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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP
Bruno Willian Brandão Domingues
A cidade das aquarelas: o Rio de Janeiro nos registros de Jean-Baptiste Debret
Mestrado em História Social
SÃO PAULO 2018
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP
Bruno Willian Brandão Domingues
A cidade das aquarelas: o Rio de Janeiro nos registros de Jean-Baptiste Debret
Mestrado em História Social
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em História Social sob a orientação do Prof. Dr. Amilcar Torrão Filho.
SÃO PAULO 2018
Banca Examinadora
________________________________________
________________________________________
________________________________________
À minha família, que sempre esteve a meu lado. À memória de minha avó, Benedita de Souza Brandão, que sempre acreditou nas
minhas capacidades.
AGRADECIMENTOS
Começo agradecendo a meus pais, José e Maria, por serem meus alicerces, e que
sempre confiaram nas minhas potencialidades, e por estarem ao meu lado em todos os
momentos. Agradeço a minha irmã, Larissa, aos meus avós, tios e primos, que de uma
maneira ou de outra, sempre ao meu lado me apoiando.
Além da família, serei sempre grato pela contribuição dos amigos durante esses
dois anos, por isso, agradeço ao Resende Aparecido, que foi meu motorista durante essa
trajetória, que pacientemente me esperava até o final das aulas: muito obrigado pela
companhia durante as viagens. Ao Edmilson Andrade, que sem a sua ajuda, eu teria
dificuldade em iniciar o Mestrado. Só me resta uma palavra: gratidão. Aos meus amigos
Breno, Leonardo e Pedro, obrigado pela amizade e peço desculpas pelas ausências aos
finais de semana.
Aos colegas do Mestrado, pelas contribuições e sugestões.
Ao meu orientador e professor Dr. Amilcar Torrão Filho, não há palavras
suficientes para agradecer pela atenção, contribuição, paciência e confiança durante a
pesquisa, que me ajudaram muito no crescimento acadêmico.
Agradeço às professoras Dra. Estefânia Knotz Canguçu Fraga e Dra. Valéria
Alves Esteves Lima, pelas sugestões na banca de qualificação que me auxiliaram muito.
Agradeço à Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e à FUNDASP por
todo o apoio e à coordenação e Secretária do Programa de História, sempre dispostos a
ajudarem. Aos professores do Programa de História, Dr. Amailton Magno Azevedo,
Dra. Estefânia Knotz Canguçu Fraga, Dra. Maria Antonieta Martines Antonacci, Dra.
Maria do Rosário da Cunha Peixoto, Dra. Maria Izilda Santos De Matos, Dra. Olga
Brites, pela contribuição das aulas durante os semestres.
Ao CNPq, pois sem a bolsa não seria possível a realização deste Mestrado, sua
ajuda foi fundamental para a realização desta pesquisa.
RESUMO
Com o objetivo de analisar a maneira como os viajantes estrangeiros relataram e
retrataram o Brasil, a seguinte pesquisa se dedica às análises das fontes iconográficas e
escritas de Jean-Baptiste Debret. O histórico artístico de Debret na corte de Napoleão
Bonaparte, influenciara amplamente na sua escolha como pintor histórico da corte de D.
João VI e futuramente de D. Pedro I após sua vinda ao Brasil como componente da
“Missão” Artística Francesa, acompanhando de perto todos os acontecimentos da
monarquia nos trópicos. Por meio do estudo de suas obras, percebemos que seu papel
não foi somente como pintor histórico, mas também um pintor pitoresco, com um vasto
acervo de representações do cotidiano e da cultura do povo brasileiro, principalmente da
cidade do Rio de Janeiro.
Palavras-chaves: Jean-Baptiste Debret. Literatura de Viagem. Brasil Oitocentista.
Representação. Cidade.
“The city of watercolors: Rio de Janeiro in the records of Jean-Baptiste Debret”
Bruno Willian Brandão Domingues
ABSTRACT
In order to analyze how foreign travelers reported and portrayed Brazil, the following
research had been devoted to Jean-Baptiste Debret's analyzes of iconographic and
written sources. Debret's artistic history at the court of Napoleon Bonaparte had greatly
influenced his choice as a historical painter of the court of D. João VI and later of D.
Pedro I after his coming to Brazil as part of the "Mission" Artistica Francesa, closely
following all the events of the monarchy in the tropics. Through the study of his works,
we realized that his role was not only as a historical painter, but also a picturesque
painter, with a vast collection of representations of the daily life and culture of the
Brazilian people, especially in the city of Rio de Janeiro.
Keywords: Jean-Baptiste Debret. Travel Literature. Brazil Eighteenth century.
Representation. City.
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 – Nicolas-Antoine Taunay. Vista do Pão de Açúcar a partir do terraço de Sir Henry Chamberlain. 1816-1821; óleo sobre tela; 50 x 65cm ........................................ 23
Figura 2 – Jean-Baptiste Debret. Calceteiros. 1824; aquarela sobre papel; 17,1 x 21,1cm; assinada e datada embaixo à esquerda. Museus Castro Maya, Rio de Janeiro. 40
Figura 3 – Jean-Baptiste Debret. Retrato de D. João VI. 1817; óleo sobre tela; 57 x 42,8cm. Acervo do Museu Nacional de Belas Artes/ IPHAN/ MINC, Rio de Janeiro. . 52
Figura 4 – Jean-Baptiste Debret. Cerimônia da faustíssima aclamação de S. M. o Senhor D. João VI. 1818; tinta e aquerela em sépia; 28,5 x 42,1cm. Museus Castro Maya, Rio de Janeiro. ..................................................................................................... 54
Figura 5 – Jean-Baptiste Debret. Aclamação do rei D. João VI. 1834-1839; aquarela; 21,7 x 15,7cm. Museus Castro Maya, Rio de Janeiro. ................................................... 56
Figura 6 – Jean-Baptiste Debret. Aclamação de D. Pedro I no Campo de Santana; aquarela; 25,5 x 18,7cm. Museus Castro Maya, Rio de Janeiro. .................................... 60
Figura 7 – Jean-Baptiste Debret. Coroação de D. Pedro I, Imperador do Brasil. 1828; óleo sobre tela; 21 x 32,1cm. Palácio Itamaraty, Brasília. ............................................. 62
Figura 8 – Jacques-Louis David. A coroação de Napoleão I e da imperatriz Josefina na Catedral de Notre-Dame de Paris, 2 de dezembro de 1804, 1805-07; óleo sobre tela; 62,1 x 97,9cm. Musée du Louvre, Paris. ........................................................................ 63
Figura 9 – Jean-Baptiste Debret. Primeira distribuição de condecorações da Legião de Honra na Igreja dos Inválidos pelo imperador. 1812; óleo sobre tela; 40,3 x 53,1cm. Musée du Château de Versailles. .................................................................................... 64
Figura 10 – Jean-Baptiste Debret. D. Pedro no traje da Sagração. 1826; gravura; 57 x 42cm. Museu Paulista da Universidade de São Paulo, São Paulo. ................................. 65
Figura 11 – Jean-Baptiste Debret. Desembarque de D. Leopoldina no Brasil. 1818; óleo sobre tela; 44,5 x 69,5cm. Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro. ................. 71
Figura 12 – Jean-Baptiste Debret. Casamento de D. Pedro I e D. Amélia. 1829; óleo sobre tela; 45 x 72,3cm. Coleção Banco Itaú, São Paulo. .............................................. 76
Figura 13 – Jean-Baptiste Debret. Aclamação de D. Pedro II, Segundo Imperador do Brasil. 1839; aquarela sobre papel; 20,7 x 33,7cm. Museus Castro Maya, Rio de Janeiro. ............................................................................................................................ 82
Figura 14 – Jean-Baptiste Debret. Mercado de escravos na Rua do Valongo. 1816-1828; aquarela sobre papel; 17,5 x 26,2cm. Museus Castro Maya, Rio de Janeiro. ................ 88
Figura 15 – Jean-Baptiste Debret. Negros vendedores de aves. 1835; litografia; 14,4 x 21,2cm. Arquivo Nacional, Rio de Janeiro. ................................................................... 93
Figura 16 – Jean-Baptiste Debret. Carregadores de leite vindo para a cidade. 1827; aquarela sobre papel; 16,2 x 22,5cm; assinada e datada. Museus Castro Maya, Rio de Janeiro. ............................................................................................................................ 95
Figura 17 – Jean-Baptiste Debret. Castigo de escravo que se pratica nas praças públicas. 1826; aquarela sobre papel; 16,3 x 22,1cm; assinada e datada. Museus Castro Maya, Rio de Janeiro. ..................................................................................................... 98
Figura 18 – Jean-Baptiste Debret. Barbeiros ambulantes. 1826; aquarela sobre papel; 17 x 23cm; assinada e datada. Museus Castro Maya, Rio de Janeiro. .............................. 100
Figura 19 – Jean-Baptiste Debret. Vendedor de flores e fatias de coco. 1829; aquarela sobre papel; 17,5 x 23,2cm; datado e assinado. Museus Castro Maya, Rio de Janeiro. ...................................................................................................................................... 104
Figura 20 – Jean-Baptiste Debret. Lavadeiras do rio das Laranjeiras. 1826; aquarela sobre papel; 16,6 x 22,3cm; datada e assinada. Museus Castro Maya, Rio de Janeiro. 107
Figura 21 – Jean-Baptiste Debret. Angu da quitandeira. 1826; aquarela sobre papel; 16,2 x 22,4cm; assinado e datado. Museus Castro Maya, Rio de Janeiro. ................... 112
Figura 22 – Jean-Baptiste Debret. Preta vendendo milho verde. 1820; aquarela sobre papel; 15,2 x 21cm; assinada e datado. Museus Castro Maya, Rio de Janeiro. ........... 115
Figura 23 – Jean-Baptiste Debret. Mocotós pelados, bolos da Bahia e polvilhos de forma. 1826; aquarela sobre papel; 15,1 x 21,6cm; assinado e datado. Museus Castro Maya, Rio de Janeiro. ................................................................................................... 118
Figura 24 – Jean-Baptiste Debret. Vendedores de pastel, manuê, pudim quente e sonho. 1826; aquarela sobre papel; 15,8 x 22cm; assinado e datado. Museus Castro Maya, Rio de Janeiro. ..................................................................................................................... 120
Figura 25 – Jean-Baptiste Debret. Vendedoras de pão de ló. 1826; aquarela sobre papel; 16,3 x 20,8cm; assinada e datado. Museus Castro Maya, Rio de Janeiro. ................... 122
Figura 26 – Jean-Baptiste Debret. Aluá, limões doces e canas-de-açúcar, os refrescos usuais nas tardes de verão. 1826; aquarela sobre papel; 15,3 x 21,2cm; assinado e datado.; Museus Castro Maya, Rio de Janeiro. ............................................................ 126
Figura 27 – Jean-Baptiste Debret. Uma tarde na praça do Palácio. 1826; aquarela sobre papel; 15,5 x 21,4cm; assinado e datado. Museus Castro Maya, Rio de Janeiro. ........ 128
Figura 28 – Jean-Baptiste Debret. Loja de sapateiro. 1830; aquarela sobre papel; 16,7 x 23,1cm. Museus Castro Maya, Rio de Janeiro. ............................................................ 134
Figura 29 – Jean-Baptiste Debret. Loja de barbeiro. 1821; aquarela sobre papel; 18 x 24,5cm; assinado e datado. Museus Castro Maya, Rio de Janeiro. .............................. 136
Figura 30 – Jean-Baptiste Debret. Quitandeiras de diversas qualidades. 1826; aquarela sobre papel; 14,8 x 22,3cm; assinado e datado. Museus Castro Maya, Rio de Janeiro. ...................................................................................................................................... 139
Figura 31 – Jean-Baptiste Debret. Loja de carne de porco. 1827; aquarela sobre papel; 15,5 x 22,5cm; assinado e datado. Museus Castro Maya, Rio de Janeiro. ................... 142
Figura 32 – Jean-Baptiste Debret. Loja di carne secca. 1825; aquarela sobre papel; 15,2 x 20,4cm; assinado e datado. Museus Castro Maya, Rio de Janeiro. ........................... 144
Figura 33 – Jean-Baptiste Debret. Padaria. 1830; aquarela sobre papel; 15,2 x 22cm. Museus Castro Maya, Rio de Janeiro. .......................................................................... 146
