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Vol. 12 | N. 21 | 2018 ISSN 1984-0519 Revista Frontistés Faculdade Palotina www.fapas.edu.br/revistas/frontistes | [email protected] FUNDAMENTOS DA DEONTOLOGIA KANTIANA Jonas Gabriel Vilela Santos * Resumo: O presente artigo objetiva realizar uma breve incursão nos fundamentos da deontologia kantiana, aclarando, especialmente a partir das obras Crítica da Razão Prática e Fundamentação da Metafísica dos Costumes, os conceitos regentes da filosofia moral de Kant. Num primeiro ato, introduzir-se-ão os prolegômenos filosóficos que anteviram ao criticismo kantiano; em seguida, definir-se-á a natureza do sujeito transcendental proposto por Kant; o fundamento da ação moral; a definição dos imperativos e por fim, uma explanação do plano deontológico como processo livre que conduz à autonomia. Palavras-chave: Kant. Imperativo Categórico. Sujeito Transcendental. Liberdade. Groundworks of Kantian deontology Abstract: This article aims do a brief inside in the Kant’s deontology fundaments highlighting specially from de works: Critic of the Pratic Reason and Fundaments of the Metaphysics of Morals, the guiding concepts of Kant’s moral philosophy. Firstly, will it define the transcendental subject’s nature proposed by Kant; following, the groundwork of the moral action; the imperatives’ definition and at the end an explanation about the deontological plan as freedom process which guide to autonomy. Keywords: Kant. Categorical Imperative. Transcendental Subject. Liberty. Considerações iniciais O pensador objeto do presente artigo é umas das figuras mais emblemáticas do rol de polímatas europeus do século XVIII. Diz-se polímata porque, para além da carreira filosófica, o mesmo se dignou adentrar áreas na pesquisa e na docência tão diversas e abrangentes que o título póstumo de “Filósofo Cosmopolita” lhe é perfeitamente adequado. Correligionário da prole iluminista, Kant deve ser situado no rol dos pensadores de alto calibre revolucionário * Acadêmico do 4º semestre do Curso de Filosofia da Faculdade Palotina FAPAS. E-mail: [email protected]

FUNDAMENTOS DA DEONTOLOGIA KANTIANA

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Page 1: FUNDAMENTOS DA DEONTOLOGIA KANTIANA

Vol. 12 | N. 21 | 2018 ISSN 1984-0519

Revista Frontistés – Faculdade Palotina

www.fapas.edu.br/revistas/frontistes | [email protected]

FUNDAMENTOS DA DEONTOLOGIA KANTIANA

Jonas Gabriel Vilela Santos*

Resumo: O presente artigo objetiva realizar uma breve incursão nos fundamentos da

deontologia kantiana, aclarando, especialmente a partir das obras Crítica da Razão Prática e

Fundamentação da Metafísica dos Costumes, os conceitos regentes da filosofia moral de

Kant. Num primeiro ato, introduzir-se-ão os prolegômenos filosóficos que anteviram ao

criticismo kantiano; em seguida, definir-se-á a natureza do sujeito transcendental proposto por

Kant; o fundamento da ação moral; a definição dos imperativos e por fim, uma explanação do

plano deontológico como processo livre que conduz à autonomia.

Palavras-chave: Kant. Imperativo Categórico. Sujeito Transcendental. Liberdade.

Groundworks of Kantian deontology

Abstract: This article aims do a brief inside in the Kant’s deontology fundaments

highlighting specially from de works: Critic of the Pratic Reason and Fundaments of the

Metaphysics of Morals, the guiding concepts of Kant’s moral philosophy. Firstly, will it

define the transcendental subject’s nature proposed by Kant; following, the groundwork of the

moral action; the imperatives’ definition and at the end an explanation about the deontological

plan as freedom process which guide to autonomy.

Keywords: Kant. Categorical Imperative. Transcendental Subject. Liberty.

Considerações iniciais

O pensador objeto do presente artigo é umas das figuras mais emblemáticas do rol de

polímatas europeus do século XVIII. Diz-se polímata porque, para além da carreira filosófica,

o mesmo se dignou adentrar áreas na pesquisa e na docência tão diversas e abrangentes que o

título póstumo de “Filósofo Cosmopolita” lhe é perfeitamente adequado. Correligionário da

prole iluminista, Kant deve ser situado no rol dos pensadores de alto calibre revolucionário

* Acadêmico do 4º semestre do Curso de Filosofia da Faculdade Palotina – FAPAS. E-mail:

[email protected]

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Fundamentos da deontologia kantiana

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2 Revista Frontistés – Faculdade Palotina | Vol.12 | N.21 | 2018 | ISSN 1984-0519

que mudaram as linhas do pensamento e da visão de mundo da modernidade dos séculos

XVII e XVIII. Junto dos revolucionários dos sistemas de realidade vigentes, como Nicolau

Copérnico e Isaac Newton, Kant se encarregou de solucionar com diligência e obstinação o

problema da autonomia do sujeito frente à grandiosidade do ‘sistema físico’, mecânico e

determinista que irrompia nas universidades, especialmente inglesas e escocesas, já no

declínio da promessa iluminista, cenário este de famigerado ceticismo.

Immanuel Kant nasceu em 1724, no interior da antiga Prússia, cidade de Könisberg,

hoje Kaliningrado (pertencente ao território da Rússia). Apesar do reconhecimento e honrarias

locais que recebeu das autoridades locais, sobretudo por sua proeminente atividade

acadêmica, Kant provinha de uma família, aos moldes da época, acentuadamente modesta

(REALE, 2005, p. 348-349). Seus pais trabalhavam em ofícios vulgares: o pai, Johann Georg,

era lavrador e seleiro, a mãe, Ana Regina Reuter, era dona de casa. Trabalharam arduamente

para a sobrevivência e educação moral dos seis filhos; e foi naquele contexto prussiano, de

austeridade familiar e uniformidade educacional para com os filhos, que o jovem Immanuel

desenvolveu sua personalidade, caráter e visão de mundo.

Estudou no Collegium Fridericianum, cujo diretor era o pastor pietista, F. A. Schultz,

na época, também professor de teologia da Universidade de Könisberg cujas as aulas Kant

frequentou (ROHDEN, 2011, p. 61). A preferência pela instituição foi de sua mãe, Regina,

que planejou decididamente educar os filhos na tradição protestante pietista. Ambiente

demasiadamente rigoroso e protocolar que, mais tarde, viria interferir nas notas mais sutis da

filosofia moral do Kant maduro (REALE, 2005, p. 348). Lá aprendeu latim, parcialmente

grego, e também realizou suas primeiras incursões nas obras clássicas do pensamento

moderno iluminista. Por sua dificuldade com o grego, pode não ter chegado a ler os clássicos

da literatura e filosofia gregas, como sugerem alguns de seus historiadores.

