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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Claudia Mastromauro Cerveira Quintas A importância do ethos dos sujeitos em processos criminais: o convencimento do juízo e a sentença criminal. Mestrado em Língua Portuguesa SÃO PAULO 2013

Mestrado em Língua Portuguesa SÃO PAULO

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Claudia Mastromauro Cerveira Quintas

A importância do ethos dos sujeitos em processos

criminais: o convencimento do juízo e a sentença criminal.

Mestrado em Língua Portuguesa

SÃO PAULO

2013

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Claudia Mastromauro Cerveira Quintas

A importância do ethos dos sujeitos em processos

criminais: o convencimento do juízo e a sentença criminal.

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Língua Portuguesa, sob a orientação do Prof. Dr. Luiz Antonio Ferreira.

SÃO PAULO

2013

Banca Examinadora

______________________

______________________

______________________

Dedico este trabalho ao meu marido

Eduardo Cerveira Quintas, eterno e

incondicional incentivador dos meus

sonhos.

Agradecimentos

A Deus, por iluminar e abençoar minha trajetória e por me dar forças em

todos os momentos desta minha caminhada.

Ao meu marido e a minha pequena Cyndy, por compreenderem minha

ausência e minha total dedicação ao solitário processo da escrita.

As amigas: Maria Cristina Máximo Almeida pela preciosa ajuda na

elaboração deste trabalho e Hilani Mercadante que com toda a sua habilidade

e proficiência me ajudou, uma vez mais, em meu desempenho com a língua

inglesa.

Aos professores do programa de Pós Graduados em Língua Portuguesa

da PUC/SP que muito contribuíram para este aprimoramento profissional.

Aos componentes da banca, professor Dr. Luiz Antonio Ferreira e as

professoras Dras. Dieli Vesaro Palma e Ana Lúcia Magalhães.

E, especialmente, ao meu orientador, professor Dr. Luiz Antonio

Ferreira, pela sua incansável disposição em me ajudar com este trabalho e

pela paciência com essa “italiana” de pouca paciência.

RESUMO

Este trabalho objetiva verificar quais são as estratégias retóricas utilizadas nos

discursos jurídicos e como se dá, ao longo dos processos criminais, a

constituição do ethos dos sujeitos manifestados nesses discursos. Na amostra

escolhida, o pai e a madrasta de uma criança assassinada são os principais

suspeitos e a sentença culminou com a condenação dos réus. Para bem situar

o processo de constituição da dissertação, parte-se de considerações

históricas e teóricas a respeito da Retórica Clássica e da Nova Retórica, com

base nos estudos de Aristóteles, Chaim Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca,

Michael Meyer, Olivier Reboul e Lineide do Lago Salvador Mosca. Também

foram usados os estudos de Luiz Antonio Ferreira, no que tange aos princípios

da análise retórica. A Constituição Federal da República Federativa do Brasil,

no que diz respeito às leis magnas, serviu de base para as considerações de

natureza jurídica propriamente dita. A análise resulta da associação de

estratégias retóricas de persuasão e da especificidade da construção do ethos

dos sujeitos envolvidos em um Plenário do Júri, a fim de apontar como os

discursos elaborados nessas esferas foram menos ou mais persuasivos e

convincentes. O recorte selecionado evidencia a presença de muitas

estratégias retóricas persuasivas, bem como a forma como, no plano

discursivo, a construção dos ethos dos sujeitos é retoricamente delineada.

Observa-se, como produto analítico, a predominância do gênero epidítico e dos

raciocínios apodíticos, que partem das premissas prováveis ou verdadeiras e,

nesse sentido, também aproximam o orador e o auditório. Os sujeitos

envolvidos nos discursos analisados valem-se do movimentar das paixões

para persuadir o auditório em busca da adesão. Há, ainda, nos discursos

analisados, ocorrência de figuras retóricas de presença e de escolha, como

hipérbole e ironia, que aproximam orador e auditório. A constituição da verdade

jurídica, como demonstra a análise, parte de premissas verossímeis e associa

as provas extrínsecas às intrínsecas para a condução do auditório. O contexto

retórico, envolto num universo de valores sociais, é fator preponderante para a

constituição argumentativa e exerce forte poder persuasivo. Se as leis são

vitais para a promulgação de uma sentença, o encaminhamento retórico de

todas as partes envolvidas, criado durante as sessões de julgamento, é fator

exponencial para o resultado obtido. Parece ser impossível desvencilhar a

condução lógica do raciocínio sem a associação potente com os elementos

passionais no processo de constituição retórica do ato de julgar, condenar ou

absolver.

Palavras-chave: retórica; análise retórica, ethos, discurso jurídico, processos

criminais.

ABSTRACT

This paper aims to verify which rhetoric strategies are used in legal discourses

and how the characters' ethos is constituted in those discourses made along

criminal cases. In the case analyzed, the father and the stepmother of a

murdered child are the main suspects, and the sentences ended with the

defendants’ conviction. In order to put in context the constitution process of the

dissertation, historical and theoretical considerations about Classical Rhetoric

and New Rhetoric were made, based on the studies of Aristotle, Chaim

Perelman and Lucie Olbrechts-Tyteca, Michael Meyer, Olivier Reboul and

Lineide do Lago Salvador Mosca. The studies of Luiz Antonio Ferreira were

also used, referring to the principles of rhetoric analysis.The Constituição

Federal da República Federativa do Brasil, in regard to magna laws, served as

basis for the considerations of legal nature. The analysis is a result of the

association of persuasion rhetoric techniques and the specificity of the

construction of the ethos of the characters involved in a jury plenary, in order to

point out how the discourses made in those scenarios were more or less

persuasive and convincing. The selected piece shows the presence of several

persuasive rhetoric strategies, as well as the way how the construction of the

ethos of the characters is made in a discourse context. It can be seen the

predominance of the epideictic genre and apodictic thinking, which start from

probable or true premises and so, also bring speaker and audience close

together. The characters involved in the analyzed discourses use passion

movements to persuade the audience in order to obtain its adherence. Some

rhetoric figures of presence and choice, like hyperbole and irony, are noticed in

those discourses, what brings the speaker closer to the audience. The legal

truth constitution, as shown in the analysis, starts from truthful premises and

associates extrinsic and intrinsic evidence to conduct the audience. The rethoric

context, surrounded by a universe of social values, is a major factor for the

argumentative constitution and wields persuasive power. If the laws are vital for

the promulgation of a sentence, the rhetoric path of all parts involved, done

during the trial sessions, is key to the results obtained. It seems impossible to

dissociate the logic conducting of the thinking without the potent association

with the passion elements in the rhetoric constitution process of the act of

judging, convicting or acquitting.

Key words: rhetoric, rhetoric analysis, ethos, legal discourses, criminal cases.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.................................................................................................................13

Capítulo I – Conceito teóricos.................................................................................17

1. A retórica...................................................................................................................17

1.1 As origens da retórica............................................................17

1.2. Ethos, pathos e logos..........................................................................................20

1.3. Os gêneros retóricos...........................................................................................23

1.4. As formas de persuasão....................................................................................23

1.5. O sistema retórico................................................................................................24

1.5.1. Inventio.............................................................................................24

1.5.2. Dispositio.........................................................................................25

1.5.3. Elocutio.............................................................................................25

1.5.4. Ação....................................................................................................26

1.6. Os lugares retóricos............................................................................................26

1.7. A nova retórica e a argumentação................................................................27

1.8. As técnicas argumentativas.............................................................................28

1.8.1. As figuras..........................................................................................28

1.8.2. Os tipos de argumentos retóricos.........................................29

1.8.3. As paixões aristotélicas e o Tribunal do Júri....................31

Capítulo II – O universo jurídico............................................................................36

2. O Direito.....................................................................................................................36

2.1. O processo criminal............................................................................37

2.2. O Plenário do Júri.................................................................................38

2.3. O Direito como linguagem...............................................................39

Capítulo III – O convencimento e a persuasão no Plenário do Júri.........41

3. A história do corpus..............................................................................................41

3.1. A possibilidade de análise do corpus..........................................45

3.2. O corpus...................................................................................................45

3.3. Análise da denúncia............................................................................47

3.4. Análise do depoimento do acusado (A1)...................................54

3.5. Análise do depoimento da acusada (A2)...................................61

3.6. Análise da sentença.............................................................................70

3.7. Conclusão da análise..........................................................................72

Considerações finais....................................................................................................80

Bibliografia......................................................................................................................82

Anexos....................................................................................................................... ........84

Anexo I................................................................................................................84

Anexo II..............................................................................................................87

Anexo III ...........................................................................................................92

Anexo IV..........................................................................................................101

“Tudo parece impossível

até que seja feito”

Nelson Mandela

Introdução

13

Introdução

Após quinze anos de atuação como advogada, surgiu a necessidade de

aprofundar os estudos a respeito da linguagem, haja vista a obrigatoriedade

que tem o profissional do Direito de persuadir seu auditório.

Como os conceitos de persuasão sob a ótica do advogado nos eram

familiares, então, seria mais desafiador estudar as técnicas persuasivas

advindas do representante do Ministério Público, que, sem provas materiais,

consegue persuadir o juízo, a fim de condenar o acusado.

Os motivos que levam um indivíduo a praticar um crime mexem com o

imaginário das pessoas, sejam elas profissionais da Psiquiatria/Psicologia, da

Imprensa ou da Justiça, seja da população em geral. Alguns processos

judiciais, ou autos do processo - como são chamados na esfera jurídica - que

são os instrumentos utilizados pelo poder judiciário para pôr fim aos conflitos

gerados pela ocorrência de um delito por meio da aplicação das leis

disponíveis, são propagados nos meios de comunicação de massa tamanha a

consternação causada na população. Muitos desses processos constituem

corpus para diferentes tipos de pesquisa nas mais diversas áreas do

conhecimento.

O tema proposto para esta pesquisa envolve o estudo das estratégias

retóricas de persuasão e a constituição do ethos manifestado nos discursos

produzidos ao longo dos processos criminais, cujas sentenças culminaram com

a condenação do réu. Sabemos que nos processos judiciais, é possível, por

meio da análise retórica, verificar se o intento do promotor de justiça ou do

advogado de defesa foi obtido por meio de argumentação eficaz.

O Direito é compreendido, sobretudo, por sua disposição para o

estabelecimento de acordos e, nesse sentido, enovela-se indissociavelmente

com a argumentação, que, por sua vez, leva à persuasão, que assume um

papel de real importância no contexto jurídico. No embate travado

judicialmente, ambas as partes de um processo judicial têm suas convicções e,

por meio dos discursos proferidos, tentarão persuadir o júri de que é a sua

“verdade” que deverá prevalecer. Foi a partir dessa concepção de criação do

Introdução

14

verossímil por meio do argumento, que decidimos aprofundar nossos estudos

sobre a antiga e a nova retórica.

No plano linguístico, em seu texto Interação verbal, Bakhtin (2009)

aborda a relação entre linguagem e sociedade, bem como questiona em que

medida a linguagem determina a atividade mental e em que medida a ideologia

determina a linguagem. Ressalta que a palavra é um signo ideológico por

excelência, reflete a realidade social e destaca a sua natureza ideológica como

signo linguístico para frisar seu caráter social, dialógico e interativo. Assim,

podemos afirmar que o homem se vale da língua para manifestar suas

opiniões, seus ideais e suas crenças.

Segundo Bittar (2010:13):

A linguagem funciona como canal de conexão a paixões, sentimentos, ideias, padrões, arquétipos, circunscrevendo a forma pela qual se determina, pelo simbólico, o mundo, na mesma medida em que somos pela realidade humana determinados. As linguagens determinam e constituem a condição humana, e esta questão não pode ser pensada sem que se possa evocar a ideia de que o homem é ser de ação e fala.

A linguagem, pois, exerce verdadeira sedução na relação entre os

interlocutores e, em especial, entre os que a utilizam como instrumento

profissional de convencimento. A palavra expressa por meio da linguagem

será, então, o principal e, em muitos casos, o maior meio de expressão da

convicção utilizado pelos profissionais do Direito.

Entretanto, temos o conhecimento de que o uso da linguagem não é tão

simples. Muitas vezes, nos deparamos com a difícil tarefa de expor nossa

convicção em face às divergências de opiniões, e é justamente nesse plano

que se ressalta o universo da doxa, plano pelo qual o juízo de um auditório

será considerado. A doxa era utilizada pelos sofistas na Grécia Antiga como

ferramenta de formação de opiniões, que, por sua vez, se valeria da influência

das emoções.

No âmbito jurídico, mais especificamente no Plenário do Júri, os

operadores do Direito fazem uso das paixões utilizadas como estratégias

retóricas para persuadir os jurados a respeito da transgressão cometida pelo

réu, a fim de condená-lo.

Introdução

15

Se os delitos praticados por qualquer indivíduo violam as leis de uma

nação, a eloquência dos envolvidos na esfera jurídica traduz a necessidade de

persuasão sobre o outro. Desse modo, é cristalina a concepção de que o

conteúdo dos discursos que chegaram à condenação de uma pessoa se dá no

âmbito jurídico, sim, mas, sobretudo, no âmbito retórico.

Para a retórica, a palavra mostra-se como elemento utilizado no discurso

com o propósito de convencer ou de persuadir.

Por essa razão, o debate em torno do convencimento do juízo em

processos criminais para a prolação da sentença condenatória nesta pesquisa

é fundamentado no domínio da retórica, pois o estudo do convencimento do

outro por meio da palavra está intimamente ligado às estratégias retóricas

utilizadas, e, assim, os sujeitos envolvidos nos processos criminais podem

orientar o juízo na interpretação dos fatos narrados.

Escolhemos como corpus, para tanto, o processo criminal denominado

Ação Penal de Competência do Júri, que tramitou perante a 2a Vara do Júri do

Foro Regional de Santana, São Paulo, Capital, contra A.A.N. e A.C.T.P.J.,

acusados de matarem a criança I.O.N. A partir de agora, usaremos as

seguintes siglas para nomear os acusados e a vítima:

A.A.N. A1

A.C.T.P.J. A2

I.O.N. V

Fonte: o autor.

A escolha do corpus se deu em virtude de encontrarmos um processo

em que a autoria não foi firmada por meio da confirmação pelos acusados, mas

por meio do trabalho discursivo do Promotor de Justiça – daqui para frente

também chamado de PJ – que usou as provas processuais contidas nos autos

para incriminar os réus.

Escolhido o corpus, o passo seguinte foi decidir quais as partes do

processo seriam objeto de estudo. Como o interesse maior desta pesquisa é

observar como o juízo (corpo de jurados) foi convencido, entendemos que seria

necessário analisar as técnicas argumentativas utilizadas pelo PJ em sua peça

acusatória, bem como os discursos proferidos ao longo do processo criminal.

Introdução

16

Nosso objetivo, então, centra-se na identificação de técnicas utilizadas

pelo Ministério Público, chamado também de MP, na pessoa do Promotor de

Justiça, para ressaltar as estratégias retóricas e a constituição do ethos dos

sujeitos envolvidos em processos criminais, cujas sentenças foram prolatadas

com a condenação do réu.

Para alcançar nosso objetivo, a presente pesquisa, busca responder

quais os meios persuasivos utilizados pelo Ministério Público a fim de atingir

seus propósitos e qual o papel da construção da imagem dos sujeitos, ethos,

no desenrolar do processo criminal.

Trata-se de um tema relevante para os estudos de argumentação, pois o

convencimento do outro por meio da palavra está intimamente ligado às

estratégias retóricas, sobretudo no que diz respeito à formação e à atuação dos

sujeitos envolvidos nos processos criminais.

Para a efetivação dos objetivos e a organização do trabalho,

estruturamo-lo em três capítulos. O primeiro capítulo, “Conceitos teóricos”,

versará sobre os conceitos teóricos ligados à retórica e por nós utilizados no

decorrer da análise. O segundo capítulo, “O universo jurídico”, tratará de

noções de Direito, aspectos do Tribunal do Júri e do Direito como linguagem. O

terceiro capítulo, intitulado “O convencimento e a persuasão no Plenário do

Júri”, apresentará o corpus a ser analisado, bem como a análise propriamente

dita. Por fim, nas considerações finais do nosso trabalho, será feita uma

retomada da pesquisa, com o objetivo de refazer o caminho percorrido desde o

primeiro capítulo até a conclusão analítica.

Capítulo I – Conceitos teóricos

17

Capítulo I – Conceitos teóricos

1. A RETÓRICA

Apresentaremos aqui um panorama dos conceitos teóricos por nós

utilizados neste trabalho. Neste percurso, a retórica será delineada com o fim

de nos mostrar seus aspectos persuasivos. Segundo Reboul (2004: XIV) “a

retórica é a arte de persuadir pelo discurso”, entretanto, ela possui suas

limitações e não pode ser aplicada a todo e qualquer discurso

A retórica não é aplicável a todos os discursos, mas somente àqueles que visam persuadir, o que de qualquer modo representa um belo leque de possibilidades! Enumeremos as principais: pleito advocatício, alocução política, sermão, folheto, cartaz de publicidade, panfleto, fábula, petição, ensaio, tratado de filosofia, de teologia ou de ciências humanas. Acrescente-se a isso o drama e o romance, desde

que “de tese”, e o poema satírico ou laudatório. (REBOUL, 2004:XIV)

Teceremos, então, um breve panorama sobre as origens da retórica, sua

função e dos sistemas por ela utilizados.

1.1 As origens da retórica

No capítulo I do livro A retórica (2007), Meyer questionou em que

medida o termo “retórica” é sinônimo de coisas incertas ou duvidosas. Para

tanto, discorreu sobre o seu surgimento e a acompanhou, no plano histórico,

até os dias de hoje.

Segundo Meyer (2007), a retórica nasceu na Sicília, por volta de 465

a.C., após a queda de Trasíbulo, tirano que subtraiu muitas terras de

proprietários na antiga Siracusa. Os proprietários espoliados precisavam

reclamar seus bens, entretanto, a figura do advogado ainda não existia.

Dessa forma, o sofista Córax, discípulo de Empédocles, publicou em

conjunto com Tísias um manual de exemplos práticos, O Córax, que ensinava

as pessoas despojadas de seus bens a recorrerem à justiça. Nele, a

capacidade argumentativa do orador se sobrepunha à verdade.

Capítulo I – Conceitos teóricos

18

Os sofistas, que para Meyer (2007) foram os primeiros advogados a

existirem, eram mestres na arte da persuasão e viajavam de cidade em cidade

a fim de atrair estudantes. Criaram “a arte retórica”, que, segundo Reboul

(2004:9), “era a arte do discurso persuasivo, objeto de um ensino sistemático

global que se fundava numa visão de mundo”. Ainda conforme o autor, para os

sofistas, esta arte tinha a finalidade de “dominar através da palavra” (2004:10).

No Córax, apareceu a primeira definição de retórica: “criadora de

persuasão. (...) não argumenta a partir do verdadeiro, mas a partir do

verossímil (eikos). Surge então a retórica judiciária” (REBOUL, 2004:2).

Protágoras, um sofista muito preocupado com a gramática e com a

coerência, além do estilo, voltou-se para a persuasão, sem, entretanto, se

preocupar com a verdade. Os sofistas, então, criaram a arte do discurso

persuasivo, mas não necessariamente verdadeiro. Esse modo de ver e praticar

a retórica tornou-a conhecida como a arte da enganação.

Com Górgias, também discípulo de Empédocles, surgiu uma nova fonte:

a retórica literária. Górgias percebeu que os gregos identificavam a literatura

como uma poesia épica e trágica, e achavam que a palavra vinha sempre

acompanhada de beleza e, para tanto, deveria ser rebuscada. Em função

dessa concepção, foi considerado um dos fundadores do discurso epidítico, ou

seja, o discurso de elogio público. Criou, para esse fim uma prosa eloquente,

erudita e ritmada. A arte então ganhou estilo.

Foi Isócrates, no século IV, quem, segundo Reboul (2004), tentou trazer

credibilidade ao discurso persuasivo, propondo que ele fosse mais plausível e

mais moral. Pregou ainda que para tanto se necessitava de objetivos

específicos em primeiro lugar, para, somente depois de esclarecidos tais

objetivos, estudar os meios para atingi-los. Segundo Reboul, este orador era o

responsável pela moralização da arte retórica e afirmava que ela só seria

aceitável se estivesse a serviço de uma causa honesta e nobre” (REBOUL,

2004:9-10).

Tal prática foi prontamente repudiada por Platão, que considerava ser a

retórica um falso saber. Surgia, assim, a ideia do raciocínio falacioso e

enganador (MEYER, 2007).

Capítulo I – Conceitos teóricos

19

Platão foi sempre infatigável em opor a retórica – falso saber, ou sofística - à filosofia, que se recusa a sujeitar-se às aparências de verdade para dizer tudo e também seu contrário, o que é condenável, mesmo que rentável. (2007:19)

Preocupado com a reputação da retórica e com o seu mau uso, Platão a

identificou como a habilidade de manipulação da verdade. Para tanto, criticava

seus conceitos nos moldes dos sofistas e afirmava existir uma dicotomia entre

retórica e dialética. Segundo o autor, a dialética se constituía de falas breves e

concisas realizadas por indivíduos que procuravam a verdade; já a retórica, era

um discurso cheio de digressões, diferentemente da dialética, e que tinha por

objetivo apenas agradar o público (delectare).

Este capítulo tem como destaque a retórica que surgiu na Grécia Antiga.

É evidente que todas as teorias apresentadas pelos estudiosos citados foram

importantes. No entanto, foi Aristóteles quem melhor sintetizou a Arte Retórica.

Aristóteles (384-322 a.C.) nasceu quinze anos após a morte de

Sócrates. Foi aluno de Platão desde seus dezessete anos, mas, como não

podia suceder ao mestre, depois de vinte anos, criou sua própria escola: O

Liceu.

Foi preceptor de Alexandre, o Grande, que conquistou para a Grécia

todo o Oriente (desde o Egito até a Índia), e esse feito é considerado por

muitos como consequência dos ensinamentos de Aristóteles.

Para o filósofo, a retórica tinha uma utilidade, diferentemente do

pensamento de Górgias, que a definia como poder. Segundo Aristóteles, era

por meio da retórica que as pessoas expressavam suas opiniões, pela

utilização de argumentos necessários à persuasão. Com essa argumentação, a

retórica passou a ter uma visão mais sólida e se mostrou como a arte do bem

falar.

E essa nova argumentação dá uma idéia mais profunda e sólida da retórica. Para começar, já não a apresenta como poder de dominar, mas como poder de defender-se, o que logo de cara a torna legítima. Não se reduz ao poder de persuadir; no essencial é a arte de achar os meios de persuasão que cada caso comporta (REBOUL, 2004:23).

Para o ataque, a defesa ou para legitimar o dizer são necessários três

componentes básicos um orador, um auditório e uma mídia que é a linguagem

escrita ou falada.

Capítulo I – Conceitos teóricos

20

Segundo Meyer (2007), o orador, o auditório e a linguagem são

igualmente importantes, entretanto, se não houvesse uma pergunta, não

haveria um debate, uma discussão, logo não haveria a necessidade da

existência da retórica. “(...) a retórica é a negociação da diferença entre os

indivíduos sobre uma questão dada” (MEYER, 2007:25).

Esse conceito é muito adequado para o tratamento das questões

jurídicas: sempre há uma questão, que envolve pelo menos dois lados

antagônicos, com diferenças de opinião muito amplas. Nesse sentido, a

negociação se faz necessária para estabelecimento da justiça.

1.2 Ethos, pathos e logos

A palavra ethos é de origem grega e era definida como “a morada do

homem”, ou seja, valores éticos que cada um possuía. O ethos para os gregos

era a imagem de si, o comportamento, as atitudes, as escolhas tomadas, o

caráter e até mesmo a personalidade de cada um.

Para Aristóteles (2007), o ethos liga-se ao caráter que o orador

demonstra ter. O auditório deve sentir a sensatez, a honestidade, a sinceridade

e a autoridade advindas do orador para aderir ao discurso. Segundo o autor, na

composição do ethos estão presentes:

a) a phronésis – prudência;

b) a arethé – honestidade e sinceridade;

c) a eúnoia – solidariedade.

Esse conceito é recuperado por Meyer (2007:34), “é a imagem que o

orador passa de si mesmo, e que o torna exemplar aos olhos do auditório que

então se dispõe a ouvi-lo e a segui-lo”.

Enfim, as virtudes morais que o orador passar ao seu auditório irão lhe

conferir autoridade, pois suscitará a confiança que ele mesmo sentirá frente ao

seu auditório. É no ethos que iremos encontrar os argumentos e as respostas

que o orador necessita para se dirigir ao outro.