Figura 34 – Jean-Baptiste Debret. Loja de rapé. 1823; aquarela sobre papel; 18,3 x 23cm; assinado e datado. Museus Castro Maya, Rio de Janeiro. ................................. 148
Figura 35 – Jean-Baptiste Debret. Casa de um doente preparado para ser sacramentado. 1826; aquarela sobre papel; 15,3 x 21,7cm; assinado e datado. Museus Castro Maya, Rio de Janeiro. ....................................................................................... 156
Figura 36 – Jean-Baptiste Debret. Cirurgião negro colocando ventosas. 1826; aquarela sobre papel; 14,7 x 20,6cm; assinado e datado. Museus Castro Maya, Rio de Janeiro. ...................................................................................................................................... 159
Figura 37 – Jean-Baptiste Debret. Negra comprando arruda para se preservar do mau olhado. 1827; aquarela; 15,6 x 21,6cm; assinado e datado. Museus Castro Maya, Rio de Janeiro. .......................................................................................................................... 162
Figura 38 – Jean-Baptiste Debret. Uma manhã de Quarta-feira Santa na Igreja Mãe dos Homens. 1827; aquarela sobre papel; 14,80 x 22,9cm; assinado e datado. Museus Castro Maya, Rio de Janeiro. ................................................................................................... 164
Figura 39 – Jean-Baptiste Debret. Velho convalescente indo à Igreja para cumprir promessa. 1826; aquarela sobre papel; 15,8 x 21,9cm; assinado e datado. Museus Castro Maya, Rio de Janeiro. ................................................................................................... 168
Figura 40 – Jean-Baptiste Debret. Primeiras ocupações da manhã. 1826; datado e assinado; aquarela sobre papel; 18,7 x 24,2cm. Acervo dos Museus Castro Maya, Rio de Janeiro. .......................................................................................................................... 173
Figura 41 – Jean-Baptiste Debret. Coleta de óbulos para festa do Espírito Santo nos primeiros dias de julho. Festa do Divino. 1826; datado e assinado; aquarela sobre papel; 15,5 x 21,3cm. Acervo dos Museus Castro Maya. ....................................................... 176
Figura 42 – Jean-Baptiste Debret. Coleta de esmolas para a Igreja do Rosário. Porto Alegre. 1828; aquarela sobre papel; 14,7 x 20 cm; assinado e datado. Museus Castro Maya. ............................................................................................................................ 178
Figura 43 – Jean-Baptiste Debret. Queima de Judas. 1823; aquarela sobre papel; 17 x 23,5cm; assinado e datado. Museus Castro Maya, Rio de Janeiro. .............................. 180
Figura 44 – Jean-Baptiste Debret. Carnaval. 1823; assinado e datado; aquarela sobre papel; 18 x 23cm. Acervo Museus Castro Maya, Rio de Janeiro. ................................ 182
Figura 45 – Jean-Baptiste Debret. Enterro de um membro da irmandade de Nossa Senhora da Conceição. 1823; assinado e datado; aquarela sobre papel; 14,8 x 22cm. Acervo Museus Castro Maya, Rio de Janeiro. ............................................................. 185
Figura 46 – Jean-Baptiste Debret. Cortejo fúnebre para o enterro de um rei ou filho de rei negro africano católico; 1826; assinado e datado; aquarela sobre papel; 14,7 x 21,2cm. Acervo Museus Castro Maya, Rio de Janeiro. ............................................... 187
Figura 47 – Jean-Baptiste Debret. Enterro de uma negra católica chegando à Igreja da Lampadosa. 1826; aquarela sobre papel; 15,3 x 22,4 cm; assinado e datado. Museus Castro Maya, Rio de Janeiro. ....................................................................................... 189
Figura 48 – Jean-Baptiste Debret. Anjinho preto de cadeirinha. 1823; aquarela sobre papel; 14,9 x 23,9cm; assinado e datado. Museus Castro Maya, Rio de Janeiro. ........ 192
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 13
CAPÍTULO 1 – “REALEZA NOS TRÓPICOS: A CORTE PORTUGUESA NO
BRASIL E A CORTE BRASILEIRA” .......................................................................... 32
1.1 A corte portuguesa no Rio de Janeiro e a “Missão” Artística Francesa ............... 32 1.2 As coroações: o pintor do pai e do filho ............................................................... 48 1.3 “Amor” da diplomacia: os casamentos imperiais ................................................. 69 1.4 Começa um Novo Reinado e a despedida de Debret no Brasil ............................ 78
CAPÍTULO 2 – “A RUA: O PALCO DO COMÉRCIO” ............................................. 87
2.1 O pão nosso de cada dia do comércio ambulante ................................................. 87 2.2 A rua dos quitutes: o dia a dia das negras escravas e libertas na cidade............. 109 2.3 O Rio de Janeiro dos estabelecimentos comerciais ............................................ 131
CAPÍTULO 3 – “RIO DE JANEIRO: A CIDADE DAS CRENÇAS” ....................... 152
3.1 O padre e o curandeiro: a arte da cura dos males ............................................... 152 3.2 A rua dos festejos sagrados e profanos ............................................................... 170 3.3 Até que a morte nos separe... .............................................................................. 184
CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................................... 194
REFERÊNCIAS ........................................................................................................... 198
13
INTRODUÇÃO
(...) o olhar dos viajantes que percorreram o Novo Mundo estava marcado pelo sentido do exótico e do singular e que a produção iconográfica entre os séculos XVI e XIX dividiu-se entre o relato fantasioso, o registro científico e a representação do que identificamos como hábitos e costumes, além dos inúmeros registros da paisagem brasileira1.
A presente pesquisa tem como objetivo refletir e analisar a maneira como Jean-
Baptiste Debret construiu a cidade do Rio de Janeiro na primeira metade do século XIX,
uma cidade sede da coroa, fechada e restrita nos palácios, e uma outra cidade fora dos
palácios, da rua, uma cidade portuária e movimentada, uma cidade livre, por meio da
análise de seus registros – suas imagens e seu livro “Viagem Pitoresca e Histórica ao
Brasil”. Juntamente com a discussão da literatura de viagem e do cotidiano citadino,
perceberemos as grandes mudanças que a cidade carioca passou durante o século XIX,
período marcado por várias transformações no Brasil. Com toda essa discussão, é
possível realizar uma revisão da bibliografia de Debret.
O impulso para esta pesquisa surgiu do meu interesse sobre a história do Brasil,
por meio dos relatos de viagens, da maneira como o país era visto pelos estrangeiros.
Além disso, seus relatos de viagem nos proporciona a melhor compreensão do cotidiano
do Brasil, suas características, costumes, tradições, enfim, é uma viagem no tempo, uma
“possibilidade que oferecem de rever o Brasil. (...) essas obras só podem dar a conhecer
o Brasil visto por eles”2. Contudo, devemos tomar muito cuidado para não cairmos no
erro de reproduzirmos, sermos fiéis a esses relatos, que segundo Leite, “o viajante traz a
postura do civilizado diante do povo atrasado, reforçada por uma série de obstáculos
linguísticos, culturais e econômicos à compreensão do grupo visitado”3, ocasionando
uma generalização por parte desses viajantes, que se consideram superiores nos
conhecimentos perante os povos visitados. Para isso, iremos traçar um breve panorama
histórico da produção dos viajantes no decorrer do período colonial.
1 LIMA, Valéria Alves Esteves. Iconografia de Viagem à luz da História da Arte. 19&20, Rio de Janeiro, v. III, n. 2, p. 1, abr. 2008. 2 BELLUZZO, Ana Maria de Moraes. O Brasil dos Viajantes. Salvador: Fundação Odebrecht; São Paulo: Metalivros, 1999. p. 13. 3 LEITE, Miriam Lifchitz Moreira. Livros de Viagem 1803/1900. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1997. p. 10.
14
As primeiras imagens sobre a terra americana circulam no início do século XVI, através das gravuras que acompanham as cartas de Amerigo Vespucci, difundidas na forma de folhetim. Na carta atribuída a Vespucci conhecida como Mundus Novus é relatada a experiência direta do navegador, que se aventura no espaço aberto e contempla maravilhado “coisas jamais pensadas”4.
O Brasil sempre foi admirado e cobiçado para ser relatado e retratado por vários
artistas, seja por sua beleza natural, seja por seu brilho tropical. Desde a tomada de
posse pelos portugueses em 1500, começaram a surgir os primeiros relatos, assim, cada
vez mais, na Europa, a literatura de viagem ganhava espaço por aqueles interessados em
ler sobre o Novo Mundo, e dividia opiniões sobre o Brasil: uma terra que seria o paraíso
com as belas paisagens ou o inferno com o canibalismo de algumas tribos indígenas?
A terra daquelas regiões é muito fértil e amena, com muitas colinas montes, infinitos vales, abundantes em grandíssimos rios, banhada de saudáveis fontes, com selvas amplíssimas e densas, pouco penetráveis, copiosa e cheia de todo o gênero de feras. Ali principalmente as árvores crescem sem cultivador, muitas das quais dão frutos deleitáveis no sabor e úteis aos corpos humanos [...]. Se quisesse lembrar da cada coisa que ali existe e escrever sobre os numerosos gêneros de animais e a multidão deles, a coisa se tornaria totalmente prolixa e imensa [...]. Ali todas as árvores são odoríferas e cada uma emite de si goma, óleo ou algum líquido cujas propriedades, se fossem por nós conhecidas, não duvido de que seriam saudáveis aos corpos humanos. Certamente, se o paraíso terrestre estiver em alguma parte da terra, creio não estar longe daquelas regiões, cuja localização [...] é para o meridiano, em tão temperado ar que ali nunca há invernos gelados nem verões férvidos5.
O relato de Vespúcio, navegador florentino, nos traz uma melhor noção a
respeito de como o natural do Novo Mundo era atraente para os europeus,
possibilitando assim uma enorme compreensão dos primeiros relatos. As notícias das
descobertas de terras por Pedro Álvares Cabral no Novo Mundo, e os relatos do piloto
anônimo, era considerado “o único testemunho escrito da viagem de Cabral a circular
pela Europa (...)”6. A característica desses primeiros relatos sobre o Brasil traz apenas
uma discrição do que foi visto. Para Torrão, nestes tipos de relatos, o narrador “na,
maior parte das vezes esconde-se detrás de um quase anonimato (...) o autor não fala por
4 BELLUZZO, Ana Maria de Moraes. O Brasil dos Viajantes. Salvador: Fundação Odebrecht; São Paulo: Metalivros, 1999. p. 18. 5 VESPÚCIO, Américo. Novo Mundo - As cartas que batizaram a América. São Paulo: Planeta, 2003. p. 45. 6 FRANÇA, Jean Marcel Carvalho. A Construção do Brasil na literatura de viagem dos séculos XVI, XVII E XVIII: antologia de textos (1591-1808). Rio de Janeiro: José Olympio; São Paulo: UNESP, 2012. p. 88.
15
si; nem de si, mas apenas relata e descreve o que vê (...)”7. Mesmo sem saber quem foi o
piloto de tal relato, sua obra ganhou uma repercussão enorme na Europa, sendo
traduzida para vários idiomas. Esses primeiros relatos do Novo Mundo são as portas de
entrada dos inúmeros relatos que apareceriam no decorrer de todo processo de
colonização da América, onde para o europeu tudo era novo, e “com a descoberta do
novo continente, os europeus se vêem obrigados a repensar a própria cultura e a rever as
bases sobre as quais ergueram sua visão de mundo”8. Após os primeiros relatos, o Brasil
passa a ser alvo de estudiosos que desejavam estudar, pintar e relatar tudo aquilo que
aqui era exótico. Entretanto, por medo de perder suas posses na América, a coroa
portuguesa proibiu a entrada de estrangeiros para evitar uma possível ameaça de invasão
de inimigos, ficando apenas restrito para os portugueses. Mesmo com toda a cautela e
preocupação de Portugal com sua colônia na América, foi inevitável a invasão de alguns
países, por exemplo, a França, no Rio de Janeiro em 1555, e a Holanda, em Pernambuco
em 1630.