Em 1740 matricula-se na Universidade de Könisberg, cursa aí ciências naturais e

filosofia, graduando-se em 1747. Nos sete anos seguintes foi preceptor nas casas de diversas

famílias dos arredores de Könisberg, ofício que o manteve financeiramente enquanto

doutorava-se (ROHDEN, 2011, p. 62). Em 1755 obteve sua licença de Livre-Docente e em

1764 recusa o pedido do governo local que assumisse a cátedra de Arte Poética. Lecionou,

ainda em Könisberg, até 1770, quando recebeu seu título de docente ordinário com a

dissertação De mundi sensibilis atque inteligibilis forma et principiis (Das formas e princípios

do mundo sensível e inteligível), lecionando as disciplinas de metafísica e lógica. Um ano

antes de sua admissão rejeita ser professor titular em Erlangen e Jena em vista de salvaguardar

sua oportunidade em Könisberg.

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Fundamentos da deontologia kantiana

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3 Revista Frontistés – Faculdade Palotina | Vol.12 | N.21 | 2018 | ISSN 1984-0519

Em 1772 abandona o cargo de bibliotecário da biblioteca real do castelo de Könisberg,

emprego conseguido em 1765. Em 1786 é escolhido reitor da universidade e eleito membro

da Academia de Ciências de Berlim (ROHDEN, 2011, p. 64).

Em sua carreira, como supradito, foi estimado por algumas autoridades locais, por

exemplo: o barão von Zedlitz chegou a oferecer-lhe uma cátedra na Universidade de Halles

em 1778. Entretanto, com a morte do Rei da Prússia, Friederich II – como narra Reale, um

“filoiluminista” –, ao qual o barão von Zedlist era submisso, Kant veio a sofrer represarias já

em seus últimos anos de vida por parte da corte. De tez reacionária, o então Rei despede o

barão de Könisberg de seu cargo de ministro e, em 1794, ordena através do serviço de censura

da Prússia uma repreensão ao Filósofo por suas ideias postuladas na publicação de A Religião

nos Limites da simples Razão. Os historiadores e biógrafos contemporâneos de Kant como

Johann Gottfried Herde (1744-1803) – o qual frequentou as aulas de Kant em Könisberg –,

são quase unânimes ao reconhecer que Kant se manteve obediente à corte sem, no entanto,

retratar-se oficialmente.

Nunca fez grandes expedições ou viagens para fora de Könisberg. Tem-se registro de

apenas duas saídas em toda a sua vida; e os anos passados na pequena cidade sempre foram

vividos com prussiana metodicidade. Acordava às cinco, fazia sua caminhada vespertina

sempre no mesmo horário, nunca faltava a seus deveres e era pontualíssimo nas aulas

(REALE, 2005, p. 349). Os últimos anos da vida do senhor de “testa larga, constituída de

propósito para pensar; sempre sereno arguto e erudito; aberto a todas instâncias da cultura

contemporânea” (REALE, 2005, p. 349), foram de trágico sofrimento. A velhice lhe tomou as

forças físicas, motoras e intelectuais; perdeu grande parte da visão, beirando a cegueira; veio a

sofrer sérios surtos de amnésia e aos poucos foi perdendo a lucidez reflexiva. Em 1796, aos

23 dias de junho faz sua última preleção na universidade; em 1800 sua debilitação física

piora, levando Wasianski e Jäsche, dois discípulos seus, a organizar e publicar suas lições.

Faleceu no leito de seu quarto aos 12 dias de fevereiro do ano de 1804, 11 horas em

decorrência de um quadro semivegetativo (ROHDEN, 2011, p. 64).

1 Prolegômenos filosóficos do pensamento kantiano

É de consenso de considerável parte da comunidade acadêmica de pesquisadores na

teoria do Filósofo de Könisberg que a argumentação moral e epistemológica deste se funda

em princípios mistos de duas grandes correntes ocidentais, especialmente epistemológicas; a

saber, o racionalismo de René Descartes, o qual mais tarde influenciaria Baruc Spinoza e

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Fundamentos da deontologia kantiana

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Gottfried Leibiniz, e o empirismo da tradição inglesa e escocesa, tendo por expoentes, John

Locke, Georg Berkley e, especialmente, David Hume. Portanto, expor e analisar a filosofia

moral kantiana é, ao mesmo passo, realizar um diálogo histórico com os clássicos

antagonismos modernos. Assim nos atesta Paul Guyer:

Como vários filósofos do tempo de René Descartes e Thomas Hobbes, Kant tentou

explicar tanto a possibilidade do novo conhecimento científico, o qual havia

culminado na visão de mundo matemática de Isaac Newton, quanto a possibilidade

da liberdade humana (1992, p. 1-2)1.

Já no auge da teoria moderna da explicação científica e experimental do mundo e do

sujeito humano, Kant busca dar uma resposta sólida a um paradoxo que se punha ao se levar a

termo as concepções morais de Descartes e Hume.

Diferentemente dos mecanicistas e empiristas desde Hobbes a David Hume, Kant

não tentou reduzir a liberdade humana a mais um mecanismo entre aqueles de uma

natureza predeterminada, mas, também diferentemente dos racionalistas desde

Descartes a Gottfried Wilhelm Leibniz e Christian Wolf, Kant não esteve

intencionado em fundamentar a liberdade humana em uma intuição racional

afirmada em algum mundo objetivamente perfeito, tão somente obscurecido

confusamente pelos sentidos (GUYER, 1992, p. 2)2.

Este paradoxo entre o determinismo das correntes naturalistas versus o platonismo que

emana das teorias cartesianas sugere a condenação da alma humana, ou numa imanente

condição natural, ou numa causa extramundana que, para ser alcançada, exige um exacerbado

menosprezo das faculdades sensíveis em função de ordenar a ação como que aos modos da

geometria e das evidências matemáticas. Kant observa uma natureza comum a essas duas

faces do problema antropológico posto por este antagonismo: ambas põem em causas

exógenas a determinação da ação humana. O empirismo, nas faculdades sensíveis que ao

causarem prazer ou dor regulam as estruturas sentimentais que levam o homem ou à ação

viciosa, ou à ação virtuosa, sem haver aí um juízo de bondade ou maldade livremente

deliberado. Nesta corrente, a liberdade da vontade não existe. Como expoente desta classe

filosófica, Hume em seu Tratado Sobre a Natureza Humana afirma que

1“Like many philosophers from the time of René Descartes and Thomas Hobbes onward, Kant tried to explain

both the possibilty of the new scientific knowledge, which had culminated in the mathematical worldview of

Isaac Newton, and the possibility of human freedom”. Todas as traduções que se encontrarem neste artigo são

nossas. 2“Unlike mechanists and empiricists from Hobbes to David Hume, Kant did not try to reduce human freedom to

merely one more mechanism among those of a predictable nature, but, unlike rationalists from Descartes to

Gottfried Wilhelm Leibniz and Christian Wolf, Kant was not willing to ground human freedom on an alleged

rational insight into some objectively perfect world only confused grasped by the senses”.

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[...] podemos recordar o precedente sistema das paixões e notar uma diferença mais

considerável entre nossas dores e prazeres. O orgulho e a humildade, o amor e o

ódio, são estimulados quando se nos apresenta algo que possui uma relação com o

objeto da paixão e produz uma sensação separada da relacionada com a sensação.

Pois bem: a virtude e o vício vão acompanhados destas circunstâncias. Devem

encontrar-se necessariamente em nós ou em nos outros e estimular prazer ou dor, e

por conseguinte, dar lugar a uma destas quatro paixões, as quais se distinguem

claramente do prazer e a dor que despertam os objetos inanimados e que

frequentemente não têm relação conosco; este é, quiçá, o efeito mais considerável

que a virtude e o vício têm sobre o espírito humano ( 2001, p. 342)3.

