marcado por situaes em que crianas interrompem suas infncias para ganhar dinheiro. Ao mesmo tempo em que trabalhava, me virava para me divertir com meus amigos comenta Jonatan.

Ao mesmo tempo em que trabalhava, me virava para me divertir com meus amigos.

Aos oito anos, Jonatan se viu na obrigao de trabalhar para ajudar a sustentar a casa, devido baixa renda familiar. Ele afirma que independentemente de suas obrigaes, procurou aproveitar ao mximo a sua infncia mesmo diante de todas as dificuldades enfrentadas. No incomum encontrar crianas que passaram ou passam por situaes parecidas com a de Jonatan, sobretudo em famlias de nvel socioeconmico mais baixo. Entretanto, mesmo tendo enfrentado dificuldades o lavador de carros guarda boas lembranas da sua infncia. Para a psicloga Maria de Ftima Godim, o termo infncia ideal no seria apropriado, pois so vrias as circunstncias e fatores que diversificam a fase entre crianas. Deve-se considerar a complexidade do contexto scio-familiar e cultural de cada caso. Prefiro falar em infncia satisfatria, o que exige como necessidade fundamental a existncia de vnculos de confiana e apoio amorosos para a descoberta de si, do outro e do funcionamento do mundo, para seu desenvolvimento e sua insero como sujeito ativo nos grupos sociais. Sobre a importncia das condies financeiras, Godim comenta que o nvel socioeconmico do ambiente por si s no um fator determinante para o bom desenvolvimento na infncia. Pesquisas mostram que os problemas sociais esto mais relacionados s questes de desigualdade e fragilidade dos vnculos sociais nas comunidades e grupos do que situaes de pobreza ou riqueza: desigualdades sociais, educacionais, econmicas e falta de segurana.

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Para a psicloga, independentemente da classe econmica social ocupada pela famlia, a criana necessita de vnculos estveis, onde haja boa comunicao, aceitao, ateno nas suas diferentes fases e nveis de dependncia. Godim explica que, em uma infncia satisfatria, a criana deve descobrir o mundo atravs do brincar, do ldico, onde ela possa errar, possa chorar, brigar e receber os limites e a noo de responsabilidade de forma gradual, de acordo com o seu desenvolvimento. Traumas e Responsabilidades A assistente social Eliene Mendes, que trabalha a 27 anos na rea, entende que, na infncia, a criana deve contar com elementos materiais e afetivos que contribuam para o seu pleno desenvolvimento fsico e mental, como moradia, fonte de renda, educao e lazer. Outro ponto abordado por Mendes a importncia que a escola tem na vida da criana, pois nesse ambiente que a ela tem a oportunidade de se desenvolver cognitivamente e socialmente. Eliene Mendes afirma que hoje as famlias podem ter composies que fogem do modelo tradicional, as famlias no so apenas constitudas por pai, me e filhos. cada vez mais comum contar com a participao de outros familiares na formao da criana. Contudo, isso no significa que a criana ser de alguma maneira prejudicada, pois o que importa a maneira como os indivduos desse grupo se relacionam O mais importante que a criana se sinta amparada e acolhida no ambiente familiar, explica Godim. Uma infncia pode ser interrompida a partir de traumas profundos, em que a criana perde toda confiana em si e nos outros. Godim se refere aos traumas que constituem a realidade de vrias crianas. possvel identificar quando uma criana est passando por experincias traumticas atravs de sintomas como adoecimentos fsicos graves ou repetidos. Tambm so visveis sintomas psquicos, como depresso infantil, psicose, problemas alimentares e de aprendizagem.Muitas crianas procuram abrigo na rodoviria de Braslia

Esses traumas so decorrentes de situaes ligadas explorao, abandono e violncia e interferem no desenvolvimento afetivo e relacional. A criana passa a temer seus afetos, de medo, de raiva, de dor, no elaborar suas perdas e desamparo ou express-los de forma desmesurada, repetindo a violncia na relao com os outros, quando exige as satisfaes de seus desejos e necessidades de forma invasiva e sem limites impostos pelas regras sociais, como no caso da criana infratora, explica. Alm dos traumas, existem outras formas de interrupo da infncia. Pode ser decorrente de responsabilidades precoces, como por exemplo, crianas que assumem a funo paterna ou materna e de mantenedor da famlia. As exigncias e falta do espao do brincar podem trazer problemas emocionais no futuro, acrescenta Godim. De acordo com as consideraes da psicloga possvel entender que a situao descrita semelhante vivenciada por Jonatan . Porm, como ele mesmo afirma, em seu caso, as responsabilidades prematuras foram cobertas por tentativas de conciliao entre o trabalho e momentos de descontrao. Para ele, apesar das grandes obrigaes, no teriam existido traumas em sua infncia.