Na França e em Genebra (...) começam a circular os primeiros testemunhos da naufragada tentativa de colonização francesa do Novo Mundo: a França Antártica. O primeiro a ser impresso é o Cópias de algumas cartas sobre a navegação do cavaleiro Villegaignon, um pequeno opúsculo, publicado na cidade de Paris, em 1557, contendo duas longas cartas do piloto de Villegaignon. Nicolas Barré, relatando a sua navegação entre a Europa e a terra do Brasil e, sobretudo, a instalação dos franceses na Baía de Guanabara9.
Os relatos e imagens dos franceses foram marcados pelas narrativas sobre as
tribos indígenas, os trabalhos exercidos em construir a colônia francesa e
consequentemente as lutas com os indígenas pela posse de terras para tais objetivos
franceses. Entre os relatos dos franceses, destacamos as obras de André Thevet, Les
Singularitez de la France Antarctique, de 1557, e La Cosmographie Universelle, de
1575. Seus relatos são “organizados pela pluralidade de enfoques, admitem
incoerências, permitem a fuga do sentido”10. Belluzzo se refere à maneira como Thevet
descreve e retrata o Brasil, criando um imaginário de uma terra habitada por animais
monstruosos, em que “a presença de deformidades e desvios, com relação ao padrão
7 TORRÃO Filho, Amilcar. A arquitetura da alteridade: a cidade luso-brasileira na literatura de viagem (1783-1845). São Paulo: HUCITEC; FAPESP, 2010. p. 44. 8 BELLUZZO, Ana Maria de Moraes. O Brasil dos Viajantes. Salvador: Fundação Odebrecht; São Paulo: Metalivros, 1999. p. 18. 9 FRANÇA, Jean Marcel Carvalho. A construção do Brasil na literatura de viagem dos séculos XVI, XVII e XVIII: antologia de textos (1591-1808). Rio de Janeiro: José Olympio; São Paulo: UNESP, 2012. p. 89. 10 BELLUZZO, Ana Maria de Moraes, op. cit., p. 39 et seq.
16
ideal de proporcionalidade entre as partes do corpo dos animais, provoca a imaginação,
instiga uma ‘aparição estranha’”11. Seu relato também enfoca o caráter dos nativos de
viver em comunidade, destacando o papel das mulheres na realização da maioria dos
trabalhos e rituais, desde a vida ativa dos nativos, o canibalismo e a guerra que
ganharam destaque em seu relato. Ao mesmo tempo, confessa estar perplexo pelas
belezas naturais, que são, em sua opinião, “coisas grandiosas e variadas, para as quais o
homem não encontra explicação”12.
Outro viajante francês que traz relatos a respeito do Brasil é Jean de Léry, “que
conviveu cerca de um ano entre os índios tupinambás, divulgando imagens desses
índios com significados e formas clássicas"13, sendo relatada em sua obra “histoire d’
um Voyage Fait em la Terre du Brésil”. Sua obra traz uma grande quantidade de
imagens das tribos indígenas, destacando “revelar o corte dos cabelos, a ornamentação
facial com pedras, as marcas das vitórias ostentadas pelos selvagens nos riscos de suco
de jenipapo nas pernas”14, entre tantas outras características que traziam os povos
nativos do Brasil, pois “conviveu intimamente por quase um ano (...)”15. Seu relato
obteve enorme sucesso na Europa pelo fato dessa convivência entre os nativos,
colaborando muito “para difundir no Velho Mundo aquela imagem positiva do indígena
(...)”16.
De volta à França, não tinha a intenção de tornar públicas as memórias que escrevera, em grande parte com tinta do Brasil, e ainda na América, nem as coisas notáveis que observara, mas de bom grado as contava pormenorizadamente aos que me inquiriam. Tendo, porém, algumas pessoas com as quais mantinha relações julgado que tais coisas eram dignas de ser preservadas do esquecimento, acedi em redigi-las (...). Na realidade havia ainda mais uma razão para isso: o fato de não me sentir à altura de usar a pena, embora, ao voltar do Brasil, em 1558, tenha deparado com o livro Singularidades da América, escrito pelo senhor De la Porte, de acordo com as narrações e memórias de André Thévet (...)17.
11 BELLUZZO, Ana Maria de Moraes. O Brasil dos Viajantes. Salvador: Fundação Odebrecht; São Paulo: Metalivros, 1999. p. 36. 12 Idem. 13 BELLUZZO, Ana Maria de Moraes, op. cit., p. 42 et seq. 14 Idem. 15 FRANÇA, Jean Marcel Carvalho. A construção do Brasil na literatura de viagem dos séculos XVI, XVII e XVIII: antologia de textos (1591-1808). Rio de Janeiro: José Olympio; São Paulo: UNESP, 2012. p. 110. 16 Idem. 17 LÉRY, Jean de. Viagem à terra do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1980. p. 13-14.
17
Após as publicações de Léry e Thévet na Europa, o índio brasileiro começa a
perder o foco das atenções nas narrativas sobre o Brasil, dando lugar ao “mundo que o
colonizador português estava construindo na sua enorme possessão do Novo Mundo”18.
Com essa mudança, da maneira de como o Brasil passa a ser visto, destacamos as obras
realizadas pelos holandeses durante seu domínio no Nordeste brasileiro. Suas obras
terão maior foco nas belas paisagens que dividiam lugar com os engenhos de açúcar,
que segundo Belluzzo: “as paisagens do Brasil pintadas por artistas holandeses (...) veio
combinar com os novos estímulos visuais, como a atmosfera surpreendentemente
luminosa, a imensidão da paisagem despovoada, o estranhamento provocado pela
vegetação e pelos animais dos trópicos (...)”19, destacando entre as pinturas holandesas,
as de autoria do pintor Frans Post.
A mais notável contribuição foi de autoria de Frans Post, que acompanhou Maurício de Nassau ao Brasil e se tornou pintor oficial do governo holandês da Índias Ocidentais, de 1637 a 1644, em circunstâncias que não foram ainda totalmente esclarecidas. O interesse topográfico, a preponderância de registros da vida militar dos ocupantes holandeses e outros aspectos que marcam a obra gráfica e pictórica realizada por Post no Brasil mostram-se efetivamente condizentes com as responsabilidades oficiais20.
Após a expulsão dos franceses e holandeses da América portuguesa e a volta de
Portugal ao controle de suas terras, a Europa ficara sem os relatos e imagens da
América. Novamente, para Portugal, suas terras estavam seguras de possíveis ameaças,
tendo sua colônia fechada por aproximadamente duzentos anos. Durante esse período,
conhecido como período colonial, os relatos e obras iconográficas realizados no Brasil
se destacam em dois aspectos: os que foram feitos a serviço da coroa, incumbidos de
“(...) mapear os territórios e estabelecer estratégias de exploração e controle, as
metrópoles passaram a realizar ou a permitir viagens (...)”21, e aqueles trabalhos
vinculados às instituições religiosas, “nos conventos e santas casas das principais
capitanias brasileiras, entre as quais Bahia, Rio de Janeiro e São Paulo, era encontrada
18 FRANÇA, Jean Marcel Carvalho. A construção do Brasil na literatura de viagem dos séculos XVI, XVII e XVIII: antologia de textos (1591-1808). Rio de Janeiro: José Olympio; São Paulo: UNESP, 2012. p. 110. 19 BELLUZZO, Ana Maria de Moraes. O Brasil dos Viajantes. Salvador: Fundação Odebrecht; São Paulo: Metalivros, 1999. p. 120. 20 Idem. 21 LIMA, Valéria Alves Esteves. Iconografia de Viagem à luz da História da Arte. 19&20, Rio de Janeiro, v. III, n. 2, p. 2, abr. 2008.
18
uma grande quantidade de retratos”22; um exemplo encontra-se no relato de Debret, a
respeito da santa casa do Rio de Janeiro, fundada por volta de 1700.
Coisa mais agradável de ver é a coleção dos retratos a óleo de diferentes benfeitores da Santa Casa, desde a época de sua fundação. Esses retratos, de tamanho uniforme, são encomendados e pagos pela irmandade; (...) todos esses retratos são de corpo inteiro, inscrevendo-se em cima a data da morte do indivíduo representado; nos mais antigos, uma vista da Santa Casa, no estado em que então se encontrava, constitui o fundo do quadro. A composição e execução ingênua dos mais antigos retratos atestam a singeleza dos habitantes da cidade do Rio de Janeiro; pouco a pouco, e na medida em que as datas se fazem mais recentes, observa-se uma progressiva influência da escola italiana. Encontra-se em seguida, nas pinturas executadas entre 1800 e 1822, uma técnica cuidadosa, procurando, embora timidamente, uma perfeição que parece ter-se desenvolvido de maneira rápida e contínua durante os últimos anos anteriores a 183123.
Enquanto a colônia ficava proibida de comercializar com outros países, sendo
permitido apenas com sua metrópole, com o “pacto colonial” ela acabava permanecendo
isolada; na Europa muita coisa estava acontecendo, principalmente a forma de pensar, e
juntamente com todas essas mudanças, a literatura de viagem ia tomando um novo
rumo, uma nova maneira de interpretar outros povos. Se no passado, os relatos de
viagens eram imagéticos, fantasiosos, que descreviam apenas a natureza, o exótico, com
as mudanças na Europa, a literatura de viagem se destaca por obras de estudiosos
acadêmicos, como os botânicos e geólogos que buscam a história natural ou política – a
busca de uma referência da história para compreender o momento de grandes
tribulações que passava a Europa.
As mudanças verificadas nas últimas décadas do Setecentos acabaram por sensibilizar o viajante no sentido de buscar, no conhecimento do outro, respostas às questões referentes a ele mesmo. A partir daí, os relatos tornaram-se, cada vez mais, referências para compreender a reflexão dos viajantes a respeito do momento histórico em que viviam, bem como sobre suas origens, sobre as teorias de conhecimento da espécie humana, sobre as possibilidades de integração das novas regiões ao grande mapa da evolução da humanidade (...)24.
A partir do século XVIII, a literatura de viagem começa a tomar um novo rumo
pois, “carrega a marca da Revolução. Com efeito, inúmeras foram as mudanças
22 DIAS, Elaine. A representação da realeza no Brasil: uma análise dos retratos de D. João VI e D. Pedro I, de Jean-Baptiste Debret. Anais do Museu Paulista. São Paulo, N. Sér., v. 14, n. 1, p. 246, 2006. 23 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p. 390. 24 LIMA, Valéria. J. -B. Debret, historiador e pintor: a viagem pitoresca e histórica ao Brasil (1816-1839). Campinas: UNICAMP, 2007. p. 192.
19
ocorridas na organização das sociedades europeias, e grande a reviravolta que se operou
no pensamento da época”25. Poderíamos dizer que gerou um refinamento, uma
ampliação do relato que agora passa a ser realizado por estudiosos na busca por
respostas para as mudanças que estavam ocorrendo, em que o viajante “questiona
constantemente: o que é real”26. Com toda essa mudança de contexto, de significação de
literatura de viagem, esse campo de pesquisa acaba tornando-se extenso e amplo, o que
para Leite:
Ela aparece em livros muitos extensos (com cinco ou mais volumes), em livros curtos (de cem ou duzentas páginas), em artigos de revistas e em manuscritos, guardados em diferentes arquivos e museus do mundo. Existe sob a forma de literatura para adultos e para crianças, com romance de aventuras, como literatura fantástica ou romance epistolar, havendo, na segunda metade do século XIX, reportagens jornalísticas e guias turísticos. (...) Alguns desses livros são correspondência dirigida à família ou aos amigos; outros, diários de viagem, escritos sem intenção de publicação, ou como apoio a um relatório posterior; outros, ainda, são memórias, guias comerciais e turísticos, relatórios científicos e mesmo álbuns de desenhos27.
Cada vez mais, os relatos dos viajantes vão ganhando lugares de destaque na
Europa por pessoas interessadas na ressignificação dos povos, da sua alteridade,
levando o europeu a explorar outros mundos por meio das expedições científicas, onde
“um grande número de indivíduos desloca-se, assumindo uma variada nomenclatura:
viajante, naturalista, cientistas, viajantes-filósofos, artista-viajante, historiador, entre
outros”28, na busca pela compreensão do outro, ou seja, “a formação de sua identidade
derivaria da alteridade no encontro com outros povos”29.