O fundamento exógeno para a ação moral virtuosa está no estimulo de sensações que

conjugalmente produzem o desejo de uma possível conduta, o que Hume chamou de

sentimento nobre, uma qualidade de sentimento oriundo da mesma fonte dos que causam o

vício, entretanto, que habitua o homem a sentimentos comuns de humildade, amor, coragem.

Não é o homem que em última instância age de livre vontade deliberativa, mas até a

deliberação é fruto da mnemônica das percepções de dor ou prazer que, pela força habitual,

conduzem o raciocínio para o que é mais útil e bom. A liberdade do sujeito é, na verdade, uma

trama complexa de percepções e impressões psicológicas constituintes das paixões internas; a

vontade é sempre movida pelo desejo estimulado pelas experiências de prazer.

Na outra mão do paradoxo estão os racionalistas que, como Descartes, admitem uma

espécie de intuição intelectual como fundamento para o conhecimento verdadeiro, o qual

deveras orienta (move) a vontade para a ação moral virtuosa. No texto As Paixões da Alma,

Descartes escreve:

Mas a vontade é, por natureza, de tal modo livre que nunca pode ser compelida; e,

das duas espécies de pensamentos que distingui na alma, das quais uns são suas

ações, isto é, suas vontades, e os outros as suas paixões, tomando-se esta palavra em

sua significação mais geral, que compreende todas as espécies de percepções, os

primeiros estão absolutamente em seu poder e só indiretamente o corpo pode

modificá-los, assim como, ao contrário, os últimos dependem absolutamente das

ações que os produzem, e a alma só pode modificá-los indiretamente, exceto quando

ela própria é sua causa (1973, p. 242-243).

3“[...] podemos recordar el precedente sistema de las pasiones para hacer notar uma diferencia aun más

considerable entre nuestros Dolores y placeres. El orgullo y la humildad, el amor y el ódio, son excitados cuando

se nos presenta algo que posee uma relación com el objeto de la pasión y produce uma sensación separada

relacionada com la sensación. Ahora bien: la virtude y el vicio van acompañados de estas circunstancias. Deben

hallarse necessariamente em nosotros o em los otros y excitar placer o dolor, y por consiguiente, dar lugar a una

de estas cuatro pasiones, que se distinguen claramente del placer y el dolor que despiertan los objetos

inanimados y que frecuentemente no tienen relación com nosotros; éste es quizá el efecto más considerable que

la virtude y el vicio tienen sobre el espíritu humano.”

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6 Revista Frontistés – Faculdade Palotina | Vol.12 | N.21 | 2018 | ISSN 1984-0519

Neste tratado sobre a mecanicidade das funções da alma humana em relação a si

própria e ao corpo que a contém, Descartes define um conceito fundamental que seu

racionalismo, mais tarde, viria subsidiar ao criticismo moral kantiano, “a vontade é, por

natureza, de tal modo livre que nunca pode ser compelida”. Descartes devolve ao sujeito

pensante o poder de agir sem uma determinação natural das afecções, entretanto, o

fundamento da possibilidade da ação moral está no conhecimento dedutivo do agir enquanto

derivado de juízos verdadeiros (DESCARTES, 1973, p. 246-247). Este conhecimento pode

ser alcançado através do entendimento da evidência de ordem geométrica em todo existente, e

esse entendimento é uma espécie de intuição racional oriunda em si de um ser transcendente

que seja puramente cógito, ilimitado e eterno. Um puro espírito que se dignou conceder à

alma humana uma ideia pura e homogênea.

É mister, portanto, rejeitar inteiramente a opinião vulgar de que há fora de nós uma

fortuna que faz com que as coisas sobrevenham ou não sobrevenham, a seu bel-

prazer, e saber que tudo é conduzido pela providência divina, cujo decreto eterno é

de tal modo infalível e imutável que, excetuando as coisas que este mesmo decreto

quis pôr na dependência de nosso livre arbítrio, devemos pensar que, com respeito a

nós, nada acontece que não seja necessário e como que fatal, de sorte que não

podemos sem erro desejar que aconteça de outra forma (DESCARTES, 1973, p.

280).

Para Descartes, o ‘livre-arbítrio’ é o princípio da possibilidade de uma ação reta e,

segundo ele, virtuosa. Com toda certeza, Descartes ainda deposita nesse conhecimento inato,

provido por Deus, a razão pela qual se julgam as ações. Contudo, aí já se encontra um faixo

de luz a respeito do que mais tarde Kant viria afirmar sobre os princípios ilegítimos para

moral, dentre eles, os juízos sintéticos ad posteriori, subsidiados pela experiência sensível.

Descartes, do mesmo modo, rejeita a visão utilitária de que a ação virtuosa ocorra em função

da perseguição de um bem empírico e abre o leque de discussões que mais tarde Kant

continuará na Fundamentação da Metafísica dos Costumes.

Toda essa especulação se funda numa nova noção de ciência filosófica que Kant, junto

do idealismo alemão, inaugura: o ‘idealismo transcendental’. Essa transcendentalidade do

sujeito cognoscente e do conhecimento enquanto tal é o que possibilita a sugerida síntese

entre ‘razão’ e ‘sensibilidade’.

2 O sujeito transcendental

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Para adentrar o problema moral em Kant, é preciso, preletivamente, introduzir o leitor

em sua sistematização categorial; definir em que ela se pauta; qual seu fundamento e objeto;

e, enquanto ciência, qual sua natureza.

Assim, o próprio Kant nos introduz:

Ainda, porém, que todo o nosso conhecimento comece com a experiência, nem por

isso surge ele apenas da experiência. Pois poderia bem acontecer que mesmo o

nosso conhecimento por experiência fosse um composto daquilo que recebemos por

meio de impressões e daquilo que a nossa própria faculdade de conhecimento

(apenas movida por impressões sensíveis) produz por si mesma; uma soma que não

podemos diferenciar daquela matéria básica enquanto um longo exercício não nos

tenha tornado atentos a isso aptos a efetuar tal distinção (2013, p. 45-46).

Kant busca evidenciar os limites do conhecimento regulando que a totalidade dos

juízos, começa, mas não surge inteiramente da experiência sensível (2013, p. 45), sendo assim

possível distinguir ‘conhecimento puro’ e ‘conhecimento empírico’. Vê-se que esta

abordagem vem em resposta ao ceticismo empirista, o qual definira que nada há no intelecto

que não seja impressão dos dados empíricos. Assim, Kant faz uma diferenciação da natureza

dos juízos, ou do que se diz conhecer. “Tais ‘conhecimentos ‘são denominados a priori e se

diferenciam dos ‘empíricos’, que têm suas fontes a posteriori, i. e., na experiência (2013, p.

46). Kant ainda afunila esta definição de juízos qualificando-os entre ‘analíticos’ e

‘sintéticos’. Estas qualificações são ditas a respeito da relação proposicional entre sujeito e

predicado, onde “ou o predicado “B” pertence ao sujeito “A” como algo que já está contido

(de modo oculto) neste conceito “A”; ou “B” se localiza inteiramente fora do conceito “A””

(2013, p. 51). No primeiro caso estão definidos os analíticos, no segundo, os sintéticos.