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Fatores e comportamentos A assistente social enfatiza a importncia da escola no monitoramento das crianas, pois determinados comportamentos podem ser reflexos de problemas vividos no ambiente familiar. Apatia, agressividade, desinteresse nas aulas geralmente so as caractersticas mais comuns. Inconscientemente a criana acaba refletindo seus problemas por isso preciso que educadores e profissionais escolares estejam alertas a isso comenta Mendes. Fatores como alcoolismo, drogas, brigas e desemprego, contribuem para desestabilizao do ambiente familiar, e o lugar que inicialmente deveria oferecer segurana e acolhimento passa ser desagradvel e inseguro. Em determinados casos, a criana opta por ficar o mais distante possvel do lar, passa a maior parte do tempo na escola, com grupos de colegas e em casos mais extremos, chega at a fugir de casa.

Menino de rua caminhando na rea central da cidade

preocupaes que ainda no condizem com sua condio e estrutura, ela acaba por ingressar precocemente na vida adulta. E isso pode acontecer em lares que no vivem necessariamente em uma realidade de violncia ou conflitos. De acordo com a psicloga Maria de Ftima Godim, existem medidas especficas para recuperar crianas que de alguma forma foram traumatizadas, Nos casos em que a criana sofreu alguma forma de violncia, ou preciso afastar abandono, o tratamento requer a vivencia em situao de Quando a criana foge de casa, a probabia criana da vnculos estveis, e de apoio em lidade de que ela se envolva em situaes que a ela possa se expressar, e de explorao e violncia aumentam situao de risco e estabelecer novamente relaes consideravelmente. Na rua, comenta de confiana. Mendes, ela fica exposta a situaes que vulnerabilidade comprometem sua integridade fsica e Eliene Mendes acrescenta que psicolgica, drogas, prostituio e crimipreciso afastar a criana da situnalidade, normalmente so os destinos ao de risco e vulnerabilidade, mais comuns. oferecer um ambiente estvel e acolhedor e, sobretudo, dar a ela a oportunidade de Godim explica que fugir de casa, geralmente, opo escolhida se expressar, de confiar e se sentir ampapela criana para se afastar de um lar problemtico e que ao escolher esse caminho o menor inicia uma busca pela aceitao, rada. Isso requer a participao conjunta sociedade, governo e principalmente a procura tirar da sociedade o mximo possvel por no aceitar a famlia. Mais do que apenas conceitos e maneira como a mesma o trata, procura chamar a ateno ou propostas idealizadas, preciso oferese esconde por medo da no aceitao. Porm, importante cer s crianas a oportunidade de viver lembrar que no apenas na rua que a criana pode ter sua plenamente sua infncia sem embaraos infncia interrompida, pois, quando mesmo no lar ela passa ou interrupes. por situaes que a obrigam a assumir responsabilidades ou

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Cotidiano

Freud no explicaPsiclogos atuam na ressocializao de crianas de rua.

R

efeitrio, lavanderia, quartos, uma pequena sala de informtica e uma gibiteca escondida com alguns livros. Essa a sede da Casa de Passagem Adolescente - Girao, um lugar no qual mais de 35 adolescentes e crianas recebem um abrigo, frequentam a escola e, em alguns casos, so encaminhados para o Centro de Convivncia GirArte. Esses centros, para muitos jovens, so o suficiente para gerar uma parcela de expectativa de vida para quem veio das ruas de Braslia. Segundo a psicloga social Amanda Carvalho Valadares, o trabalho na unidade foca-se, principalmente, na construo de novos vnculos, sejam os familiares ou os voltados para a socializao em ambientes mais saudveis. Por se tratar de adolescentes, Amanda explica que nessa fase, o jovem est em perodo de desenvolvimento, e precisa constantemente se afirmar. Pensando nisso, ele acredita que seja importante trabalhar de uma forma diferenciada com esse pblico, e quando o jovem mostra interesse em receber um tratamento especializado em relao ao uso de narcticos, ele encaminho para a rede de sade ou outras unidades da prpria Secretaria de Assistncia Social.