Capítulo I – Conceitos teóricos

21

Ethos é, portanto, segundo a retórica antiga, a personalidade que o

orador se confere. Em outras palavras, é a personalidade que o

indivíduo demonstra através da sua fala, da sua maneira de

expressão. Isso implica, em princípio, a criação de uma imagem

agradável (eunoia), simples e sincera (aretê) de si. O orador não diz

claramente que é honesto simples e agradável, mas deixa

transparecer através do enunciado, por meio do exercício da

palavra (MAGALHÃES, 2001:39)

Do ponto de vista de Eggs (2008), Aristóteles estava muito além dos

retóricos de sua época, que entendiam que o ethos não contribuía para a

persuasão, diferentemente do entendimento do filósofo, que creditava ao

orador um semblante confiável se este mostrasse ser possuidor de um caráter

honesto.

Para o autor, na Retórica de Aristóteles:

[há] dois campos semânticos opostos ligados ao termo ethos: um, de sentido moral (...), engloba atitudes e virtudes como honestidade, benevolência ou equidade; outro, de sentido neutro ou “objetivo” da héxis, reúne termos como hábitos, modos e costumes ou caráter. (EGGS, 2008:30)

Eggs (2008) afirma ainda que o orador deve mostrar um ethos

apropriado à sua idade e à sua situação social, e ainda adaptar seu discurso

aos habitus de seu auditório.

Também de origem grega, a palavra pathos carrega em seu bojo um

sentimento muito forte, o da paixão. Segundo o Dicionário Aurélio online: s.m.

(pal. gr.), “tipo de uma experiência humana, ou sua representação em arte, que

evoca dó, compaixão ou uma simpatia compassiva no espectador ou leitor”.

Para Meyer (2007:39) pathos é “o conjunto de valores implícitos das

respostas fora de questão, que alimentam as indagações que um indivíduo

considera como pertinentes” e é construído pelas respostas às questões do

auditório sobre suas paixões, emoções ou opiniões. Questiona o autor o que é

paixão para a retórica e responde a essa questão ao explicar que, sempre que

estamos apaixonados, passamos da pergunta à resposta, ou seja, achamos o

ser amado perfeito, maravilhoso, não distinguimos mais as verdadeiras

qualidades do outro; assim, “a paixão transfere a problemática para o plano da

Capítulo I – Conceitos teóricos

22

resposta”, pois a pergunta é tratada como resposta, e observa que isso é uma

ilusão (2007:37).

O autor enumera então como pode o auditório se comportar diante das

respostas emitidas pelo orador. O auditório pode (2007:39):

1. aderir; 2. recusar essas respostas; 3. completá-las; 4. modificá-las; 5. permanecer silencioso, o que pode ir na

direção de: 6. aprovação; 7. reprovação; 8. mas pode significar desinteresse pela

questão tratada.

O logos, diz respeito à argumentação propriamente dita a princípio, era

um termo usado pelos gregos para definir a palavra escrita ou a falada,

entretanto, alguns filósofos começaram a usá-la como conceito filosófico que

determinava a razão.

Segundo Meyer (2007:40), “o logos deve poder expressar as perguntas

e as resposta preservando sua diferença”.

Aristóteles (2007), em sua obra sobre a retórica, distingue as três formas

de argumentação (provas):

a) a que se baseia no caráter pessoal do orador, que é o ethos;

b) a que se baseia no estado emocional do auditório – pathos;

c) a que se baseia nos argumentos propriamente ditos – logos.

A análise empreendida por Eggs (2008:41) almeja que

(...) o logos convence em si por si mesmo, independentemente da situação de comunicação concreta, enquanto o ethos e o pathos estão sempre ligados à problemática específica de uma situação e, sobretudo, aos indivíduos concretos nela implicados.

Para o autor, há um desdobramento das três provas, pois, segundo

Aristóteles o ethos é a mais importante das provas porque se refere às razões

que inspiram confiança, tais como: o hábito de vida, o caráter e as virtudes

apresentadas por cada indivíduo, e somente por meio dele o auditório se

convencerá. O logos convence por si só, pois é dotado de inferências,

Capítulo I – Conceitos teóricos

23

raciocínios e argumentação. Já o pathos dependerá da situação,

principalmente do envolvimento do indivíduo. Eggs (2008:41) propõe blocos de

convicção sobre as três provas do discurso:

Logos

Inferencial

Raciocínio

Argumentação

Ethos

Habitus – virtude - caráter

Pathos

Paixão, afeto

Fonte: Eggs (2008:41)

1.3 Os gêneros retóricos

Aristóteles (2007) classifica a retórica em três gêneros distintos, com

base na concepção de que existem três tipos de auditório: o juiz, a assembleia

e o público:

1) Gênero epidítico: o auditório desempenha um papel decisivo, porque

aclama ou censura o discurso do orador. Julga se é belo; baseia-se no

tempo presente.

2) Gênero judiciário: determina se a ação é justa ou não; baseia-se em

atitudes passadas, porque necessita esclarecer o que realmente

aconteceu, e tem por objetivo a ética.

3) Gênero deliberativo: decide em função do útil ou do prejudicial por meio

da persuasão ou dissuasão. Julga, aconselha ou desaconselha;

portanto, baseia-se no futuro.

1.4 As formas de persuasão

Para Aristóteles (2007), a retórica é baseada em provas que têm um fim

persuasivo. Afirma também que, entre as provas, existem as que dependem e

as que não dependem da arte retórica. As que dependem são as provas

produzidas pelo orador, ou seja: a) ethos – caráter; b) pathos – emoção criada

no auditório; e c) logos – discurso. As que não dependem são divididas em: 1)

provas extrínsecas: aquelas apresentadas antes da Inventio (invenção), como:

confissões, leis, contratos etc.; e 2) provas intrínsecas: aquelas criadas pelo

Capítulo I – Conceitos teóricos

24

orador e que dependem somente dele no que tange ao estilo e à competência

para elaborar o discurso.

Aristóteles divide ainda a persuasão em dois meios de provas: a) as não

artísticas, que são as evidências concretas – as provas documentais e

testemunhais; e b) as artísticas, que são as inventadas pelo orador e que se

dividem em:

1) Lógicas (logos): baseiam-se na razão e utilizam-se do discurso em si.

2) Patéticas (pathos): baseiam-se nas emoções do auditório eutilizam-

se das paixões que existem.

3) Éticas (ethos): baseiam-se na imagem do orador, ou seja, no caráter

apresentado por ele.

1.5 O sistema retórico

Aristóteles (2007) divide a retórica em quatro partes, que representam as

quatro fases pelas quais o discurso se compõe:

1.5.1 Inventio (heuresis): busca pelos meios de persuasão

É a fase da invenção, pois é nela que o orador irá procurar as pistas

para sua argumentação e a investigação para adequar seu discurso ao gênero

correto. Antes de proferir um discurso, o orador deve se perguntar sobre o que

irá versar; para tanto, precisa descobrir a qual gênero pertence o discurso.

Reboul (2004:47) retoma a concepção de gêneros de Aristóteles e os

divide em

a) Judiciário: que dispõe de leis e se dirige a um auditório especializado; b) Deliberativo: prefere argumentar pelo exemplo e c) Epidítico: recorre a amplificação, pois os fatos são conhecidos pelo público, e cumpre ao orador dar-lhes valor, mostrando sua

importância e sua nobreza.

Após a descoberta do gênero do discurso, a tarefa do orador é encontrar

os argumentos que são os instrumentos de persuasão – ethos, pathos e logos.

Capítulo I – Conceitos teóricos

25

O ethos é o caráter que o orador deve assumir para inspirar confiança

no auditório, preenche as condições mínimas de credibilidade, mostra-se:

sensato (capaz de dar conselhos razoáveis e pertinentes), sincero (não

dissimular o que pensa ou o que sabe) e simpático (disposto a ajudar seu

auditório) (REBOUL apud ARISTÓTELES, 2004:48).

O pathos é o conjunto de emoções, paixões e sentimentos que o orador

deve suscitar no auditório por meio de seu discurso.

O logos diz respeito à argumentação propriamente dita.

1. 5.2 Dispositio (táxis): organização interna do discurso, seu plano.

Divide-se em:

1) Exórdio: é a introdução;

2) Narração (diegesis): exposição dos fatos referentes à causa, é a

narração propriamente dita;

3) Confirmação (pistis): é o conjunto de provas apresentadas;

4) Digressão (epílogos): tem como função distrair o auditório, mas

também indigná-lo; é o encerramento.

1.5.3 Elocutio (lexis): estilo.

É a redação do discurso, o estilo. Os latinos distinguiam três tipos de

estilo: o nobre (grave), para comover (movere); o simples (tênue), para informar

e explicar (docere); e o ameno (médium) para agradar (delectare). Acerca da

elocutio, Reboul (2004:62) propõe o seguinte quadro:

Estilo Objetivo Prova Momento do discurso

Nobre = grave Comover = movere Pathos Peroração (paixão), digressão

Simples = tênue Explicar = docere Logos Narração, confirmação,

recapitulação

Ameno = médium Agradar = delectare Ethos Exórdio, digressão

Fonte: Reboul (2004:62).

Capítulo I – Conceitos teóricos

26

1.5.4 Ação (hypocrisis): proferição efetiva do discurso

É a proferição do discurso, a interpretação do autor; é o discurso em

fase de apresentação.

1.6 Os lugares retóricos (topoi)

Os lugares retóricos são as provas, os argumentos e têm por objetivo a

persuasão. Ferreira (2010:69) define os lugares retóricos como

grandes armazéns de argumentos, utilizados para estabelecer

acordos com o auditório. O objetivo é indicar premissas de ordem

ampla e geral, usadas para assegurar adesão a determinados valores

e, assim, re-hierarquizar as crenças do auditório.

A fim de obter a adesão de seu auditório, o orador busca argumentos

(raciocínios) que estabeleçam o acordo entre os interlocutores.

Reboul (2004:51) classifica os lugares como

1- Argumento pronto que o defensor pode colocar em determinado

momento de seu discurso.

2- Em sentido mais técnico, o lugar é um tipo de argumento. 3- uma questão típica que possibilita encontrar argumentos e contra-

argumentos.

Em nossa pesquisa usaremos a definição de Perelman; Olbrechts-Tyteca

(1996) no que tange aos lugares retóricos, a saber:

I- O lugar da qualidade: com o intuito de engrandecer seu objeto de

discurso, o orador o enaltece e coloca-o como raro, único.

II- O lugar da quantidade: o orador diz que seu objeto é o melhor por

motivos quantitativos, ou seja, por haver em maior número.

III- O lugar da ordem: o orador usa seu objeto de discurso e utiliza a

máxima da anterioridade, ou seja, o seu é o melhor, por ser o

anterior.

IV- O lugar advém do valor da pessoa: aqui, o que se enaltece é a

pessoa e o seu caráter, ou algum mérito por atos praticados.

Capítulo I – Conceitos teóricos

27

V- O lugar da essência: o orador irá enaltecer uma determinada

classe a qual a pessoa pertença para, dessa forma, enaltecê-la.

VI- O lugar do existente: o orador enaltece o que já existe, para

mostrar sua superioridade.

1.7 A nova retórica e a argumentação

Inspirado em Perelman-Tyteca, a argumentação para Reboul (2004) tem

cinco características essenciais:

1) Dirige-se a um auditório: que poderá ser universal ou particular:

universal – está acima de qualquer ponto de vista;

particular– definido pela competência, pelas crenças e pelas

emoções.

2) Expressa-se em língua natural.

3) Suas premissas são verossímeis: tudo aquilo em que a confiança é

presumida.

4) A progressão depende do orador.

5) Suas conclusões são sempre contestáveis.

O conceito de que a retórica oferece caminhos para um entendimento

maior dos discursos proferidos é aprofundado por Meyer (2007) ao afirmar que

a concepção de que o pano de fundo da análise retórica é a negociação entre

os homens no exercício de sua representação social acerca de um problema e,

assim, aspectos psicológicos, sociais e culturais do auditório e do orador são

atribuídos à capacidade persuasiva.

Entretanto, para que isso aconteça, deve-se levar em consideração o

problema retórico, ou seja, deve existir um objeto de discussão, pois, se ele

não existir, não haverá o porquê de se argumentar e, pela lógica, não haverá a

adesão, uma vez que não existe uma questão a ser resolvida.

Capítulo I – Conceitos teóricos

28

O discurso retórico então, nasce desse contexto para tentar solver um problema retórico é, basicamente, composto por três elementos que se associam: uma questão que clama por uma discussão para ser solucionada; (...) um auditório e por fim, um conjunto de limitações e restrições, pessoas em posições antagônicas, eventos, leis, interesses, emoções; hábitos que atuam tanto sobre a audiência quanto sobre o orador e dão especificidade à situação.(FERREIRA, 2010:31)

Definida a questão retórica, o orador deve então estudar quais

argumentos deverá usar para obter a adesão. E ainda, segundo Meyer (2007),

é por meio da retórica – tida como o poder de persuadir pela emoção – que a

adesão será obtida.

O auditório tem necessidade de sentir a importância de sua opinião para

aquela determinada questão retórica, a fim de aderir ao discurso elaborado

pelo orador, que será permeado por teses coerentes que não caiam em

contradição; é aí que aparece a verossimilhança. O orador se mostrará

competente para defender seus ideais e levará o auditório a acreditar que a

decisão tomada foi a melhor e mais verossímil possível.

1.8 As técnicas argumentativas

1.8.1 As figuras

Para Reboul (2004), figura é um recurso de estilo que permite ao orador

se expressar de modo livre e codificado. Livre porque não precisa utilizar-se

dela para manifestar-se, e codificado porque deve obedecer a determinada

estrutura.

Segundo o autor, “a figura seria, portanto, uma fruição a mais, uma

licença estilística para facilitar a aceitação do argumento” (2004:114).

Perelman e Olbrechts-Tyteca, em seu livro Tratado da Argumentação: A

nova retórica (2005), afirmam que as três grandes figuras retóricas que visam a

despertar no auditório o sentimento de presença, reforça a comunhão e, por

conseguinte, obtém a adesão do auditório, são:

a) As figuras de presença: reforçam o sentimento de presença do objeto

do discurso para o auditório. São exemplos de figuras de presença a

Capítulo I – Conceitos teóricos

29

repetição – como o próprio nome diz, é a repetição de uma palavra; a

anáfora – repetição de uma mesma palavra no início da frase

seguinte; a personificação ou prosopopeia – ação de conferir a

objetos ou animais emoções ou sentimentos inerentes ao Homem; a

anadiplose – repetição de uma mesma palavra ou expressão no final

de uma frase e no começo da frase seguinte; a sinonímia – repetição

de palavras iguais ou semelhantes; e a onomatopeia –reprodução de

um som.

b) As figuras de comunhão: o orador pretende conseguir a adesão do

auditório por meio de um acordo (comunhão) e traz à baila as

tradições culturais ou os fatos notórios, por exemplo. Exemplificam as

figuras de comunhão: a alusão ou citação – uso de um fato, uma

referência ou uma citação que devem ser conhecidos pelo auditório;

a enálage – uso de um tempo verbal por outro; as máximas ou os

provérbios – manifestações populares; e a pressuposição– uma

suposição antecipada.

c) As figuras de escolha: seleção de dados convenientes ao orador que

irá usá-los a seu favor. São exemplos de figuras de escolha: a

metáfora – uso de uma palavra ou termo em substituição de outro; o

epíteto – uma expressão que, associada ao substantivo, qualifica

uma pessoa ou uma coisa; a hipérbole – o exagero ou a demasia

propositada; a ironia – consiste em dizer o contrário daquilo que se

pensa; a antropomorfização– ato de conferir a objetos ou animais

características ou hábitos do Homem; a perífrase– ato de exprimir em

poucas palavras aquilo que se diria em uma ou em poucas; a

antonomásia–a substituição de um nome por outro ou por uma

expressão que facilmente o identifique; e a própria pergunta retórica.

1.8.2 Os tipos de argumentos retóricos

A escolha do gênero discursivo a ser adotado na retórica é facultada ao

auditório, ou seja, o orador adotará o gênero judiciário, epidítico ou deliberativo

conforme o seu público, pois é em função dele que a argumentação será

construída.

Capítulo I – Conceitos teóricos

30

Portanto, para se construir um discurso, precisamos ter um

conhecimento prévio de nosso auditório e, a partir daí, usar as técnicas

argumentativas para cada caso.

Segundo a nova retórica, os argumentos utilizados seguem três grandes

classes:

a) Os argumentos quase lógicos: têm a estrutura baseada nos

argumentos da lógica formal e a força persuasiva na semelhança

com os argumentos formais. Eles buscam eficácia persuasiva nos

princípios lógicos à semelhança e sua estrutura formal lhe confere

uma aparência de lógica irrefutável.

Os argumentos quase lógicos são aqueles cuja estrutura lógica lembra os argumentos da lógica formal, mas não possuem o mesmo rigor, ou seja, não têm valor conclusivo, já que é impossível extirpar da linguagem comum toda a ambiguidade e nem podemos remover do argumento a possibilidade de múltiplas interpretações. Assim, a cada argumento lógico, de validade reconhecida e incontestável, corresponderá um argumento quase lógico, de estrutura semelhante, cuja força persuasiva consistirá justamente na sua proximidade com aquele. (PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA, 2005:221)

b) Os argumentos baseados na estrutura do real: baseiam-se na

realidade para estabelecer conexões com o objeto do discurso e visa

à adesão do auditório. Não se apoiam na lógica, mas na experiência

e nos fatos. Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005:301) os dividem em:

b.1) ligações de sucessão: relacionam a causa e a consequência e

pressupõem um vínculo causal entre os acontecimentos e estabelece

um juízo de valor por ser provável não verdadeiro e se subdividem

em :

argumento pragmático: faz a análise do objeto por meio das

suas consequências favoráveis ou desfavoráveis;

argumento de desperdício: começada determinada análise,

deve-se continuar na mesma direção;

argumento de direção: estabelece relação causal entre os fins

e os meios;

argumento de superação: exalta a finalidade.

Capítulo I – Conceitos teóricos

31

b.2) ligações de coexistência: unem duas realidades desiguais e

torna-as fundamentais; subdividem-se em:

argumento de autoridade: valida as intenções por meio do

ethos da pessoa;

argumento da hierarquia dupla: proporciona a comparação

entre os objetos do discurso, e dá, normalmente, a ideia de

proporcionalidade entre eles.

c) Os argumentos que fundamentam a estrutura do real: apresentam o

raciocínio por analogia e utilizam-se da semelhança de relações

entre dois pares.

(...) são aqueles que generalizam aquilo que é aceite a propósito de um caso particular (ser, acontecimento, relação) ou transpõem para um outro domínio o que é admitido num domínio determinado. (PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA, 2005:297)

1.8.3. As paixões aristotélicas e o Tribunal do Júri

As paixões para Aristóteles refletem as representações que fazemos dos

outros e considera o que elas são para nós. Sabemos que a adesão do público

envolve não somente a razão, mas os aspectos emotivos do poder da palavra.

Aristóteles define a paixão (pathos) como aquilo que move o homem

para a ação (práxis). Na lista das paixões por ele desenvolvida, aparecem

sensações que podem provocar dor ou prazer e estão ligadas diretamente ao

agir humano, que, por sua vez, está relacionado à moralidade, à virtude (areté)

ou ao vício (kakia).

As paixões classificadas por Aristóteles no livro As retóricas das paixões

(2000) são: cólera, calma, amor, ódio, temor, confiança, vergonha, impudência,

favor, compaixão, inveja e emulação.

a) Da cólera

A cólera é o desejo de desprezar e vingar-se de determinada pessoa,

sentimento este acompanhado da tristeza. O colérico se irrita sempre com um

indivíduo em particular. Em toda cólera há certo prazer, que vem da esperança

de vingar-se. O colérico passa o tempo vingando-se em pensamento,

Capítulo I – Conceitos teóricos

32

imaginando o prazer da vingança como num sonho; despreza como forma de

desconsideração; usa do desdém, da difamação e do ultraje. A cólera é

proveniente do desgosto.

b) Da calma

Estar calmo é o contrário de estar encolerizado, e a cólera se contrapõe

à calma. Portanto a calma é a inibição e o apaziguamento da cólera.

Somos calmos diante dos que reconhecem seus erros e se arrependem,

dos que se humilham diante de nós e dos que parecem ser inferiores, dos que

se comportam seriamente com quem é sério, dos que fizeram favores, dos

humildes, dos não insolentes. As pessoas são calmas no riso, na festa, num

dia feliz, na ausência da dor, com pessoas dignas de respeito e benfeitoras,

com quem não age contra sua vontade ou com os arrependidos. Somos

calmos com quem é justo.

c) Do amor e do ódio

Amar é querer para alguém o que se julga bom. Quando acontece o que

queremos, ficamos satisfeitos; se acontece algo contrário, angustiamo-nos por

essas não fazerem as nossas vontades.

Amamos os que têm os mesmos desejos que nós, os que nos fizeram

algum favor, os que cremos que nos amam, os dispostos a fazer benefícios, os

sensatos, os que louvam as qualidades que possuímos, os limpos de

aparência, os que não censuram nossos erros, os que não guardam rancor. O

ódio é o rancor, ao contrário do amor; suas causas são ultraje, calúnia; surge

sem nenhuma ligação pessoal e se diferencia da cólera, pois o ódio quer fazer

o mal, não sente compaixão, quer que o outro desapareça.

d) Do temor e da confiança

Temor: desgosto, preocupação com um mal eminente, danoso ou

penoso. Não tememos o que está distante, como a morte. São temíveis coisas

Capítulo I – Conceitos teóricos

33

que podem causar danos e desgostoso temível parece estar próximo.

Tememos aqueles que cometeram uma injustiça e os nossos rivais; os que

atacam os mais fracos são temíveis. Não tememos aqueles que não têm poder

nem quem julgamos que não causaria algum mal.

A confiança é o contrário do temível. São confiantes os que tiveram

resultados felizes, os que escaparam de situações perigosas. Sentimos

confiança quando não tememos nossos semelhantes.

e) Da vergonha e da impudência

Sentimos vergonha diante das faltas que parecem vergonhosas, seja

conosco seja com quem nos preocupamos. Também sentimos vergonha de

tirar proveito de pessoas indefesas, da cobiça e da avareza. E não só de atos,

mas também de sinais vergonhosos; quando devemos ser vistos pelo público,

somos mais sujeitos às vergonhas. Mas existem pessoas que não se

envergonham: os impudentes; a impudência é contrária à vergonha, porque

nos expomos e agimos por precipitação.

f) Do favor

É o serviço pelo qual se concede ao que tem necessidade. Só é visto

como favor se for algo de grande importância. Ninguém reconhece ter

necessidade de coisas sem valor.

g) Da compaixão

A compaixão é um certo pesar por um mal que se mostra destrutivo ou

penoso e atinge quem não o merece. É evidentemente necessário que aquele

que sente compaixão esteja em tal situação que creia poder sofrer algum mal,

seja ele próprio, seja um dos seus parentes. Os que sentem grande temor não

têm compaixão. As seguintes coisas são dignas de compaixão: os males

graves e/ou dolorosos, mortes, ultrajes corporais, maus tratos, velhice,

doenças, fome e outros. Temos compaixão de pessoas semelhantes a nós pelo

fato de poder acontecer o mesmo conosco.

Capítulo I – Conceitos teóricos

34

h) Da inveja e da emulação

As pessoas sentem inveja por causa dos interesses pessoais de cada

um. Invejamos os que estão próximos, pelo tempo, pelo lugar, pela idade, pela

fama e pelo nascimento; não invejamos mortos nem quem consideramos

inferiores ou muito superiores, ou quem está em condições análogas.

A emulação é o desejo de obter as mesmas virtudes que o outro.

Diferentemente de quem sente inveja, as pessoas que agem pela emulação se

sentem dignas de bens que não possuem. Geralmente se emulam a coragem,

a amizade, as virtudes, a sabedoria e a autoridade.

Por meio das provas técnicas e artísticas, o discurso judiciário se tece. A

elas são acrescidas as habilidades do orador de movimentar as paixões e,

desse modo, obter uma sentença favorável aos seus interesses.

Em Plenário, as emoções – paixões, para Aristóteles – são de

relevância. Quando pensamos nos crimes julgados pelo Plenário do Júri (os

crimes dolosos contra a vida), somos tomados pela compaixão ou pela cólera,

que são paixões descritas por Aristóteles.

Cientes da complexidade entre paixão e razão – que, até mesmo para a

retórica, segundo Reboul (2004:XVII) “razão e sentimentos são inseparáveis”–,

é que podemos afirmar que não basta apenas que os atuantes do Tribunal do

Júri sejam dotados de conhecimentos jurídicos, mas também de paixão. É por

meio da emoção, leia-se, movimentar das paixões, que tanto o PJ como o

advogado de defesa tentarão persuadir o corpo de jurados, que por não

possuírem os conhecimentos técnicos utilizados na esfera jurídica, serão

movidos pelo sentimento da cólera.