Dessa maneira, Kant identifica as ciências, como a matemática e a física que têm seus

princípios de conhecimento em ‘juízos sintéticos a priori’, como ciências lógicas enquanto

necessitam de um dado autoevidente para serem atestadas enquanto ciência, sendo seus

limites claros e definidos, pois

deixar que os limites de uma ciência se confundam com os de outra não constitui um

aumento, mas sim uma deformação da mesma; o limite da lógica, contudo, está

firmemente determinado pelo fato de ela ser uma ciência que apenas apresenta e

prova, com toda força, as regras formais de todo pensar [...] (KANT, 2013, p.25-26).

Assim, Kant desmistifica alguns juízos que se sedimentaram na tradição sob a

prerrogativa de juízos analíticos, especialmente os gerados na trajetória histórica da ciência

matemática; por exemplo, que 2+2 = 4 seja autoevidente. Em verdade os termos 2 e 2 não

contém o predicado 4, senão supondo a operação de soma, o modo de relação entre ambos.

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Essa ideia de adição é qualquer conceito diverso dos elementos 2 e 2, logo, define-se este

como juízo sintético.

Podemos já antecipar que os tipos de juízos visados por Kant não podem ser os a

posteriori, pois estes são, de toda forma, impossíveis fora da experiência sensível; já os a

priori, sendo analíticos ou sintéticos, parecem estar já no entendimento de modo formal

enquanto princípio de possibilidade de enquadramento da própria experiência. Assim se

deixarmos “[...] que se apague gradativamente, de seu conceito empírico de um corpo, tudo

aquilo que é nele empírico – a cor, a dureza ou maciez, o peso, mesmo a impenetrabilidade -,

permanecerá, todavia, o espaço que ele ocupava [...]” (KANT, 2013, p. 48). O espaço tem,

portanto, valor ‘apriorístico’, pois sem seu conceito, os demais predicados do corpo não

subsistiriam. Depreende-se que essa nova maneira de Kant investigar o que se pode conhecer

visa a ‘aprioristicidade’, os conceitos sem os quais o sistema científico rui. Sobre este

conhecimento, sintetiza Kant:

Eu denomino transcendental todo conhecimento que se ocupe não tanto com os

objetos, mas com o nosso modo de conhecer os objetos, na medida em que estes

devam ser possíveis a priori. Um sistema de tais conceitos se denominaria filosofia

transcendental (2013, p. 60).

Como esta ciência deita sua investigação sobre o conhecimento e suas categorias

apriorística, Kant ousa, como Descartes, definir o objeto de ciência transcendental enquanto

presente no pensamento. Kant está preocupado com o que é o conhecimento do objeto, sem

dar margem à ilusão imaginária da razão. Portanto, Kant busca a consciência de uma intuição

interna que em tudo situe o pensante como sujeito e não como objeto: “Não é por meramente

pensá-lo que conheço um objeto (Objetkt), mas é porque determino uma intuição dada, com

relação à unidade da consciência em que todo pensamento consiste, que conheço um objeto

(Gegenstand)” (2013, p. 306). Este Gegenstand é a determinação que realiza o sujeito como

substância formalmente pensante sobre um Objekt, que é o constituído como tal. É uma

unidade de consciência de uma intuição pela qual um conhecimento se relaciona ao objeto

(KANT, 2013, p. 71). Descartes afirmou que essa intuição é racional, portanto, inata. Kant, ao

contrário definirá que a única intuição (representação) apriorística do sujeito transcendental é

empírica e ‘pura’, no sentido de ser a forma segundo a qual se percebe.

Eu denomino ‘puras’ (em sentido transcendental) todas as representações em que

não se encontra nada que pertença à sensação. Assim, a forma pura das intuições

sensíveis em geral, nas quais todo o diverso dos fenômenos é intuído em certas

relações, será encontrada a priori na mente [...] Na investigação se verificará que há

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duas formas puras da intuição sensível como princípios do conhecimento a priori,

quais sejam, o espaço e o tempo, com cuja consideração nos ocuparemos agora

(KANT, 2013, p. 72-73).

Assim concluímos, a partir deste último trecho da Estética Transcendental, que o

sujeito transcendental é uma estrutural formal do sujeito humano na qual se entendem

intuições apriorísticas e a possibilidade dos juízos sintéticos. Este mesmo sujeito tem uma

existência meramente conceitual e formal, não empírica ou individual. Essa concepção é

basilar para, agora, introduzir-se a natureza da lei moral, da vontade e da liberdade

transcendental, está última subsistindo da mesma maneira.

3 Fundamentos da moral

O Filósofo de Könisberg inicia a primeira secção da Fundamentação da Metafísica

dos Costumes apresentando um conceito mor para o entendimento da ação moral, a ‘boa

vontade’. Nem uma das virtudes almejáveis pelo agente moral, como discernimento, argúcia,

capacidade de julgar, etc. (2007, p. 21), podem lograr êxito em sua bondade se não forem

orientadas por um princípio de ‘caráter’, não utilitário e para além do conceito de virtude, que

os reja. Kant introduz este capítulo reconhecendo a ‘boa vontade’ como esse princípio:

A boa vontade não é boa por aquilo que promove ou realiza,

pela aptidão para alcançar qualquer finalidade proposta, mas tão somente pelo

querer, isto é em si mesma, e, considerada em si

mesma, deve ser avaliada em grau muito mais alto do que tudo o

que por seu intermédio possa ser alcançado em proveito de qualquer

inclinação, ou mesmo, se se quiser, da soma de todas as inclinações (KANT, 2007,

p. 23).

A boa vontade é o pressuposto kantiano de toda ação moral. Ela em si mesma

constitui-se autônoma em relação àquilo a que leva agir o sujeito. Kant ao afirmar que esta

deve ser avaliada em si mesma, em sentido formal, portanto, transcendental, sem ser

conjugada com a bondade (utilidade) final da ação, situa-a no mesmo grau de independência

formal do sujeito transcendental, não sendo, portanto, uma paixão da alma, como diria Hume.

É a real possibilidade de uma ação incondicionada por qualquer fator externo à formalidade

do próprio sujeito.

Uma ação praticada por dever tem o seu valor moral, ‘não no propósito’ que com ela

se quer atingir, mas na máxima que a determina; não depende portanto da realidade

do objeto da ação, mas somente do ‘princípio do querer’ segundo o qual a ação,

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Fundamentos da deontologia kantiana

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abstraindo de todos os objetos da faculdade de desejar foi praticada (KANT, 2007,

p. 30).

O ‘dever’ contém, portanto, a boa vontade em si (2007, p. 26); é o exercício próprio da

faculdade autônoma da vontade, contudo, esse exercício não atualiza por si a ação moral. Está

compreende uma disposição moral em agir ‘pelo dever’ e não somente “em conformidade

com o dever” (KANT, 2007, p. 27). Segundo Kant, a ação vem a ser moral quando não restam

dúvidas ao sujeito pensante, consciente de sua ação, sobre as motivações de sua vontade.