Aps alguns anos atuando como Organizao No Governamental (ONG), o Girao tornou-se poltica pblica, sendo uma das primeiras entidades que atuam com meninos em situao de rua a adquirir esse status. Com o avano dessas aes de ressocializao, surgiu o Girarte, projeto criado com o objetivo de inserir moradores de rua no mercado de trabalho, e hoje conta com a parceria do Centro de Referncia, Estudo e Aes sobre Crianas e Adolescentes (CECRIA), Rede de Ateno Criana e GDF.

TEXTO | Ana Carolina Lacombe e Anna Luiza Guimares FOTO | Caroline Leduc e Anna Luiza Guimares DIAGRAMAO | Ana Carolina Lacombe e Gabriel Martins

Criana de rua indo para o seu abrigo

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Trabalhar com a questo das drogas um processo delicado, que precisa de orientao de especialistas sociais. Muitos dos adolescentes que chegam unidade so usurios de algum tipo de coquetel qumico. Para o psiclogo Allan de Paula Arajo, um dos coordenadores do projeto, difcil explicar o motivo do uso dessas drogas. uma questo multifatorial. necessrio haver a compreenso de que, por aquele adolescente estar na rua, ele est sujeito a uma srie de violaes tanto psicolgicas quanto fsicas, e isso aumenta a possibilidade de que ele venha a fazer uso de algum tipo de substncia psicoativa, mas isso no significa necessariamente que ele venha a faz-lo, afirma. Das ruas para o Girao Apesar de haver atendimentos individuais e atividades em grupo, o tratamento para a desintoxicao no obrigatrio. Se o jovem demonstrar interesse para algum atendimento especial, ele encaminhado ao Centro de Ateno Psicossocial (CAPIS) ou a uma unidade teraputica. Em muitos casos, o GirArte surge como uma soluo mais interativa , j que, nessa unidade, situada em Brazlndia, os adolescentes recebem cursos profissionalizantes e possibilidades de ingressar no mercado de trabalho aumentam. No s com o tratamento da dependncia s drogas que a unidade trabalha. Na verdade, h um conjunto de aes que podem ser feitas junto a esses adolescentes. Amanda comenta que o GirArte surge como um importante complemento para as aes feitas com esses jovens. Eu vejo o GirArte como um centro de vivncias que no exclui os jovens do contexto em que vivem, pois no adianta exclu-los de sua realidade e logo depois tentar ressocializ-los em um contexto no qual eles no estavam acostumados., afirma a psicloga.

A criana em situao de rua est sujeita a violaes psicolgicas e, consequentemente, vem a fazer uso de drogas

Jovens que usam solventes tm 7 vezes mais chances de consumir cocana ou crack.

59% dos usurios j se envolveram em brigas e 45% participaram de roubos. 27% dos adolescentes adquirem os solventes no mercado legal.

Saram de casam sobretudo, em busca de diverso e liberdade (17,5%), fugindo de desentendimentos com a famlia ou ocorrncia de violncia domestica(16%), acompanhando amigos(8%) ou para sustentar a famlia(7%)

fonte: revista DARCY

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Trabalho e cidadania Atuar no mercado de trabalho e frequentar escolas uma realidade distante para quem mora na rua. Esse mais um dos desafios enfrentados por esses centros de acolhimento. O desafio para ajudar esses jovens encontrar uma forma de incentiv-los a recuperarem a confiana, mostrando, entre outras aes, a importncia da imposio de limites, fator que no se encontra nos ambientes dos moradores de rua. Para isso, a criao de vnculos mais saudveis essencial. De acordo com Allan, a base de trabalho feita com adolescentes se difere dos adultos, pois os mais novos ainda sofrem muita influncia do meio em que vivem, enquanto o adulto est em um processo de desacelerao. Segundo o psiclogo, normalmente a personalidade de um adulto j est formada, e com muitos no necessrio se focar em fatores desenvolvidos na infncia, como bases de formao psicolgica e social. Com crianas, necessrio trabalhar questes como personalidade, acolhimento, reinsero familiar, entre outras.. Aprender sobre direitos e deveres, apesar de parecer algo clich, importante para quem no sabe o que viver em ambientes saudveis. Pensando nisso, uma das diversas aes tomadas no Centro a de educao civil desses jovens, para que conheam um pouco mais sobre seus direitos. Allan comenta que, por estarem margem de muitos espaos sociais importantes para o ingresso no mercado e em outras possibilidades de aprendizado, muitos no fazem nem ideia de que existe um estatuto especfico para eles e, entender como correr atrs de chances como a do estudo, torna-se um grande incentivo para quem vive com poucas oportunidades de educao. Drogas, direitos, escola, mercado de trabalho. Para quem est acostumado, ouvir sobre esses temas todos os dias por parte dos pais ou professores, j algo