(...) é que as paixões constituem um teclado no qual o bom orador toca para convencer. Um crime horrível deverá suscitar indignação, ao passo que o delito menor, absolutamente perdoável, deverá ser julgado com compaixão. (ARISTÓTELES, 2000:XLI)

Para Perelman; Olbrechts-Tyteca (2005:52), “excitar as paixões,

emocionar seus ouvintes, de modo que se determine uma adesão

suficientemente intensa”, faz parte do efeito almejado pelo orador em seu

Capítulo I – Conceitos teóricos

35

auditório, uma vez que a adesão é peça primordial do acordo estabelecido

entre ambos.

Persuadir: mover pelo coração, pela exploração do lado emocional, coordenar o discurso por meio de apelos às paixões do outro. Convencer: mover pela razão, pela exposição de provas lógicas, coordenar o discurso por meio de apelos ligados ao campo da racionalidade. (FERREIRA, 2010:15)

A persuasão se valerá das faculdades humanas ligadas aos sentimentos

para convencer e respeitará três ordens de finalidade, como já foi dito, segundo

Reboul (2004): docere (instruir, ensinar) é o lado argumentativo do discurso;

delectare (agradar) é o lado agradável; e movere (comover) é aquilo que abala,

que impressiona o auditório.

A fim de colaborar com a análise do nosso corpus, apresentaremos no

capítulo II alguns conhecimentos básicos sobre o direito, as peças processuais

utilizadas no Plenário do Júri e o Direito como linguagem.

Capítulo II – O universo jurídico

36

Capítulo II – O Universo jurídico

2. O DIREITO

O Homem vive em sociedade e, dessa forma, tem o dever de assegurar

tanto sua subsistência quanto a de sua família. Para que esse convívio

aconteça de forma pacífica entre os indivíduos de uma sociedade, criou-se um

conjunto de princípios e regras que viabilizam a convivência em sociedade e

que visam à ordem, à segurança e à justiça para todos os envolvidos. Assim

surgiram as leis que regulam a vida em sociedade até os dias de hoje.

O primeiro livro, ou código, que apresentava regras normativas foi criado

na Mesopotâmia, aproximadamente em 1.700 a.C.; era o Código de Hamurabi

que determinava as leis e as punições. Nele, não se toleravam erros ou falhas

praticados pelos indivíduos daquela sociedade, tampouco eram admitidas

desculpas ou explicações. As punições ocorriam de acordo com a posição que

a pessoa criminosa ocupava na hierarquia social.

Com a evolução da sociedade, o senso de justiça se aperfeiçoou para

que existisse a igualdade entre os homens, independentemente da posição

ocupada por eles.

Ocorre que cada indivíduo tem um anseio diferente e, por muitas vezes,

esse anseio vai de encontro aos anseios da sociedade. Resta estabelecido o

conflito entre o particular e o público, ou seja, em determinadas circunstâncias,

o homem não consegue seguir as regras previamente determinadas pela

sociedade e comete infrações a estas regras, que, por conseguinte, o levarão a

um julgamento por parte do Estado, que poderá imputar-lhe as penas devidas

por violar as normas vigentes.

O conjunto de regras existentes na sociedade que disciplina diversas

dimensões da vida humana é denominado Direito, que se subdivide em várias

áreas, como Direito Civil, Direito de Família, Direito Penal etc. Entretanto, para

a nossa pesquisa, interessa-nos somente o Direito Penal, que é o ramo do

Direito Público que se dedica às normas emanadas pelo Poder Legislativo para

reprimir os delitos cometidos por um indivíduo, ou seja, no crime de furto, o

delito é representado pela ofensa ao bem jurídico “patrimônio”; no homicídio, a

ofensa é a lesão ao valor jurídico “vida humana”.

Capítulo II – O universo jurídico

37

Cabe ao Poder Judiciário interpretar e aplicar as leis emanadas do

Legislativo, bem como fazer com que os indivíduos as cumpram.

Quando um indivíduo infringe as leis penais, um processo criminal é

instaurado, pois ele é o instrumento legítimo que tem a finalidade de solucionar

a controvérsia, ou seja, o conflito entre as partes. A Constituição Federal

Brasileira afirma que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem

o devido processo legal” (art. 5º, LIV). No direito penal, o processo é

denominado processo criminal. Por meio desse instrumento, podemos verificar

se a ação ou a omissão descritas na lei penal são proibidas.

2.1 – O PROCESSO CRIMINAL

O processo criminal se compõe de quatro fases: o Boletim de

Ocorrência, que traz a noticia criminis; o Inquérito Policial; o Processo Crime; e,

finalmente, a Execução Criminal.

Boletim de Ocorrência: é o documento elaborado pela autoridade policial

com base nos testemunhos das partes envolvidas que darão sua versão

do fato ocorrido, colhidos pelos policiais; é um breve relato da

ocorrência, e traz ainda em seu bojo as qualificações do suposto

contraventor, da vítima e das testemunhas.

Inquérito Policial: é um procedimento policial administrativo usado na

investigação de determinado crime, composto também de provas de

autoria e materialidade do crime. Nessa fase, testemunhas são ouvidas

e exames periciais são realizados. Averiguados os fatos passíveis de

punição, é feita a denúncia pelo promotor de justiça, peça acusatória

que dará início à ação penal. Consiste na exposição por escrito dos

fatos que, em tese, constituem o ilícito penal e deve conter: o autor da

infração, a indicação de provas em que se fundamenta a pretensão

punitiva e os artigos infringidos pelo indiciado, que agora passará a ser

acusado.

Processo Crime: as testemunhas de defesa e de acusação serão

arroladas pela promotoria e pela defesa, a fim de serem esclarecidos os

fatos narrados. As testemunhas que já prestaram depoimento nas duas

outras fases do processo podem ser inqueridas novamente pelo juízo,

Capítulo II – O universo jurídico

38

para esclarecer pontos obscuros ou confirmar a veracidade do

depoimento prestado na fase do Inquérito Policial. Novas provas

também serão apresentadas por ambas as partes.

Execução Criminal: se o réu for julgado culpado, a pena será aplicada

nessa fase do processo.

2.2 – O PLENÁRIO DO JÚRI

Prosseguiremos agora com um panorama sobre o Plenário do Júri, pois

os discursos a serem estudados por nós neste trabalho passaram por ele.

Os crimes dolosos contra a vida, na sua forma tentada ou consumada,

são levados a julgamento pelo Plenário do Júri. Lá, os acusados de homicídio,

infanticídios, incentivo ao suicídio e aborto serão julgados. Os sujeitos

envolvidos são: o juiz de direito, o promotor de justiça, o advogado, o réu, os

jurados e os espectadores.

A função do juiz de direito é o de levar a efeito o sorteio dos jurados que

são reduzidos a um número de sete entre vinte e um convocados, e apresentar

ao final do debate entre o MP e a defesa os quesitos que servirão de sustento

à sentença que será lavrada pelo magistrado. Cabe também a ele a condução

do plenário.

Ao corpo de jurados que compõem o conselho de sentença caberá a

incumbência de julgar o acusado.

A acusação cabe ao Promotor de Justiça, que é o representante do

Ministério Público, mas também cabe a ele a função de pedir a absolvição do

acusado caso haja evidências de que não foi o acusado quem praticou o crime.

A defesa é feita pelo advogado que pode ser constituído pelo réu ou

nomeado pelo Estado, caso o acusado não tenha condições de arcar com os

honorários advocatícios.

Após a escolha do corpo de jurados, os trabalhos são abertos pelo juiz

de direito que fará a leitura de excertos dos autos. Logo após, procederá ao

interrogatório do acusado acerca do delito supostamente praticado e em

seguida o depoimento das testemunhas arroladas por ambas as partes que

ficarão incomunicáveis assim como os jurados a partir do início dos trabalhos.

Se percebidas divergências entre os depoimentos das testemunhas, procede-

Capítulo II – O universo jurídico

39

se à acareação, ou seja, no próprio Plenário os depoimentos serão

confrontados.

Ouvido acusado e testemunhas dar-se-á início aos debates. O MP fará a

leitura do libelo crime acusatório que é o pedido de condenação do réu com os

dispositivos legais infringidos.

Em seguida, a defesa expõe sua argumentação em prol do réu que

poderá ser questionada pelo promotor em réplica. A defesa poderá ainda se

manifestar em tréplica se julgar necessário.

Findo os debates, o juiz fará a apresentação dos quesitos aos jurados

que os responderão por meio dos votos em uma sala secreta.

A sentença será então prolatada pelo juiz de direito conforme a votação

dos jurados acerca dos quesitos apresentados e deverá ser fundamentada nos

termos da lei.

2.3 – O DIREITO COMO LINGUAGEM

Estabelecido o confronto entre o indivíduo que transgrediu a lei e o

Estado, surge à necessidade de se discutir a violação atribuída ao acusado.

Inegável desta forma, a utilidade da linguagem, pois todas as relações

humanas são por ela mediadas e é por meio de diversos sistemas linguísticos

que o homem consegue interagir.

Entretanto, para que a linguagem se concretize necessário se faz que o

mesmo sistema de signos linguísticos seja compartilhado pelos integrantes da

comunicação.

Jakobson (1991) descreve o processo constitutivo da interação

comunicacional como

O REMETENTE envia uma MENSAGEM ao DESTINATÁRIO. Para

ser eficaz, a mensagem requer um CONTEXTO a que se refere (ou

“referente”, em outra nomenclatura algo ambígua), apreensível pelo

destinatário, e que seja verbal ou suscetível de verbalização; um

CÓDIGO total ou parcialmente comum ao remetente e ao destinatário

(ou, em outras palavras, ao codificador e ao decodificador da

mensagem); e, finalmente, um CONTACTO, um canal físico e uma

conexão psicológica entre o remetente e o destinatário, que os

capacite a ambos a entrarem e permanecerem em comunicação.

(1991:38)

Capítulo II – O universo jurídico

40

Assim, a linguagem é uma importante ferramenta utilizada pelo orador

que permite a externalização de ideias e pensamentos e ainda permite que o

auditório a compreenda, interprete-a e se posicione face ao discurso a ele

apresentado. Desta forma, no Plenário do Júri, orador e auditório compartilham

o mesmo código, o mesmo sistema de signos linguísticos. Trubilhano (2013:18)

corrobora com essa ideia: “Por essa razão, orador e auditório devem partilhar

de um mesmo sistema de signos linguísticos, ou seja, de uma mesma língua,

capaz de permitir-lhes a transmissão e recepção da informação.”

Entretanto, por muitas vezes, o homem se vale da linguagem de maneira

argumentativa, com a finalidade de persuadir o outro, é o que ocorre no Júri.

Valendo-se desse pano de fundo, temos o direito como sistema de

comunicação, pois o discurso jurídico elaborado pela defesa e pela acusação

com o fim específico de persuadir o corpo de jurados deverá fazer uso da

linguagem.

Carvalho (2013:162) afirma “ser temerário tratar do jurídico sem atinar a

seu meio exclusivo de manifestação: a linguagem.”

Resta clara a noção de direito como linguagem, pois permite a

comunicação e a interação entre orador e auditório.

Com base na concepção retórica e na breve explanação sobre o

universo jurídico expostas neste trabalho, apresentaremos, no próximo

capítulo, o corpus que deu origem a esta dissertação e sua análise.

Capítulo III – O convencimento e a persuasão no Plenário do Júri

41

Capítulo III – O convencimento e a persuasão no

Plenário do Júri

3. A história do corpus

Por Considerar o questionamento feito em relação às estratégias

retóricas utilizadas pelo Promotor de Justiça para a persuasão, escolhemos,

dessa maneira, um caso de muita repercussão na época em que ocorreu e que

gera comoção, leia-se aqui paixão – para usar o termo aristotélico –, até hoje,

passados alguns anos.

O caso escolhido foi o do assassinato de uma criança, ocorrido em

Março de 2008, na cidade de São Paulo, que, segundo o PJ, foi cometido pelo

pai e pela madrasta que defenestraram a menor desfalecida a uma altura de

aproximadamente 20 metros.

Após investigações, laudos periciais e depoimentos de testemunhas,

verificou-se que os acusados eram as únicas pessoas que estariam no local do

crime (provas extrínsecas).

A promotoria, a quem cabe apresentar a acusação, imputou a culpa aos

acusados e ofereceu a denúncia nesse sentido. Fato é que não se tinha a

certeza de que o pai houvesse matado sua filha com a ajuda de sua atual

esposa, mas pressupunha-se a culpabilidade (oportunidade para o uso de

provas intrínsecas).

Apesar de ter sido julgado com relativa rapidez (dois anos), dada a

demora existente e notória em nossos tribunais, que levam até 21 (vinte e um

anos) para concluir um processo, como foi o caso que ficou conhecido como “O

Massacre do Carandiru”, os autos do processo apresentavam, até o colhimento

do corpus, 6.800 páginas. Por esse motivo, fomos levados a eleger elementos

essenciais para a análise, ou seja, entendemos que a denúncia deveria ser

utilizada em sua íntegra e que os depoimentos dos acusados e a sentença

deveriam ser recortados nos pontos que evidenciavam a utilização das

estratégias retóricas pelos envolvidos. Movidos pela vontade de produzir uma

discussão relevante, chegamos à conclusão de que deveríamos fazer um

recorte do corpus.

Capítulo III – O convencimento e a persuasão no Plenário do Júri

42

Foi assim que chegamos aos objetos de análise: a denúncia levada a

efeito pelo promotor de justiça, parte dos depoimentos dos acusados, bem

como da sentença em primeira instância, que já é um corpus demasiadamente

extenso. Salientamos que os depoimentos, por serem longos, também foram

recortados.

Cabe-nos aqui apresentar um resumo sobre o crime em si e vislumbrar a

compreensão do objeto analisado em seu todo, para que o leitor, na fase da

análise por nós efetuada, consiga se situar sobre os fatos ocorridos.

A vítima nasceu em São Paulo, fruto do relacionamento de um jovem

casal de namorados. A mãe da vítima ficou grávida aos dezessete anos e a

notícia de sua gravidez não foi bem aceita pelo genitor e por sua família, uma

vez que o rapaz tentava ingressar na faculdade de Direito e um filho poderia

atrapalhar sua vida acadêmica.

O casal nunca morou sob o mesmo teto, mas manteve o relacionamento

amoroso até a criança completar onze meses de vida. Depreende-se dos autos

que a mãe da menina começou a suspeitar da uma traição por parte do rapaz,

que havia ingressado na faculdade. Depois da confirmação dessa traição,

decidiu por romper o relacionamento.

Fizeram então um acordo: a menina permaneceria sob a guarda da mãe

e, a cada quinze dias iria para a casa do pai e ficaria sob a responsabilidade

dele.

Conforme consta dos autos, o acusado traiu sua antiga namorada com a

futura madrasta da menina, que cursava a faculdade de Direito juntamente com

ele, com quem, após alguns meses de relacionamento, foi morar na casa dos

pais do acusado. Entretanto, a madrasta tinha muito ciúme do antigo

relacionamento do companheiro e, em determinado momento, chegou a

comparecer na casa da ex-companheira do réu para pedir esclarecimentos. Em

depoimento, a mãe da vítima conta que “Ela ficou bem nervosa, ela gritou, ela

alterou a voz, eu pedi para ela não gritar que ela estava na porta da minha

casa”. Tal comportamento foi confirmado por A2 na data em que a menina fora

arremessada pela janela do apartamento, em depoimento na Delegacia

responsável pelo recebimento da notícia do crime: “Confessa que já teve

muitos desentendimentos com esta (genitora da vítima) no decorrer da relação

com o pai da menina, visto que tinha ciúmes desta com seu marido”.

Capítulo III – O convencimento e a persuasão no Plenário do Júri

43

Entre 2005 e 2007, nasceram dois filhos, frutos do relacionamento do pai

e da madrasta da menina, e os desentendimentos só pioraram, uma vez que as

três crianças começaram a frequentar a mesma escola e a proximidade afetiva

entre todos os envolvidos se estreitou.

Mesmo com vários desentendimentos entre o pai, a madrasta e a mãe

da vítima, o genitor continuou exercendo seu direito de visita à filha

quinzenalmente.

Consta ainda que o rapaz era conhecido por ser dado a brigas e por ter

um histórico violento e agressivo. Em seu depoimento, a genitora da vítima

conta que, em determinado dia: “Ele ficou muito nervoso, ele disse que iria sair

para resolver, aí ele saiu, aí ele disse que voltou armado, que queria matar a

minha mãe”.

No ano de 2006, o pai e a madrasta alugaram um apartamento e se

mudaram. As brigas eram constantes, e o subsíndico do condomínio noticiou

em depoimento, na fase do Inquérito Policial, que, “pelo fato de ser sub-síndico

por muitas vezes se dirigiu até o acusado para conversar a respeito de

algumas regras que infringiam no condomínio, tais como excesso de barulho,

provocado por discussão entre ambos” (sic).

A madrasta era conhecida por todos os vizinhos por ser muito explosiva

e por desferir palavras de baixo calão durante as brigas com o marido. Em

outro depoimento também colhido na fase de Inquérito, um vizinho, que morava

no apartamento ao lado do casal, relatou “que o casal residia no mesmo andar

do depoente no apartamento ao lado (...) que no período que o casal residiu

naquele condomínio pode perceber que eles discutiam muito, no apartamento e

inclusive por telefone, discussões essas que pode ouvir e saber dizer que, a

madrasta sentia ciúmes da ex-mulher do marido; que numa dessas discussões

do casal pode ouvir A2 dizer que ele teria „ferrado‟ ela, que tinha dois filhos

dele e estava mal casada, que infelizmente havia lanços que não seriam

desvinculados”(sic).

Em Janeiro de 2008, o casal comprou um apartamento e novamente se

mudou, e não demorou para que os novos vizinhos presenciassem as brigas

frequentes.

Capítulo III – O convencimento e a persuasão no Plenário do Júri

44

Em 29 de março de 2008, por volta das 23h35, foram ouvidos pelos

vizinhos do edifício onde morava o casal gritos de uma criança dizendo: “papai,

papai... para... para”(sic),e, passados alguns minutos, ouviram um estrondo.

Com o forte barulho, vizinhos e empregados do edifício correram para a

fachada do condomínio de onde acreditavam ter ouvido o tal estrondo e se

depararam com o corpo inerte de uma menina caída no gramado.

O porteiro do edifício, em depoimento na fase do Inquérito, relatou que,

ao ouvir o barulho, saiu da guarita onde exercia sua função e se aproximou do

corpo da criança, e que, depois de uns dois minutos após a queda, ali

apareceu o pai da menina gritando “que haviam arrombado seu apartamento e

cortado a tela e jogado a sua filha pelo sexto andar” (sic). Relatou ainda que,

após alguns minutos da chegada do pai da menina, chegou ali também a

madrasta da vítima, que o porteiro julgara ser a mãe da vítima, trazendo uma

criança no colo, e, assim que encontrou o depoente, dirigiu-se a ele com

“xingamentos, dizendo: „seu incompetente...‟ e em seguida proferiu palavras de

baixo calão”.

O pai da vítima afirmou, em depoimentos prestados tanto na fase de

Inquérito como em Plenário do Júri, que o prédio onde morava fora assaltado e

a menina teria sido jogada por um dos bandidos pela janela de seu

apartamento. Afirmou, ainda, que os meliantes haviam cortado a tela de

proteção que lá existia. Ressaltou que deixara a mulher e seus dois filhos no

carro do casal e subira para seu apartamento, a fim de colocar a garota na

cama, visto que V dormia.

Após tê-la deixado na cama, desceu para a garagem do edifício para

carregar as duas outras crianças; ao retornar ao apartamento, viu, então, que a

tela de proteção havia sido cortada e, ao se aproximar da janela, vira a filha

caída no gramado da fachada do condomínio.

A menina foi resgatada por uma viatura do Corpo de Bombeiros ainda

com vida, mas, ao chegar ao hospital, falecera com “sinais claros de asfixia (...)

assim como sinais de asfixia no pulmão e coração.”, conforme laudo pericial

acostado aos autos.

É este o processo julgado pelo Tribunal do Júri do Estado de São Paulo

que servirá de corpus para nossa pesquisa.

Capítulo III – O convencimento e a persuasão no Plenário do Júri

45

3.1 A possibilidade da análise do corpus

Alguns processos judiciais correm em “segredo de justiça”, haja vista a

preocupação do Estado quanto à exposição de informações privadas das

partes litigantes. Esse direito encontra respaldo na Constituição Federal do

Brasil, em seu artigo 5º, XXXIII:

Todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado;

Para o desenvolvimento desse trabalho utilizamos um processo que não

corria em segredo de justiça, conforme determinação da nossa Carta Magna,

bem como também encontramos amparo no artigo 20, do Código Civil

Brasileiro:

Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais.

Saliente-se que, mesmo sem a determinação de segredo de justiça, por

cautela, preferimos não identificar os nomes dos acusados, do juiz de direito,

bem como do promotor de justiça, pois a nossa pretensão única e exclusiva é a

de estudar as estratégias retóricas como meio de persuasão utilizadas nos

processos jurídicos.

3.2 O corpus

O corpus utilizado em nossa pesquisa foi disposto como

anexos:

a) Anexo I: A denúncia

b) Anexo II: O depoimento do réu (A1)

c) Anexo III: O depoimento da ré (A2)

Capítulo III – O convencimento e a persuasão no Plenário do Júri

46

d) Anexo IV: A sentença

Os anexos trazem as peças processuais retiradas do processo

judicial e, como já dissemos anteriormente, foram recortados conforme o

interesse do nosso trabalho e poderão ser consultados a qualquer momento

para o levantamento da veracidade e pertinência do enquadramento da teoria

utilizada. As análises dos documentos anexados – discursos proferidos - foram

elaboradas de acordo com a disposição acima e sob a égide da Nova Retórica.

Nos valemos das estratégias retóricas presentes e também da

análise do ethos dos participantes nos discursos analisados com o objetivo de

observar quais os efeitos de sentido produzidos no auditório, ou seja, no corpo

de jurados.

Esclarecidos sobre os aspectos metodológicos utilizados e

sobre a história do corpus analisado, chegamos no momento da análise

propriamente dita.

Capítulo III – O convencimento e a persuasão no Plenário do Júri

47

3.3 Análise da denúncia

A denúncia, que é o instrumento expositivo dos fatos – os quais, em

tese, constituem o ilícito penal, como já mencionado –, é oferecida pelo

Ministério Público, na pessoa do promotor de justiça e, como o próprio nome

diz, serve para denunciar, no caso de nossa pesquisa, o fato ocorrido, o(s)

acusado(s)/réu(s) e os artigos infringidos.

Cabe à Promotoria defender a sociedade e seus interesses, bem como

atuar como fiscal da lei, e, caso ocorra o descumprimento das normas vigentes,

cabe ao promotor propor a ação cabível para investigar, apurar e punir os

crimes ocorridos. No caso do Plenário do Júri, é a denúncia que dará início ao

processo criminal.

Como já vimos, no capítulo que versa sobre o universo jurídico, o

objetivo da denúncia é trazer à tona qual a penalidade cabível ao fato ocorrido

para dirimir o dano causado à sociedade.

Certo é que o Estado visa, por meio da proteção de bens jurídicos

fundamentais, a pacificação e a viabilidade social. Dentre os bens jurídicos

protegidos pelo Estado, está a vida humana, e o Direito Penal tutela o direito à

vida, que é um dos direitos sociais.

Coube ao promotor de justiça, em nossa pesquisa, trazer à tona as

evidências do crime e preencher o lapso temporal entre o fato ocorrido.

Como quem só pode oferecer a denúncia é o promotor – a quem, a partir

de agora, também chamaremos de orador –, seu discurso é autorizado, ou

seja, sua fala se legitima pela fiança prévia da instituição Ministério Público.

Logo, o ethos é personificado na pessoa do promotor de justiça. Aqui, a paixão

aristotélica descrita como confiança é creditada ao orador pelo auditório, uma

vez que cabe à Promotoria defender seus interesses e restabelecer a paz

social com a punição dos acusados pelo crime cometido.

A denúncia, que é o discurso elaborado pelo promotor de justiça,

começa com uma saudação pelo orador ao seu auditório particular, uma vez

que é oferecida a denúncia ao Juiz de Direito, que a aceitará ou não, ficando a

Capítulo III – O convencimento e a persuasão no Plenário do Júri

48

instauração do processo penal a cargo deste: “Excelentíssimo Senhor Doutor

Juiz de Direito do II Tribunal do Júri da Capital”.

A seguir, começa então o promotor sua argumentação:

Noticiam os inclusos autos de inquérito policial que no dia 29 de março de 2008 (sábado), por volta das 23 horas e 49 minutos, na ________, nº ___, apto __, ______, Comarca da Capital, os indiciados A1 e A2, qualificados as fls. 585 e 604, respectivamente, agindo com unidade de propósito, valendo-se de meio cruel, utilizando-se de recurso que impossibilitou a defesa da ofendida e objetivando garantir a ocultação de delitos anteriormente cometidos, causaram em V, mediante ação de agente contundente e asfixia mecânica, os ferimentos descritos no laudo de exame de corpo de delito de fls. 630/652, os quais foram causa eficiente de sua morte.