Como situação exemplar, Kant, ilustra essa condição com o caso do suicídio:

[...] quando as contrariedades e o desgosto sem esperança roubaram totalmente o

gosto de viver; quando o infeliz, com fortaleza de alma, mais enfadado do que

desalentado ou abatido, deseja a morte, e conserva contudo a vida sem a amar, não

por inclinação ou medo, mas por dever, então a sua máxima tem um conteúdo moral

(2007, p. 28).

A ação em vista de seu objeto compreende uma ‘inclinação’ e, portanto

passionalidade; já a ação pelo dever presta ao princípio pelo qual se age um ‘respeito’

(KANT, 2007, p. 31). Esse respeito, ao contrário da inclinação, constitui a atividade da

própria vontade e não o efeito desta. O respeito da vontade se presta a um princípio, ou juízo,

maior que ela, afinal, esse dever é uma razão de ação, um axioma, uma ‘lei’; portanto, “dever

é a necessidade de uma ação por respeito à lei” (2007, p. 31), pois

Só pode ser objeto de respeito e portanto mandamento aquilo que está ligado à

minha vontade somente como princípio e nunca como efeito, não aquilo que serve à

minha inclinação mas o que a domina, ou que, pelo menos, a exclui do cálculo na

escolha, quer dizer a simples lei por si mesma (KANT, 2007, p. 31).

O grande prezar de Immanuel Kant sobre a possibilidade da ação moral do sujeito

transcendental situa-se na superação da heteronomia dos fundamentos dessa ação, os quais

legou a tradição cética empirista. O sujeito só age moralmente enquanto o faz em

conformidade com o dever e pelo dever, o que compreende uma independência da vontade em

relação aos motivadores exógenos como o prazer e a dor físicos (somáticos) e, até mesmo, às

paixões endógenas, como a vaidade e a soberba. Assim o dever é a “máxima que determina a

ação” (KANT, 2007, p. 30), o princípio do querer.

Deve-se observar que este princípio do querer não pode estar situado nos efeitos que

se espera da ação, os quais condicionariam os motivadores da ação não tendo, portanto,

nenhum valor incondicionado (KANT, 2007, p. 30). Em que residiria, pois, este valor? Em

parte alguma que não o

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‘princípio da vontade’, abstraindo dos fins que possam ser realizados por uma tal

ação; pois que a vontade está colocada entre o seu princípio a priori, que é formal, e

o seu móbil a posteriori, que é material [...] (KANT, 2007, p. 30).

Define-se aqui, portanto, que a ‘vontade’ é um princípio formal a priori, ou seja,

intuitivo, pertencente à estrutura formal da condição da possibilidade de conhecimento e

juízo, o sujeito transcendental.

Na esfera dos princípios formais a priori, a vontade, capaz de orientar-se pelos juízos

racionais, não se basta em sua formalidade para a ação moral. Não é a simples liberdade

negativa que qualifica a autonomia da ação moral. Como supradito, é pela lei que o dever se

orienta determinando a vontade pelo respeito ao seu princípio.

Essa lei é a chave de leitura para a ação moral em Kant. “Ora, se uma ação realizada

por dever deve eliminar totalmente a influência da inclinação [...], nada mais resta à vontade

que a possa determinar do que a ‘lei’ objetivamente (2007, p. 30)”. Já na esfera subjetiva,

Kant define que o “puro respeito” a essa lei há de se dar de modo prático formulado em uma

“máxima que manda obedecer a esta lei prática, mesmo com prejuízo de todas as minhas

inclinações” (2007, p. 31).

Por conseguinte, nada senão a ‘representação da lei’ em si mesmo, que ‘em verdade

só no ser racional se realiza’, enquanto é ela [...] pode constituir o bem excelente a

que chamamos moral, o qual se encontra já presente na própria pessoa que age

segundo a lei (KANT, 2007, p. 32).

Mas em que consiste essa lei? Qual sua natureza? Onde reside seu fundamento? Estas

são perguntas centrais para a investigação do fundamento último da moral para o Filósofo de

Könisberg.

3.1 A lei moral e os imperativos

Duas coisas enchem o ânimo de admiração e reverência sempre nova e crescente,

quanto mais frequente e persistentemente a reflexão se ocupa delas: o céu estrelado

sobre mim e a lei moral em mim. Não me é necessário buscar ou simplesmente

suspeitá-las fora de meu horizonte como veladas em obscuridades ou no

transcendente4: vejo-as antes de mim e conecto-as diretamente com a consciência de

minha existência (KANT, 2002, p. 203)

4“Two things fill the mind with ever new and increasing admiration and reverence, the more frequently an

persistently one’s meditation deals with them: the starry sky abouve me and the moral law within me. Neither of

them do I need to seek or merely suspect outside my purview, as veiled in obscurities or [as lying] in the

extravagant: I see them before me and connect them directly with the consciousness of my existence”. A

tradução deste trecho da conclusão da segunda parte da CRP (Crítica da Razão Prática) tem uma peculiaridade

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Este célebre parágrafo com que Kant inicia a conclusão da segunda parte da Crítica da

Razão Prática, a respeito do método da razão prática pura, sintetiza a essência daquilo que

Kant entende por princípio determinante da vontade, colocando-o no auge das sublimidades

com que o homem conscientemente se relaciona.

Sendo o dever a possibilidade transcendental de uma ação em respeito à lei, e não por

inclinação passional aos efeitos dela, é necessário determinar e definir qual a natureza e

fundamento desta lei, onde esta repousa; pois a liberdade negativa da ação conforme o dever é

apenas a possibilidade mais lata e sem a efetiva atualização da ação autônoma. Kant entende

que o princípio do agir pelo dever não pode prestar-se a uma lei, ou representação de lei,

externa ao sujeito; entenda-se externa, toda lei ou representação desta não determinada pela

faculdade da razão pura, fundamento do sujeito transcendental. “A razão pura é prática por si

mesmo e concede (ao ser humano) uma lei universal, a qual podemos chamar ‘lei moral’”

(KANT, 2002, p. 46)5. Portanto, Kant investiga na estrutura formal da razão pura, elementos

para uma lei moral fundamental que possa ser expressa numa representação prática, tal como

busca na razão pura especulativa os fundamentos teoréticos para definir a natureza dos juízos

sintéticos apriorísticos como intuições empíricas, delimitando que os princípios pelos quais o

entendimento organiza e une na consciência a percepção são categorias básicas presentes

enquanto estrutura na própria razão.

Neste caso a busca é por uma lei fundamental, uma lei moral, tal qual os fundamentos

intuitivos dos juízos, categorial.

Se um ente racional deve pensar [representar] suas máximas como leis práticas

universais, então ele pode pensá-las somente como princípios que contêm os

fundamentos determinantes da vontade, não pela sua matéria, mas tão somente pela

sua forma (KANT, 2002, p. 40)6.

A matéria dos princípios práticos é o objeto da vontade, aquilo para o qual ela se

inclina ou não. Se a vontade tiver seus fundamentos determinantes no objeto, então “sua regra

(lei) seria sujeito de uma condição empírica [...] e, consequentemente, não seria uma lei

destacável: o termo extravagant, regularmente traduzível por extravagante, exagerado, é notado pelo tradutor

para o inglês Werner S. Pluhar (2002) em rodapé com a expressão alemã im Überschwenglichen, correspondente

à inglesa in the transcendent. Por isso, preferiu-se traduzir para português desta última correspondente do

alemão. 5 “Pure reason is pratical by itself alone and gives (to the human being) a universal law, which we call the moral

law”. O termo correspondente do alemão para moral law é Sittengesetz. 6“If a rational being is to thin of his maxims as pratical universal laws, then he can think of them only as

principles that contain the determinig basis of the will not by their matter but merely by their form”.