(...) o relato do viajante, apesar de estruturar-se em torno da observação de uma cultura declarada estrangeira, acaba por oferecer amplas evidências da cultura de origem. (...) Portanto, ao mesmo tempo em que o viajante fala do lugar visitado, reelabora o seu próprio lugar de origem, permanecendo em constante diálogo com as suas referências, que podem ser revistas, negadas
25 ROUANTE, Maria Helena. Eternamente em Berço Esplêndido: a fundação de uma literatura nacional. São Paulo: Siciliano, 1991. p. 21. 26 STAFFORD, Barbara Maria. Voyage into substance. Art, Science, nature, and the illustrated travel account, 1760-1840. Cambridge, MA: MIT Press, 1984. p. 396. 27 LEITE, Miriam Lifchitz Moreira. Livros de Viagem 1803/1900. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1997. p. 11. 28 LIMA, Valéria. J. -B. Debret, historiador e pintor: a viagem pitoresca e histórica ao Brasil (1816-1839). Campinas: UNICAMP, 2007. p. 33. 29 TORRÃO FILHO, Amilcar. A arquitetura da alteridade: a cidade luso-brasileira na literatura de viagem (1783-1845). 2008. Tese (Doutorado em História) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, 2008. p. 42.
20
ou rejeitadas. A narrativa sobre o “outro” também é, afinal, a narrativa sobre “si mesmo”30.
As novas significações que o século XVIII proporcionou, para a literatura de
viagem, demonstram que os primeiros relatos a respeito do Brasil, no início de seu
processo de colonização, que discutimos anteriormente, se enquadram nos relatos e
imagens de pintores de paisagens, que em grande quantidade trazem em seu foco
principal a natureza brasileira. Entretanto, a partir de agora, os relatos de viagem
ganharam um campo mais amplo, e com isso o Brasil começa a ser visto de várias
formas, tornando a cultura dos locais visitados os principais objetos de estudo, para
mostrar as transformações provocados nos espaços pela presença do homem com suas
maneiras de governar, de suas instituições que ditavam as regras. Durante os séculos
XVIII e XIX, as cidades brasileiras ganham seu lugar em cena, demostrando as
mudanças ocorridas no espaço, saindo de cena as paisagens naturais e entrando as
paisagens urbanas, a civilização, principalmente a cidade do Rio de Janeiro, capital da
colônia e futuramente do império, por diversos fatores. Primeiramente, “com a vinda da
corte portuguesa, em 1808, não só os portos se abriram para as “nações amigas”, mas
também as portas para a entrada de estrangeiros”31, facilitando assim, a vinda de
estudiosos. Em segundo lugar, com a mudança de significação da literatura de viagem,
essas expedições, movidas por estudiosos, buscaram compreender a formação dos
povos, os contextos sociais dos lugares visitados.
Descrições bastantes extensas das cidades estão sempre presentes nos escritos de viajantes. Referências a certos lugares, descrições de bairros ou de transformações em determinadas áreas são constantes nos relatos de memorialistas e textos de literatos. Pontos de referência para o leitor, mas também algo relacionado à permanência das formas do traçado urbano e das edificações, ou mesmo da sua rápida transformação (...)32.
É com os traçados urbanos e referências dos locais da cidade, discutidas por
Bresciani, que partimos para um profundo estudo dos registros de Jean-Baptiste Debret,
tanto do seu livro de relato de viagem “Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil” como
de suas imagens que ajudaram a entender a fundo as práticas citadinas no Brasil
30 LISBOA, Karen Macknow. A Nova Atlântica de Spix e Martius: natureza e civilização na Viagem pelo Brasil (1817-1820). São Paulo: HUCITEC; FAPESP, 1997. p. 47. 31 Ibidem, p. 29. 32 BRESCIANI, Maria Stella Martins. História e historiografia das cidades, um percurso. In: FREITAS, Marcos Cezar de (Org.). Historiografia brasileira em perspectiva. 3. ed. São Paulo: Contexto; Bragança Paulista: USF, 2000. p. 238.
21
oitocentista. Com a abertura dos portos, tais práticas citadinas puderam ser observadas e
relatadas, tornando o Brasil um laboratório a céu aberto, pois esses estudiosos se
arriscaram e atravessaram o oceano para estudar o país, retratar ou até mesmo
comprovar suas teorias, pois “a viagem é um método de estudo da sociedade, não
apenas do mundo natural ou dos homens “selvagens””33. Naquele momento, o viajante
estava inserido no meio da população, local onde ele consegue estudar, acompanhando
mais de perto a realidade, sendo para Certeau o narrador da cidade.
Todo relato é um relato de viagem - uma prática do espaço. A este título, tem a ver com as táticas cotidianas. (...) Essas aventuras narradas, que ao mesmo tempo produzem geografias de ações e derivam para os lugares comuns de uma ordem, não constituem somente um “suplemento” aos enunciados pedestres e às retóricas caminhatórias. Não se contentam em deslocá-los e transpô-los para o campo da linguagem. De fato, organizam as caminhadas. Fazem a viagem, antes ou enquanto os pés a executam34.
Por meio da narrativa de Certeau, que discute que o viajante é o narrador da
cidade, observando as práticas cotidianas, partimos para uma discussão do viajante
Jean-Baptiste Debret, integrante da “missão francesa” que vem para o Rio de Janeiro
para fundar a Academia de Belas Artes, realizando uma profunda narrativa em seu livro
de relato de viagem da cidade do Rio de Janeiro. Durante sua estadia na cidade, Debret
começara a pintar cenas cotidianas, seus habitantes, suas construções, paisagens naturais
que cercam a cidade carioca, e juntamente com suas imagens descreve as características
urbanas da cidade, como seus bairros, os locais mais movimentados, as casas, o
comércio e suas ruas. Com todas essas informações que os relatos de viagens trazem à
mente, os leitores conseguem fazer uma “viagem” imaginária, como se estivessem
viajando à cidade da época, aquela que o relato traz, como se a cidade ganhasse vida.
Pintor, desenhista e gravador, Jean-Baptiste Debret nasceu em Paris, em 1768.
Pertencia à burguesia francesa culta, trabalhou durante o reinado de Napoleão
Bonaparte sob a influência da Revolução Francesa nas artes, incentivando a “abundante
produção de imagens, como instrumento de luta política, revolucionária e contra-
revolucionária”35, através de obras que retratavam as batalhas e as vitórias do líder
político, e até mesmo o próprio imperador. Durante sua vida artística, Debret também
33 TUCKER, Josiah. Instructions for Travellers. Dublin: William Watson, 1758. p. 6. 34 CERTEAU, Michel de. Invenção do cotidiano: artes de fazer. 18. ed. Petrópolis: Vozes, 2012. v. 1, p. 200. 35 MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. Fontes visuais, cultura visual, História visual. Balanço provisório, propostas cautelares. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 23, n. 45, p. 11-36, 2003.
22
foi influenciado por seu primo Jacques-Louis David, grande pintor neoclassicista e
simpatizante de Napoleão, sendo ele o responsável por retratar, por meio de sua arte, a
coroação de Napoleão.
Treinado nos ditames da arte acadêmica francesa, Debret tivera também, como vimos, a oportunidade de assimilar os princípios maiores do neoclassicismo de David, grande renovador desse estilo, que escolhera a inovação e a transformação como princípios essenciais de sua arte. Essas ideias estão na base de todo o método de criação artística de David, guiado pelo desejo de mudança - no tema, no estilo e na concepção - e opondo-se às estruturas estáticas e padronizadas da Académie Royatede Peinture et Sculpture, onde havia estudado, como grande parte dos artistas franceses da época. (...) A personalidade e genialidade de David vão marcar suas relações com o poder e com o ambiente artístico, fazendo de seu percurso um marco para o surgimento da ideia do artista moderno36.
Com toda a influência de David, vários pintores seguiram seu estilo artístico,
como Debret e Nicolas-Antoine Taunay, sendo que ambos os pintores foram alunos de
Louis David, grande pintor do período napoleônico. Sob a influência do neoclassicismo,
David “foi o pintor que resumiu e sedimentou o perfil de uma geração de artistas
acadêmicos”37. A arte neoclássica remonta a temas mitológicos ligados a Roma e à
Grécia Antiga, paisagens, heróis e temas históricos, no qual “o objetivo era renovar a
arte com base nas descobertas arqueológicas da Antiguidade greco-romana”38, ou seja, a
arte neoclássica volta ao passado da Antiguidade clássica, na busca de representar a
origem da humanidade por meio das novas técnicas de pintura, tendo como referência
estética uma arte mediante seus detalhes.
O dom artístico de Taunay terá grande influência do neoclassicismo, com
destaque para a área de paisagens naturais: “Taunay sempre se considerava um ‘amigo
da natureza’”39. O Brasil, para Taunay, era um grande ateliê ao ar livre, “cuja natureza
era inspiradora”40. A natureza exuberante era perfeita para a realização de suas obras,
fossem elas mitológicas, bíblicas ou paisagísticas.
Mas, no Brasil, a natureza tropical – exuberante e imensa – é que ganhava lugar privilegiado nas telas de Nicolas; aí estava o grande teatro da sua representação. Durante sua permanência no Rio de Janeiro (de 1816 a 1821),
36 LIMA, Valéria. Uma Viagem com Debret. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. p. 16-17. 37 SCHWARCZ, Lilia Moritz. O sol do Brasil: Nicolas-Antoine Taunay e as desventuras dos artistas franceses na corte de d. João. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. p. 85. 38 Ibidem, p. 133. 39 Ibidem, p. 258. 40 Ibidem, p. 155.
23
ele realizou vários quadros, com temas anedóticos, bíblicos, mitológicos e históricos, além de alguns poucos retratos e de algumas telas sobre cenas brasileiras41.
Além do grande destaque para a natureza, os animais estavam presentes em boa
parte de suas obras realizadas no Brasil, que para Taunay demonstravam o estado
melancólico do país, onde as pessoas dividiam o mesmo espaço com os animais soltos
nas ruas – sinal de atraso perante uma Europa considerada moderna, “onde a paisagem
carrega o suposto da diferença, e, com ele, a própria noção de identidade”42.
Figura 1 – Nicolas-Antoine Taunay. Vista do Pão de Açúcar a partir do terraço de Sir Henry
Chamberlain. 1816-1821; óleo sobre tela; 50 x 65cm
Juntamente com essa natureza tropical, bem característica das obras de Taunay,
e com a influência do neoclassicismo em seu trabalho, a imagem anterior intitulada
“Vista do Pão de Açúcar a partir do terraço de Sir Henry Chamberlain”, contém cenas
que sempre estiveram em boa parte nas obras neoclássicas, que são os costumes
europeus de passear ao ar livre em jardins, em busca de sossego e lazer da nobreza
41 SCHWARCZ, Lilia Moritz. O sol do Brasil: Nicolas-Antoine Taunay e as desventuras dos artistas franceses na corte de d. João. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. p. 18. 42 Ibidem, p. 119.
24
europeia. Segundo Piccolli, “o hábito do passeio (...) constituiu na Inglaterra notável
estímulo à sensibilidade pitoresca para a percepção da paisagem (...) um exercício
salutar (utile), ao prazer de usufruir uma bela vista (dulce). Articulava-se, ainda, com o
gosto pela vida no campo (...)”43, de uma sociedade cansada e transformada pela
Revolução Industrial, e que naquele momento buscava a tranquilidade. Uma Europa
sem vida, onde as florestas desapareceram para servir de alimento para as máquinas
movidas a carvão.
As paisagens exuberantes do Novo Mundo serviam de inspiração para os artistas
que buscavam “a recuperação da unidade perdida entre o homem e a natureza. O mundo
burguês era profunda e deliberadamente antissocial. Ele impiedosamente quebrou os
fortes laços feudais que uniam o homem a seus superiores naturais”44, tornando a
natureza pós-revolução industrial e francesa símbolo de beleza e liberdade, definida
“contra a ordem e a repressão associadas à monarquia absoluta (...)”45.