batido. Mas, para muitos, ainda so assuntos que no so tratados de forma adequada, pois vivem em um ambiente com poucas expectativas de melhora de vida. Projetos que j se tornaram polticas pblicas e ONGs recm criadas apenas mostram que cuidar desses jovens uma questo de sade pblica, e apesar de ainda haver poucos centros no DF, mostrar sociedade como se faz a reintegrao dessas pessoas j um grande incentivo para que surjam outras iniciativas na capital federal.

Para o psiclogo Allan de Paula, primordial trabalhar a reinsero familiar dos jovens em situao de rua

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Cotidiano

ESPORTE NA RUAProjetos sociais com foco no esporte proporcionam a integrao entre jovens de diferentes realidades sociais.TEXTO | Jesiel Domingos FOTO | Caroline Leduc e Jesiel Domingos DIAGRAMAO | Gabriel Martins e Jesiel Domingos

O

s esportes tm a capacidade de integrar pessoas de realidades sociais e financeiras distintas e fazer com que se esforcem por um objetivo comum. Entre eles existem os que so praticados na rua. Como o basquete de rua, skate, bicicross street, parkour e futebol. Algumas destas modalidades, com o passar do tempo, vem ganhando cada vez mais espao entre os atletas. Atualmente, existem alguns projetos sociais, eventos e campanhas esportivas destinados a propiciar uma melhoria na prtica dessas atividades para pessoas de

baixa renda e em situao de rua. o caso da Copa do Mundo dos Sem Teto (Homeless World Cup), Taa das Favelas, Liga Internacional de Basquete de Rua (LIIBRA), entre outros. A Taa das Favelas uma competio organizada pela Central nica das Favelas (CUFA), realizada no Rio de Janeiro que, por meio do futebol de campo, visa integrar os moradores de diferentes favelas. So 80 selees, 64 masculinas e 16 femininas, com jovens de idade entre 15 e 17 anos. O evento visa tambm descobrir novos talentos do futebol, j que grandes jogadores vieram das periferias das grandes cidades. Outra iniciativa o Virado Esportivo, evento que visa a prtica de todo tipo de esporte durante 34 horas ininterruptas, e tem alcance nacional. Foi criado com o intuito de despertar a conscincia sobre a importncia da pratica desportiva.

Jovens praticam esporte na cidade do Cruzeiro - DF

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Eventos de alcance regionalNo Distrito Federal existem eventos promovidos pela CUFA/ DF que tm como objetivo a integrao de pessoas de classes sociais diferentes. Nesse caso, no cobrado taxa de inscrio. Um deles o DFSTREET, um campeonato que conta com a participao de praticantes do skate da regio e os incentiva a seguir carreira no esporte .No skate estamos buscando ao invs de premiao, tentar um patrocnio de uma marca ou loja para o campeo do circuito, estamos construindo isso para 2012, explica Antnio de Pdua, Coordenador de Comunicao da CUFA/DF. Os eventos da CUFA tm como pblico principal pessoas que residem nas periferias ou que, de alguma forma, esto ligadas ao universo da cultura de rua. Assim, acaba atingindo indiretamente pessoas que vivem nas ruas. As aes para esse pblico so complicadas, pois necessitam de uma assistncia maior do estado. Passam por moradia, assistncia social e psicolgica, tratamento e internao de usurios de drogas, etc. Infelizmente no conseguimos dar esse tipo de suporte, o que fazemos dar uma ateno e oportunidade em nossos projetos para pessoas que so oriundas desse pblico., diz Antnio Pdua.