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prática” (KANT, 2002, p. 40)7. Contudo, se toda a matéria, ou objeto da vontade, estiverem

separados da lei, então nada sobraria que não a ‘simples forma de uma legislação universal’.

Essa lei universal se expressa praticamente, de modo que “só um ser racional tem a

capacidade de agir ‘segundo a representação’ das leis, isto é, segundo seus princípios, ou: só

ele tem uma ‘vontade’” (KANT, 2007, p. 46). Essa vontade, apesar de ser a própria razão

prática formalmente, não é determinada suficientemente pela razão pura, pois ainda está em

sua materialidade sujeita a condições subjetivas, como diz Kant, a certos móbiles (2007, p.

48), os quais não coincidem com as condições objetivas da vontade. É o problema da natureza

contingente da vontade não responder necessariamente em sua subjetividade a representação

objetiva da razão pura. A determinação que esta última realiza sobre a vontade subjetiva

chama-se obrigação8; este princípio obrigante da vontade “chama-se mandamento (da razão),

e a fórmula do mandamento chama-se ‘Imperativo’” (KANT, 2007, p. 48).

É interessante notar que Kant define o ‘mandamento’ formulado em um ‘imperativo’

como obrigante da vontade, ou seja, aquilo que representa a lei moral, determinando a

vontade a agir conforme a lei. Essa definição ainda não é o que se poderia reconhecer como

sublimidade da ação moral, pois a ‘ação conforme’ tem um conteúdo moral negativo e não

ainda afirmativo. É preciso que a conformidade se converta em respeito, como supradito, esse

respeito à lei é o que faz a sublimidade da ação moral, a verdadeira boa vontade, a qual não

necessitaria de nenhum imperativo, dando a entender que a adequação entre as leis objetivas e

as condições subjetivas livres e indeterminadas, as quais só se determinam pelas

representações do bem (2007, p. 49), comporta que o imperativo não seja aplicável a todos

indiscriminadamente:

Por isso os imperativos não valem para a vontade ‘divina’ nem, em geral, para uma

vontade ‘santa’: o dever (Sollen) não está aqui no seu lugar, porque o ‘querer’

coincide já por si necessariamente com a lei. Por isso os imperativos são apenas

fórmulas para exprimir a relação entre leis objetivas do querer em geral e a

imperfeição subjetiva deste ou daquele ser racional, da vontade humana por exemplo

(KANT, 2007, p. 49).

Em se tratando, pois, dos imperativos como recursos práticos da lei para uma ação

necessária segundo o princípio de uma vontade boa de qualquer maneira (2007, p. 50), é

preciso que esse imperativo leve a uma ação cuja bondade se define na absolução em si da

ação; se ocorre o contrário, a ação já não é um bem em si, mas uma mediadora em vista de um

7“[...] the rule of the will would be subject to an empirical condition [...], and, consequently would not be a

pratical law”. 8 Nötigung.

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efeito. Essas duas qualidades de ações, Kant tipifica como derivadas de duas qualidades de

imperativos: o ‘categórico’ e o ‘hipotético’.

3.1.1 Imperativos hipotéticos

Os imperativos hipotéticos não se põem formalmente, como juízos sintéticos a priori.

Em verdade são sempre determinados a posteriori, o que compreende representarem a

necessidade de uma ação como boa somente em vista de outro que se queira alcançar a través

dela; o imperativo, nesse caso, é um meio. É objetivamente necessário em função de uma

heteronomia; é “[...] boa como meio para ‘qualquer outra coisa’ [...]” (KANT, 2007, p. 50).

Em sua formalidade, o imperativo hipotético, pode ainda ser dito como ‘problemático’,

fazendo jus ao termo hipotético, ao determinar a ação em vista de um intenção, ou inclinação

possível; ou ‘assertórico-prático’, quando se refere a uma intenção real, fática. De ambos os

modos, o presente imperativo é sempre fundamentado num juízo sintético a posteriori

passível de dúvida e, portanto, determinado primeiramente por condições subjetivas. Por

exemplo, o imperativo formulado: deve-se fazer tudo de modo a evitar a dor, não pode ser

universalizável objetivamente, porque o seu determinante é material e subjetivo, sendo assim,

múltiplo e particular; cada sujeito busca o seu prazer segundo sua condição material que é

causa do diverso e do contrário. Neste caso, uma certa prudência9 (phrônesis) aristotélica

estaria desvinculada do sentido de virtude ao passo que busca a felicidade. Esta ‘prudência’

como imperativo hipotético pode se dar como prudência nas

relações com o mundo, ou a prudência privada. A primeira é a destreza de uma

pessoa no exercício de influência sobre outras para as utilizar para as suas intenções.

A segunda é a sagacidade em reunir todas estas intenções para alcançar uma

vantagem pessoal durável. (KANT, 2007, p. 52)10

Assim o imperativo hipotético como ‘destreza’ ou ‘sagacidade’ dentro do escopo da

virtude da prudência, é um juízo analítico. Há ainda a qualidade imperativa da técnica

(thecné), pertencente à arte, visando à utilidade, ou ao juízo de do belo (estético), da mesma

forma, analítico. Assim Kant conclui que esses imperativos: destreza, sagacidade, arte

se devem considerar mais como conselhos (concilia) do que como mandamentos

(praecepta) da razão; que o problema de determinar certa e universalmente, que

9 Klugheit.

10 Nota de Kant ao termo Gesinung (disposição) no 21º parágrafo da 2ª secção (Transição da filosofia moral

popular para a metafísica dos costumes).

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ação poderá assegurar a felicidade de um ser racional, é totalmente insolúvel, e que

portanto, em relação com ela, <<nenhum imperativo é possível que possa ordenar,

no sentido rigoroso da palavra, que se faça aquilo que nos torna felizes>> (2007, p.

55-56).

Conclui-se, portanto, que na ordem dos imperativos hipotéticos, virtude e felicidade

não coincidem necessariamente, de modo que “a felicidade não é um ideal da razão, mas da

imaginação, que assenta somente em princípios empíricos dos quais é vão esperar que

determinem uma conduta necessária” (2007, p. 56). Finalmente, os imperativos hipotéticos

são proposições analítico-práticas, não fundadas em um factum11

, como compreende Kant.

Resta-nos, agora, definir o segundo conceito geral de imperativo, o categórico.

3.1.2 Imperativo categórico

Deve-se reconhecer ainda uma segunda possibilidade geral de imperativo que “sem se

basear como condição em qualquer outra intenção a atingir por um certo comportamento,

ordena imediatamente este comportamento” (KANT, 2007, p. 52). Não mantém relações com

a matéria da ação, a finalidade assertórica (felicidade), ou seus efeitos resultantes, mas

estabelece com a forma procedimental e com princípio que dela deriva, uma relação

determinada. Isso significa dizer que esse princípio se funda em juízos sintéticos a priori e é o

“essencialmente bom na ação consiste na disposição12

(Gesinnung), seja qual for o resultado”

(2007, p. 52).