A fase da inventio é uma das mais importantes do sistema retórico, haja

vista ser nesta oportunidade que o orador irá procurar as pistas para sua

argumentação e, assim, adequar seu discurso ao gênero correto, além de

selecionar as provas a serem apresentadas.

O orador dá pistas sensíveis dos momentos criativos da inventio.

Apresenta nesse momento os fatos ocorridos e, faz do uso dos termos “agindo

com unidade de propósito”, “valendo-se de meio cruel” e “utilizando-se de

recurso que impossibilitou a defesa da ofendida”, adequou o seu discurso ao

gênero judiciário, que é o gênero descrito por Reboul (2007) como aquele

endereçado ao juiz, que nos remete ao tempo passado, e que tem por objetivo

acusar, no caso em tela A1 e A2.

Escolhido o gênero retórico e selecionadas as provas, parte, então, o

orador para a dispositio, que é a organização do texto:

A dispositio (taxis) ou disposição é a etapa em que são organizados e distribuídos os argumentos de maneira racional e plausível no texto, em busca de uma solução para um problema em tela. No inventio, o orador junta as provas e na dispositio coloca-as no texto em ordem lógica ou psicológica de modo que constituam uma unidade que atinja o objetivo de persuadir. (FERREIRA, 2010:110)

O orador começa a expor os fatos (diegesis): “Noticiam os inclusos autos

de inquérito policial que no dia 29 de março de 2008 (sábado), por volta das 23

horas e 49 minutos” e os confirma (pistis), e, ao fazer uso da prova pericial

apresentada “os ferimentos descritos no laudo de exame de corpo de delito de

Capítulo III – O convencimento e a persuasão no Plenário do Júri

49

fls. 630/652, os quais foram causa eficiente de sua morte”, demonstra seu

ethos acusador.

Entretanto, podemos perceber que a técnica persuasiva utilizada pelo

promotor na denúncia não nos leva aos acusados, mas evidencia, sim, o que

foi determinante para a causa mortis. Faz-se uso, portanto, das ligações de

sucessão, que Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005) classificam como

argumentos baseados na estrutura do real. As ligações de sucessão

relacionam uma causa ou sua consequência ao objeto do discurso, e

estabelecem conexões. No caso apresentado em nossa pesquisa, a causa da

morte da menina é o elo que propicia o ato de acusar os réus, para assim

reforçar a sua argumentação.

No curso do parágrafo anterior, tornou-se evidente o uso do raciocínio

apodítico que se vale de premissas verdadeiras para produzir um uma

sensação de verdade pelo orador, uma vez que se apoia no “laudo de exame

de corpo de delito de fls. 630/652.”

As premissas verdadeiras e certas conduzem a uma conclusão também verdadeira e certa, pois deriva da evidência (...) As hipóteses são afastadas e cria-se condição para o encontro com uma verdade julgada necessária. (FERREIRA, 2010:81)

O orador continua seu discurso com a afirmação:

Apurou-se que V era fruto de um relacionamento amoroso havido entre o denunciado A1 e a mãe biológica da criança, estando o casal

separado à época dos fatos, razão pela qual a menina passava aquele final de semana em companhia do pai e da madrasta, a indiciada A2. Há notícias de que o relacionamento entre os denunciados era caracterizado por freqüentes e acirradas discussões, motivadas principalmente por forte ciúme nutrido pela madrasta em relação à mãe biológica da criança. V, nos finais de semana que passava com o casal, a tudo presenciava. Na manhã do dia mencionado, os indiciados, em companhia de seus dois filhos e de V, dirigiram-se para o vizinho município de Guarulhos

ocupando um veículo da marca X, tipo XY GL, placas XYZ.

Propõe, com isso, um vínculo causal entre a morte da criança e a vida

pregressa dos envolvidos e vale-se do argumento pragmático, que faz a

análise do objeto pelas suas consequências favoráveis ou desfavoráveis, por

meio das ligações de sucessão (PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA,

Capítulo III – O convencimento e a persuasão no Plenário do Júri

50

2005:301): relacionamento entre os pais biológicos, o nascimento da criança, a

separação dos pais biológicos, o relacionamento entre pai e madrasta, e o

ciúme desta em relação à mãe biológica da menina.

Prossegue com sua argumentação e usa, dentre as paixões

classificadas por Aristóteles, a compaixão como meio de conseguir a adesão

de seu auditório:

No final da noite, após retornarem para o edifício da Rua ____, ocorreu forte discussão entre o casal, ocasião em que V foi agredida

com um instrumento contundente, fato que lhe ocasionou um pequeno ferimento na testa, provocando sangramento. Na seqüência, a denunciada A2 apertou o pescoço da vítima com as mãos, praticando uma esganadura que ocasionou asfixia mecânica, cujos ferimentos estão descritos no laudo já mencionado. O denunciado A1, a quem incumbia o dever legal de agir para socorrer a própria

filha, omitiu-se. Com a criança desfalecida, porém ainda com vida, os indiciados resolveram defenestrá-la. Para tanto, a tela de proteção da janela do quarto dos irmãos da ofendida foi cortada, após o que o indiciado A1 subiu nas camas ali existentes, introduziu V pela abertura da rede e a

soltou, precipitando sua queda de uma altura de aproximadamente vinte metros.

Nota-se muito claramente que, com o uso do termo “forte discussão”, o

orador quer causar um sentimento de temor em seu auditório por um mal

eminente. E complementa o orador: “agredida com um instrumento

contundente, fato que lhe ocasionou um pequeno ferimento na testa,

provocando sangramento” e ainda “a denunciada apertou o pescoço da vítima

com as mãos, praticando uma esganadura que ocasionou asfixia mecânica”, e

mais uma vez se vale da compaixão como técnica persuasiva, uma vez que o

auditório sentirá certo pesar pelo mal que atinge uma criança que não merece

tamanha agressividade, por ser indefesa. Percebemos aqui a escolha do

discurso nobre, que tem por objetivo a comoção (movere), que está

intimamente ligada ao pathos.

O meio utilizado foi cruel, uma vez que a vítima, além de sofrer asfixia mecânica e já apresentando ferimentos pelo corpo, foi defenestrada ainda com vida, padecendo de sofrimento intenso. Além de ter sido surpreendida quando da esganadura contra si aplicada, a ofendida teve, ainda, a sua defesa impossibilitada ao ser lançada inconsciente pela janela.

Capítulo III – O convencimento e a persuasão no Plenário do Júri

51

Os denunciados objetivaram garantir a ocultação dos delitos anteriormente praticados contra V, a qual já havia sofrido uma esganadura e apresentava ferimentos. Finalmente, os denunciados simularam que um ladrão havia invadido o apartamento da família e lançado a vítima pela abertura feita na tela da janela. Enquanto o indiciado A1 descia pelo elevador, sua esposa A2 permanecia no imóvel alterando o local do crime, como já havia

feito pouco antes da ofendida ser jogada, apagando marcas de sangue, mudando objetos de lugar e lavando peça de roupa. Ao mesmo tempo, o pai da criança, já no térreo do edifício, no momento em que V estava caída no gramado, ainda com vida e necessitando

de urgente socorro, preocupava-se em mostrar a todos que havia um invasor no prédio, fato que motivou a imediata chegada de mais de trinta policiais militares, os quais, após minuciosa varredura no local e imóveis vizinhos, nada encontraram. Algum tempo depois da queda, a denunciada A2 apareceu na parte térrea do edifício e passou a ofender o porteiro com palavras de baixo calão, sugerindo falta de segurança no condomínio.

Nessa parte do discurso, o orador tem a intenção de distrair o auditório e

busca indigná-lo, com o intuito de reforçar a adesão; para isso, escolhe alguns

termos e palavras: “o meio utilizado foi cruel”, “além de sofrer asfixia

mecânica”, “foi defenestrada”, “além de ter sido surpreendida quando da

esganadura”, “teve, ainda, a sua defesa impossibilitada ao ser lançada pela

janela”, “o pai da criança, já no térreo do edifício, no momento em que V estava

caída no gramado, ainda com vida e necessitando de urgente socorro”.

Presente também é o lugar retórico da quantidade. O orador tenta criar

um argumento que comova seu auditório. Números são sempre persuasivos;

impressionamo-nos com a quantidade e, no discurso do orador, a quantidade

de policiais que chegaram ao local do crime comove e confirma que A1 estava

preocupado com o invasor do prédio, não com a vítima:

V estava caída no gramado, ainda com vida e necessitando de

urgente socorro, preocupava-se em mostrar a todos que havia um invasor no prédio, fato que motivou a imediata chegada de mais de trinta policiais militares (...)

As figuras são um recurso de estilo e, segundo Reboul (2004:118),

“facilitam a atenção e a lembrança”, bem como são utilizadas para se obter o

efeito persuasivo no discurso. Todavia, nem sempre são notadas ou

percebidas, mas são sabiamente utilizadas pelo orador em virtude de seus

objetivos. A repetição de algumas palavras e termos na denúncia são formas

de o orador suscitar a emoção (mover) do auditório/juiz. Podemos notar tais

Capítulo III – O convencimento e a persuasão no Plenário do Júri

52

repetições: “meio cruel” ,“o meio utilizado foi cruel”, “impossibilitou a defesa da

ofendida”, “defesa impossibilitada”, “agente contundente”, “instrumento

contundente”, “asfixia mecânica”, “ferimentos”, “ferimento na testa”, “ferimentos

provenientes da queda”, “ferimentos pelo corpo”, “apresentava ferimentos”,

“discussões”, “discussão”, “criança”, “sangramento”, “marcas de sangue”,

“esganadura”, “defenestrá-la”, “defenestrada”, “tela de proteção da janela”,

“abertura da rede”, “abertura feita na tela da janela”, “ao ser lançada

inconsciente”, “lançado a vítima”.

A seleção de dados convenientes, usados em favor do promotor/orador

na denúncia/discurso, foi à técnica persuasiva denominada figura de escolha,

que é uma figura retórica com a função de persuadir. O uso da palavra

“madrasta” foi uma artimanha utilizada pela promotoria para designar a

companheira do pai da menina. É notória a figura das mulheres apresentadas

como más, invejosas e cruéis que tomam o lugar da mãe e maltratam os

enteados nos contos de fada. Para corroborar com a assertiva, o orador diz

que “o relacionamento entre os denunciados era caracterizado por freqüentes e

acirradas discussões, motivadas principalmente por forte ciúme nutrido pela

madrasta em relação à mãe biológica da criança” (sic).

Notória também é a concepção de que um pai deve zelar pelo bem-estar

de seus filhos. Quando o orador fala que “O denunciado A1, a quem incumbia o

dever legal de agir para socorrer a própria filha, omitiu-se” e que “o pai da

criança, já no térreo do edifício, no momento em que V estava caída no

gramado, ainda com vida e necessitava de urgente socorro, preocupava-se em

mostrar a todos que havia um invasor no prédio (...)”, faz uso de mais uma

estratégia retórica, o qual, nas palavras de Reboul apud Perelman-Tyteca

(2004:114) “(...) não é apenas o que facilita o argumento, mas constitui o

próprio argumento (...) ressalta o caráter chocante desse fato, incompatível

(argumento) com os valores da humanidade.”

Referendado nesta última concepção, temos que o orador faz uso da

ironia, também, para provar seu argumento: “os denunciados inovaram

artificiosamente o estado do lugar e dos objetos (...)”ou “prestando auxílio

moral”. E, por fim, faz uso da hipérbole em “criança de cinco anos de idade”,

pois, todos sabemos que aos cinco anos de idade somos ainda crianças.

Capítulo III – O convencimento e a persuasão no Plenário do Júri

53

Ao final, observamos uma vez mais o ethos acusador do orador, e seu

discurso dominante por ser investido do poder a ele creditado pelo Ministério

Público: “denuncio a Vossa Excelência”, “requeiro”, “sejam os denunciados

citados”, “para serem processados” e “intimando-se”.

Nossa pesquisa visa, além de identificar quais as estratégias retóricas

utilizadas nos discursos emanados pelo promotor de justiça, a reconhecer

como se dá o ethos dos sujeitos produzido ao longo do processo criminal.

Na denúncia, podemos observar que o promotor faz uso do discurso

institucional, uma vez que é ele o representante do Ministério Público, mas

também suas escolhas levadas a efeito por meio das palavras e dos termos

aqui analisados mostram sua posição ideológica. O poder da função social do

orador é manifesta. Amossy (2008:120) considera:

[...] na realidade, o poder das palavras deriva da adequação da função social do locutor e seu discurso: o discurso não pode ter autoridade se não for pronunciado por pessoa legítima em pronunciá-lo em uma situação legítima.

Além disso, o ethos do orador se mostra por meio do desejo, e porque

não falar no dever que o representante da Promotoria tem de reparar o dano

causado à sociedade e imputara aos acusados as penas cabíveis.

Ao mesmo tempo, os argumentos por ele apresentados - logos–

mostram-se convincentes e demonstram que o auditório - pathos– é capaz de

reagir ao logos. Neste percurso, Mosca (2004:17) estabelece que

Partindo-se do princípio de que a argumentatividade está presente em toda e qualquer atividade discursiva, tem-se também como básico o fato de que argumentar significa considerar o outro como capaz de reagir e interagir diante das propostas e teses que lhe são apresentadas.

Capítulo III – O convencimento e a persuasão no Plenário do Júri

54

3.4 Análise do depoimento do acusado (A1)

O depoimento do acusado serve como meio de prova tanto da acusação

quanto da defesa. É por meio do depoimento que o juiz confirmará todos os

dados pessoais do acusado/réu e fará questionamentos: como é a vida pessoal

do réu, se já foi acusado anteriormente, se é verdadeira a acusação a ele

imposta etc. É também a oportunidade na qual o acusado/réu terá de fazer sua

autodefesa, pois poderá apresentar sua versão dos fatos, e, sobretudo, é o

momento em que poderá formar a convicção do jurado – adesão do auditório.

Após confirmação de identidade do acusado/réu, a ele é lida a denúncia

(já analisada anteriormente) e, em seguida, o juiz pede que A1 conte a sua

versão dos fatos. O réu – que daqui por diante passa a ser denominado orador

–, por meio de seu depoimento/discurso, começa a construção de seu ethos

para o auditório.

O orador faz uso do argumento quase lógico de incompatibilidade, ou

seja, ele tenta demonstrar o caráter de bom pai e que age conforme os

indivíduos em uma sociedade, o que o impossibilitaria de praticar o ato

criminoso ao qual é acusado.

Vejamos como o orador utiliza-se do argumento quase lógico de

incompatibilidade para a construção de seu ethos:

(...), então tinha que carregar os três e mais as coisas do porta-malas, as compras, fralda..., coisas de criança: mala, fralda, leite e as coisas que tínhamos comprado no supermercado. Eu subi para o apartamento, a A2 ficou no carro com o C e o P (filhos do casal), e eu subi com a V, eu cheguei na porta do apartamento, abri a porta, entrei no apartamento, fechei a porta – e a V no colo – entrei no apartamento, acendi a luz do corredor, coloquei a V na cama, que ela estava dormindo, puxei o edredom em cima dela, puxei o sapatinho dela, coloquei no chão, cobri a V, acendi o abajur dela porque ela não gostava de ficar no escuro, e em seguida fui para o quarto dos meninos, dos meus dois filhos. Eu entrei, tirei os brinquedos que estavam em cima da cama, normalmente fica, deixei a cama arrumada para a gente colocar eles quando subisse, saí do apartamento, abri a porta, fechei a porta e desci.

O orador menciona uma rotina presente no cotidiano dos pais que têm

filhos, uma regra quase que habitual: vão ao mercado comprar leite, fraldas e

tudo o que é necessário para o provimento da família; quando chegam em

casa, precisam carregar as compras e as crianças, que geralmente dormem

Capítulo III – O convencimento e a persuasão no Plenário do Júri

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quando estão no carro em movimento. Podemos verificar ainda que o orador se

utiliza da paixão aristotélica denominada “confiança” quando tenta demonstrar

seu caráter de bom pai, o que o excluiria de ter praticado o crime, e, ao

descrever com detalhes tudo o que aconteceu anteriormente ao crime, mostra-

se um verdadeiro orador, um artista, no sentido de buscar todos os argumentos

mais eficazes (REBOUL, 2004:XVI).

(...) coloquei a V na cama, que ela estava dormindo, puxei o edredom em cima dela, puxei o sapatinho dela, coloquei no chão, cobri a V, acendi o abajur dela porque ela não gostava de ficar no escuro, e em seguida fui para o quarto dos meninos, dos meus dois filhos. Eu entrei, tirei os brinquedos que estavam em cima da cama, normalmente fica, deixei a cama arrumada (...)

Ainda no intuito de conseguir a adesão do auditório, em vários

momentos de seu discurso, o orador tenta passar do papel de réu para o papel

de vítima e provoca nesse auditório a paixão denominada por Aristóteles como

“compaixão”:

Nessa hora eu entrei em choque, até comecei a gritar dentro do apartamento, acordei o P e o C, e quando eu vi toda aquela cena eu já falei para a minha esposa: “liga para o meu pai, para o seu pai”, e enquanto ela foi ligando eu apertei o botão do elevador e quando o elevador veio nós descemos junto com as crianças. (...) a médica permitiu que eu entrasse no local, ela estava com a blusinha meio aberta, sem a camisetinha, eu olhava ela na maca, não acreditava que ela tinha falecido, nós passamos um dia tão bom, brincamos o dia todo, brincamos na piscina, andamos de moto, se divertimos, foi toda aquela situação, passamos um ótimo dia na piscina e ela ensinando meu filho a mergulhar e tudo, e agora eu vejo ela ali falecida, aquilo tudo... Eu perdi completamente a noção do que estava acontecendo ali.

E, para conseguir firmar definitivamente a adesão do auditório, o orador

se vale da paixão descrita por Aristóteles, como compaixão (2003):

(...) eu fui socorrer a V. Quando eu cheguei lá, a V estava daquele jeito no chão, com o coraçãozinho batendo acelerado, a primeira coisa que eu fiz foi escutar o coraçãozinho dela, para ver se estava batendo, eu tentei falar com ela, eu falei pra ela: “filha, calma, calma”, eu comecei a gritar pedindo socorro, pedindo resgate (...) (...) “eu gostaria de pegar a V para resgatar”, e ele falou “não mexe”, eu falei: “eu não sei, eu tenho que levar ela para o hospital, ela não pode ficar desse jeito” (...)

Capítulo III – O convencimento e a persuasão no Plenário do Júri

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Para que uma imagem negativa seja desconstruída, repetidos atos

positivos podem levar a uma nova construção da imagem do sujeito, e, por

meio da escolha lexical, o orador tenta persuadir o auditório no intuito de

demonstrar um ethos bom e sensível, diferentemente do ethos apresentado

pelo MP na denúncia: “coloquei a V na cama”, “puxei o sapatinho dela”, “acendi

o abajur”, “deixei a cama arrumada”, “entrei em choque”, “comecei a gritar”, “fui

socorrer”, “escutar o coraçãozinho”, “filha calma, calma”, “desesperado gritando

socorro”, “chamando a ambulância”, “eu gostaria de pegar a V para resgatar”,

“tenho que levar ela para o hospital”, “ela não pode ficar desse jeito”.

Faz uso, mais uma vez, por meio da escolha lexical, de outra técnica

argumentativa, que é a utilização das figuras, que são recursos de estilo e

sempre são notadas em virtude dos objetivos do orador: movere (emoção

suscitada), docere (conhecimento transmitido) e delectare (prazer oferecido)

(FERREIRA, 2010).

Aquilo ali para mim foi o pior dia da minha vida, não sei nem como..., descrever esse dia. Ali eu perdi tudo o que mais..., tudo de mais valioso na minha vida estava ali.

Quando o orador diz: “foi pior dia da minha vida”, “eu perdi tudo o que

mais... tudo de mais valioso na minha vida estava ali”, ele se vale da figura de

presença “repetição”. Em todo o momento o orador busca mostrar que o bem

mais precioso que ele possuía em sua vida era a filha e tenta persuadir o

auditório para que ele – auditório – não esqueça que a filha era o bem mais

valioso que ele tinha, e assim não seria concebível a ideia de ele dispor desse

bem. Tenta o orador despertar o sentimento de presença. Segundo Ferreira

(2010:23) “Figuras de presença: despertam o sentimento de presença do

objeto do discurso na mente do auditório.”

Podemos perceber que o orador se vale do jogo de palavras, por meio

da repetição lexical, para refutar o ethos a ele impingido na denúncia no intuito

de trocar de papel e passar de acusado para vítima. Repete que brigou pela

vida da menina e utiliza-se, ainda, de outra figura de presença, denominada

“sinonímia”: “discussão” e “lutei”. Com a inversão de papéis, ele tenta persuadir

o auditório por meio da emoção, no sentido de que ele, sim, era vítima, ou seja,

ele é bom.

Capítulo III – O convencimento e a persuasão no Plenário do Júri

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eu olhando a V, eu passei o dia todo com ela, eu olho ela daquele jeito, eu perdi completamente tudo ali, estava indo embora a minha vida ali. Antes de a V nascer eu briguei por ela, para ela nascer, foi uma briga grande que eu tive com a avó materna dela, que ela queria que a mãe de minha filha tirasse a V e houve uma briga muito grande, uma discussão entre nós, e a mãe de minha filha também

não aceitava essa imposição da própria mãe e ela acabou até escondendo a gravidez até aproximadamente quatro meses de idade. Então começou a passar um monte de coisas na minha cabeça, eu falava: “o que está acontecendo aqui, meu Deus”, e houve todo aquele negócio, eu falei: “é a minha princesinha que estava ali, ela é tudo na minha vida”, e eu comecei a falar com meu pai: “pai, eu perdi tudo que eu tinha de mais valioso”, eu lutei por ela desde o começo, desde que a mãe de minha filha ficou grávida. (grifo nosso)

É chegado o momento em que o MP começa a se valer das estratégias

retóricas que visam à adesão do auditório, e a primeira estratégia utilizada pelo

promotor de justiça foi o argumento “lugar da quantidade”, pois “Números são

sempre persuasivos”(FERREIRA, 2010:71).

MP: Tem relatos do senhor e de sua esposa e nos interrogatórios do que continha exatamente no seu apartamento. O que havia nesse apartamento da família, na residência da família, no Edifício L? D: O senhor relata qual apartamento? Nós tínhamos dois no L. MP: Eu disse no apartamento onde o senhor e sua família residiam, o senhor chegou a residir no apartamento ? D: Não. MP: Havia televisão lá de dez mil reais lá, é verdade isso?

D: Doutor, eu não estava com minha esposa no depoimento dela, não posso precisar o que ela falou. MP: Quanto valia a televisão que havia no apartamento de vocês?

D: Não sei. (...) MP: Fls. 1.774 e 1.775, (lido em parte o interrogatório). Na página seguinte há uma pergunta minha, ela falou em relógios e objetos. O Dr. M., perguntou de correntes, se tinha mais coisas além disso; resposta da corré: “tinham várias correntes, o A1 gosta de correntes

de ouro”. (grifo nosso)

Ao mesmo tempo em que o MP utiliza-se do lugar da quantidade, tenta

conseguir a adesão do auditório ao mostrar o ethos do réu/acusado e, para

tanto, vale-se do argumento pragmático, que é baseado na estrutura do real,

ou seja, como ele poderia ser um bom pai se pagava à vítima um valor de

pensão alimentícia tão ínfimo, que mal dava para a sua sobrevivência, além de

Capítulo III – O convencimento e a persuasão no Plenário do Júri

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não arcar com o valor integral, tendo de ser ajudado pelo avô paterno da

vítima? Preferia o pai comprar uma televisão de dez mil reais a contribuir com a

subsistência da filha ou ainda ter dois carros na garagem, como mencionado

um pouco mais adiante no discurso da promotoria. Propõe o MP um vínculo

causal entre ser um bom pai e dar condições de sobrevivência ao filho e

inspira, dessa forma, a credibilidade de seu discurso. O argumento pragmático

inspira credibilidade porque é bastante verossímil (FERREIRA, 2010).

MP: Quanto o senhor pagava de pensão para a V mesmo? D: Senhor? MP: Quanto o senhor pagava de pensão para a V? D: R$ 300,00 MP: O senhor pagava ou o seu pai pagava? D: Eu pagava. MP: Como era dividido? Existe informação de que “eram R$ 315,00, o pai do senhor pagava R$ 180,00 num convênio médico e o senhor complementava, entregando à A.O. R$ 135,00”, palavras dela que estão no processo. (...) MP: Quantos carros o senhor tinha naquele apartamento? D: Eu estava com dois carros no apartamento. MP: O senhor que comprou? D: Não, os carros não são meus. MP: O apartamento também não era do senhor? D: Era meu. MP: Estava em seu nome? D: Não.

A partir desse ponto começa então o MP a construir o ethos do acusado.