Outro ponto forte nas obras de Taunay era a inserção de ruínas de construções,
que remetem à antiguidade, sendo um traço característico das pinturas históricas para
construir uma identidade local. O Rio de Janeiro, uma cidade que nessa época era sede
do Reino Unido de Portugal, Algarves e Brasil, deveria ter sua própria história, um
estilo próprio e até mesmo possuir um lugar no mundo, que para Rossi era a
“identificação de alguns fatos urbanos e da própria cidade com o estilo da arquitetura é
tão imediata, num certo entorno de espaço e de tempo, que podemos falar com razoável
precisão da cidade gótica, da cidade barroca, da cidade neoclássica”46. Na imagem de
Taunay, o Rio de Janeiro se parece mais a uma cidade neoclássica, com ruínas de
construções, passeios ao ar livre e jardins, que para Burke é a marca da transformação
em ““paisagem de jardinagem” e outras formas de intervenção humana”47.
Diferentemente de Taunay que retrata o Rio de Janeiro no viés de uma cidade
melancólica, Jean-Baptiste Debret reconstrói uma nova visão do Rio de Janeiro, na qual
o cotidiano citadino é a base da maior parte de seu acervo de imagens feitas aqui no
43 SILVA, Valeria Piccoli Gabriel da. A pátria de minhas saudades: o Brasil na Viagem Pitoresca e Histórica de Debret. 2001. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2001. p. 35. 44 HOBSBAWM, Eric J. A Era das Revoluções, 1789-1848. 33. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014. p. 406. 45 BURKE, Peter. Testemunha Ocular: o uso de imagens como evidência histórica. São Paulo: UNESP, 2017. p. 71. 46 ROSSI, Aldo. A Arquitetura da Cidade. A individualidade dos fatos urbanos. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 170. 47 BURKE, Peter, op. cit., p. 67 et seq.
25
Brasil, sendo possível realizar um profundo estudo, que ao retornar a Paris, em 1831, se
tornasse o fruto de seus livros de relato de viagem “Viagem Pitoresca e Histórica ao
Brasil”. Debret já tinha em mente a intenção de, após retornar a Paris, publicar seu
livro, e isso justifica a grande parte de seu acervo de imagens voltadas para o cotidiano.
O artista busca o exótico para a publicação como atrativo para sua obra, algo que
chamasse a atenção dos leitores europeus. Debret insere em seu livro as primeiras vistas
do Rio de Janeiro, destacando as paisagens de sua baía, “citada por inúmeros viajantes
como uma das maravilhas do mundo”48, seguindo uma descrição das características
naturais, pelo colorido da vegetação, das árvores frutíferas, palmeiras e as montanhas
em volta da cidade, descrições tão presentes em tantos outros relatos de viajantes, que
“ao adentrar no porto do Rio de Janeiro, (o viajante) experimenta um inenarrável prazer
(...)”49, sendo considerado pelo príncipe da Prússia o lugar mais belo por ele já visto na
Terra.
(...) nem mesmo Constantinopla me extasiou como a primeira impressão do Rio de Janeiro! Nem Nápoles, nem Istambul nem qualquer outro lugar da Terra que conheço, nem mesmo o Alhambra, podem medir-se em mágico e fantástico encanto com a entrada da baía do Rio de Janeiro! Desvendam-se sob nossos olhos maravilhas, que não imaginávamos que houvesse sobre a Terra. Agora era-nos claro por que outrora os descobridores destas terras lhes deram o nome de “Novo Mundo!”50.
Ao pisar em solo brasileiro, Debret se depara com uma cidade movimentada por
vários fatores, tais como, a capital da colônia e mais tarde do império, cidade portuária,
ponto de comércio de outras províncias e porta de entrada para o Brasil, que de acordo
com Leite “durante uma parte do século XIX, os viajantes, mesmo quando desejavam ir
para as demais províncias, detinham-se inicialmente no Rio de Janeiro, para obter
licença e cartas de apresentação das autoridades”51. O cais do porto era o ponto de maior
movimento do Rio de Janeiro, desde as mercadorias que chegavam diariamente da
Europa, das tropas com mercadorias que vinham de outras províncias para serem
embarcadas para a Europa, de tripulantes e marinheiros que desejavam passar algumas
48 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p. 150. 49 FRANÇA, Jean Marcel Carvalho. Viajantes estrangeiros no Rio de Janeiro joanino: antologia de textos (1809-1818). Rio de Janeiro: José Olympio, 2013. p. 106. 50 ADALBERTO, Príncipe da Prússia. Brasil: Amazônia-Xingu. Brasília: Senado Federal, 2002. p. 19. 51 LEITE, Miriam Lifchitz Moreira. Livros de Viagem 1803/1900. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1997. p. 12.
26
horas na cidade, de escravos de ganho ou forros comercializando seus quitutes; enfim, o
porto torna-se o ponto de encontro e de trocas na cidade.
Poucos aspectos da cidade do Rio de Janeiro fugiram à sua observação (...) uma parcela significativa de seus desenhos – principalmente os que envolvem as atividades dos negros de ganho no Rio de Janeiro – tem, por assim dizer, uma dimensão a mais, que confere uma nova realidade às cenas e objetos representados. Nessas aquarelas Debret incorpora formalmente uma dinâmica social típica do Rio de Janeiro, e apenas um ponto de vista que vá além do aspecto puramente documental poderá revelar o quanto essa mudança formal do seu trabalho proporcionará não somente ganhos artísticos, como também uma melhor compreensão da vida na colônia.52
No início de seus trabalhos aqui no Brasil, Debret enfrentou muitos desafios,
deparando-se com muitas pessoas contra a sua vinda e seus planos, gerando muita
intriga entre artistas portugueses e franceses. Com o passar do tempo, Debret começou a
ganhar prestígio, sendo convidado para ser o pintor de Dom João VI e futuramente o de
Dom Pedro I, em que “a concepção artística derivada do neoclassicismo francês foi aqui
retomada na construção iconográfica de temas relativos à sociedade e à política
brasileiras”53. Debret desenvolvia cada vez mais seus trabalhos, retratando a corte, o
cotidiano, os festejos, as cidades, os índios, os escravos, as mulheres e as paisagens
naturais.
Por intermédio da história cultural, foi possível fazer um estudo aprofundado dos
sujeitos sociais contidos nas representações pitorescas, como por exemplo, das imagens
que o artista representou de diversas manifestações religiosas que a elite realizava com
pompa. Já os escravos apresentavam por meio de uma mistura entre seus costumes
ancestrais e os símbolos católicos, uma forma de resistência para manter vivo seus
costumes.
Por isso, vale enfrentar qualquer debate, que leve em consideração essa possibilidade, na esperança de estarmos, de alguma maneira, com nosso trabalho ajudando a construir o futuro, na perspectiva transformadora a que sempre nos propusemos.54
52 NAVES, Rodrigo. A forma difícil: ensaios sobre arte brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. 47. 53 DIAS, Elaine. A representação da realeza no Brasil: uma análise dos retratos de D. João VI e D. Pedro I, de Jean-Baptiste Debret. Anais do Museu Paulista. São Paulo, N. Sér., v. 14, n. 1, p. 244, 2006. 54 FENELON, Déa Ribeiro. Cultura e história social: historiografia e pesquisa. Revista Projeto História, n. 10, p. 73-90, 1993.
27
Nosso objetivo é o de analisar as imagens e seu relato, ambos inseridos em seu
livro de relato de viagem, cenas da corte e do cotidiano da cidade, tendo a rua como
palco dos comércios ambulantes, seus estabelecimentos, e dos festejos sagrados e
profanos. Enfim, a rua é o local de convívio social das mais variadas classes sociais.
Com este viés, cabe aos historiadores um olhar crítico, de um cuidado com o uso de
imagens, pois a fonte iconográfica deve “ser explorada com muito cuidado (...) não é a
realidade histórica em si, mas traz porções dela (...)”55, onde as imagens são múltiplas
sendo recriada a cada novo olhar, e consequentemente analisada de várias formas.
Debret teve sua relevância ao ilustrar o cotidiano do Brasil, os escravos, os índios,
coisas simples do dia a dia, e agora cabe a nós explorar suas imagens, recuperando cada
uma delas da maneira como Debret as representa.
Jean Baptiste Debret deixou muitos registros do cotidiano da vida nesta cidade onde os negros assumiram o papel de principais personagens, surpreendidos muitas vezes no contra fluxo da expectativa presente na ordem escravocrata, onde o negro é mercadoria e força de trabalho por excelência. Debret registrou o duro trabalho dos escravos, nas suas múltiplas variantes, e também os castigos e suplícios aplicados, mas paralelamente a estas cenas, captou muito mais das sensibilidades em jogo do Brasil tropical. Outras se exibem, a registrar momentos de lazer, hábitos da época e da vida nas ruas, tipos físicos, cenas de sedução, formas de trajar, práticas religiosas e festivas.56
Por muito tempo, os historiadores positivistas davam atenção aos feitos do
Estado, que só reproduziam o que já estava escrito de uma cultura erudita, não dando
atenção aos demais sujeitos sociais. Com a nova história, os historiadores vieram a
contrapor e a analisar, com um olhar crítico, dando lugar a esses sujeitos que antes eram
considerados sem cultura, com novas perguntas e debates. “Na última geração, os
historiadores culturais e também os antropólogos culturais demonstraram as fraquezas
dessa abordagem positivista”.57 Com isso, nos dias atuais, há uma grande importância
dos conhecimentos culturais, em que vemos nas pinturas personagens e modos de viver,
uma forma de resistir, e acima de tudo, refletir concepções estabelecidas de olhares
classistas e elitistas de uma determinada época. Como uma quebra deste olhar elitista,
deve-se examinar essas obras pitorescas com criticidade, na “procura do sentido
55 PAIVA, Eduardo França. História & Imagens. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2006. p. 17-19. 56 PESAVENTO, Sandra Jatahy. Uma cidade sensível sob o olhar do “outro”: Jean Baptiste Debret e o Rio de Janeiro (1816 – 1831). Disponível em: <http://nuevomundo.revues.org/3669>. Acesso em: 10 mar. 2017. 57 BURKE, Peter. O que é história cultural? Rio de Janeiro: Zahar, 2005. p. 163.
28
essencial de uma imagem ou de seus sentidos originais”58, como argumenta Ulpiano,
sentidos estes “subordinados às motivações subjetivas do autor”59. O autor da obra de
arte não pinta necessariamente tudo, apenas o que lhe convém.
Leituras críticas acompanham imagens desde o início dos tempos, mas nunca efetivamente copiam, substituem ou assimilam as imagens. “Não explicamos as imagens”, comentou com sagacidade o historiador da arte Michael Baxandall, “explicamos comentários a respeito de imagens”. Se o mundo revelado em uma obra de arte permanece sempre fora do âmbito dessa obra, a obra de arte permanece sempre fora do âmbito da sua apreciação crítica.60
Mesmo que o historiador interprete com um olhar crítico, caberá a ele criar
várias hipóteses, já que a arte e a história não possuem uma verdade universal, sendo
cada uma sempre estudada e recriada com vários instrumentos e técnicas de acordo com
sua época e temática abordada. Como diz um velho ditado: “uma imagem vale por mil
palavras”, sendo vista e definida de várias maneiras e interpretações, como aborda
Santaella:
Poucos fenômenos são tão difíceis de definir quanto a arte. Uma das razões dessa dificuldade provém do fato de que a arte é uma produção histórica. Isso significa que não existe uma definição universal que dê conta de todas as variações da criação artística no tempo e no espaço. A arte varia de acordo com os instrumentos, meios e técnicas de que historicamente dispõe; varia também, de acordo com as funções sociais a que se destina e que não são as mesmas em todas as sociedades; varia, ainda, de acordo com os valores humanos que expressa.61
Assim, nas pesquisas iniciais mediante as fontes históricas, percebemos o
importante papel que Debret desempenhou ao retratar o cotidiano e os sujeitos sociais
que transitavam pelo espaço urbano do Rio de Janeiro, transferindo o cotidiano citadino
do Brasil para as aquarelas. A aquarela começou a ser utilizada pelos artistas no século
XV que tornando-se no início “uma técnica empregada para trabalhos considerados
menos artísticos”62, e com o passar do tempo, foi ganhando espaço e caindo no gosto
dos artistas, que segundo Lima:
58 MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. Fontes visuais, cultura visual, História visual. Balanço provisório, propostas cautelares. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 23, n. 45, p. 11-36, 2003. 59 Idem. 60 MANGUEL, Alberto. Lendo Imagens. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. 29. 61 SANTAELLA, Lúcia. Leitura de imagens. São Paulo: Melhoramentos, 2012. p. 26. 62 LIMA, Valéria. J. -B. Debret, historiador e pintor: a viagem pitoresca e histórica ao Brasil (1816-1839). Campinas: UNICAMP, 2007. p. 143.