Portanto, o imperativo categórico é a formulação da excelência da prática moral, ou,

como sintetiza Kant: “pode-se chamar o imperativo da moralidade” (2007, p. 52). A questão

problemática que mais evidentemente se propõe a esta definição é a de que esse imperativo

não é o único móbil da vontade. Como se poderia reconhecer a apoditicidade de uma máxima

imperativa moral, ou categórica, considerada por si mesma (2007, p. 56), como encontrar uma

seguridade de que a vontade é determinada tão somente pela representação da lei:

Não deves fazer promessas mentirosas para não perderes o crédito quando se

descobrir o teu procedimento»; admitimos pelo contrário que uma ação deste género

tem de ser considerada como má por si mesma, que o imperativo da proibição é

portanto categórico; mas não poderemos encontrar nenhum exemplo seguro em que

11

Termo empregado na Crítica da Razão Prática o qual designa um fato essencial, ou formal da razão, um

‘assim é’ da razão. Não se entenda em sentido empírico, como o próprio Kant indica: “não é nenhum fato

empírico mas o único factum da razão pura (2011, p. 53). 12

Deve-se entender “disposição” como motivação primeira da ação; não como disponibilidade, possibilidade

hipotética, ou mesmo como estado de ânimo. A expressão completa: “das Wesentlich-Gute derselben besteht in

der Gesinnung”, ou […] and the essential good in it consists in the disposition (KANT, 2011, p. 61).

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a vontade seja determinada somente pela lei, sem qualquer outro móbil, embora

assim pareça; pois é sempre possível que o receio da vergonha, talvez também a

surda apreensão de outros perigos, tenham influído secretamente sobre a vontade (KANT, 2007, p. 56).

Deste modo o imperativo não teria, senão uma função pragmática, cujo crivo são as

vantagens ou desvantagens consideradas em relação à inclinação da vontade do sujeito pelo

desejo. Por isso, este imperativo precisa ser considerado a priori, contornando a mera

explicação de sua máxima atingindo a real possibilidade de seu estabelecimento. Uma vez que

a lei moral é um fundamento em si mesmo, o imperativo categórico vem a ser seu

estabelecimento, não sendo passível de uma explicação externa à sua formalidade; é a síntese

tautológica: ‘dever pelo dever’. Kant não subestima a possibilidade do imperativo categórico

ser formulado em uma proposição que por si só possa ser este imperativo, contudo, reconhece

a dificuldade de se realizar tal empreendimento:

[...] o princípio da dificuldade que suscita este imperativo categórico ou lei da

moralidade, é também muito grande [...] Neste problema vamos primeiro tentar se

acaso o simples conceito de imperativo categórico não fornece também a sua

fórmula, fórmula que contenha a proposição que só por si possa ser um imperativo

categórico.

Um elemento conceitual necessário para o imperativo categórico é o conhecimento

teórico do conteúdo por ele contido. O imperativo hipotético só permite o conhecimento de

seu conteúdo ao passo que a condição de sua efetivação for dada; é empírico, portanto, a

posteriori. O conteúdo da lei da moralidade, de outro modo, contém tão somente “a

necessidade da máxima13

que manda conformar-se com a lei [...]” (KANT, 2007, p. 58-59).

Kant realiza simples e objetivamente, a formulação dessa máxima em um mandamento

autoevidente cujo conteúdo está posto a priori na razão do sujeito transcendental sem

depender de outrem:

Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se

torne lei universal [...]

Age como se a máxima da tua ação se devesse tornar, pela tua vontade, em lei

universal da natureza (KANT, 2007, p. 59)

13

O próprio Immanuel Kant toma nota da definição do conceito de ‘máxima’, pois a geração de uma fórmula

categórica do imperativo, ou seja, que tenha fundamento e conteúdo em si mesma, necessita de uma clara

diferenciação entre princípios subjetivos e objetivos de qualquer lei: “máxima é o princípio subjetivo da ação e

tem de se distinguir do princípio objetivo, quer dizer da lei prática. Aquela contém a regra prática que determina

a razão em conformidade com as condições do sujeito (muitas vezes em conformidade com a sua ignorância ou

as suas inclinações), e é o princípio segundo o qual o sujeito age; a lei, porém, é o princípio objetivo, válido para

todo o ser racional, princípio segundo o qual ele deve agir, quer dizer um imperativo (KANT, 2007, p. 58).

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Age de tal forma que a máxima de sua vontade possa valer sempre ao mesmo tempo

como um princípio de uma legislação universal14

(KANT, 2002, p. 45).

As duas primeiras formulações são da Fundamentação da Metafísica dos Costumes; a

terceira, da Crítica da Razão Prática. Ambas, em síntese, expressam a possibilidade prática

de uma ação que se apresenta como ‘máxima’. Máxima, sendo o princípio subjetivo da ação

(vontade), precisa do princípio objetivo da ação, a lei (mandamento) universal para ser dita

‘moral’. Kant, nesse sentido lato, não pensa o imperativo categórico como uma obrigação,

como dizem os críticos, ‘formulada para anjos’, sem considerar a própria contingencialidade

humana. Pelo contrário, o eixo da possibilidade do imperativo categórico é a equação que

cada sujeito humano pode e deve realizar entre a consciência da legislação universal objetiva

e máxima interna do agente. É uma constante possibilidade de, independentemente das

condições subjetivas, o sujeito poder realizar uma ação moral. É, em suma, uma

fundamentação de como se dá a ação moral, superando o determinismo mecanicista da

modernidade. Kant abre a possibilidade de o ser humano, entendido não como objeto do

conhecimento, mas como sujeito deste, iniciar uma ‘nova série’ prática, independente – em

seu princípio, não em sua materialidade – da determinação física da materialidade, ou

experiências sensíveis. Na fundamentação dessa máxima, enquanto, princípio da vontade,

Kant termina por identificar a razão da ocorrência da imoralidade. Um fator sutil, mas que se

sustenta num último elemento a ser tratado em nosso estudo sobre a deontologia kantiana.

Se agora prestarmos atenção ao que se passa em nós mesmos sempre que

transgredimos qualquer dever, descobriremos que na realidade não queremos que a

nossa máxima se torne lei universal, porque isso nos é impossível; o contrário dela é

que deve universalmente continuar a ser lei; nós tomamos apenas a liberdade de

abrir nela uma exceção para nós, ou (também só por esta vez) em favor da nossa

inclinação (KANT, 2007, p. 63).

A liberdade de abrir uma exceção ao sujeito agente é o desqualificante último da ação

moral. Portanto, o mandamento moral não é a rigor uma necessidade para o sujeito,

materialmente, mas tão somente ao sujeito transcendental enquanto este é estruturalmente

incondicionado, ou seja, absolutamente livre, tendo uma vontade autônoma.

4 Liberdade para autonomia

14

“So act that the maxim of your will could always hold at the same time as a principle of a universal legislation.