O basquete de rua tem como foco a apresentao das habilidades dos jogadores e da cultura urbana, um grande espetculo de dribles e jogadas criativas. Surgiu pelo fato de o basquete tradicional ser pouco acessvel s periferias, j que existia a diviso cultural entre negros e brancos nos Estados Unidos que impedia a prtica de ambos em um mesmo time ou liga esportiva. Uma das dificuldades de difuso dessa prtica no Brasil o fato de o basquete no ser popular por aqui. difcil, porque sempre tem aquele grupinho que joga futebol e no deixa voc jogar basquete, por ser um esporte pouco popular, diz Andr Azevedo, praticante de basquete desde 2003. Pouco a pouco, o esporte vem ganhado espao e hoje j existem instituies que o representam em todo o pas. Uma delas a CUFA, que moldou e organizou o basquete de rua no Brasil. Os campeonatos so elaborados pela LIIBRA, rgo participante da CUFA, e que est presente em 14 unidades da federao, alm da Itlia, Bolvia, Estados Unidos e no Chile. J a Copa do Mundo dos Sem-Teto uma organizao que usa o futebol como forma de integrao e ajuda a acabar com a falta de moradia, j que incentiva os participantes a mudarem de vida. O evento realizado em 70 pases, entre eles o Brasil. aberto a esportistas de diferentes situaes financeiras e geogrficas, pois o termo sem-teto pode ser utilizado para moradores de rua, pessoas que residem em albergues ou em situaes de pobreza.

O basquete de rua vem ganhando espao, e j conta com campeonatos organizados pela LIIBRA

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Cotidiano

Incluso pelo esporteProfessor de So Paulo ensina a crianas e jovens carentes os fundamentos do futebol.

s sete horas da manh, o despertador toca pela primeira vez. Mais meia hora e toca pela segunda vez. O pulo da cama e um banho frio so os responsveis pelo fim do sono e o inicio de um novo dia. Vitamina de banana acompanhada de um po com manteiga e um caf quente sem acar formam o caf da manha. Um apito, um saco cheio de bola, uma dzia de coletes e alguns cones so os companheiros da caminhada de aproximadamente 20 minutos. De segunda a sexta-feira assim que se passam as manhs do professor Marcos Paulo, ou Tio Paulo como chamado carinhosamente pelos seus alunos. Marcos Paulo professor voluntrio e dedica maior parte das manhs ensinando crianas carentes os fundamentos do futebol. O professor formado em educao fsica, trabalha nessa rea a mais de dez anos, mas segundo ele sua verdadeira vocao ensinar futebol para crianas carentes. nesse trabalho voluntrio que se sente gratificado e motivado. Muitas dessas crianas tem problemas de gente grande em casa. Quando se trabalha nesse ramo, a prtica do esporte vai alem de momentos de descontrao, voc acaba atuando como terapeuta, pai e professor. Voc percebe que esta fazendo a diferena na vida dessas crianas. Marcos acredita que a simples vontade das crianas de correr, pular, chutar, pegar, de se divertir ao praticar um esporte normalmente no o bastante. Toda criana tem vontade de jogar, mas s vezes no tem nenhum lugar perto de casa pra praticar algum esporte Para o educador fsico, o direito prtica esportiva muitas vezes retirado da criana. Ela precisa de uma estrutura bsica para a realizao de uma atividade fsica saudvel. Ao perceber essa realidade, ele tomou a deciso

de se tornar um treinador de futebol. Escolinhas como a do professor Marcos so, muitas vezes, a nica maneira das crianas terem acesso prtica supervisionada de esporte. Marcos Paulo conta que utiliza somente materiais prprios. A quadra pblica, feita de asfalto com uma pintura desgastada e duas traves de metal. Ela fica na cidade de Guaratinguet, no interior de So Paulo. Essa estrutura simples, segundo ele, capaz de alcanar crianas e jovens com inmeros problemas familiares, que no contam com uma base familiar estvel e com as condies necessrias para uma infncia normal e tranqila. Segundo Marcos, so muitos os adolescentes que no tiveram as mesmas oportunidades que ele, como terminar o ensino superior, ter uma infncia tranqila, e toda estrutura necessria para sua formao. Marcos Paulo por meio de suas aulas e lies, tenta passar algum ensinamento sobre convivncia e vida em sociedade, participando ativamente na formao desses cidados. Mas, para o Tio Paulo, a parte fundamental de seu trabalho proporcionar para muitas crianas a chance de serem simplesmente crianas.