29
As aquarelas aparecem oficialmente nas exposições da academia a partir de 1737. Nessa época, a técnica já se expandira bastante na França, mas era muito pouco considerada para ser publicamente praticada pelos artistas de renome. Pouco a pouco, a técnica é introduzida no ensino acadêmico, mesmo que de forma localizada e específica. O público, por sua vez, acostuma-se lentamente a essa forma de expressão; na verdade, podemos dizer que o público descobre, na aquarela, o veículo por excelência de seus ideais artísticos: uma arte simples e espontânea, mais verossímil do que as grandes pinturas, voltada que estava a temas mais populares e de mais fácil compreensão. Além disso, os exemplares dessa técnica tornavam-se mais acessíveis, tanto pelo preço quanto pelo tamanho das obras63.
A opção de Debret pela utilização das aquarelas se traduz pela falta de um
mercado artístico no Brasil, e como viajante adaptou sua arte para a realidade do local
onde iria trabalhar, optando pela utilização de uma arte mais fácil, acessível e rápida, de
acordo com “à moda dos viajantes, isto é, preocupado com o registro hábil e rápido das
cenas que presenciava, na tentativa de captar a porção do real”64. É por meio desses
conceitos que partiremos para esta pesquisa, acompanhando mais de perto os trabalhos
realizados por Debret no Brasil, sendo o pintor histórico da corte, e do cotidiano
brasileiro. Nesta pesquisa, analisaremos as imagens feitas por Debret, para melhor
compreender a forma como o artista retrata o Brasil, sua forma de pintura, já discutido
anteriormente.
Traremos para a discussão, o livro de relato de viagem de Debret, “Viagem
pitoresca e histórica ao Brasil”, que contém suas imagens e os relatos de suas
experiências e dados históricos a respeito do Brasil durante sua estadia de 1816-1831,
que mediante sua narrativa possibilitará compreender o cotidiano oitocentista brasileiro.
Não podemos deixar de mencionar que a fama de Debret no Brasil foi um tanto tardia,
ocorrendo apenas no início do século XX, quando recupera-se lentamente a obra de
Debret, a partir de 1930, graças aos esforços de Raymundo Ottoni Castro Maya, grande
colecionador do Rio de Janeiro, que comprou da sobrinha-bisneta de Debret uma partre
de suas obras. Após aparecerem as primeiras obras de Debret, ao longo dos anos, outras
partes do acervo do artista começaram vir à tona.
Um segundo conjunto significativo de aquarelas e desenhos encontrava-se na posse de outra sobrinha-bisneta de Debret, a espanhola Noy de Serrano, mas aparentemente esse ramo da família não estava em contato com os Morize, que venderam seu acervo para Heymann e nada souberam a respeito da venda realizada no fim dos anos 1930. Foi preciso assim esperar quase trinta anos
63 LIMA, Valéria. J. -B. Debret, historiador e pintor: a viagem pitoresca e histórica ao Brasil (1816-1839). Campinas: UNICAMP, 2007. p. 146. 64 Ibidem, p. 146.
30
para que em 1967 ressurgisse para o Brasil outro conjunto importante de obras de Debret.65
Todo o conjunto de obras de Debret adquiridos por Castro Maya favoreceram os
estudos culturais sobre o Brasil do século XIX, na qual analisaremos algumas imagens
no decorrer dos capítulos. No primeiro capítulo, intitulado “Realeza nos Trópicos: a
corte portuguesa no Brasil e a corte brasileira”, procura-se analisar e interpretar a
maneira como Debret retratou a corte, já que o artista reproduziu cenas de Napoleão
Bonaparte, sendo o pintor da corte francesa. Com isso, compreenderemos a forma como
a corte portuguesa, e futuramente brasileira, era retratada, seja por meio de imagens dos
próprios monarcas, suas festas e coroações da corte, pois Debret “antes da aclamação de
D. João VI, ajudara nos preparativos para comemorar a chegada de D. Leopoldina ao
Brasil, colaborando nos festejos da coroação de D. Pedro I”66, isto é, Debret
acompanhou de perto as festividades da corte, sendo ele o pintor histórico, em que “o
pitoresco é um atributo da pintura de gênero que se opõe em dignidade e em tipo de
objeto à pintura de história, única digna de representar o poder”67.
No segundo capítulo, intitulado “A rua: o palco do comércio”, analisaremos o
discurso de Debret sobre o cotidiano de Rio de Janeiro, principalmente da rua, já que a
cidade carioca era capital da colônia e uma cidade portuária, possuindo um mercado
consumidor enorme. Essa dinâmica nas ruas era feita por escravos de ganho e libertos,
que dependiam do comércio das ruas, tornando-as assim um palco de disputas entre os
mais variados vendedores. Para Knauss, “o campo de estudos da cultura visual pode ser
definido, portanto, como o estudo das construções culturais da experiência visual na
vida cotidiana”68. Se no primeiro capítulo analisamos as obras históricas de Debret, já
que sua função era essa, no segundo e terceiro capítulos analisaremos as imagens do
cotidiano presenciadas pelo artista durante sua estadia no Rio de Janeiro, trazendo
consigo, através das imagens, o universo do cotidiano da cidade, que juntamente com
esse cotidiano podemos “examinar as desigualdades sociais”69, encontradas na
escravidão. Em sua obra, Schwarcz deixara claro essa questão:
65 BANDEIRA, Julio; LAGO, Pedro Corrêa do. Debret e o Brasil: obra completa, 1816-1831. 3. ed. São Paulo: Capivara, 2013. p. 14. 66 NAVES, Rodrigo. A forma difícil: ensaios sobre arte brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. 70. 67 PERRONE-MOISÉS, Leyla. (Org.). Cinco séculos de presença francesa no Brasil: invasões, missões, irrupções. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2013. p. 90. 68 KNAUSS, Paulo. O desafio de fazer História com imagens: arte e cultura visual. ArtCultura, Uberlândia, v. 8, n. 12, p. 97-115, jan./jun. 2006. 69 Idem.
31
O que mais se via, a bater palmas diante dessas casas e a sair por suas portas, eram negros. E também caminhando pelas ruas e cruzando as praças, sentados em caixotes nas esquinas à espera de trabalho, recolhendo água nos chafarizes, fazendo a barba ou cortando o cabelo de um freguês numa escadaria, vendendo acarajé ou pamonha de milho em tabuleiros cobertos por uma toalha branca ou empinando papagaios nos terrenos baldios. Os negros eram os senhores das ruas. Podiam-se encontrar numa área movimentada da cidade uma dúzia de brancos, a pé ou a cavalo, vestidos à europeia, e até com uniformes cheios de dourados, ou uma cadeira de arruar com uma senhora ou uma sinhazinha a esconder-se atrás do cortinado, mas não chegavam a modificar a paisagem.70
No terceiro capítulo, “Rio de Janeiro – a cidade das crenças”, buscamos analisar
o contexto social do Ocidente, marcada pela influência da Igreja Católica nas
manifestações religiosas e populares, que “por trás do estímulo à vida eclesial
comunitária, não há como negar, estava o forte interesse da hierarquia eclesiástica em
controlar seu redil”71, tornando as festividades muitas vezes sagradas e profanas, e
instrumentos de lazer e sociabilidade. Observaremos, neste capítulo as irmandades,
responsáveis pelos festejos no Rio de Janeiro, que tinham o intuito de arrecadar fundo
para as Igrejas e obras de caridades.
No decorrer dos capítulos, perceberemos Debret como pintor, porém de duas
maneiras distintas. O Debret, pintor histórico do primeiro capítulo, obrigado a seguir um
padrão de arte, exaltar sempre o Estado como marca da pintura histórica. E no segundo
e terceiro capítulo, Debret é um pintor livre, que percorre a cidade e retrata o que mais
chama sua atenção, reproduz aquilo que lhe convém, como discutimos anteriormente
com Ulpianno. É nessas cenas das ruas que observamos a diversidade cultural, das
manifestações religiosas populares, da culinária, das vestimentas, enfim, um lugar de
propagação cultural. Consequentemente, podemos observar como Debret construiu a
imagem do Rio de Janeiro, uma cidade fechada das etiquetas palacianas e uma cidade
aberta, tendo a rua como um local da diversidade cultural.
70 SCHWARCZ, Lilia Moritz. História do Brasil Nação. Crise Colonial e Independência:1808-1830. Rio de Janeiro: Objetiva, 2011. p. 49-50. 71 MOTT, Luiz. Cotidiano e vivência religiosa: entre a capela e o calundu. In: SOUSA, Laura de Mello e (Org.). História da vida privada no Brasil: cotidiano e vida privada na América Portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p. 159.
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CAPÍTULO 1 – “REALEZA NOS TRÓPICOS: A CORTE PORTUGUESA NO
BRASIL E A CORTE BRASILEIRA”
1.1 A corte portuguesa no Rio de Janeiro e a “Missão” Artística Francesa
(...) ao Bloqueio Continental, decretado por Napoleão em 1806 com o objetivo de isolar comercialmente a Inglaterra no cenário europeu, o príncipe de Portugal não encontrou melhor saída senão contar com a “proteção” inglesa e partir para sua rica colônia americana, de onde controlaria os negócios do Império, pensava ele a princípio, por um breve tempo72.
A vinda da corte portuguesa para o Brasil, em 1808, foi, sem dúvida, um
importante marco para a história do país. Nunca houve, antes na história, uma corte que
se instalasse em sua colônia para garantir a coroa, fugindo às pressas de Portugal, por
medo de Napoleão Bonaparte. É a partir desta breve introdução que são analisados os
motivos, a partida, a chegada e o período em que a corte portuguesa ficou instalada no
Rio de Janeiro, conhecido como o Período Joanino – período este que acarreta enormes
mudanças na cidade carioca, e até mesmo no Brasil como um todo, mudando
completamente os rumos da história do país. A instalação da corte portuguesa no Rio de
Janeiro é o primeiro passo para a independência, em 1822. Contudo, para isso,
voltaremos um pouco atrás na história para compreender quais foram os motivos que
levaram a corte a fugir para o Brasil.
Na Europa, em 1789, estourava a Revolução Francesa, deixando a França
caótica, e isso se dava em função de uma política mal implementada de um governo
absolutista, pois juntamente com sua nobreza e seus ministros viviam em pomposo
esplendor, com características feudais, e com um rei absolutista usufruíam de vários
privilégios e mordomias, tudo à custa do Estado. Logo abaixo, estava o clero,
desfrutando à custa do Estado, onde “todos os bispos eram nobres”73. Na base
encontrava-se a pobre e sofrida classe de camponeses, artesãos, enfim, as classes que
mantinham a economia e os privilégios dos demais.
72 SCHWARCZ, Lilia Moritz. O sol do Brasil: Nicolas-Antoine Taunay e as desventuras dos artistas franceses na corte de d. João. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. p. 159. 73 HOBSBAWM, Eric J. A era das revoluções, 1798-1848. 33. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014. p. 103.
33
A situação desta classe enorme, compreendendo talvez 80% de todos os franceses, estava longe de ser brilhante. De fato, os camponeses eram em geral livres e não raro proprietários de terras. Em quantidade efetiva, as propriedades nobres cobriam somente um quinto da terra, as propriedades do clero talvez cobrissem outros 6%, com variações regionais. (...) Na verdade, entretanto, a grande maioria não tinha terras ou tinha uma quantidade insuficiente, deficiência esta aumentada pelo atraso técnico dominante; e a fome geral de terra foi intensificada pelo aumento da população. Os tributos feudais, os dízimos e as taxas tiravam uma grande e cada vez maior proporção da renda do camponês, e a inflação reduzia o valor do resto74.