Notório que um pai responsável trabalha pela sobrevivência de seu filho e arca

com a mantença sozinho, sem necessitar de ajuda de terceiros.

MP: Tem informações no processo que esse quarto da V foi montado por sua mãe para ela, não pelo senhor. D: Foi tudo ao gosto dela, as coisas que tem no quarto até hoje, foi montado segundo ela escolheu. MP: O senhor não respondeu, o quarto foi montado pelo senhor ou por sua mãe, avó de V? D: Por nós todos juntos, nós, como família, sempre estivemos juntos e ela foi escolher a cor dos vidros do armário dela que foi lilás, o lustre que era rosa, foi tudo escolhido por ela, o baú que ela queria da

Capítulo III – O convencimento e a persuasão no Plenário do Júri

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Hello Kitty, foi tudo do jeito que ela queria, foi montado exatamente do jeito que ela queria.

O MP tenta conseguir a adesão do auditório ao mostrar que o acusado

possui um caráter mentiroso. É mais uma construção do ethos de A1 pelo

promotor de justiça. A escolha lexical: “todas as pessoas chegaram com essa

mesma história” se contrapõe ao ethos bom e sensível, demonstrado por A1 no

início de seu depoimento:

MP: Tem dois depoimentos no início do processo, no início do inquérito policial, foram lidos os depoimentos das duas pessoas que depuseram no processo e foi dessa forma que a ocorrência foi transmitida para o Copom, todas as testemunhas chegaram com essa mesma história, fls. 12 e fls. 16. Depoimento da testemunha A. L.: “A1 apareceu lá embaixo, próximo as crianças, perguntou da sacada ao A1 o que havia acontecido e ele respondeu que havia um ladrão lá em cima, que arrombou a porta do apartamento, rasgou a tela de proteção e jogou a sua filha lá em baixo”. Depoimento de W: “A1 apareceu dizendo que haviam arrombado seu apartamento, cortado a tela e jogado a sua filha do sexto andar”. Temos a informação que chegou ao Copom e, não existe um

policial que chegou lá dizendo isso, existem trinta e sete policiais dizendo a mesma coisa, essa mesma informação que foi passada por ele, o réu, a essas pessoas. J: Qual a pergunta então, doutor? MP: Ele disse que não falou em arrombamento, todos eles inventaram isso?

J: O senhor tem conhecimento de que essas informações foram passadas por várias testemunhas? D: Em momento algum eu falei em arrombamento. (...) (grifo nosso)

Essa mesma escolha lexical é também a estratégia retórica lugar da

quantidade, já apresentada anteriormente pelo MP, quando faz uso das

seguintes escolhas lexicais “todas as testemunhas chegaram com essa mesma

história” e “existem trinta e sete policiais dizendo a mesma coisa” para

demonstrar o caráter mentiroso do réu/acusado.

E, por fim, utiliza-se da ironia para provar seu argumento de que o réu é

inescrupuloso, mentiroso e sagaz. Enfim, não era, o réu/acusado, um bom pai,

como pretende demonstrar no início de seu depoimento e que poderia, sim, ter

cometido o crime sem o menor pudor.

MP: E já vou finalizar, Excelência, o réu, ele apareceu hoje com óculos. Ele teve algum problema nesses dois anos, problemas de visão? D: Eu sempre usei óculos, não sei se o senhor...

Capítulo III – O convencimento e a persuasão no Plenário do Júri

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MP: Eu nunca vi. D: É que o senhor não acompanha a minha vida. J: O senhor tem problemas nos olhos? D: Eu tenho sim. J: Miopia, estrabismo? D: De enxergar de longe, eu não consigo muito, e os meus olhos andam muito irritados. MP: A ponto de não saírem lágrimas quando o senhor chora? J: Doutor, indeferida a pergunta.

Capítulo III – O convencimento e a persuasão no Plenário do Júri

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3.5 Análise do depoimento da acusada (A2)

Como já vimos na análise do depoimento do acusado (A1) empreendida

anteriormente, o depoimento da acusada serve como meio de prova de ambas

as partes e conterá dados pessoais e questionamentos quanto à vida diária da

ré e quanto à acusação a ela imputada, além de servir como meio de

autodefesa.

Da mesma forma que na análise anterior, após lida a denúncia, o juiz

pede que a acusada/ré relate o que aconteceu na data do crime.

A oradora começa seu depoimento/discurso com a utilização da paixão

denominada por Aristóteles como “amor”, quando faz a escolha lexical “ela me

pediu com um jeitinho todo meigo e carinhoso”, e com isso busca a adesão do

auditório pela emoção, por não ser crível uma pessoa cometer um homicídio de

uma criança tão meiga.

A guarda era da mãe dela; na quarta-feira nós estivemos com a V, na quarta-feira minha cunhada, C, pegou a V na escola porque nós íamos num aniversário de um amigo e quando fomos leva-la de volta para a casa dela, eu e meu marido, no caminho a V me pediu, ela pediu com um jeitinho todo meigo e carinhoso, ela falou: “tia A2, eu quero fazer um pedido”, eu falei: “pode falar”, e ela me pediu assim: “deixa o P ir na minha casa amanhã?”, eu olhei para ela e falei: “Claro que a tia deixa”. Aí deixamos ela lá, conversamos com a “C” na porta da casa dela.

A ré também tenta persuadir o auditório por meio da demonstração do

amor e do carinho que ambas, ré e vítima, nutriam uma pela outra, o que a

coloca na posição de inocente. Presente também o argumento quase lógico de

incompatibilidade: como ela, ré, poderia matar V, a quem amava e era

correspondida?

Não, eu coloquei eles para tomar banho, nós duas tomávamos banhos juntas e todas as vezes, quando embaçava o vidro, ela fazia o coração dela e o meu coração, ela falava que era o amor que ela sentia por mim (depoente se emociona). Eu entrei no banho de roupa e tudo porque eu estava dando banho no P e nela, eu fiz um coração enorme, do tamanho do boxe, aí ela falou que não valia, que o meu coração era muito grande, por isso que eu fiz daquele tamanho...

Em seu discurso, a oradora também se vale de outra paixão aristotélica,

a “calma”, ao tentar construir seu ethos como uma pessoa equilibrada, madura

Capítulo III – O convencimento e a persuasão no Plenário do Júri

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e, sobretudo, calma, diferentemente do que foi demonstrado pelo MP na

denúncia. Menciona, inclusive, a felicidade que ela tinha em ficar com a vítima.

(...) Eu fiz isso, era uma coisa normal em casa, levei meu filho para a escola que tinha passeio, o P foi, aí meu estava saindo, eu esperei o ônibus sair por volta das duas da tarde e o celular tocou, era a C, eu atendi o telefone, ela falou: “A1, você está muito ocupada?”, eu falei: “não, o que aconteceu?” aí ela disse assim: “é que a V (diminutivo do nome) não quer ficar com a minha mãe, ela quer ficar aí com você”, eu até fiquei feliz e falei pra ela: “então daqui a dez minutinhos eu estou lá para pegar ela” (...)

A oradora se mostra, assim como o réu, uma verdadeira oradora, uma

artista, no sentido de descobrir argumentos mais eficazes (REBOUL, 2004) ao

descrever detalhadamente tudo o que aconteceu anteriormente ao crime.

Descreve a maneira como a vítima foi retirada do carro, por meio da escolha

lexical: “colocou a cabeça dela no ombro, a perninha dela para baixo”;

descreve que o elevador social possuía sensores que acendiam luzes e

poderiam acordar seu filho; descreve que a chave do apartamento estava no

bolso de A1, que achou estranho a luz da cozinha estar acesa. Enfim, relata

detalhes que uma boa oradora sabe que farão a diferença e, dessa forma,

poderá conseguir a adesão do auditório por meio de outra paixão, a

“confiança”, pois, ao descrever cada detalhe, ela demonstra estar segura do

que aconteceu e dissocia por completo a sua imagem da de uma pessoa

insegura.

Entramos na garagem, o A1 pegou ela no colo normal, e sem machucado nenhum, colocou a cabeça dela no ombro, a perninha dela para baixo...Excelência, eu quero deixar bem claro que no carro não tinha fralda nenhuma, a mala deles estava atrás, no porta-malas, fralda que estava no balde foi achada de molho foi do sábado de manhã, se não me engano, ou da sexta-feira à noite, que eu tinha dado mamadeira para o meu filho e ele tinha sujado a fralda, não tinha fralda no carro... Nisso ele foi para o elevador social e eu fui para o lado do elevador de serviço, que o elevador social tem sensores, já acende a luz, então eu fiquei assim, (depoente gesticula) segurando a mão em cia do C, aí nisso nós subimos no elevador, normal, sem briga, sem nada. Subimos, chegamos no apartamento, o A1 tirou a chave do bolso, ele estava com o P no colo e eu com o C, vi ele tirando a chave do bolso, ele abriu a porta de casa, ali eu notei que a luz da cozinha estava acesa, achei estranho porque sempre que nós entramos em casa a gente acende a luz do hall, que é uma entrada dentro do apartamento. Mas eu não falei nada, tirei meu tamanco, deixei na cozinha para não fazer barulho, parei no meio da sala em direção ao quarto, deixei a bolsa no meio da mesa de jantar, saí, aí nisso o A1 foi na frente entrando no corredor, acho que ele notou que as luzes estavam diferentes de como ele tinha deixado.

Capítulo III – O convencimento e a persuasão no Plenário do Júri

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Por meio da utilização do recurso de estilo “repetição”, que facilita a

atenção e a lembrança (REBOUL, 2004), a oradora tenta distrair o auditório

com o intuito de reforçar a adesão e faz uso repetidamente da escolha lexical:

“fralda nenhuma”, “fralda que estava no balde”, “ele tinha sujado a fralda”, “não

tinha fralda no carro”.

Vale-se de outra paixão aristotélica – também no anseio de conseguir a

adesão do auditório –: o temor, que é a preocupação com um mal eminente,

danoso ou penoso (ARISTÓTELES, 2003). A oradora tenta demonstrar por

meio de suas atitudes (gritar, entrar em desespero, xingar etc.) o temor por

algo de mal que poderia ter ocorrido com a criança, e, assim, inverter-se os

papéis, passa de acusada a vítima.

(...) e falou: “A2, a V está lá embaixo”, ele falou para mim, aí eu falei “não, é mentira”, e já comecei a gritar, eu não me lembro se eu falei palavrão, mas eu me lembro que eu gritei desesperadamente eu fui conferir, fui lá, eu não coloquei a cabeça no buraco, eu só fiz assim (depoente gesticula como se encostasse à cabeça em algo) e eu pude ver ela, ela estava jogada lá embaixo (...) (...) eu estava desesperada, gritando, eu gritei com o porteiro, realmente eu gritei com ele, não lembro do que eu xinguei ele, mas realmente eu falei vários palavrões para ele, isso eu confirmo, eu perguntei onde ele estava (...) (...) eu vi o porteiro saindo do fundo, não foi nessa hora que eu xinguei ele, nessa hora eu perguntei onde ele estava, ele estava todo suado, transpirando muito e eu comecei a xingar ele, muito, muito, muito, aí eu peguei, liguei para a C, eu não conseguia falar com ela, eu gritava no telefone (...)

Podemos perceber que a utilização da repetição é uma estratégia

constante no depoimento/discurso da ré/oradora, para se mostrar preocupada

com a vítima e prender a atenção do auditório. Em outro trecho se dá a

repetição com a escolha lexical: “desesperada”, “gritar” e “chorar”, senão

vejamos:

(...) eu fiquei desesperada, comecei a gritar e chorar na cozinha (...)

Para corroborar com a assertiva acima, de que a oradora se vale da

estratégia da figura de presença repetição, temos a utilização das escolhas

lexicais: “pegou” (sete vezes); “papel filme” (três vezes); “tesoura” (dez vezes);

“cortar carne” (quatro vezes); “tesoura que corta frango” (duas vezes); e “faca”

(duas vezes):

Capítulo III – O convencimento e a persuasão no Plenário do Júri

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aí o investigador pegou, foi na pia, pegou o papel-filme, que gruda, pegou a tesoura e falou assim, ele pegou a tesoura que eu tinha usado no sábado de tarde para cortar carne, que eu cortava carne com a tesoura, pegou a tesoura com o papel filme e falou assim: “mocinha, o que é isso?” Ele pegou a tesoura com o papel filme e olhou assim para mim, falou o que era. Expliquei para ele que era a tesoura que eu usava, que era de frango, mas eu usava para cortar carne. Aí ele pegou a tesoura, me mostrou, expliquei para ele que era de cortar carne, aí nisso ele não me mostrou a faca, que eu não usei essa faca no sábado, só a tesoura, que é uma tesoura que corta frango.

O juiz de Direito retoma o foco central, pede que a A2 relate seu

relacionamento com A1, direciona o discurso para a construção do ethos da

acusada, a fim de esclarecer os fatos relacionados ao objeto judicial, e

pergunta se o relacionamento entre A1 e A2 era bom, se havia discussões,

brigas.

J: Gostaria que a senhora relatasse um pouquinho agora a respeito do relacionamento da senhora com o senhor A1. Há quanto tempo vocês estão juntos, o relacionamento era bom, tinha muitas discussões, brigas? D: Nós estamos juntos há sete anos e, antes de ter o meu filho P, eu discutia bastante com ele, antes do nascimento do meu primeiro filho, há cinco anos atrás. J: O que é bastante? D: Eu discutia muito com ele, eu brigava muito com ele, gritava bastante, isso foi no edifício da P. C., se não me engano. (...) J: Como eram as brigas, discussão verbal? D: Só discussão verbal, não é da maneira que as pessoas estão falando, parece que eu e ele “se pegava” todos os dias, isso não, ele nunca partiu para cima de mim e eu nunca parti para cima dele. J: Brigava bastante, eu quero que a senhora me explique o que era brigar bastante. D: Não eram todos os dias, eu brigava com ele, eu xingava ele, eram essas coisas. J: Eram motivos específicos ou não, qual era o motivo dessas brigas? Eu brigava por tudo, acho. (...) J: Quero que a senhora relate um pouco do relacionamento especificamente da senhora com a V, se era muito bom, se dava bem com ela, se ela gostava da senhora ou não. Quero saber do relacionamento da senhora com a V.

Capítulo III – O convencimento e a persuasão no Plenário do Júri

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D: Era muito bom, eu tinha ela como se fosse a minha filha, eu cuidava dela, eu fazia tudo por ela.

Pela primeira vez o ethos do juiz de Direito ecoa e mostra-se

compassivo e comedido. Ele faz uso de sua autoridade para despertar no

auditório como o ethos da ré/oradora se compõe e, para isso, faz algumas

escolhas lexicais: “Gostaria que a senhora relatasse um pouquinho”, “eu quero

que a senhora me explique como era brigar bastante”, “quero que a senhora

relate um pouco do relacionamento”.

É interessante perceber que a escolha lexical da oradora para responder

ao questionamento do juiz de Direito demonstra o seu ethos como uma pessoa

bastante agressiva: “discutia bastante com ele”, “eu discutia muito com ele”, “eu

brigava muito com ele”, “gritava bastante”, “eu brigava com ele”, “eu xingava

ele”, “eu brigava por tudo”.

O MP, por sua vez, tenta construir o ethos da ré como uma pessoa

articulada e mentirosa, e faz uso da paixão “ironia” em três momentos de seu

discurso, para conseguir a adesão do auditório por meio das escolhas lexicais:

“esqueceu”, “tinha tudo fresco na cabeça” e “operação aritmética”.

MP: A senhora esqueceu? Porque no depoimento prestado na delegacia da polícia, a senhora afirma claramente que ficaram dez minutos na garagem. D: O senhor falou o tempo que ficou o barulho lá embaixo, eu não sei o tempo que as pessoas ficaram falando. MP: Não, estou perguntando o tempo que a senhora junto com as duas crianças e o corréu A1 permaneceram lá aguardando que o barulho cessasse, o que a senhora declarou dez minutos. D: Se eu declarei isso, é que na época eu lembrava, hoje eu não lembro direito as coisas, os fatos, não me recordo. MP: A questão também do porteiro, que apareceu correndo, todo molhado de suor, só apareceu em juízo quando a senhora foi interrogada, nos dois depoimentos anteriores, um dos quais na presença de seu advogado, a senhora tinha tudo fresco na cabeça, que havia acabado de acontecer, a senhora nem mencionou isso. Por quê? D: Isso o senhor está falando perante o juiz, que eu falei? MP: A senhora veio com essa história do porteiro correndo dos fundos, todo molhado de suor, em juízo, no final de maio de 2008. A senhora foi ouvida duas vezes anteriores, no dia trinta de abril e no dia dezoito, no dia trinta de março e no dia dezoito de abril, em nenhum momento a senhora mencionou isso, tinha tudo fresco na cabeça. Essa é a pergunta: por que a senhora não mencionou isso, mesmo acompanhada de seus advogados?

Capítulo III – O convencimento e a persuasão no Plenário do Júri

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D: Doutor, pelo fato, o senhor pode até notar, eu fico nervosa e acabo querendo falar muita coisa e acabo esquecendo muita coisa também de falar. (...) MP: Operação aritmética, ou as brigas cessaram em 2005 ou as brigas cessaram em 2008.

Com o intuito de demonstrar que a ré, além de articulada e mentirosa,

também era invejosa, tenta construir o seu ethos por meio de outra paixão, a

“inveja”. O ciúme é que a crença de que todos tentam arrebatar o que nos

pertence. (ARISTÓTELES, 2003).

MP: Fl. 23, no dia trinta de março, acompanhada de seu advogado doutor R, a senhora declarou o seguinte: “já tive muito desentendimento com a C. no decorrer da relação, visto que inicialmente tinha ciúmes dela com seu marido, sendo que esses desentendimentos terminaram há pouco tempo atrás”.

Para confirmar o ethos da oradora como uma pessoa agressiva e

desequilibrada, o MP faz a seguinte escolha lexical: “quebrávamos o pau todos

os dias”, “esmurrou uma vidraça”, “pessoa nervosa”, “tomar calmante”.

MP: Fl. 1449, a senhora disse: “na rua P. C., a gente brigava bastante”. Tem outros depoimentos da senhora, em que a senhora também menciona que aquele apartamento novo parecia ter algo diferente e as brigas pararam quando o casal se mudou. A frase usada é exatamente essa: “no antigo apartamento quebrávamos o pau todos os dias”. MP: A frase é: “no apartamento da rua P. C., quebrávamos o pau todos os dias”. Esta frase que a senhora diz, que o casal morou nesse edifício até um mês antes do crime.

MP: No dia 20 de janeiro há um registro de uma briga que a senhora teve com o acusado A1, que a senhora esmurrou uma vidraça, que teria se cortado toda. A pergunta é: essa é uma briga normal? MP: A senhora é uma pessoa nervosa? MP: Por que as fls. 1453 a senhora relata um diálogo com seu pai para contar a ida ao médico, ele teria dito: “meu, você precisa tomar calmante”? D: Meu pai teria falado isso? MP: Consta isso. D: É que eu chorava muito, foi logo depois que o C nasceu, meu pai e minha mãe falaram que eu tinha que ir ao médico, eu fui numa médica em Santana, porque toda vez que o menino chorava eu

Capítulo III – O convencimento e a persuasão no Plenário do Júri

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chorava junto, eu tinha casa e filhos para cuidar, tinha a minha casa para arrumar, eu não sabia o que fazia, ele só chorava o tempo todo e grudava na minha perna e eu chorava do outro lado.

Interessante perceber que, além de se deixar levar pelo MP na

construção de seu próprio ethos, a oradora ainda faz escolhas lexicais que a

demonstra como uma pessoa imatura: “eu chorava muito”, “o menino chorava e

eu chorava junto”, “eu não sabia o que fazia, ele só chorava o tempo todo e eu

chorava do outro lado”.

Percebemos ainda a estratégia da ironia sendo usada mais uma vez

pelo MP quando pergunta “se essa era uma briga normal”.

E, por meio da utilização do recurso de estilo “repetição” – estratégia

contumazmente utilizada pela oradora como já vimos anteriormente e aqui pelo

promotor de justiça –, o PJ constrói o ethos da ré como uma pessoa insensível

e com frieza emocional, uma vez que tinha outras preocupações enquanto a

criança estava caída no chão e necessitava de socorro urgente.

MP: Eu vou ler o que consta às fls. 1480, o depoimento dela em juízo, a respeito do momento em que a senhora, já lá embaixo, ao lado do seu marido, a V ainda no chão, viva; segundo ele, o coração dela batia acelerado...

D: Batia. MP: A senhora relatou o que houve quando da chegada dos primeiros policiais os seguintes detalhes entre a senhora e o seu marido, eu vou perguntar para a senhora responder se está correto. O juiz faz uma pergunta e a senhora responde: “então, Excelência, foi assim: o policial pediu para alguém subir com ele, para ver se faltava alguma coisa no apartamento, tinha que ir porque tinha que estar na presença de testemunhas”. V estava lá no chão? D: Estava. MP: Necessitando de urgente socorro?

D: Estava. MP: Seu marido falou para a senhora: “vai você, amor”. V continuava lá, caída?

D: Sim. MP: Esperando socorro? D: (Depoente balança a cabeça afirmativamente). MP: Então a gente falou: “é ladrão, alguém entrou lá dentro” (...) V continuava caída lá, necessitando de urgente socorro?

J: A senhora confirma? D: Eu não me lembro de ter falado isso daí, o que eu lembro é que o policial desceu, falou para evacuar o prédio, eu não lembro se eu falei desse jeito, mas ele falou: “sobe lá você”, ele estava nervoso,

Capítulo III – O convencimento e a persuasão no Plenário do Júri

68

desesperado, e eu falei para ele: “não vou subir”, aí ele disse “vai lá, sim” , aí meu subi. MP: Esse é o depoimento, a senhora falou isso para o Juiz no dia 28 de maio de 2008. Continuando: “... é ladrão, alguém entrou lá dentro”. V continuava caída lá? J: A senhora se recorda dessa frase dita em juízo, quando a senhora foi ouvida? D: Eu não recordo. J: Durante essa conversa que era para alguém subir, a V estava caída ainda? D: Sim, o A1 que falou para „mim‟ subir. MP: O policial falou: “a porta esta arrombada” e a senhora falou: “não está arrombada”. V continuava caída... DEF: Excelência, ele vai continuar repetindo que a V continuava caída... (grifo nosso)

Notemos aqui a preocupação por parte do advogado de defesa com a

estratégia da repetição utilizada pelo MP.

J: Durante esse tempo em que vocês foram até o apartamento a pedido policial e voltaram, a V continuava caída e precisava de socorro ainda?

D: Estava o A1 e a C do lado do corpinho dela e o pessoal no gramado. J: Esses diálogos doutor, qual o propósito? Eu também não estou entendendo. MP: Eu estou lendo o depoimento dela, se eu puder continuar eu chego na pergunta. Eu estava perguntando se a V estava lá caída, a pergunta é objetiva. A senhora disse: “não tinha o miolo na chave, só o buraquinho de pôr a chave, não tínhamos terminado de reformar o negócio da porta”. V continuava caída? J: Durante esse diálogo que a senhora teve, esse diálogo sobre a porta, a fechadura, esse tempo todo, a menina não tinha sido socorrida?

D: Nessa hora que eu falei que não tinha o negocinho da chave, eu acho que a V tinha sido socorrida, o policial desceu e falou, olhando nos meus olhos, eu comecei a chorar mais ainda, eu pensei que ela tinha levado um tiro. J: A V, nesse último diálogo, tinha sido socorrida? D: Se não me engano, parece que sim, foi a hora que eles desceu, ele pediu para evacuar o prédio nessa hora. MP: A última frase que ele teria dito para a senhora: “sobe lá e veja se está faltando alguma coisa”, que hora foi? D: Ele não falou no tom que o senhor está falando, ele falou nervoso, ele falou: “sobe lá você e veja se está faltando alguma coisa”, e eu falei que não ia coisa nenhuma, que eu estava preocupada com a V. MP: E a V nesse momento, estava onde?

J: Nesse diálogo, ela continuava lá? D: Continuava

Capítulo III – O convencimento e a persuasão no Plenário do Júri

69

J: E no diálogo sobre o miolo da chave, ela tinha sido socorrida?

D: Se não me falha a memória, eu acredito que estava lá ainda o corpinho dela, hoje eu não me recordo. MP: Lá onde, na grama?

D: Na grama, se não me falha a memória. (grifo nosso)

Capítulo III – O convencimento e a persuasão no Plenário do Júri

70

3.6 Análise da sentença

A sentença judicial é o instrumento pelo qual o Juiz de Direito encerra o

processo ao dar um veredito sobre os fatos narrados no decorrer do processo

e, conforme o seu entendimento, imputa a pena cabível se entender que o

acusado praticou de fato o delito, no caso da esfera criminal.

Como já vimos, quando se trata de crimes contra a vida, o julgamento do

réu/acusado será no Plenário do Júri. Nesse caso, o veredito será dado

conjuntamente pelo magistrado e pelos jurados – que representam a

sociedade.