TEXTO | Eli Zamboni FOTO | Caroline Leduc DIAGRAMAO | Gabriel Martins

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Ainda que no nas melhores condies, a prtica de esportes colabora para a incluso social

Os benefcios da diverso So inmeros os benefcios da pratica desportiva. O Ministrio do Esporte considera a incluso social um deles. Isso fica claro na prpria misso da instituio: O Ministrio trabalha aes de incluso social por meio do esporte, garantindo populao brasileira o acesso gratuito prtica esportiva, qualidade de vida e desenvolvimento humano. Segundo censo divulgado pelo Governo Federal em maro deste ano, o nmero de crianas e adolescentes que moram nas ruas passa de 23 mil. Para o socilogo Felipe Castro, os danos causados a jovens que vivem nas ruas perigoso e muitas vezes irreparvel, afastar essas crianas dessa realidade de desamparo, distanciando das drogas e da violncia, contribui para formao de cidados. Estudos realizados por socilogos j demonstram indicaes dos benefcios que a prtica regular de esporte proporciona, na formao moral ou da personalidade

dos seus praticantes. Segundo Felipe o esporte sendo uma atividade fsica coletiva, com regras, responsvel por transmitir lies valiosas sobre convivncia, e vida em sociedade com a pratica esportiva crianas e jovens se sentem mais aptas a se relacionar, facilitando a incluso destas na sociedade Para o jovem Pedro de onze anos o esporte tem grande importncia, ele treina futebol h quatro anos eu comecei a jogar porque eu no tinha muitos amigos e minha me trabalhava o dia inteiro Por meio do esporte Pedro fez amigos e conheceu professores que passaram lies valiosas. Quando eu comecei a jogar eu conheci um monte de gente, ai quando eu comecei a treinar eu tinha um professor que sempre ficava conversando com a gente As lies passadas por professores, juntamente com as lies de sua me contribuem para a formao do jovem Pedro, ele ainda no entende a importncia que isso tem, mas sabe que o futebol possibilitou fazer amizades, e conhecer professores que conversando com a gente prestam o suporte que essas crianas precisam. O esporte tambm proporciona beneficio para a sade humana, segundo o mdico Paulo Assis a atividade fsica atua na preveno de diversas doenas, principalmente sedentarismo e obesidade. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE) 8% das crianas brasileiras so obesas, para Paulo Assis incentivar a prtica esportiva desde cedo possibilita a preveno de doenas, e permite uma vida adulta mais saudvel.

Em

prol da Incluso

Sabendo da possibilidade de incluso social por meio do esporte o Ministrio apresenta um setor especifico para tratar dos assuntos ligados ao esporte e lazer, educao e incluso social. De maneira geral a secretaria responsvel por coordenar e formular polticas sociais ligadas ao esporte, assim como manter intercambio e articular-se com outros rgos em prol do desenvolvimento dessas polticas, segundo o site do Ministrio do Esporte. Esse setor do Ministrio tambm o responsvel pela criao de projetos esportivo-educacionais, de incluso social, assim como a cooperao e assistncia financeira a estes programas. Um desses o Prmio Brasil de esporte e lazer de incluso social, uma ao que tem por objetivo incentivar, apoiar e valorizar iniciativas que contribuam e subsidiem polticas pblicas de esporte e lazer de AVANTE 38social, por meio de premiaes. incluso

Cotidiano

a rotIna de um conselheIro tutelar

M

arcos Paulo de Oliveira j trabalhou como Coordenador de Informtica, Assessor Parlamentar e agora Coordenador do Conselho Tutelar de Planaltina-DF. Pratica exerccios regularmente todas as manhs antes de ir para a sua sala de paredes claras decorada com mural de temas infantis.