É claramente visível a situação crítica que se encontrava a França, muitos
gastando e poucos trabalhando, resultando no fim do antigo regime francês. A massa
popular inicia a revolução, vários “movimentos vastos, disformes, anônimos, mas
irresistíveis. O que transformou uma epidemia de inquietação camponesa em uma
convulsão irreversível (...)”75. O rei Luís XVI e Maria Antonieta acabaram indo para a
guilhotina, e a nobreza e o clero não tinham mais os privilégios de antes. O marco da
Revolução Francesa foi a Queda da Bastilha, pela massa popular, que “ratificou a queda
do despotismo e foi saudada em todo o mundo como o princípio de libertação”76. É o
símbolo da libertação de boa parte da população francesa, liberdade esta das obrigações
de muitos e o fim dos privilégios de poucos. Inicia-se um novo regime, elevando o
general Napoleão Bonaparte a assumir o poder. Após várias vitórias adquiridas em
nome da França e a conquista de vários territórios, percebia-se em Napoleão a figura
ideal para assumir o poder, em 1799, sendo coroado imperador em 1804.
“No princípio do século XIX, a Revolução Francesa, que modificava a face da
Europa, teve alguma repercussão no Brasil. Os reis tremiam em seus tronos (...)”77,
deixando a Europa de cabeça para baixo. Napoleão começa uma campanha pela Europa,
dominando e conquistando vários países, “derrotou a Áustria e a Rússia na Batalha de
Austerlitz. Grande parte da Europa Ocidental estava agora sob o controle do Império
Francês. Em seguida, Napoleão pôs a Espanha na alça de mira (...)78”. Por onde
Napoleão passava, destronava os antigos reis e elevava ao trono a algum familiar, como
foi o caso na Espanha, onde destronou Fernando VII para dar lugar a seu irmão, José
Bonaparte, garantindo assim sua consolidação e segurança no poder. Após conquistar a
74 HOBSBAWM, Eric J. A era das revoluções, 1798-1848. 33. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014. p. 104. 75 Ibidem, p. 110. 76 Idem. 77 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p. 439. 78 MARRIOTT, Emma. A História do Mundo para quem tem pressa. 3. ed. Rio de Janeiro: Valentina, 2015. p. 129.
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Espanha, seu próximo alvo seria os Bragança de Portugal. O objetivo de Napoleão era
claro: isolar a Inglaterra da Europa – sua inimiga número um. Uma das medidas foi
declarar o Bloqueio Continental, em 1806, proibindo que os demais países europeus
comercializassem com a Inglaterra, que naquela época era a grande potência do mundo,
e que com sua Revolução Industrial dominou os mercados mundiais.
Em terra, seus exércitos pareciam invencíveis, mas, enquanto não lograsse desembarcar na Inglaterra e submeter sua mais determinada inimiga, não conseguiria instaurar, como desejava, uma nova ordem europeia, sob sua liderança. Faltava-lhe para isso o domínio do oceano. Com a esquadra esgarçada após a batalha naval de Trafalgar, não tinha como atravessar o canal da Mancha. Dos mares eram senhores os britânicos. Havia, por isso, que procurar isolá-los em suas ilhas e neutralizar o poder de sua marinha. Com esses objetivos, um Napoleão que vivia dias vitoriosos decretou, em 1806, em Berlim, o bloqueio continental da Grã-Bretanha. Os britânicos não mais deveriam comerciar com os demais europeus, nem ter acesso aos portos destes, o bloqueio impunha-se a todos, inclusive a Portugal, que deveria fechar suas costas aos navios da Inglaterra, sua aliada histórica79.
Essa medida prejudicara muito Portugal, que estava entre os principais
compradores dos produtos ingleses, que desde o Tratado de Methuen, em 1703,
conhecido como o “Tratado dos Panos e Vinhos”, compraria os panos ingleses em
contrapartida à Inglaterra que compraria os vinhos portugueses. Na frente do governo
português estava o príncipe regente Dom João, que desde 1792 governava Portugal em
lugar de sua mãe, a rainha Dona Maria I, que por desequilíbrios mentais encontrava-se
incapacitada para governar. Dom João acabou ficando “em meio ao fogo cruzado”, pois
se apoiasse Napoleão, a Inglaterra cortaria os acordos comerciais e militares, e se
ficasse ao lado da Inglaterra, corria o risco de perder o trono. Segundo Debret, Dom
João foi ficando em neutralidade política, procurando não desagradar nenhum dos dois
lados, mesmo sendo pressionado por ambos.
Em vão Portugal se esforçava em 1807 por permanecer neutro na grande luta travada entre a França e a Inglaterra; repugnava-lhe secretamente romper suas relações íntimas com o governo de Londres e continuava a recolher e a abastecer nos seus portos da Europa e da América as esquadras inglesas em ação contra a França e a Espanha, sua aliada. Nessas circunstâncias, o governo exigiu do regente português uma explicação clara e precisa; mas todas as respostas do regente eram evasivas e as suas promessas, ilusórias; continuava, com efeito, em segredo, a concluir tratados positivos com a Inglaterra, cujo apoio desejava. A corte de Lisboa embaraçou-se nessas postergações e viu-se de repente ameaçada de uma invasão francesa. O embaixador francês exigiu seus passaportes e retirou-se; o perigo era
79 SCHWARCZ, Lilia Moritz; DA COSTA E SILVA, Alberto (Coord.). História do Brasil Nação. Crise colonial e independência: 1808-1830. Rio de Janeiro: Objetiva, 2011. v. 1, p. 23.
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realmente iminente: de um lado o exército francês nas fronteiras de Portugal, de outro a esquadra do Comodoro Sidney Smith bloqueando rigorosamente a foz do Tejo. Lorde Strangford, embaixador inglês, deixou ao regente a alternativa de entregar a esquadra à Inglaterra ou empregá-la imediatamente no transporte da família de Bragança para o Brasil, a fim de sonegá-la à influência do governo francês. Era um momento decisivo para a monarquia; fazia-se necessário optar entre Portugal invadido e o Brasil intacto80.
A política da boa vizinhança de D. João chegou ao fim e Napoleão decidiu
fechar o cerco contra Portugal, pois não restava outra saída para a corte portuguesa, a
não ser fugir para sua colônia na América – o Brasil. A correria nos palácios foi enorme,
o prazo era curto e a mudança era grande, os funcionários de dentro dos palácios
trabalhavam dia e noite guardando e despachando para o porto as tapeçarias, quadros,
pratarias, e tudo aquilo que fosse de valor iria juntamente com a corte para o Brasil.
Além disso, as ordens foram para que as pratarias das Igrejas também fossem levadas,
assim como os livros da imensa biblioteca real. Lisboa tornara-se um caos, um vai e
vem de funcionários reais carregando as mudanças, enquanto boa parte da população
estava abandonada, sem rumo, acompanhando a corte fugir.
(...) afirma-se que o embarque no porto de Belém ocorreu em meio a grande confusão, um espetáculo ao mesmo tempo triste e grotesco: misturavam-se os valetes junto com as senhoras e com soldados, objetos preciosos com peças as mais grosseiras e inúteis. Dom João chegou com seu sobrinho e valido, dom Pedro Carlos de Espanha, sem ter tido quem o recebesse; devido ao aguaceiro da véspera, teve o príncipe de ser carregado nos ombros por policiais, sobre pranchas estendidas na lama. Uma multidão estarrecida acompanhava o movimento. Qual terá sido de fato a atitude dos diversos grupos que formavam a sociedade lisboeta? Em vista da perda iminente do soberano, alguns ficaram pasmados, outros em pânico. (...) de uma maneira ou de outra, fato é que com o rei partiam importantes quadros da corte e da máquina administrativa e igual quinhão do dinheiro que, não sendo muito, ainda girava no reino, suscitando descontentamento naqueles que não puderam ou não quiseram acompanhar a família real. Para os que se arriscaram com seu príncipe na aventura oceânica, restava cantar a glória da medida mais que acertada de seu guia81.
Aproximadamente 15 mil pessoas embarcaram rumo ao Brasil, escoltadas pela
marinha da Inglaterra. Inicia-se uma viagem de aproximadamente dois meses, marcada
pela falta de alimentos e de água potável, e por uma epidemia de piolhos, ocasionando a
raspagem dos cabelos de parte da corte. Enquanto isso, do outro lado do Atlântico, o
Brasil estava totalmente despreparado para receber essa enorme quantidade de pessoas
80 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p. 354. 81 MALERBA, Jurandir. A corte no exílio: civilização e poder no Brasil às vésperas da independência (1808-1821). São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 199-200.
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do dia para a noite, e, ainda, sem uma estrutura que agradasse uma corte acostumada
com teatros, bibliotecas, e os enormes palácios de Lisboa, como o Mafra e Queluz. No
dia 22 de janeiro de 1808, uma sexta-feira, D. João e parte da corte chegavam a sua
colônia, tendo sua primeira parada em Salvador, na Bahia. A chegada da corte já era
esperada por todos, sendo “assunto de todas as conversações, e todas as bocas eram
eloquentes em seu louvor (...) ardiam em desejos de o ver; já as horas nos pareciam dias,
e os dias meses”82. Logo após chegar, D. João já inicia várias medidas e mudanças: a
primeira foi criar uma faculdade de medicina; até então, no Brasil, não havia nem se
quer uma faculdade, enquanto as colônias espanholas vizinhas do Brasil já possuíam
faculdade desde o início da colonização no século XVI. Outra medida que já se
esperava era “a abertura dos portos, mais que um ato de benevolência, representava uma
decorrência inevitável”83, em troca do apoio inglês para a fuga.
A abertura dos portos e a nova dignidade do Rio de Janeiro como capital de todo o império lusitano atraíram para a cidade legiões de negociantes, aventureiros, artistas; também um sem-número de potentados das diversas regiões do Brasil, latifundiários e comerciantes, afluiu à capital à cata de lugares e favores. Os portugueses que vieram para passar pouco tempo sentiam que, a depender da vontade pessoal do rei e dos negócios em que seus pares iam se envolvendo por aqui, a estada não seria tão breve84.
Somente por “boa vontade”, a Inglaterra não faria a escolta da corte até o Brasil,
alguma coisa ela iria querer em troca. Já que não podiam comercializar na Europa, sua
saída foi a nova sede da coroa portuguesa, que por sinal possuía um enorme mercado
consumidor. O Brasil seria tomado por produtos ingleses, chegando ao ponto que, no
Rio de Janeiro, “em agosto de 1808, existia na cidade um importante núcleo de 150 a
200 comerciantes e agentes comerciais ingleses”85, em apenas 8 meses, logo após a
abertura dos portos. Enquanto algumas medidas são adotadas pelo príncipe regente na
Bahia, o Rio de Janeiro se preparava para se tornar a cidade sede da coroa; foi “a cidade
que maiores transformações experimentou. Com a chegada da corte portuguesa sua
população aumentara de chofre talvez em 50%, o que trouxe imensos problemas em
82 SANTOS, Luiz Gonçalves dos. Memórias para servir à história do Reino do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1981. t. 1, p. 163. 83 SCHWARCZ, Lilia Moritz; STARLING, Helena Murgel. Brasil: uma biografia. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. p. 174. 84 MALERBA, Jurandir. A corte no exílio: civilização e poder no Brasil às vésperas da independência (1808-1821). São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 226. 85 FAUSTO, Boris. História do Brasil. 14. ed. São Paulo: EDUSP, 2015. p. 106.
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primeiro momento”86. A notícia da vinda da corte chega a capital da colônia, muitos
comemoram, outros não aceitam com bons grados, mas algo deveria ser feito, como
preparar a cidade para recebê-los, e a tarefa não seria nada simples e fácil, ficando para
o Vice-Rei, o conde dos Arcos, providenciar as medidas necessárias para preparar e
receber a corte.
De acordo com vários viajantes estrangeiros que aqui estiveram, na primeira metade do século XIX, a paisagem urbana brasileira era então bem modesta. (...) a capital era cortada por ruas estreitíssimas, lembrando a mouraria lisboeta, e as vivendas não tinham vislumbre de arquitetura decorativa. Os conventos eram numerosos, mas apenas habitáveis. A talha dourada das Igrejas, inferiores às da Bahia, provocara entre os devotos um estímulo às obras de embelezamento. Bairros como Botafogo ou Catete eram considerados arrabaldes, encerrando casas de campo que procuravam abrigo sob a frondosa vegetação. O Passeio Público representava a melhor área de lazer da população. Pelas ruas, sentados sobre barris, os aguadeiros esperavam sua vez diante dos chafarizes que traziam “a linfa mais cristalina” do Alto da Tijuca. Seus gritos se misturavam ao ruído de escravos, mendigos e ciganos. Nas noites de luar, era à beira d’água que famílias se reuniam, entoando modinhas e lundus ao som de violão. Foi nesse Rio de Janeiro que desembarcaram, a 8 de março de 1808, o futuro monarca e a família real, trazendo em sua bagagem a prataria de uso privado e uma formosa biblioteca para encher horas mortas87.