A sentença é o discurso elaborado pelo Juiz de Direito após a decisão

do corpo de jurados, que já terão respondido previamente aos quesitos

formulados que embasaram as possibilidades de punição do acusado. Ela

começa com “Vistos”, palavra que dará início ao relatório, que, por sua vez, é a

parte inaugural da sentença, na qual o juiz expõe, de forma resumida, os fatos

que levaram à acusação do réu com a identificação dos acusados, o local do

crime, a denúncia do promotor de justiça, os fatos relevantes e, por fim, a

decisão dos jurados.

VISTOS 1. A1 e A2, qualificados nos autos, foram denunciados pelo Ministério Público porque no dia 29 de março de 2.008, por volta de 23:49 horas, na rua S. L., nº 00, apartamento 00, Vl. M.I, nesta Capital, agindo em concurso e com identidade de propósitos, teriam praticado crime de homicídio triplamente qualificado pelo meio cruel (asfixia mecânica e sofrimento intenso), utilização de recurso que impossibilitou a defesa da ofendida (surpresa na esganadura e lançamento inconsciente pela janela) e com o objetivo de ocultar crime anteriormente cometido (esganadura e ferimentos praticados anteriormente contra a mesma vítima) contra a menina V. Aponta a denúncia também que os acusados, após a prática do crime de homicídio referido acima, teriam incorrido também no delito de fraude processual, ao alterarem o local do crime com o objetivo de inovarem artificiosamente o estado do lugar e dos objetos ali existentes, com a finalidade de induzir a erro o juiz e os peritos e, com isso, produzir efeito em processo penal que viria a ser iniciado. 2. Após o regular processamento do feito em Juízo, os réus acabaram sendo pronunciados, nos termos da denúncia, remetendo-se a causa assim a julgamento ao Tribunal do Júri, cuja decisão foi mantida em grau de recurso. 3. Por esta razão, os réus foram então submetidos a julgamento perante este Egrégio 2º Tribunal do Júri da Capital do Fórum Regional de Santana, após cinco dias de trabalhos, acabando este Conselho Popular, de acordo com o termo de votação anexo, reconhecendo que os acusados praticaram, em concurso, um crime

Capítulo III – O convencimento e a persuasão no Plenário do Júri

71

de homicídio contra V, pessoa menor de 14 anos, triplamente qualificado pelo meio cruel, pela utilização de recurso que dificultou a defesa da vítima e para garantir a ocultação de delito anterior, ficando assim afastada a tese única sustentada pela Defesa dos réus em Plenário de negativa de autoria. Além disso, reconheceu ainda o Conselho de Sentença que os réus também praticaram, naquela mesma ocasião, o crime conexo de fraude processual qualificado.

O orador – juiz de Direito – começa então a expor os motivos da

absolvição ou da condenação. É a segunda parte da sentença, e é nesse

momento que podemos perceber se a argumentação da acusação, no caso do

MP, atingiu seu objetivo.

FUNDAMENTAÇÃO. 4. Em razão dessa decisão, passo a decidir sobre a pena a ser imposta a cada um dos acusados em relação a este crime de homicídio pelo qual foram considerados culpados pelo Conselho de Sentença. Uma vez que as condições judiciais do art. 59 do Código Penal não se mostram favoráveis em relação a ambos os acusados, suas penas-base devem ser fixadas um pouco acima do mínimo legal. Isto porque a culpabilidade, a personalidade dos agentes, as circunstâncias e as conseqüências que cercaram a prática do crime, no presente caso concreto, excederam a previsibilidade do tipo legal, exigindo assim a exasperação de suas reprimendas nesta primeira fase de fixação da pena, como forma de reprovação social à altura que o crime e os autores do fato merecem.

Observamos o ethos acusador do Juiz de Direito, que se vale de sua

autoridade, ou seja, que se vale do poder a ele atribuído pelo Estado e decide

a pena cabível que deve recair sobre os acusados: “passo a decidir sobre a

pena”, “suas penas devem ser fixadas” e “exasperação de suas reprimendas

nesta primeira fase de fixação da pena”.

Em seguida, percebemos que as estratégias retóricas e as

argumentações da acusação foram acolhidas. O auditório aderiu ao discurso

elaborado pelo PJ, senão vejamos:

Com efeito, as circunstâncias específicas que envolveram a prática do crime ora em exame demonstram a presença de uma frieza emocional e uma insensibilidade acentuada por parte dos réus, os quais após terem passado um dia relativamente tranqüilo ao lado da vítima, passeando com ela pela cidade e visitando parentes, teriam, ao final do dia, investido de forma covarde contra a mesma, como se não possuíssem qualquer vínculo afetivo ou emocional com ela, o que choca o sentimento e a sensibilidade do homem médio, ainda mais porque o conjunto probatório trazido aos autos deixou bem

Capítulo III – O convencimento e a persuasão no Plenário do Júri

72

caracterizado que esse desequilíbrio emocional demonstrado pelos réus constituiu a mola propulsora para a prática do homicídio.

O corpo de jurados/auditório aceitou/aderiu à acusação do MP de que

foram realmente os acusados quem praticaram o crime.

Tal qual vimos na denúncia, o discurso elaborado na sentença é o

discurso autorizado, uma vez que o juiz de Direito tem o respaldo institucional

para fazê-lo, assim como o MP, muito embora também se valeu este último das

técnicas discursivas para conseguir a adesão do seu auditório.

(...) o emprego de técnicas discursivas visando a provocar ou incrementar a adesão dos espíritos às teses apresentadas ao seu assentimento, a argumentação caracteriza-se como ato de persuasão (MOSCA apud PERELMAN: 2004:146)

3.7. Conclusão da análise

O julgamento de um acusado tem por finalidade reparar um dano

causado à sociedade, entretanto, muitos são os fatos controversos que

compõem um processo judicial, e cabe ao Poder Judiciário dirimir esses pontos

incontroversos e dar um veredito final, o que o faz na pessoa do juiz de Direito.

Todavia, cabe ao Ministério Público analisar e diligenciar para que a

sociedade seja ressarcida por todo o dano a ela causado. A parte contrária,

porém, também deseja que a sua verdade prevaleça, instaurando-se, assim, o

embate, que é justamente o interesse da retórica.

(...) a retórica é a negociação da diferença entre os indivíduos sobre uma questão dada e reside no mundo da opinião dos seres, do modo que resulta dos interesses harmonizados, da negociação das distâncias com base em um problema, uma questão. (MEYER: 2007:25)

Dessa maneira, faz-se necessária a exposição desse embate a um juiz

e, no caso do Plenário do Júri, aos jurados, que desempenham o papel de

julgadores, assim como o próprio juiz, que julgará qual tese apresentada pelas

partes se aproxima da verdade, qual tese é a verossímil, quando não há a

confissão por parte dos acusados e tampouco testemunhas que presenciaram

Capítulo III – O convencimento e a persuasão no Plenário do Júri

73

o crime, como foi o caso do nosso objeto de análise. A única prova de que o

fato ocorreu era o próprio delito, ou seja, a morte da vítima.

O PJ, a todo o momento, afirmava que o pai e a madrasta eram os

autores do crime, os culpados pela morte da vítima. Por sua vez, os

réus/acusados, a todo o momento, afirmavam não terem praticado o delito.

Para a Promotoria, dadas as circunstâncias do fato e as provas periciais

apresentadas antes da denúncia, não havia outra possibilidade de os acusados

não terem causado o ferimento na vítima, ainda no automóvel da família, e

muito menos de não estarem presentes no momento em que a menor foi,

segundo o discurso do próprio promotor de justiça, defenestrada. E, por meio

do raciocínio lógico, o promotor de justiça concluiu que ambos feriram e

mataram a menina.

Por meio da denúncia analisada neste trabalho, percebemos o

posionamento do MP quanto à culpa dos réus/acusados e, sobretudo, de que

forma a argumentação se daria e quais as estratégias retóricas utilizadas para

a adesão do auditório.

os indiciados A1 e A2, qualificados as fls. 585 e 604, respectivamente, agindo com unidade de propósito, valendo-se de meio cruel, utilizando-se de recurso que impossibilitou a defesa da ofendida e objetivando garantir a ocultação de delitos anteriormente cometidos, causaram em V, mediante ação de agente contundente e asfixia mecânica, os ferimentos descritos no laudo de exame de corpo de delito de fls. 630/652, os quais foram causa eficiente de sua morte.

Foi por meio do depoimento do acusado que pudemos perceber quais

eram as estratégias retóricas a serem seguidas, uma vez que a defesa negava

a autoria do crime. Para esta, verossímil era o acusado ser um bom pai e que,

também, pelo uso do raciocínio lógico, jamais poderia ferir e matar a própria

filha.

(...) coloquei a V na cama, que ela estava dormindo, puxei o edredom em cima dela, puxei o sapatinho dela, coloquei no chão, cobri a V, acendi o abajur dela porque ela não gostava de ficar no escuro, e em seguida fui para o quarto dos meninos, dos meus dois filhos. Eu entrei, tirei os brinquedos que estavam em cima da cama, normalmente fica, deixei a cama arrumada para a gente colocar eles

quando subisse (...)

Capítulo III – O convencimento e a persuasão no Plenário do Júri

74

Para a Promotoria, era evidente que o réu/acusado mentia, na tentativa

de se mostrar inocente; alegava ser um bom pai, entretanto, preferia ostentar

grandiosidade a pagar pensão alimentícia que garantisse o sustento da filha.

MP: Fls. 1.774 e 1.775, (lido em parte o interrogatório). Na página seguinte há uma pergunta minha, ela falou em relógios e objetos. O Dr. M., perguntou de correntes, se tinha mais coisas além disso; resposta da corré: “tinham várias correntes, o A1 gosta de correntes de ouro”.

MP: Quanto o senhor pagava de pensão para a V mesmo?

Constrói o PJ o ethos do acusado como uma pessoa irresponsável, que

não arca com suas obrigações e que necessita da ajuda dos pais para manter

sua filha, além de ostentar a grandiosidade de que ele tanto gostava. Articula

questionamentos irrefutáveis para garantir a adesão do auditório/jurados.

MP: Quanto o senhor pagava de pensão para a V?O senhor pagava ou o seu pai pagava? D: Eu pagava. MP: Como era dividido? Existe informação de que “eram R$ 315,00, o pai do senhor pagava R$ 180,00 num convênio médico e o senhor complementava, entregando à A.O. R$ 135,00”, palavras dela que estão no processo. MP: Tem informações no processo que esse quarto da V foi montado por sua mãe para ela, não pelo senhor. MP: Quantos carros o senhor tinha naquele apartamento? O senhor que comprou? MP: O apartamento também não era do senhor? MP: Estava em seu nome?

Claro também era para o PJ que o acusado agia com frieza, e, por meio

da ironia, tenta garantir a adesão do auditório.

MP: E já vou finalizar, Excelência, o réu, ele apareceu hoje com óculos. Ele teve algum problema nesses dois anos, problemas de visão? D: Eu sempre usei óculos, não sei se o senhor... MP: Eu nunca vi. D: É que o senhor não acompanha a minha vida. J: O senhor tem problemas nos olhos? D: Eu tenho sim.

Capítulo III – O convencimento e a persuasão no Plenário do Júri

75

J: Miopia, estrabismo? D: De enxergar de longe, eu não consigo muito, e os meus olhos andam muito irritados. MP: A ponto de não saírem lágrimas quando o senhor chora?

A mesma estratégia retórica foi utilizada no depoimento da acusada, que

também negava a autoria do crime, uma vez que amava a enteada e o

verossímil seria cuidar e prestar todo o auxílio à menor tão frágil e tão doce.

(...) na quarta-feira minha cunhada, C, pegou a V na escola porque nós íamos num aniversário de um amigo e quando fomos leva-la de volta para a casa dela, eu e meu marido, no caminho a V me pediu, ela pediu com um jeitinho todo meigo e carinhoso, ela falou: “tia A2, eu quero fazer um pedido”, eu falei: “pode falar”, e ela me pediu assim: “deixa o P ir na minha casa amanhã?”, eu olhei para ela e falei: “Claro que a tia deixa.” (...) (...) eu coloquei eles para tomar banho, nós duas tomávamos banhos juntas e todas as vezes, quando embaçava o vidro, ela fazia o coração dela e o meu coração, ela falava que era o amor que ela sentia por mim (depoente se emociona). Eu entrei no banho de roupa e tudo porque eu estava dando banho no P e nela, eu fiz um coração enorme, do tamanho do boxe, aí ela falou que não valia, que o meu coração era muito grande, por isso que eu fiz daquele tamanho (...)

Entretanto, uma vez mais a Promotoria rebate o argumento da defesa e,

novamente, por meio de estratégia retórica, vale-se da figura de escolha

“ironia” e começa a construir o ethos da acusada também como mentirosa.

MP: A senhora esqueceu? (...) a senhora tinha tudo fresco na cabeça, que havia acabado de acontecer, a senhora nem mencionou isso. Por quê? (...) A senhora foi ouvida duas vezes anteriores, no dia trinta de abril e no dia dezoito, no dia trinta de março e no dia dezoito de abril, em nenhum momento a senhora mencionou isso, tinha tudo fresco na cabeça. Essa é a pergunta: por que a senhora não mencionou isso, mesmo acompanhada de seus advogados?

Tenta também o PJ mostrar mais um ethos da acusada, o de uma

melhor ciumenta e que sentia ciúmes da mãe da vítima.

MP: Fl. 23, no dia trinta de março, acompanhada de seu advogado doutor R, a senhora declarou o seguinte: “já tive muito desentendimento com a A.C. no decorrer da relação, visto que inicialmente tinha ciúmes dela com seu marido, sendo que esses desentendimentos terminaram há pouco tempo atrás”.

Capítulo III – O convencimento e a persuasão no Plenário do Júri

76

Para garantir a adesão do auditório, tenta mostrar outro ethos da

acusada, o de uma pessoa desequilibrada e agressiva, e por isso é verossímil

que ela ferisse a vítima, uma vez que ela própria se feria para garantir a

atenção do companheiro.

MP: Fl. 1449, a senhora disse: “na rua P. C., a gente brigava bastante”. Tem outros depoimentos da senhora, em que a senhora também menciona que aquele apartamento novo parecia ter algo diferente e as brigas pararam quando o casal se mudou. A frase usada é exatamente essa: “no antigo apartamento quebrávamos o pau todos os dias”. MP: No dia 20 de janeiro há um registro de uma briga que a senhora teve com o acusado A1, que a senhora esmurrou uma vidraça, que teria se cortado toda. MP: A senhora é uma pessoa nervosa? MP: Por que as fls. 1453 a senhora relata um diálogo com seu pai para contar a ida ao médico, ele teria dito: “meu, você precisa tomar calmante”?

Por fim, o PJ se vale das figuras retóricas de repetição para tornar

presente na memória do seu auditório o ethos da acusada, diferente do ethos

que ela própria tentou construir no início de seu depoimento, quando afirmava

que se importava com a vítima e zelava pelo seu bem-estar.

(...) a V ainda no chão, viva; segundo ele, o coração dela batia acelerado... (...) V estava lá no chão? MP: Necessitando de urgente socorro? MP: Seu marido falou para a senhora: “vai você, amor”. V continuava lá, caída? MP: Esperando socorro? (...) V continuava caída lá, necessitando de urgente socorro? (...) V continuava caída lá? (...) a V estava caída ainda? MP: O policial falou: “a porta esta arrombada” e a senhora falou: “não está arrombada”. V continuava caída... (...) Eu estava perguntando se a V estava lá caída, a pergunta é objetiva. A senhora disse: “não tinha o miolo na chave, só o buraquinho de pôr a chave, não tínhamos terminado de reformar o negócio da porta”. V continuava caída? MP: E a V nesse momento, estava onde? MP: Lá onde, na grama?

Notamos, então, que a confissão dos acusados, que seria a única forma

de se confirmar a autoria do crime, estava excluída. As atitudes que ambos os

acusados tomaram no momento do crime era somente uma alegação da

Capítulo III – O convencimento e a persuasão no Plenário do Júri

77

Promotoria. Assim, restava a ambas as partes a construção do ethos dos

acusados: Ao PJ, cabia a construção de um ethos capaz da prática do crime; e

aos acusados, um ethos incapaz de tamanha maldade.

Para que isso se dê de forma favorável, caberá ao ethos um discurso

eficaz, ou seja, o logos. Segundo Amossy, Maingueneau acerta quando diz que

o ethos dos sujeitos é mostrado, e não dito explicitamente.

O que o orador pretende ser, ele o dá a entender e mostra: não diz que é simples ou honesto, mostra-o por sua maneira de se exprimir. O ethos está, dessa maneira, vinculado ao exercício da palavra, ao papel que corresponde a seu discurso, e não ao indivíduo “real”, (apreendido) independentemente de seu desempenho oratório. (AMOSSY apud MAINGUENEAU: 2008:31)

Assim, para a construção do ethos dos acusados, a vida pregressa do

casal vem à tona. Ambas as partes trazem à baila o comportamento dos

envolvidos e fazem isso nos argumentos embasados na estrutura do real. Para

conseguir a adesão do auditório, fazem conexões com o histórico familiar do

casal. “Os argumentos baseados na estrutura do real valem-se da realidade

para estabelecer as conexões que o orador pretende estabelecer com seu

auditório” (FERREIRA, 2010:162).

O MP começa a traçar esse ethos dos acusados já na denúncia. Por

meio de provas testemunhais, mostra que o relacionamento do casal era

“caracterizado por frequentes e acirradas discussões” e que havia “forte ciúme

nutrido pela madrasta em relação à mãe biológica da criança”.

Há notícias de que o relacionamento entre os denunciados era caracterizado por freqüentes e acirradas discussões, motivadas principalmente por forte ciúme nutrido pela madrasta em relação à mãe biológica da criança. V, nos finais de semana que passava com o casal, a tudo presenciava.

No excerto supracitado, pudemos perceber a escolha do PJ na seleção

dos dados para sua argumentação. A escolha lexical nos mostra a seleção

desses dados: “frequentes e acirradas discussões”.

Capítulo III – O convencimento e a persuasão no Plenário do Júri

78

O fato de selecionar certos elementos e de apresenta-los ao auditório já implica a importância e a pertinência deles no debate. Isso porque semelhante escolha confere a esses elementos uma presença, que é um fator essencial na argumentação”. (PERELMAN e OLBRRECHTS-TYTECA, 2005:132)

A presença que o PJ tentou marcar na mente do seu auditório foi o ethos

dos acusados, desde a denúncia até o depoimento. A manobra da Promotoria

era explicitar a rotina do casal, que era permeada por brigas e discussões, e

desdobrar as atitudes de cada acusado para se chegar ao verossímil, ao

homicídio e à cumplicidade no crime praticado por ambos. Juntando-se tudo –

a vida familiar conturbada e o ethos dos réus –, chegamos ao raciocínio lógico:

a culpa do casal na morte da vítima.

Além da construção do ethos dos acusados, valeu-se o Ministério

Público do movimentar das paixões aristotélicas. Provocou a compaixão pela

maldade praticada contra uma criança para garantir a adesão do auditório, que

se comoveria com a situação. “As paixões refletem, no fundo, as

representações que fazemos dos outros, considerando-se o que eles são para

nós, realmente ou no domínio de nossa imaginação.” (ARISTÓTELES:

2003:XLI)

E ainda se valeu, em muitos momentos do seu discurso, da figura de

escolha “ironia”. Foi por meio dessa estratégica retórica que a Promotoria

ensejou deixar marcada a repulsa e mover pela paixão, como forma de

indignação, ao ethos dos acusados pelo auditório.

Os acusados, por sua vez, também se valeram das paixões aristotélicas,

com o intuito de promover um ethos bom aos olhos do auditório.

Para refutar ao ethos que o PJ tentava impingir contra si, o acusado

tenta mover o auditório pela compaixão.

Aquilo ali para mim foi o pior dia da minha vida, não sei nem como..., descrever esse dia. Ali eu perdi tudo o que mais..., tudo de mais valioso na minha vida estava ali e quando a médica falou “olha sua filha acabou de falecer”, eu falei: “não estou acreditado no que a senhora está falando”, eu perdi o chão, não sabia o que estava

acontecendo.

Capítulo III – O convencimento e a persuasão no Plenário do Júri

79

E a acusada procura construir um ethos de uma pessoa calma e

amorosa, que seria incapaz de praticar tamanha crueldade contra uma criança,

conforme pretende provar:

Eu fiz isso, era uma coisa normal em casa, levei meu filho para a escola que tinha passeio, o P foi, aí meu estava saindo, eu esperei o ônibus sair por volta das duas da tarde e o celular tocou, era a C, eu atendi o telefone, ela falou: “A1, você está muito ocupada?”, eu falei: “não, o que aconteceu?” aí ela disse assim: “é que a V(diminutivo do nome) não quer com a minha mãe, ela quer ficar aí com você”, eu até fiquei feliz e falei pra ela: “então daqui a dez minutinhos eu estou lá para pegar ela” (...)

Ao auditório, cabe a função de avaliar quem tem a razão e, mesmo com

tantas divergências e contradições, julgar se os acusados são culpados ou

inocentes. E o faz: decide que o casal é, sim, culpado pelos ferimentos e pela

morte da vítima. Por meio da sentença, pudemos verificar que os

jurados/auditório aderiram ao discurso que se mostrou mais eficiente, o

discurso do PJ.

Por esta razão, os réus foram então submetidos a julgamento perante este Egrégio 2º Tribunal do Júri da Capital do Fórum Regional de Santana, após cinco dias de trabalhos, acabando este Conselho Popular, de acordo com o termo de votação anexo, reconhecendo que os acusados praticaram, em concurso, um crime de homicídio contra a vítima V, pessoa menor de 14 anos, triplamente qualificado pelo meio cruel, pela utilização de recurso que dificultou a defesa da vítima e para garantir a ocultação de delito anterior, ficando assim afastada a tese única sustentada pela Defesa dos réus em Plenário de negativa de autoria.

E assim a decisão é tomada:

Isto posto, por força de deliberação proferida pelo Conselho de Sentença que JULGOU PROCEDENTE a acusação formulada na pronúncia contra os réus A1 e A2, ambos qualificados nos autos, condeno-os às seguintes penas:

Esta foi a analise de parte do corpus que nos ajudou a dirimir as

questões a respeito das estratégias retóricas utilizadas nos discursos jurídicos

e como se dá a construção do ethos dos sujeitos manifestados ao longo dos

processos criminais.

Capítulo III – O convencimento e a persuasão no Plenário do Júri

80

Considerações finais

80

Considerações finais

No decorrer da nossa pesquisa, construímos, pela análise retórica, o

ethos dos envolvidos no processo criminal em que a autoria não foi confirmada

e pudemos perceber como cada parte expõe a sua versão sobre os fatos

ocorridos e tenta, dessa maneira, persuadir o auditório para aderir ao discurso

proferido. A análise propunha-se também a identificar quais eram as técnicas

utilizadas pelo Ministério Público, na pessoa do Promotor de Justiça, para

ressaltar as estratégias retóricas e a constituição do ethos dos sujeitos

envolvidos em processos criminais, cujas sentenças foram prolatadas com a

condenação do réu. Para o estudo adequado dos discursos escolhidos

presentes neste trabalho, procuramos responder às questões relacionadas aos

meios persuasivos utilizados pelo Ministério Público a fim de atingir seus

propósitos e qual foi o papel da construção da imagem dos sujeitos, ethos, no

desenrolar do processo criminal, neste caso, no Plenário do Júri. Levamos em

consideração os seguintes aspectos: as considerações históricas e teóricas a

respeito da Retórica Clássica e da Nova Retórica, os princípios da análise

retórica e a Constituição Federal da República Federativa do Brasil, no que diz

respeito às leis magnas. Nosso estudo teve por base um corpus inicial

composto de 6.800 páginas distribuídas em 34 volumes.

Quanto ao referencial teórico, nosso ponto de partida foi a Nova

Retórica, para ressaltar o ethos, o pathos e o logos, os gêneros retóricos, as

formas de persuasão, o sistema retórico, as técnicas de argumentação e as

paixões aristotélicas. Concluídos esses estudos, passamos então a analisar o

universo jurídico com a análise sobre o Direito, o processo criminal, o Plenário

do Júri e ainda a ciência do Direito vista sob a perspectiva da linguagem. O

resultado dessa pesquisa levou-nos a compreender que os discursos

elaborados foram persuasivos e convincentes graças à associação de

estratégias retóricas de persuasão e à especificidade da construção do ethos

dos sujeitos envolvidos em um processo criminal.

Dessa forma, pudemos perceber que a “Arte Retórica”, sob a égide da

“Nova Retórica”, revela-se não somente como a arte de argumentação muito

Considerações finais

81

potente no discurso jurídico, mas como estratégia de persuasão manifesta nos

discursos que se instauram sob forte influência de paixões. Pudemos perceber

ainda que nos discursos elaborados no Plenário do Júri, que têm o propósito de

estabelecer a verdade dos fatos, não se consegue eximir o ethos dos

envolvidos, fator importante no movere, que pretende comover o auditório,

corpo de jurados, e no docere, que conduz os passos argumentativos.