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Por fim, o último conceito chave do sistema moral kantiano é algo que se pressupôs

até o presente momento em virtude de se manter a metodologia analítica da ação moral até

chegar a um princípio último que, apesar de sua suma relevância e necessidade fundamental,

não deve ser entendido no campo da ontologia fundamental. O conceito de que falamos é o de

‘liberdade’.

A vontade é uma espécie de causalidade dos seres vivos, enquanto racionais, e

liberdade seria a propriedade desta causalidade, pela qual ela pode ser eficiente,

independentemente de causas estranhas que a determinem; assim como necessidade

natural é a propriedade da causalidade de todos os seres irracionais de serem

determinados à atividade pela influência de causas estranhas (KANT, 2007, p. 93).

Como o próprio Kant define, esta é uma ‘liberdade negativa’, pois sua essencial

propriedade de poder agir segundo sua própria lei é independente das causas estranhas.

Contudo, desta liberdade deriva uma ‘liberdade positiva’; o momento em que ação já não

meramente determinada por causas subjetivas, mas sim objetivas. O problema de se avaliar a

qualidade desta ação é que a própria liberdade possui um conteúdo apriorístico, portanto, não

definido. Assim, não é possível julgar em última instancia, ou seja, nas motivações mais

subjetivas se a ação foi genuinamente moral, apesar de sua forma prática ter sido. O móbil da

vontade não pode ser comunicado racionalmente.

Afirmar que a ‘liberdade positiva’ se dá na objetividade do imperativo implica dizer

que uma vontade, verdadeiramente livre é uma vontade submetida a leis morais; e, em última

instância, são a mesma coisa (KANT, 2007, p. 94).

Existe ainda uma última aporia que se apresenta à investigação sobre o conceito de

liberdade. Uma vez que a vontade é causa dos seres vivos racionais e a liberdade é sua

propriedade, pela qual ela pode ser eficiente e independente de causas estranhas (KANT,

2007, p. 93), como a liberdade pode se determinar objetivamente sendo que a vontade se

determina por um princípio subjetivo?

Não basta que atribuamos liberdade à nossa vontade, seja por que razão for, se não

tivermos também razão suficiente para a atribuirmos a todos os seres racionais. Pois

como a moralidade nos serve de lei somente enquanto somos seres racionais, tem ela

que valer também para todos os seres racionais; e como não pode derivar-se senão

da propriedade da liberdade, tem que ser demonstrada a liberdade como propriedade

da vontade de todos os seres racionais (KANT, 2007, p. 95).

Kant soluciona o problema considerando a ‘liberdade’ como atributo próprio da

vontade de todo ser racional. Isto é diferente da definição da liberdade como mera

determinação subjetiva. Agir livremente, ou julgar livremente, é uma faculdade imanente à

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vontade do sujeito enquanto ele é de natureza racional; é uma possibilidade apriorística de

todo ser racional, e não apenas dos seres enquanto indivíduos. Este esquadrinhamento da

liberdade permite-nos entender que todos os seres racionais podem agir sob uma ideia de

liberdade “e, portanto, é preciso atribuir, em sentido prático, uma tal vontade (livre) a todos os

seres racionais” (KANT, 2007, p. 96).

Da pressuposição desta ideia decorreu, porém, também a consciência de uma lei de

ação que diz que os princípios subjetivos das ações, isto é, as máximas, têm que ser

sempre tomados de modo a valerem também objetivamente [...] (KANT, 2007, p.

97).

Por fim, esta ideia de liberdade que orienta a máxima subjetiva precisa se tornar

máxima subjetiva de todos os seres racionais; é a grande tese moral de Kant: todo ser racional

pode fazer com que o princípio de sua ação valha para todos. O grande aporte inaugural de

Kant é que essa universalização da máxima em um imperativo segue um conceito caro,

derivado da liberdade, ‘autonomia’.

Ora à ideia da liberdade está inseparavelmente ligado o conceito de ‘autonomia’, e a

este o princípio universal da moralidade, o qual na ideia está na base de todas as

ações de seres ‘racionais’ como a lei natural está na base de todos os fenômenos

(KANT, 2007, p. 102).

A autonomia é para Kant o centro valorativo da filosofia moral. É o momento em que

o sujeito se reconhece não somente pertencente a um mundo sensível regido por leis naturais e

exógenas a sua estrutura formal (heterônomas), mas como pertencente a um mundo inteligível

regido por leis independentes da natureza, fundadas apenas na razão (KANT, 2007, p. 102).

Daí que se conclui a impossibilidade de o homem pensar a causalidade de sua vontade fora da

ideia de liberdade.

Pois agora vemos que, quando nos pensamos livres, nos transpomos para o mundo

inteligível como seus membros e reconhecemos a autonomia da, vontade juntamente

com a sua consequência – a moralidade (KANT, 2007, p. 103).

Considerações finais

Pode-se resumir que o grande empreendimento do sistema moral de Immanuel Kant é

o resgate da autonomia da ação do sujeito transcendental. Esta autonomia se funda na

condição de possibilidade de um princípio determinante da vontade que seja independente da

materialidade da ação. Esse fundamento é a lei moral; princípio sintético a priori, ou seja,

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fundamento formal subsistente na natureza racional do sujeito. O exercício eficaz do

cumprimento da lei moral é a ação em respeito ao ‘dever’, superando a mera negatividade da

ação em relação ao móbil da vontade, o que Kant chama de ‘ação conforme ao dever’. A ação

em respeito à lei é compreendida no ‘dever pelo dever’. Essa lei moral, não determina

eficientemente a vontade sem um princípio ordenador, um mandamento da moral que sirva

como máxima. Esse mandamento deve, de modo apriorístico, conter em si toda a formalidade

procedimental da ação sem servir de meio para a satisfação de uma inclinação sensível da

vontade. A este mandamento Kant denomina imperativo categórico, pois funda-se nos mesmo

princípio teórico dos juízos sintéticos a priori do entendimento; na especificação deste

imperativo, o Filósofo de Könisberg postula que todo juízo que se guie pela noção de bem, ou

felicidade, na verdade, gera princípios imperativos que não asseguram a moralidade da ação,

servindo apenas como meios para o conseguimento de interesses particulares. Kant afasta o

que a tradição ética manteve unido em necessária coincidência; a saber, ‘virtude’ e

‘felicidade’. Assim, ele debita a uma razão pura prática a origem desse imperativo. Contudo,

ainda postula a necessidade de uma equação entre a máxima determinante da vontade, a qual

é subjetiva, e a objetividade do princípio. Este princípio fundamental e atributo da vontade,

enquanto causa dos seres racionais, é a liberdade transcendental; a faculdade que permite o

sujeito dirigir a vontade para uma nova série independente das leis naturais. A consciência

desta independência é o que leva o sujeito a agir sob a representação (ideia) de liberdade

incondicionada. Por fim, a conduta orientada por esse princípio genuíno da vontade é a

autonomia, segundo Kant, a sublimidade do sujeito humano.

Referências

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GARDNER, Sebastian. Routledg Philosophy GuideBook to Kant and the Critique of

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HUME, David. Tratado de la naturaliza humana. Libros em la red, 2001.

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Fundamentos da deontologia kantiana

Jonas Gabriel Vilela Santos

21 Revista Frontistés – Faculdade Palotina | Vol.12 | N.21 | 2018 | ISSN 1984-0519

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