Quando chego ao gabinete me deparo com a mesa em X no ambiente administrativo, computadores, aparelhos de telefone, fax e mquina de xrox, tudo em quantidade suficiente. Na segunda-feira oro para comear mais um dia Sempre no comeo de semana, de 8h s 18h, me dedico ao atendimento de denncias encaminhadas e averiguo a situao de cada criana e adolescente. As denncias geralmente so feitas por telefone, mas tambm podem chegar como um documento escrito ou as pessoas podem ir diretamente no Conselho. Meu trabalho defender o direito da criana e do adolescente, por isso no s recebo e encaminho esses casos, mas tambm os acompanho. Para exercer a funo preciso ter profissionalismo e ser solidrio. O profissionalismo necessrio para dar a mesma importncia cada um e tambm para manter o sigilo de cada caso, que obrigatrio. A solidariedade importante para que eu possa me colocar no lugar desses jovens quando estou ajudando. Quando falo com eles, no sou apenas o Conselheiro, tenho um olhar de pai, amigo, irmo, curador, tutor, professor e orientador. Essa aproximao necessria para criar um elo e descobrir qual dos direitos est sendo violado. A maioria dos atendimentos relacionada a conflitos familiares e casos usurios de drogas. No existe um caso mais complexo que o outro pelo fato de haver um direito violado j significa que algo est errado. Contudo, existem casos mais trabalhosos pelo fato de no existir no Distrito Federal clnicas que tratem de jovens e crianas com esse problema. Uma preocupao de todos que trabalham no Conselho Tutelar de que tudo funcione de maneira uniforme. Por isso feita uma reunio nas sextas-feiras a cada quinze dias. Os cinco conselheiros se renem, tudo feito de forma organizada, como coordenador fao um material com as que sero discutidas e distribuo aos demais conselheiros. A rotina de um Conselheiro Tutelar exige muita cautela e capacidade de discernimento. preciso ter a pacincia e ao mesmo tempo ousadia para se chegar o fundo de um problema. Essas crianas precisam confiar, uma capacidade que muitas vezes, foi tirada delas. Penso que o mais difcil talvez confiar em algum que eles nunca tenham visto, porque, para eles pode parecer que serei mais um a no fazer a diferena.

TEXTO | Karla Cordeiro DIAGRAMAO | Karla Cordeiro e Gabriel Martins

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Cotidiano

oU

grIto ansIoso da juvEntudE brasIlIEnsETEXTO | Denise Santos FOTO | Denise Santos DIAGRAMAO | Denise Santos e Gabriel Martins

ma jovem tmida de olhar triste estava distribuindo panfletos na plataforma superior da rodoviria, debaixo de um sol quente, no meio da multido de transeuntes. Krita Luana Souza, que tem 18 anos, diz no gostar muito do que faz, mas ainda o faz, h um ano, porque necessita. Tem muita gente desempregada, ento tem que se virar com a oportunidade que aparecer. Todos os dias, a jovem desloca-se aproximadamente 35 quilmetros de Ceilndia ao eixo central do Plano Piloto para fazer a panfletagem, receber a diria e a passagem para o dia seguinte. Ela pretende um dia voltar aos estudos, e apesar de no gostar do trabalho, considera um emprego como qualquer outro. Quero continuar aqui, juntar um dinheiro extra e depois procurar algo melhor para pagar uma

faculdade no futuro. Usa um chavo popular para defender sua profisso. melhor permanecer trabalhando com panfletagem do que estar roubando, matando ou vendendo drogas. A pesquisa de emprego e desemprego feita pelo Departamento Intersindical de Estatstica e Estudos Socioeconmicos (DIEESE) referente aos meses de julho e agosto apontou alguns indicadores de estabilidade no nmero de pessoas empregadas no Distrito Federal. Segundo o estudo, em agosto de 2011, 54,8% dos jovens entre 16 e 24 anos estavam empregados, enquanto no mesmo perodo de 2010, 53,3% estava trabalhando regularmente. Isso representa um acrscimo de 1,5% na contratao de jovens em relao ao mesmo perodo do ano anterior. O estudo revela ainda que, apesar de existirem 173 mil desempregados, houve um aumento de 1,2% no nvel ocupacional no DF. Apesar desse cenrio otimista de crescimento, quase metade dos jovens ainda esto desempregados. O tema permeia uma realidade de contradies. Para uns, o trabalho na juventude oportuno, enquanto para outros, o ideal a dedicao total ao estudo. No meio termo h a adeso ao estgio, mas este no chega a todos aqueles que precisam trabalhar para sobreviver.Na plataforma superior da rodoviria do Plano Piloto, jovens trabalham com panfletagem e no comrcio irregular