No caso em tela, coube ao promotor de justiça a tarefa de demonstrar o

verossímil, ou seja, demonstrar que o acusado era sim capaz de cometer o

delito, mesmo sem a confissão, e ao acusado coube a tarefa de se defender da

acusação e provar que a sua verdade era a verossímil. Ao júri coube à tarefa

mais difícil, ser convencido por uma das partes, submeter-se a um dos

discursos proferidos e julgar. Esses passos de condução do processo foram

produtos de intensa elaboração retórica e percepções sobre o uso adequado

da linguagem em situações polêmicas e problematológicas. Tanto MP, como os

acusados delas se valeram, com o intuito de convencer o seu auditório – juízo

– e, sobretudo, delas se utilizaram para a construção do ethos dos sujeitos

envolvidos no processo criminal em tela.

Percebemos, ainda, a importância da retórica no que tange ao embate, à

negociação das distâncias e à negociação sobre uma questão que

aparentemente não tem solução.

Assim, salientamos que os estudos retóricos possuem um horizonte

muito vasto de aplicabilidade em diversos campos de atuação. É por meio da

retórica que vislumbramos que, para ser um bom orador, necessitamos

reconhecer nosso auditório e despertar suas paixões, independentemente de

esse auditório ser um corpo de jurados, leitores de um jornal ou até mesmo

telespectadores de um programa matinal. Se o logos é tudo aquilo que está em

questão, todo o julgamento é uma resposta a uma questão, menos ou mais

clara, que se coloca fortemente e que não pode, de modo algum, escapar da

dimensão retórica dos valores. Estes, por sua vez, justificam aos olhos do

auditório as respostas possíveis e, quando possível, aceitas. A realidade é

construída e verossímil, tão verossímil que pode transformar-se em verdade ou

mentira. Depende da potencialidade retórica do orador de lidar com as provas

intrínsecas, verdadeiramente pertencentes a uma arte secular e ainda muito,

muito contemporânea.

Considerações finais

82

Bibliografia

82

Bibliografia

ARISTÓTELES. Retórica das Paixões. São Paulo: Editora Martins Fontes,

2003. p. XL-LI e 1-73

____________. Retórica. Biblioteca Clássica. São Paulo: Editora Rideel, 2007.

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Linguagem. Problemas Fundamentais do Método Sociológico na Ciência da

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BITTAR, E.C.B. Linguagem Jurídica. São Paulo: Editora Saraiva. 2010. p.13-18

e 93-176

CARVALHO, P. B. Direito tributário linguagem e método. São Paulo: Editora

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FERREIRA, A. F. Leitura e persuasão, princípios de análise retórica. São

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discurso do Júri. Dissertação de Mestrado em Língua Portuguesa. São Paulo:

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MOSCA, L. L. S. Velhas e Novas Retóricas: Convergências e Desdobramentos.

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Tradução Maria Ermentina de Almeida Prado Galvão. São Paulo: Editora

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Bibliografia

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Código Civil Brasileiro

Consulta à Internet:

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justiça – aspectos processuais controvertidos e liberdade de imprensa. s/d

Disponível em:

http://www.unifafibe.com.br/revistasonline/arquivos/revistajuridicafafibe/sumario

/5/14042010170941.pdf. Data de acesso: 28/11/2013

Anexos

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Anexo I

A denúncia

Excelentíssimo Senhor Doutor Juiz de Direito do II Tribunal do Júri da Capital. IP nº 0274/2008. Noticiam os inclusos autos de inquérito policial que no dia 29 de março de 2008 (sábado), por volta das 23 horas e 49 minutos, na ________, nº ___, apto __, ______, Comarca da Capital, os indiciados A1 e A2, qualificados as fls. 585 e 604, respectivamente, agindo com unidade de propósito, valendo-se de meio cruel, utilizando-se de recurso que impossibilitou a defesa da ofendida e objetivando garantir a ocultação de delitos anteriormente cometidos, causaram emV, mediante ação de agente contundente e asfixia mecânica, os ferimentos descritos no laudo de exame de corpo de delito de fls. 630/652, os quais foram causa eficiente de sua morte. Consta, ainda, que alguns minutos antes e também logo após o cometimento do delito acima descrito, os denunciados inovaram artificiosamente o estado do lugar e dos objetos com a finalidade de induzir em erro juiz e perito produzindo, assim, efeito em processo penal não iniciado. Apurou-se que V era fruto de um relacionamento amoroso havido entre o denunciado A1 e a mãe biológica da criança, estando o casal separado à época dos fatos, razão pela qual a menina passava aquele final de semana em companhia do pai e da madrasta, a indiciada A2. Há notícias de que o relacionamento entre os denunciados era caracterizado por freqüentes e acirradas discussões, motivadas principalmente por forte ciúme nutrido pela madrasta em relação à mãe biológica da criança. V, nos finais de semana que passava com o casal, a tudo presenciava. Na manhã do dia mencionado, os indiciados, em companhia de seus dois filhos e de V, dirigiram-se para o vizinho município de Guarulhos ocupando um veículo da marca X, tipo XY GL, placas XYZ. No final da noite, após retornarem para o edifício da Rua ____, ocorreu forte discussão entre o casal, ocasião em que V foi agredida com um instrumento contundente, fato que lhe ocasionou um pequeno ferimento na testa, provocando sangramento. Na seqüência, a denunciada A2 apertou o pescoço da vítima com as mãos, praticando uma esganadura que ocasionou asfixia mecânica, cujos ferimentos estão descritos no laudo já mencionado. O denunciado A1, a quem incumbia o dever legal de agir para socorrer a própria filha, omitiu-se. Com a criança desfalecida, porém ainda com vida, os indiciados resolveram defenestrá-la. Para tanto, a tela de proteção da janela do quarto dos irmãos da ofendida foi cortada, após o que o indiciado A1 subiu nas camas ali existentes,

Anexos

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introduziu V pela abertura da rede e a soltou, precipitando sua queda de uma altura de aproximadamente vinte metros. A denunciada A2 concorreu decisivamente para a prática da conduta descrita no parágrafo acima, uma vez que a tudo presenciou, além de aderir e incentivar, prestando auxílio moral. Apesar do socorro prestado por uma unidade do Resgate, os ferimentos provenientes da queda, aliados àqueles decorrentes do processo de esganadura, causaram a morte de V, criança de cinco anos de idade. O meio utilizado foi cruel, uma vez que a vítima, além de sofrer asfixia mecânica e já apresentando ferimentos pelo corpo, foi defenestrada ainda com vida, padecendo de sofrimento intenso. Além de ter sido surpreendida quando da esganadura contra si aplicada, a ofendida teve, ainda, a sua defesa impossibilitada ao ser lançada inconsciente pela janela. Os denunciados objetivaram garantir a ocultação dos delitos anteriormente praticados contra V, a qual já havia sofrido uma esganadura e apresentava ferimentos. Finalmente, os denunciados simularam que um ladrão havia invadido o apartamento da família e lançado a vítima pela abertura feita na tela da janela. Enquanto o indiciado A2 descia pelo elevador, sua esposa A2 permanecia no imóvel alterando o local do crime, como já havia feito pouco antes da ofendida ser jogada, apagando marcas de sangue, mudando objetos de lugar e lavando peça de roupa. Ao mesmo tempo, o pai da criança, já no térreo do edifício, no momento em que V estava caída no gramado, ainda com vida e necessitando de urgente socorro, preocupava-se em mostrar a todos que havia um invasor no prédio, fato que motivou a imediata chegada de mais de trinta policiais militares, os quais, após minuciosa varredura no local e imóveis vizinhos, nada encontraram. Algum tempo depois da queda, a denunciada A2 apareceu na parte térrea do edifício e passou a ofender o porteiro com palavras de baixo calão, sugerindo falta de segurança no condomínio. Em vista do exposto, denuncio a Vossa Excelência A1 como incurso nas sanções do artigo 121, § 2º, incisos III, IV e V c.c. o § 4º, parte final e artigo 13, § 2º, alínea a (c/ relação à asfixia), e artigo 347, § único, todos c.c. o artigo 61, inciso II, alínea e, segundo figura e 29, do Código Penal eA2 como incursa nas sanções dos artigos 121, § 2º, incisos III, IV e V c.c. o § 4º, parte final e artigo 347, § único, ambos c.c. o artigo 29, do Código e requeiro, após o r. e a. desta, sejam os denunciados citados para interrogatório e, enfim, para serem processados até decisão de pronúncia, julgamento e condenação, nos termos do artigo 394 e seguintes do Código do Processo Penal, intimando-se as testemunhas do rol abaixo objetivando prestarem depoimentos em juízo, sob as cominações legais.

Anexos

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SP, __ de ____ de ______. F. J. T. C. Promotor de Justiça II Tribunal do Júri.

Anexos

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Anexo II

O depoimento do réu (A1)

Depois de cientificado da acusação, passou o réu a ser interrogado de acordo com o artigo 187 e seguintes do código de Processo Penal e, às perguntas do (a) Meritíssimo (a) Juiz (a) de Direito, respondeu conforme a transcrição da fita estenotipada que segue: J: Bom dia! D: Bom dia! J: O nome completo do senhor é A1, é isso? D: Sim. J: (Advirto quanto a seus direitos constitucionais, dentre os quais, o de permanecer em silêncio). D: Sim, senhor. J: (Lida a Denúncia). Eu queria que o senhor nos informasse se é verdadeira a acusação que é feita contra o senhor. D: É falsa, uma afirmação mentirosa, isso não existe. J: Eu gostaria que o senhor relatasse o que aconteceu. Hoje é o interrogatório do senhor, os jurados não estavam presentes na primeira fase do processo, então algumas perguntas podem parecer repetitivas, mas é assim que deve ser feito para que os jurados tenham conhecimentos dos fatos. Eu gostaria que o senhor nos relatasse o que ocorreu nesse dia, o que se passou nesse dia? (...) J: E a A2 e os outros filhos? D: Ficaram no carro, eu não tinha como subir todos de uma vez, estavam os três dormindo, então tinha que carregar os três e mais as coisas do porta-malas, as compras, fralda..., coisas de criança: mala, fralda, leite e as coisas que tínhamos comprado no supermercado. Eu subi para o apartamento, a A2 ficou no carro com o C e o P (filhos do casal), e eu subi com a V, eu cheguei na porta do apartamento, abri a porta, entrei no apartamento, fechei a porta – e a V no colo – entrei no apartamento, acendi a luz do corredor, coloquei a V na cama, que ela estava dormindo, puxei o edredom em cima dela, puxei o sapatinho dela, coloquei no chão, cobri a V, acendi o abajur dela porque ela não gostava de ficar no escuro, e em seguida fui para o quarto dos meninos, dos meus dois filhos. Eu entrei, tirei os brinquedos que estavam em cima da cama, normalmente fica, deixei a cama arrumada para a gente colocar eles quando subisse, saí do apartamento, abri a porta, fechei a porta e desci. (...)

Anexos

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J: (Interrompendo) o senhor saiu do apartamento e fechou a porta, foi isso que o senhor disse? D: Sim, fechei a porta, apertei o botão do elevador, entrei no elevador e desci. (...) D: (...) Nós subimos de novo, eu abri a porta, entrei, minha esposa entrou com o C, eu fechei a porta, aí a minha esposa já entro na cozinha, colocou o tamanco dela na cozinha, nós entramos no corredor e quando entramos no corredor a luz do quarto da V estava acesa, aí eu já perguntei: “será que a V caiu da cama?” A hora que eu fui olhar, assim, a V não estava no quarto, nem na cama e nem no quarto, e a minha esposa foi logo em seguida e olhou e eu falei: “será que a V foi para o quarto das crianças?”, porque sempre que ela acordava antes dos irmãos, ela ia para o quarto ficar com os irmãos. Quando eu olhei, a janela estava toda aberta e a tela, a tela já estava furada e nisso eu já fui correndo para a janela para ver o que tinha acontecido, eu estava com o P no colo ainda, para ver o que tinha acontecido e aí eu vi que a V estava lá embaixo. Nessa hora eu entrei em choque, até comecei a gritar dentro do apartamento, acordei o P e o C, e quando eu vi toda aquela cena eu já falei para a minha esposa: “liga para o meu pai, para o seu pai”, e enquanto ela foi ligando eu apertei o botão do elevador e quando o elevador veio nós descemos junto com as crianças. J: O senhor desceu na frente ou desceram todos juntos? D: Descemos juntos eu, a A2, o P e o C. Quando chegou lá embaixo a A2 ficou junto com as crianças bem junto do hall, na porta de vidro, ela ficou ali com as crianças e eu fui socorrer a V. Quando eu cheguei lá, a V estava daquele jeito no chão, com o coraçãozinho batendo acelerado, a primeira coisa que eu fiz foi escutar o coraçãozinho dela, para ver se estava batendo, eu tentei falar com ela, eu falei pra ela: “filha, calma, calma”, eu comecei a gritar pedindo socorro, pedindo resgate, não sei o quê. Nisso o porteiro veio correndo dos fundos, e eu falei par ele: “mas cadê você?”, “não eu fui ali”, “mas ali onde?”, e aí ele falou “não” e eu disse: “mas como você foi ali? Você saiu da portaria e deixou a portaria sozinha?” e eu desesperado ali, gritando socorro e tudo, chamando a ambulância e tudo, e ali tem policiais, tem a Corregedoria do lado do prédio, nisso o seu Lúcio saiu na sacada... J: (Interrompendo) Seu Lúcio é morador do prédio ali? D: É um morador do primeiro andar. Eu falei: “eu gostaria de pegar a V para resgatar”, e ele falou “não mexe”, eu falei: “eu não sei, eu tenho que levar ela para o hospital, ela não pode ficar desse jeito”. Nisso entraram os policiais correndo, perguntaram se tinha gente no prédio, eu falei: “entrou gente no prédio, entrou no apartamento”. Eu em momento algum eu não vi ninguém de roupa preta, ninguém armado, como foi citado, a porta também não foi arrombada, como foi falado isso tudo, eu não disse nada disso. (...) J: Pode seguir: D: Aquilo ali para mim foi o pior dia da minha vida, não sei nem como..., descrever esse dia. Ali eu perdi tudo o que mais..., tudo de mais valioso na

Anexos

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minha vida estava ali e quando a médica falou “olha sua filha acabou de falecer”, eu falei: “não estou acreditado no que a senhora está falando”, eu perdi o chão, não sabia o que estava acontecendo. Nisso chegou meu pai, junto chegou a mãe da minha filha, a A.O., eu falei: “eu quero entrar para ver minha filha”, a médica permitiu que eu entrasse no local, ela estava com a blusinha meio aberta, sem a camisetinha, eu olhava ela na maca, não acreditava que ela tinha falecido, nós passamos um dia tão bom, brincamos o dia todo, brincamos na piscina, andamos de moto, se divertimos, foi toda aquela situação, passamos um ótimo dia na piscina e ela ensinando meu filho a mergulhar e tudo, e agora eu vejo ela ali falecida, aquilo tudo... Eu perdi completamente a noção do que estava acontecendo ali. Nisso entrou meu pai na sala, entro a A.O. junto com o irmão dela, não me lembro se foi o L ou o F, ninguém acreditava no que estava acontecendo, eu olhando a V, eu passei o dia todo com ela, eu olho ela daquele jeito, eu perdi completamente tudo ali, estava indo embora a minha vida ali. Antes de a V nascer eu briguei por ela, para ela nascer, foi uma briga grande que eu tive com a avó materna dela, que ela queria que a mãe de minha filha tirasse a V e houve uma briga muito grande, uma discussão entre nós, e a mãe de minha filha também não aceitava essa imposição da própria mãe e ela acabou até escondendo a gravidez até aproximadamente quatro meses de idade. Então começou a passar um monte de coisas na minha cabeça, eu falava: “o que está acontecendo aqui, meu Deus”, e houve todo aquele negócio, eu falei: “é a minha princesinha que estava ali, ela é tudo na minha vida”, e eu comecei a falar com meu pai: “pai, eu perdi tudo que eu tinha de mais valioso”, eu lutei por ela desde o começo, desde que a mãe de minha filha ficou grávida. Indagado ao(à) Senhor Representante do Ministério Público sobre eventuais esclarecimentos, o(a) mesmo(a) se manifestou nos seguintes termos: MP: Senhor A1, bom dia! D: Bom dia! (...) MP: Tem relatos do senhor e de sua esposa e nos interrogatórios do que continha exatamente no seu apartamento. O que havia nesse apartamento da família, na residência da família, no Edifício L? D: O senhor relata qual apartamento? Nós tínhamos dois no L. MP: Eu disse no apartamento onde o senhor e sua família residiam, o senhor chegou a residir no apartamento 63? D: Não. MP: Havia televisão lá de dez mil reais lá, é verdade isso? D: Doutor, eu não estava com minha esposa no depoimento dela, não posso precisar o que ela falou. MP: Quanto valia a televisão que havia no apartamento de vocês?

Anexos

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D: Não sei. (...) MP: Fls. 1.774 e 1.775, (lido em parte o interrogatório). Na página seguinte há uma pergunta minha, ela falou em relógios e objetos. O Dr. M., perguntou de correntes, se tinha mais coisas além disso; resposta da corré: “tinham várias correntes, o A1 gosta de correntes de ouro”. (...) MP: Quanto o senhor pagava de pensão para a V mesmo? D: Senhor? MP: Quanto o senhor pagava de pensão para a V? D: R$ 300,00 MP: O senhor pagava ou o seu pai pagava? D: Eu pagava. MP: Como era dividido? Existe informação de que “eram R$ 315,00, o pai do senhor pagava R$ 180,00 num convênio médico e o senhor complementava, entregando à A.O. R$ 135,00”, palavras dela que estão no processo. J: Era dessa forma? D: Foi feita a pensão alimentícia por Vossa Excelência e algumas nós tratamos diretamente, foi acertado em relação à pensão alimentícia os valores, quem ia pagar o quê e quem ia pagar o convênio. Chegou um determinado momento que ela arrumou outro serviço e falou para mim que não precisava mais pagar o convênio porque me parece que a empresa dela pagava o convênio. (...) MP: Tem informações no processo que esse quarto da V foi montado por sua mãe para ela, não pelo senhor. D: Foi tudo ao gosto dela, as coisas que tem no quarto até hoje, foi montado segundo ela escolheu. MP: O senhor não respondeu, o quarto foi montado pelo senhor ou por sua mãe, avó de V? D: Por nós todos juntos, nós, como família, sempre estivemos juntos e ela foi escolher a cor dos vidros do armário dela que foi lilás, o lustre que era rosa, foi tudo escolhido por ela, o baú que ela queria da Hello Kitty, foi tudo do jeito que ela queria, foi montado exatamente do jeito que ela queria. (...) MP: Quantos carros o senhor tinha naquele apartamento? D: Eu estava com dois carros no apartamento.

Anexos

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MP: O senhor que comprou? D: Não, os carros não são meus. MP: O apartamento também não era do senhor? D: Era meu. MP: Estava em seu nome? D: Não. (...) MP: Tem dois depoimentos no início do processo, no início do inquérito policial, foram lidos os depoimentos das duas pessoas que depuseram no processo e foi dessa forma que a ocorrência foi transmitida para o Copom, todas as testemunhas chegaram com essa mesma história, Fls. 12 e fls. 16. Depoimento da testemunha A. L.: “A1 apareceu lá embaixo, próximo às crianças, perguntou da sacada ao A1o que havia acontecido e ele respondeu que havia um ladrão lá em cima, que arrombou a porta do apartamento, rasgou a tela de proteção e jogou a sua filha lá em baixo”. Depoimento de W: “A1 apareceu dizendo que haviam arrombado seu apartamento, cortado a tela e jogado a sua filha do sexto andar”. Temos a informação que chegou ao Copom e, não existe um policial que chegou lá dizendo isso, existem trinta e sete policiais dizendo a mesma coisa, essa mesma informação que foi passada por ele, o réu, a essas pessoas. J: Qual a pergunta então, doutor? MP: Ele disse que não falou em arrombamento, todos eles inventaram isso? J: O senhor tem conhecimento de que essas informações foram passadas por várias testemunhas? D: Em momento algum eu falei em arrombamento. (...) MP: E já vou finalizar, Excelência, o réu, ele apareceu hoje com óculos. Ele teve algum problema nesses dois anos, problemas de visão? D: Eu sempre usei óculos, não sei se o senhor... MP: Eu nunca vi. D: É que o senhor não acompanha a minha vida. J: O senhor tem problemas nos olhos? D: Eu tenho sim. J: Miopia, estrabismo? D: De enxergar de longe, eu não consigo muito, e os meus olhos andam muito irritados. MP: A ponto de não saírem lágrimas quando o senhor chora? J: Doutor, indeferida a pergunta.

Anexos

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Anexo III

O depoimento da ré (A2)

Depois de cientificado da acusação, passou o réu a ser interrogado de acordo com o artigo 187 e seguintes do código de Processo Penal e, às perguntas do (a) Meritíssimo (a) Juiz (a) de Direito, respondeu conforme a transcrição da fita estenotipada que segue: J: Boa tarde! D: Boa tarde! J: O nome completo da senhora é A2? D: Isso. J: Qual a idade atual da senhora? D: Tenho 26 anos. J: (Advertida) D: Sim, senhor. J: (Lida a denúncia). Eu gostaria que a senhora informasse se é verdadeira essa acusação que está sendo feita contra a senhora. A senhora praticou esses atos? D: Não, Excelência, é totalmente falsa a acusação. J: Não é verdade isso? D: Não. J: Então eu gostaria que a senhora relatasse o que aconteceu nesse dia, sobre a permanência da senhora e do A1 nos lugares na data dos fatos e por que ela estava com vocês nessa data. D: A guarda era da mãe dela; na quarta-feira nós estivemos com a V, na quarta-feira minha cunhada, C, pegou a V na escola porque nós íamos num aniversário de um amigo e quando fomos leva-la de volta para a casa dela, eu e meu marido, no caminho a V me pediu, ela pediu com um jeitinho todo meigo e carinhoso, ela falou: “tia A2, eu quero fazer um pedido”, eu falei: “pode falar”, e ela me pediu assim: “deixa o P ir na minha casa amanhã?”, eu olhei para ela e falei: “Claro que a tia deixa”. Aí deixamos ela lá, conversamos com a “C” na porta da casa dela. J: (Interrompendo) “C” e a mãe dela? D: Sim é a mãe dela... na sexta-feira de manhã ela ligou e falou que a V não iria para a escola, ela ligou no celular e disse que a V não iria, na quinta-feira eu havia pego a malinha da V – porque todo final de semana que ela ia para nossa casa era com a mala dela – ela ligou sexta-feira de manhã e disse que a V (diminutivo do nome) não iria na escola e ela iria sair com a mãe dela, mas que seis e meia, sete horas, eu poderia pegá-la na casa dela. Eu fiz isso, era uma coisa normal em casa, levei meu filho para a escola que tinha passeio, o P

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foi, aí meu estava saindo, eu esperei o ônibus sair por volta das duas da tarde e o celular tocou, era a C, eu atendi o telefone, ela falou: “A1, você está muito ocupada?”, eu falei: “não, o que aconteceu?” aí ela disse assim: “é que a V(diminutivo do nome) não quer com a minha mãe, ela quer ficar aí com você”, eu até fiquei feliz e falei pra ela: “então daqui a dez minutinhos eu estou lá para pegar ela” (...) (...) J: Aconteceu algo nessa noite? D: Não, eu coloquei eles para tomar banho, nós duas tomávamos banhos juntas e todas as vezes, quando embaçava o vidro, ela fazia o coração dela e o meu coração, ela falava que era o amor que ela sentia por mim (depoente se emociona). Eu entrei no banho de roupa e tudo porque eu estava dando banho no P e nela, eu fiz um coração enorme, do tamanho do boxe, aí ela falou que não valia, que o meu coração era muito grande, por isso que eu fiz daquele tamanho... (...) J: Até chegar na garagem, houve algum incidente no veículo, briga entre vocês? D: Não. J: Agressão contra a menina? D: Não, não discutimos, nem nada, estava tudo normal, a gente como uma família normal, sem briga, sem nada. Entramos na garagem, o A1 pegou ela no colo normal, e sem machucado nenhum, colocou a cabeça dela no ombro, a perninha dela para baixo... Excelência, eu quero deixar bem claro que no carro não tinha fralda nenhuma, a mala deles estava atrás, no porta-malas, fralda que estava no balde foi achada de molho foi do sábado de manhã, se não me engano, ou da sexta-feira à noite, que eu tinha dado mamadeira para o meu filho e ele tinha sujado a fralda, não tinha fralda no carro... Nisso ele foi para o elevador social e eu fui para o lado do elevador de serviço, que o elevador social tem sensores, já acende a luz, então eu fiquei assim, (depoente gesticula) segurando a mão em cia do C, aí nisso nós subimos no elevador, normal, sem briga, sem nada. Subimos, chegamos no apartamento, o A1 tirou a chave do bolso, ele estava com o P no colo e eu com o C, vi ele tirando a chave do bolso, ele abriu a porta de casa, ali eu notei que a luz da cozinha estava acesa, achei estranho porque sempre que nós entramos em casa a gente acende a luz do hall, que é uma entrada dentro do apartamento. Mas eu não falei nada, tirei meu tamanco, deixei na cozinha para não fazer barulho, parei no meio da sala em direção ao quarto, deixei a bolsa no meio da mesa de jantar, saí, aí nisso o A1 foi na frente entrando no corredor, acho que ele notou que as luzes estavam diferentes de como ele tinha deixado. J: Mas ele falou alguma coisa para a senhora? D: Falou assim: “cadê a V?” (...)

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J: Estavam os dois na porta do quarto? D: Sim, e acabamos virado juntos, eu vi a janela aberta e acendi a luz e assim que eu acendi eu vi a gota de sangue próximo a cama de P, como se fosse na mesma direção, em cima do lençol, e o A1 foi para a janela, ele foi, colocou a cabeça para fora, eu vi que ele colocou a cabeça para fora e depois ele virou para mim, branco, e falou: “A2, a V está lá embaixo”, ele falou para mim, aí eu falei “não, é mentira”, e já comecei a gritar, eu não me lembro se eu falei palavrão, mas eu me lembro que eu gritei desesperadamente eu fui conferir, fui lá, eu não coloquei a cabeça no buraco, eu só fiz assim (depoente gesticula como se encostasse à cabeça em algo) e eu pude ver ela, ela estava jogada lá embaixo e ele falou: “liga para teu pai agora” e eu fui na sala, no telefone sem fio para ligar. (...) J: O A1 foi sozinho até a V? D: Foi sozinho, eu fiquei sem reação, eu não queria que o P e o C vissem, quando eu me dei conta o P estava lá, perto do corpinho da V, junto do A1, eu vi os porteiros no fundo, não sei de onde ele estava vindo, se era do corredor que tinha do lado, aí ele vinha vindo do corredor, aí nisso eu falei para o A1: “tem que ligar para a mãe da V agora”, eu estava desesperada, gritando, eu gritei com o porteiro, realmente eu gritei com ele , não lembro do que eu xinguei ele, mas realmente eu falei vários palavrões para ele, isso eu confirmo, eu perguntei onde ele estava... (...) eu vi o porteiro saindo do fundo, não foi nessa hora que eu xinguei ele, nessa hora eu perguntei onde ele estava, ele estava todo suado, transpirando muito e eu comecei a xingar ele, muito, muito, muito, aí eu peguei, liguei para a C, eu não conseguia falar com ela, eu gritava no telefone, ela falava: “calma, me explica o que está acontecendo”, e eu gritava: “jogaram a V da janela”, e ela falava: “de onde?”, porque ela entendeu outra coisa, ela pediu o endereço da casa, eu não lembrava o nome da rua, não lembrava o número, só gritava, e ela: “para um pouco, fala direito comigo, o que está acontecendo?”, aí eu falei com ela no telefone, eu expliquei para ela que tinha um posto policial na frente do prédio, para ela saber chegar, foi a única coisa que eu consegui falar. Nisso, eu tinha descido as escadas, estava esperando meu sogro e meu pai chegarem, eu fiquei na rua para ela ver onde era o nosso apartamento, nisso o A1 gritava e falava com o porteiro, não lembro o que, só lembro eu desci as escadas, fiquei na rua gritando desesperada, descalça. (...) J: Quando a senhora encontrou o A1 de novo? D: O A1 me ligou, não lembro qual horário, era de madrugada já, dando a notícia que ela tinha falecido, eu fiquei desesperada, comecei a gritar e chorar na cozinha, meu pai pegou o celular da minha mão, ele pegou o celular da minha mão e falou com o A1, aí nisso o C tinha dormido e o P estava acordado, estava brincando na sala, normal. (...)

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J: No momento que a senhora estava no apartamento ali, eles chegaram a perguntar para a senhora se estava faltando algum objeto? D: Perguntaram, eles me falaram se eu notei algum objeto faltando, eu vi o outro par do tamanco estava na lavanderia, ai o investigador pegou, foi na pia, pegou o papel-filme, que gruda, pegou a tesoura e falou assim, ele pegou a tesoura que eu tinha usado no sábado de tarde para cortar carne, que eu cortava carne com a tesoura, pegou a tesoura com o papel filme e falou assim: “mocinha, o que é isso?” Ele pegou a tesoura com o papel filme e olhou assim para mim, falou o que era. Expliquei para ele que era a tesoura que eu usava, que era de frango, mas eu usava para cortar carne. Aí ele pegou a tesoura, me mostrou, expliquei para ele que era de cortar carne, aí nisso ele não me mostrou a faca, que eu não usei essa faca no sábado, só a tesoura, que é uma tesoura que corta frango. J: A senhora já falou isso. (...) J: Gostaria que a senhora relatasse um pouquinho agora a respeito do relacionamento da senhora com o senhor A1. Há quanto tempo vocês estão juntos, o relacionamento era bom, tinha muitas discussões, brigas? D: Nós estamos juntos há sete anos e, antes de ter o meu filho P, eu discutia bastante com ele, antes do nascimento do meu primeiro filho, há cinco anos atrás. J: O que é bastante? D: Eu discutia muito com ele, eu brigava muito com ele, gritava bastante, isso foi no edifício da P. C., se não me engano. (...) J: Como eram as brigas, discussão verbal? D: Só discussão verbal, não é da maneira que as pessoas estão falando, parece que eu e ele “se pegava” todos os dias, isso não, ele nunca partiu para cima de mim e eu nunca parti para cima dele. J: Brigava bastante, eu quero que a senhora me explique o que era brigar bastante. D: Não eram todos os dias, eu brigava com ele, eu xingava ele, eram essas coisas. J: Eram motivos específicos ou não, qual era o motivo dessas brigas? Eu brigava por tudo, acho. (...) J: Quero que a senhora relate um pouco do relacionamento especificamente da senhora com a V, se era muito bom, se dava bem com ela, se ela gostava da senhora ou não. Quero saber do relacionamento da senhora com a V. D: Era muito bom, eu tinha ela como se fosse a minha filha, eu cuidava dela, eu fazia tudo por ela.

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Aos esclarecimentos requeridos pelo representante do Ministério Público, respondeu: MP: Boa tarde. D: Boa tarde, doutor. (...) MP: A senhora esqueceu? Porque no depoimento prestado na delegacia da polícia, a senhora afirma claramente que ficaram dez minutos na garagem. D: O senhor falou o tempo que ficou o barulho lá embaixo, eu não sei o tempo que as pessoas ficaram falando. MP: Não, estou perguntando o tempo que a senhora junto com as duas crianças e o corréu A1 permaneceram lá aguardando que o barulho cessasse, o que a senhora declarou dez minutos. D: Se eu declarei isso, é que na época eu lembrava, hoje eu não lembro direito as coisas, os fatos, não me recordo. MP: A questão também do porteiro, que apareceu correndo, todo molhado de suor, só apareceu em juízo quando a senhora foi interrogada, nos dois depoimentos anteriores, um dos quais na presença de seu advogado, a senhora tinha tudo fresco na cabeça, que havia acabado de acontecer, a senhora nem mencionou isso. Por quê? D: Isso o senhor está falando perante o juiz, que eu falei? MP: A senhora veio com essa história do porteiro correndo dos fundos, todo molhado de suor, em juízo, no final de maio de 2008. A senhora foi ouvida duas vezes anteriores, no dia trinta de abril e no dia dezoito, no dia trinta de março e no dia dezoito de abril, em nenhum momento a senhora mencionou isso, tinha tudo fresco na cabeça. Essa é a pergunta: por que a senhora não mencionou isso, mesmo acompanhada de seus advogados? D: Doutor, pelo fato, o senhor pode até notar, eu fico nervosa e acabo querendo falar muita coisa e acabo esquecendo muita coisa também de falar. (...) MP: Fl. 23, no dia trinta de março, acompanhada de seu advogado doutor R, a senhora declarou o seguinte: “já tive muito desentendimento com a A.C. no decorrer da relação, visto que inicialmente tinha ciúmes dela com seu marido, sendo que esses desentendimentos terminaram há pouco tempo atrás”. D: Desentendimento, que eu falo, é com relação a pegar a V e fazer essas coisas, a V, que até então ela começou a deixar eu pegar a V, ficar mais com a V, nos últimos dois anos antes de a V falecer. (...) MP: Fl. 1449, a senhora disse: “ na rua P. C., a gente brigava bastante”. Tem outros depoimentos da senhora, em que a senhora também menciona que

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aquele apartamento novo parecia ter algo diferente e as brigas pararam quando o casal se mudou. A frase usada é exatamente essa: “no antigo apartamento quebrávamos o pau todos os dias”. D: Mas depois eu falei que foi em relação antes do P ter nascido, no outro apartamento, a gente tinha discussão, lógico, mas não era como antes do P nascer. MP: Isso eu não entendi, se o casal morou nesse edifício até um mês antes do fato, ou seja, até fevereiro de 2008, e o P nasceu em fevereiro de 2005, como é que as brigas cessaram com o nascimento do P? D: Eu quis dizer que, quando eu fui para o apartamento novo, nós nem discutíamos em relação a nada, nem falar: “A1, você não fez aquilo ou aquilo outro”, eu quis dizer em relação a nada, antes do nascimento do P, nós brigávamos direto, eu brigava com o A1 direto e, depois que o meu filho nasceu, eu amadureci e não briguei mais com ele, foi isso que eu acabei de responder. MP: A frase é: “no apartamento da rua P. C., quebrávamos o pau todos os dias”. Esta frase que a senhora diz, que o casal morou nesse edifício até um mês antes do crime. J: Qual é a pergunta, doutor? Que ela já deu a explicação dela. MP: Eu não entendi como as brigas pararam com o nascimento do P? D: Eu acabei de explicar. J: Ela já explicou doutor. Especificamente o que o senhor quer saber? MP: Operação aritmética, ou as brigas cessaram em 2005 ou as brigas cessaram em 2008. J: Ela já respondeu, doutor. MP: “Depois do nascimento do P, as brigas eram normais” – a senhora declarou – “ocorreu uma briga...” (...) MP: Basta eu perguntar: foi isso mesmo, depois do P, as brigas eram normais? D: Briga de casal normal, foi o que eu falei, antes do P nascer, eu brigava direto com o meu marido, eu gritava muito, eu falava muito alto e gritava muito e, depois que meu filho nasceu, eu já passei a conversar e passei a não discutir da maneira que eu discutia. MP: No dia 20 de janeiro há um registro de uma briga que a senhora teve com o acusado A1, que a senhora esmurrou uma vidraça, que teria se cortado toda. A pergunta é: essa é uma briga normal? J: Houve caso de discussão de vocês em que a senhora quebrou a vidraça, alguma coisa ou não? D: Em momento algum eu esmurrei o vidro, só encostei. J: É verdade essa acusação?

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D: Foi, eu estava falando com o A1 e ele não estava me dando atenção, não lembro qual era o assunto, que ele estava fazendo uma lista de compra, aí eu fui lá e puxei a lista dele e falei: “dá para você falar comigo?”. Ele levantou, pegou outra folha e anotou e continuou marcando. E nesse dia a “V” não estava em casa, que ela tinha ido passar um ou dois dias com a mãe, que era época de férias dela, que ela estava conosco, só que queria passar com a mãe, que ela pediu para dormir na casa da mãe, que ela estava com saudade da mãe dela. E aí eu peguei, nisso eu discuti com o A1, peguei, ele não deu atenção ao que eu falei, apenas fui na lavanderia e fiz assim, tanto é que estão meus dois braços cortados. J: Fez o quê? D: Apenas apoiei no vidro, na lavanderia, eu fiz assim, que eu estava com raiva, estava nervosa, fiz assim, não foi com a intenção de quebrar o vidro, nem nada, tanto é que na hora que quebrou o vidro, eu fiquei assustada, tenho pavor de sangue, o A1 escutou o barulho, o C estava dormindo no quarto dele e o P assistindo desenho, o P não viu nada, ele escutou o barulho e veio, fui com o A1 com o braço todo cortado, aí eu falei para o A1, eu falei que eu rasguei o meu braço, que estava rasgado o meu braço. MP: A senhora é uma pessoa nervosa? D: Nervosa não, eu tenho um gênio forte. MP: Por que as fls. 1453 a senhora relata um diálogo com seu pai para contar a ida ao médico, ele teria dito: “meu, você precisa tomar calmante”? D: Meu pai teria falado isso? MP: Consta isso. D: É que eu chorava muito, foi logo depois que o C nasceu, meu pai e minha mãe falaram que eu tinha que ir ao médico, eu fui numa médica em Santana, porque toda vez que o menino chorava eu chorava junto, eu tinha casa e filhos para cuidar, tinha a minha casa para arrumar, eu não sabia o que fazia, ele só chorava o tempo todo e grudava na minha perna e eu chorava do outro lado. (...) MP: Eu vou ler o que consta às fls. 1480, o depoimento dela em juízo, a respeito do momento em que a senhora, já lá embaixo, ao lado do seu marido, a V ainda no chão, viva; segundo ele, o coração dela batia acelerado... D: Batia. MP: A senhora relatou o que houve quando da chegada dos primeiros policiais os seguintes detalhes entre a senhora e o seu marido, eu vou perguntar para a senhora responder se está correto. O juiz faz uma pergunta e a senhora responde: “então, Excelência, foi assim: o policial pediu para alguém subir com ele, para ver se faltava alguma coisa no apartamento, tinha que ir porque tinha que estar na presença de testemunhas”. V estava lá no chão? D: Estava. MP: Necessitando de urgente socorro?

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D: Estava. MP: Seu marido falou para a senhora: “vai você, amor”. V continuava lá, caída? D: Sim. MP: Esperando socorro? D: (Depoente balança a cabeça afirmativamente). MP: Então a gente falou: “é ladrão, alguém entrou lá dentro” (...) V continuava caída lá, necessitando de urgente socorro? J: A senhora confirma? D: Eu não me lembro de ter falado isso daí, o que eu lembro é que o policial desceu, falou para evacuar o prédio, eu não lembro se eu falei desse jeito, mas ele falou: “sobe lá você”, ele estava nervoso, desesperado, e eu falei para ele: “não vou subir”, aí ele disse “vai lá, sim”, aí meu subi. MP: Esse é o depoimento, a senhora falou isso para o Juiz no dia 28 de maio de 2008. Continuando: “... é ladrão, alguém entrou lá dentro”. V continuava caída lá? J: A senhora se recorda dessa frase dita em juízo, quando a senhora foi ouvida? D: Eu não recordo. J: Durante essa conversa que era para alguém subir, a V estava caída ainda? D: Sim, o A1 que falou para „mim‟ subir. MP: O policial falou: “a porta está arrombada” e a senhora falou: “não está arrombada”. V continuava caída... DEF: Excelência, ele vai continuar repetindo que a V continuava caída... J: Durante esse tempo em que vocês foram até o apartamento a pedido policial e voltaram, a V continuava caída e precisava de socorro ainda? D: Estava o A1 e a C do lado do corpinho dela e o pessoal no gramado. J: Esses diálogos doutor, qual o propósito? Eu também não estou entendendo. MP: Eu estou lendo o depoimento dela, se eu puder continuar eu chego na pergunta. Eu estava perguntando se a V estava lá caída, a pergunta é objetiva. A senhora disse: “não tinha o miolo na chave, só o buraquinho de pôr a chave, não tínhamos terminado de reformar o negócio da porta”. V continuava caída? J: Durante esse diálogo que a senhora teve, esse diálogo sobre a porta, a fechadura, esse tempo todo, a menina não tinha sido socorrida? D: Nessa hora que eu falei que não tinha o negocinho da chave, eu acho que a V tinha sido socorrida, o policial desceu e falou, olhando nos meus olhos, eu comecei a chorar mais ainda, eu pensei que ela tinha levado um tiro. J: A V, nesse último diálogo, tinha sido socorrida? D: Se não me engano, parece que sim, foi a hora que eles desceu, ele pediu para evacuar o prédio nessa hora.

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MP: A última frase que ele teria dito para a senhora: “sobe lá e veja se está faltando alguma coisa”, que hora foi? D: Ele não falou no tom que o senhor está falando, ele falou nervoso, ele falou: “sobe lá você e veja se está faltando alguma coisa”, e eu falei que não ia coisa nenhuma, que eu estava preocupada com a V. MP: E a V nesse momento, estava onde? J: Nesse diálogo, ela continuava lá? D: Continuava J: E no diálogo sobre o miolo da chave, ele tinha sido socorrida? D: Se não me falha a memória, eu acredito que estava lá ainda o corpinho dela, hoje eu não me recordo. MP: Lá onde, na grama? D: Na grama, se não me falha a memória.

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Anexo IV

A sentença

VISTOS 1. A1 e A2, qualificados nos autos, foram denunciados pelo Ministério Público porque no dia 29 de março de 2.008, por volta de 23:49 horas, na rua S.L, nº 00, apartamento 00, Vl. I m, nesta Capital, agindo em concurso e com identidade de propósitos, teriam praticado crime de homicídio triplamente qualificado pelo meio cruel (asfixia mecânica e sofrimento intenso), utilização de recurso que impossibilitou a defesa da ofendida (surpresa na esganadura e lançamento inconsciente pela janela) e com o objetivo de ocultar crime anteriormente cometido (esganadura e ferimentos praticados anteriormente contra a mesma vítima) contra a menina V. Aponta a denúncia também que os acusados, após a prática do crime de homicídio referido acima, teriam incorrido também no delito de fraude processual, ao alterarem o local do crime com o objetivo de inovarem artificiosamente o estado do lugar e dos objetos ali existentes, com a finalidade de induzir a erro o juiz e os peritos e, com isso, produzir efeito em processo penal que viria a ser iniciado. 2. Após o regular processamento do feito em Juízo, os réus acabaram sendo pronunciados, nos termos da denúncia, remetendo-se a causa assim a julgamento ao Tribunal do Júri, cuja decisão foi mantida em grau de recurso. 3. Por esta razão, os réus foram então submetidos a julgamento perante este Egrégio 2º Tribunal do Júri da Capital do Fórum Regional de Santana, após cinco dias de trabalhos, acabando este Conselho Popular, de acordo com o termo de votação anexo, reconhecendo que os acusados praticaram, em concurso, um crime de homicídio contra a vítima V, pessoa menor de 14 anos, triplamente qualificado pelo meio cruel, pela utilização de recurso que dificultou a defesa da vítima e para garantir a ocultação de delito anterior, ficando assim afastada a tese única sustentada pela Defesa dos réus em Plenário de negativa de autoria .Além disso, reconheceu ainda o Conselho de Sentença que os réus também praticaram, naquela mesma ocasião, o crime conexo de fraude processual qualificado. É a síntese do necessário. FUNDAMENTAÇÃO. 4. Em razão dessa decisão, passo a decidir sobre a pena a ser imposta a cada um dos acusados em relação a este crime de homicídio pelo qual foram considerados culpados pelo Conselho de Sentença. Uma vez que as condições judiciais do art. 59 do Código Penal não se mostram favoráveis em relação a ambos os acusados, suas penas-base devem ser fixadas um pouco acima do mínimo legal.

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Isto porque a culpabilidade, a personalidade dos agentes, as circunstâncias e as conseqüências que cercaram a prática do crime, no presente caso concreto, excederam a previsibilidade do tipo legal, exigindo assim a exasperação de suas reprimendas nesta primeira fase de fixação da pena, como forma de reprovação social à altura que o crime e os autores do fato merecem. Com efeito, as circunstâncias específicas que envolveram a prática do crime ora em exame demonstram a presença de uma frieza emocional e uma insensibilidade acentuada por parte dos réus, os quais após terem passado um dia relativamente tranqüilo ao lado da vítima, passeando com ela pela cidade e visitando parentes, teriam, ao final do dia, investido de forma covarde contra a mesma, como se não possuíssem qualquer vínculo afetivo ou emocional com ela, o que choca o sentimento e a sensibilidade do homem médio, ainda mais porque o conjunto probatório trazido aos autos deixou bem caracterizado que esse desequilíbrio emocional demonstrado pelos réus constituiu a mola propulsora para a prática do homicídio. (...) Assim sendo, frente a todas essas considerações, majoro a pena-base para cada um dos réus em relação ao crime de homicídio praticado por eles, qualificado pelo fato de ter sido cometido para garantir a ocultação de delito anterior (inciso V, do parágrafo segundo do art. 121 do Código Penal) no montante de 1/3 (um terço), o que resulta em 16 (dezesseis) anos de reclusão, para cada um deles. Como se trata de homicídio triplamente qualificado, as outras duas qualificadoras de utilização de meio cruel e de recurso que dificultou a defesa da vítima (incisos III e IV, do parágrafo segundo do art. 121 do Código Penal), são aqui utilizadas como circunstâncias agravantes de pena, uma vez que possuem previsão específica no art.61, inciso II, alíneas c e d do Código Penal. (...) Justifica-se a aplicação do aumento no montante aqui estabelecido de um quarto, um pouco acima do patamar mínimo, posto que tanto a qualificadora do meio cruel foi caracterizada na hipótese através de duas ações autônomas (asfixia e sofrimento intenso), como também em relação à qualificadora da utilização de recurso que impossibilitou a defesa da vítima (surpresa na esganadura e lançamento inconsciente na defenestração). (...) Quanto ao crime de fraude processual para o qual os réus também teriam concorrido, verifica-se que a reprimenda nesta primeira fase da fixação deve ser estabelecida um pouco acima do mínimo legal, já que as condições judiciais do art. 59 do Código Penal não lhe são favoráveis, como já discriminado acima, motivo pelo qual majoro em 1/3 (um terço) a pena-base prevista para este delito, o que resulta em 04 (quatro) meses de detenção e 12 (doze) dias-multa, sendo que o valor unitário de cada dia-multa deverá

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corresponder a 1/5 (um quinto) do valor do salário mínimo, uma vez que os réus demonstraram, durante o transcurso da presente ação penal, possuírem um padrão de vida compatível com o patamar aqui fixado. (...) DECISÃO. 9. Isto posto, por força de deliberação proferida pelo Conselho de Sentença que JULGOU PROCEDENTE a acusação formulada na pronúncia contra os réus A1 e A2, ambos qualificados nos autos, condeno-os às seguintes penas: a) co-réu A1: - pena de 31 (trinta e um) anos, 01 (um) mês e 10 (dez) dias de reclusão, pela prática do crime de homicídio contra pessoa menor de 14 anos, triplamente qualificado, agravado ainda pelo fato do delito ter sido praticado por ele contra descendente, tal como previsto no art. 121, parágrafo segundo, incisos III, IV e V c.c. o parágrafo quarto, parte final, art. 13, parágrafo segundo, alínea a (com relação à asfixia) e art.61, inciso II, alínea e, segunda figura e 29, todos do Código Penal, a ser cumprida inicialmente em regime prisional FECHADO, sem direito a “sursis”; - pena de 08 (oito) meses de detenção, pela prática do crime de fraude processual qualificada, tal como previsto no art. 347, parágrafo único do Código Penal, a ser cumprida inicialmente em regime prisional SEMI-ABERTO, sem direito a "sursis"e 24 (vinte e quatro) dias-multa, em seu valor unitário mínimo. b) co-ré A2: - pena de 26 (vinte e seis) anos e 08 (oito) meses de reclusão, pela prática do crime de homicídio contra pessoa menor de 14 anos, triplamente qualificado, tal como previsto no art. 121, parágrafo segundo, incisos III, IV e V c.c. o parágrafo quarto, parte final e art. 29, todos do Código Penal, a ser cumprida inicialmente em regime prisional FECHADO, sem direito a "sursis"; - pena de 08 (oito) meses de detenção, pela prática do crime de fraude processual qualificada, tal como previsto no art. 347, parágrafo único do Código Penal, a ser cumprida inicialmente em regime prisional SEMI-ABERTO, sem direito a “"sursis” e 24 (vinte e quatro) dias-multa, em seu valor unitário mínimo. 10. Após o trânsito em julgado, feitas as devidas anotações e comunicações, lancem-se os nomes dos réus no livro Rol dos Culpados, devendo ser recomendados, desde logo, nas prisões em que se encontram recolhidos, posto que lhes foi negado o direito de recorrerem em liberdade da presente decisão. 11. Esta sentença é lida em público, às portas abertas, na presença dos réus, dos Srs. Jurados e das partes, saindo os presentes intimados.

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Plenário II do 2º Tribunal do Júri da Capital, às 00:20 horas, do dia 27 de março de 2.010. Registre-se e cumpra-se. M.F. Juiz de Direito (sic)