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O secretrio de Estado da Juventude do Distrito Federal, Fernando Neto, aponta que as oportunidades de trabalho existentes no DF ainda so poucas, embora sejam umas das melhores do pas no caso dos empregos pblicos. Aqui o jovem ou entra no mercado pelo servio pblico ou pelo setor empresarial. De acordo com ele, o fato de no existir em Braslia um plo industrial, ou empresas de grande porte que apresentam uma rea de desenvolvimento e produo, faz com que o jovem daqui tenha que se especializar para entrar em segmentos de servios. Ou o jovem desenvolve uma habilidade, e a partir dessa habilidade ele entra em um segmento do mercado como web design, marketing, assessoria, ou advogado, mdico, dentista, ou ele entra no setor de servios no-qualificados. Aqui ele tem que se especializar de verdade. Quem no tem especialidade, est no emprego informal, ou tenta um cargo pblico. A gente tem uma dificuldade de incluir o jovem no mercado de trabalho se ele no tiver bem instrudo e formado, o concurso pblico acaba sendo a forma mais igual de disputar uma vaga de emprego. Para ele, o jovem brasiliense sabe que ter apenas o 2 grau completo no vai garantir uma condio excelente, mas escolhem a sua graduao sem se distanciar da prpria realidade socioeconmica. Insero no estgio Rafael Felipe Pires, 16 anos, estudante do 2 ano do ensino mdio no Centro Educacional 06 do Gama, estagia h 10 meses no Tribunal Regional do Trabalho e pretende seguir a carreira da aviao civil. O rapaz conseguiu o estgio em menos de um ms de procura por meio do Centro de Integrao Empresa-Escola (CIEE), instituio que incentiva a contratao e insero de jovens estudantes nas empresas. Em Braslia, outras duas instituies de iniciativa privada se destacam pelo mesmo vis de atuao: Instituto Fecomrcio (IF) e Instituto Euvaldo Lodi (IEL), oferecem vagas de estgio a estudantes de ensino fundamental, mdio e graduao. Trabalhar e estudar deixa o estudante exausto e faz com que ele sinta dificuldades em fazer as atividades em grupo da escola. Mesmo assim, o estgio est

Wilson Alexandre Ribeiro tem 21 anos e trabalha h 7 meses em uma loja de calados. O jovem sonha em cursar arquitetura

sendo uma etapa necessria. Quando a gente vai procurar um trabalho hoje, a primeira coisa que as pessoas exigem a experincia profissional, por isso o estgio fundamental. O jovem, que apesar de defender o estgio, aconselha: Se a pessoa no souber definir seus prazos e se dedicar muito, ela no consegue acompanhar nem a escola e nem o estgio. Assim como Rafael Pires, Andr Luiz Gomes dos Santos que tem 20 anos e estuda o 2 semestre de Engenharia Civil, tambm no consegue fazer os trabalhos em grupo da faculdade. Ele estagia no Departamento Nacional da Indstria de Transportes (DNIT) h cinco meses, e continua satisfeito com o trabalho na rea de engenharia dos transportes. Por meio do estgio, eu pude saber o que eu realmente quero para o meu futuro. O jovem conquistou a vaga atravs da indicao feita pelo pai de uma amiga, que esposa de um dos coordenadores do DNIT. O rapaz se diz feliz por trabalhar na mesma rea de formao: Eu quis esse emprego pela fora da experincia do mercado e como uma forma de obter minha independncia financeira. Essa experincia j conta no meu currculo. Ele aponta o estgio como uma maneira de ampliar o conhecimento da rea de atuao: Atravs do estgio eu vi que a engenharia civil na rea de transportes a mais adequada pra mim. No panorama educacional, o modelo da instituio escolar no Brasil no contribui para a insero do jovem no mercado de trabalho. A favor de uma reforma radical da educao, o secretrio de Estado da Juventude do Distrito Federal, mostra-se insatisfeito com o ensino no pas. Nenhuma instituio de ensino mdio no pas, prepara o jovem para o mercado de trabalho. As nicas instituies que possuem condies de fazer isso so as escolas tcnicas, e em Braslia ns temos carncia delas.

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Luciano da Silva Vieira, de 21 anos,ao lado do pai, Lzaro Vieira. Assim como ele, muitos jovens trabalham no estabelecimento dos pais na feira do Gama

Para Fernando Neto, o menino que comea a trabalhar muito cedo, normalmente abre mo dos estudos, ou tem dificuldade para conclu-los, porm, se ele no trabalha e apenas estuda, o mercado vai solicitar experincia, e ele no vai ter. Essa aflio de Lara Gontijo. A estudante tem 23 anos, faz o 10 semestre de Servio Social na Universidade de Braslia e nunca trabalhou regularmente. Para ela h a grande dificuldade de conciliar os estudos e o trabalho, j que suas aulas so diurnas. No incio da formao acadmica, Lara enviou currculos s empresas, participou de entrevistas, mas no conseguiu um emprego que se adequasse grade curricular do curso. Quanto s expectativas de Lara Gontijo para o futuro, ela afirma: No espero muita coisa para quando me formar. Aqui em Brasli