Sobre o Rio de Janeiro, Debret, em seu livro de viagem, relata que “as ruas são
um pouco estreitas, mas bem traçadas; as principais têm calçadas e continuam até a
extremidade da cidade nova (...) é abastecido de água por diversos aquedutos”88. Se pelo
relato de Debret o problema não era a falta de água, pelos vários aquedutos que possuía
a falta na cidade era de ordem e limpeza, criticada por vários viajantes, sendo
considerado por Luccock, “o mais imundo dos ajuntamentos de seres humanos debaixo
do céu (...)”89. Desde o anúncio da vinda da corte até a sua chegada, seria impossível
construir tantas casas para uma corte de aproximadamente 15 mil pessoas. Cabe agora
ao conde dos Arcos tomar as providências: de início desocupou sua moradia no Paço
dos Vice-Reis para prepará-la para acomodar o príncipe regente e família, mas e o
restante da comitiva? Para os demais, “foi decretada a Lei das Aposentadorias,
intimando os proprietários dos melhores prédios nas imediações do palácio a deixá-los
86 LINHARES, Maria Yedda (Org.). História Geral do Brasil. 9. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 1990. p. 125. 87 PRIORE, Mary del; VENANCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Planeta do Brasil, 2010. p. 153-154. 88 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p. 125-126. 89 LUCCOCK, John. Notas sobre o Rio de Janeiro e partes meridionais do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 1975. p. 90.
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livres para dar abrigo (...)”90, as casas escolhidas eram desocupadas, e em suas fachadas
grafavam-se as iniciais PR, de “príncipe real”. Na mente popular, as duas letras
adquiriram o significado de “ponha-se na rua” ou de “prédio roubado”. Ponha-se na rua
ou não, tais medidas foram “a princípio bem aceitas pela população, disposta a agradar
o príncipe regente (...)”91, achando-se elogiada por dar suas casas para algum membro
da corte. Sem dúvida nenhuma, “a presença da corte em terras brasileiras e o
significativo número de estrangeiros que habitavam e percorriam o país indicavam um
processo irreversível de cosmopolitismo da antiga colônia”92; nesse caso,
principalmente o Rio de Janeiro é que sofreria com tais mudanças. Após muita correria
e organização, finalmente a corte portuguesa chegava ao Rio de Janeiro.
O desembarque da família real portuguesa no Rio de Janeiro, aos 8 de março de 1808, foi mais que uma cerimônia oficial: foi uma festa popular. Os habitantes da capital brasileira corresponderam bizarramente às ordens do vice-rei conde dos Arcos e saudaram o príncipe regente, não simplesmente como o estipulavam os editais, respeitosa e carinhosamente, mas com a mais tocante efusão. Dom João pôde facilmente divisar a satisfação, a reverência e o amor que animavam os seus súditos transatlânticos nos semblantes daqueles que em aglomeração compacta se alinhavam desde a rampa do cais até a Sé, que então era a Igreja do Rosário; os sacerdotes paramentados de pluviais de seda e couro, incensando-o, ao saltar da galeota, com hissopes de ouro, tanto quanto os escravos humildes que de precioso só podiam ostentar num riso feliz as suas dentaduras nacaradas. Marchando gravemente debaixo do imponente pálio escarlate, cujas varas sustentavam o juiz de fora e os vereadores da câmara; pisando a areia branca e vermelha derramada nas ruas do trajeto de mistura com ervas que embalsamavam o ar; ouvindo as fanfarras alegres, os repiques de sino estridentes, os foguetes jubilosos e as salvas de artilharia atroadoras; vendo cair em volta de si uma chuva persistente e odorífera de folhas e flores (...)93.
De acordo com Oliveira Lima, é possível perceber como foi a recepção da corte
em sua nova moradia. As comemorações de boas-vindas não paravam por aí, se
estendiam por toda a noite, “houve iluminações, como na véspera, aumentadas, porém,
com as do Largo do Paço e as das casas do Teles. (...) bem iluminado por muitos copos,
tinha ainda um grande medalhão no arco central, com a efígie de D. João (...)”94. No dia
seguinte, foi a vez de D. Maria I desembarcar, recebida pomposamente como
90 LUCCOCK, John. Notas sobre o Rio de Janeiro e partes meridionais do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 1975. p. 90. 91 CARVALHO, Marieta Pinheiro de. Uma idéia ilustrada de cidade: as transformações urbanas no Rio de Janeiro de D. João VI: (1808-1821). Rio de Janeiro: Odisséia, 2008. p. 82. 92 LIMA, Valéria. J. -B. Debret, historiador e pintor: a viagem pitoresca e histórica ao Brasil (1816-1839). Campinas: UNICAMP, 2007. p. 247. 93 LIMA, Oliveira. D. João VI no Brasil. 4. ed. Rio de Janeiro: TOPBOOKS, 2006. p. 65. 94 NORTON, Luíz. A Corte de Portugal no Brasil: (notas, alguns documentos diplomáticos e cartas da imperatriz Leopoldina). 3. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2008. p. 53.
39
anteriormente foi o príncipe regente, porém, doente e velha, a rainha foi levada
diretamente a seu quarto. No entanto, em algum momento “a festa acaba”, dando início
às mudanças do príncipe regente, pois é hora de “colocar ordem na casa” para dar ares
palacianos à sua nova sede. A máquina pública começa a funcionar, e uma das primeiras
medidas foi a criação dos ministérios, que juntamente com essas criações, o Brasil
começa a inchar com a enorme quantidade de funcionários, nobres que vão surgindo e
sendo nomeados para trabalhar.
Coube à diligente elite econômica fluminense socorrer os cofres públicos nas urgências com a instalação e manutenção da máquina administrativa e da corte parasitária e faminta de distinção que chegou com o soberano. Muitos relatos atestam a presteza e boa vontade com que os locais receberam os estrangeiros, emprestando espontaneamente dinheiro, casas, proporcionando conforto; as respostas dos socorridos não foram sempre, porém, a gratidão e o reconhecimento. (...) outros aspectos decisivos da vinda da corte que marcou a formação do Estado brasileiro foi o deslocamento no eixo do poder (...)95.
Os objetivos de D. João eram claros: agradar a todos. Para se acomodar no Rio
de Janeiro, despachou várias pessoas de suas casas, ao abrir os portos, desagradou os
comerciantes locais. Para amenizar as intrigas, nada melhor que alguns bons agrados e
alguns títulos. A mudança da sede da coroa portuguesa não interferiu na maneira de
governar, muito menos na rotina burocrática das instituições administrativas, ou seja, a
estrutura pública de Lisboa é o espelho na organização do Brasil. Enquanto o príncipe
D. João coloca para funcionar o Estado político e administrativo, também começa a
organizar a infraestrutura do Rio de Janeiro, já que naquele momento era a sede da
coroa.
95 MALERBA, Jurandir. A corte no exílio: civilização e poder no Brasil às vésperas da independência (1808-1821). São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 225.
40
Figura 2 – Jean-Baptiste Debret. Calceteiros. 1824; aquarela sobre papel; 17,1 x 21,1cm; assinada e
datada embaixo à esquerda. Museus Castro Maya, Rio de Janeiro. (...) desde a chegada da corte, foram adotadas medidas para efetuar uma reforma completa (...) o príncipe regente, na sua solicitude pelo bem-estar de seus súditos, zelosamente patrocinou todos os empreendimentos, para neles desenvolver o gosto pelos conhecimentos úteis96.
Entre essas mudanças de infraestrutura, encontrava-se o calçamento da cidade.
Como analisamos anteriormente, no desembarque de D. João, as ruas estavam cobertas
de areia no percurso que teve que fazer até a Igreja, podendo notar-se a situação precária
das ruas; mesmo que as principais vias tivessem algum tipo de calçamento, ainda não
era o suficiente para a capital, devendo assim expandir as obras pela cidade carioca,
“desde então, o calçamento, progressivamente prolongado até a extremidade dos
arrabaldes e as ruas adjacentes, facilitou a circulação das carruagens na cidade (...) num
momento em que a cidade crescia de todos os lados”97. A imagem feita por Debret,
ajuda a entender a maneira como as ruas eram calçadas, e Debret em seu relato
descreve: “emprega-se no calçamento um granito cinzento (...) as calçadas são lajeadas
e o leito das ruas, pavimentado com pedaços de pedra irregulares, cujos interstícios são 96 MAWE, John. Viagens ao interior do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 1978. p. 86. 97 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p. 272.
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enchidos com pequeninos fragmentos”98, isso é possível observar na imagem do lado
direito.
Ao fundo da cena, um pedaço grande de granito é transportado pelos escravos,
que é quebrado, transformando-se em vários pedaços para facilitar a sua colocação.
Além disso, na imagem, podemos observar os instrumentos de trabalho, principalmente
aquele que se encontra ao centro, em primeiro plano, que devido a seu peso serve para
assentar e fixar as pedras no solo. Outro aspecto presente na cena são os detalhes das
casas e solares e principalmente os detalhes da escada e do pequeno muro ao lado
esquerdo da imagem, podendo ser a entrada de uma Igreja ou de um órgão público. Para
a realização de todo esse trabalho, são os escravos os encarregados por esse serviço, que
“executam sob a fiscalização de feitores brancos”99, não apenas pelos calçamentos, mas
por boa parte dos serviços públicos da cidade – são eles os responsáveis, seja
“pavimentando ruas, transportando dejetos, construindo edifícios e tendo como senhores
uma instituição que se fazia representar por funcionários administrativos”100,
responsáveis também pela iluminação da cidade e respectivamente pela limpeza dos
lampiões.
O calçamento na cidade torna-se necessário tanto para o embelezamento do Rio
de Janeiro como para facilitar a circulação de pessoas, para isso “a ampliação da largura
das ruas do Rio de Janeiro tornou-se uma necessidade, após a chegada da corte. Ela era
justificada como forma de deixá-la menos abafada”101. Contudo, a sujeira se acumulava
pelas ruas da cidade, onde “as sarjetas ficam no meio das ruas, com um curso de água
que emite um cheiro de nenhuma maneira agradável”102. O mau cheiro incomodava
àqueles que passavam pelas ruas, sendo constantemente mencionadas pelos viajantes
em seus relatos, como Clarke Abel: “em grande parte da cidade lamentei ter um nariz,
temo não ter dado uma ideia exata de quão nauseabundo é o cheiro que exala da
imundice das ruas”103. Todos esses problemas do Rio de Janeiro deveriam ser
98 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p. 272. 99 Idem. 100 SOUZA, Marina de Mello e. África e Brasil africano. 3. ed. São Paulo: Ática, 2012. p. 94. 101 CARVALHO, Marieta Pinheiro de. Uma idéia ilustrada de cidade: as transformações urbanas no Rio de Janeiro de D. João VI: (1808-1821). Rio de Janeiro: Odisséia, 2008. p. 96-97. 102 WILKES, Charles. Voyage round the world, embracing the principal events of the narrative of the United States exploring expedition. Philadelphia: Geo. W. Gorton, 1849. p. 31. (Tradução nossa). 103 ABEL, Clarke. Narrative of a Journey in the Interior of China: and of a Voyage to and from that Country, in the Year 1816 and 1817. Londres: Longman, Hurst, Rees, Orme, and Brown, 1818, In: FRANÇA, Jean Marcel Carvalho. Viajantes estrangeiros no Rio de Janeiro joanino: antologia de textos (1809-1818). Rio de Janeiro: José Olympio, 2013. p. 122-123.
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resolvidos, pois os objetivos da administração eram claros: o Rio de Janeiro deveria
possuir características das cidades luzes da Europa pós-revolucionária, que teve como
ideal trazer para a humanidade a luz, responsável em ‘clarear’ o pensamento do homem,
pensamento este que surgiu na Europa no século XVIII. Chegaria juntamente com a
corte tais ideias de estéticas, de “construir a sua volta um cenário de beleza (...) para
enquadrar a vida (...)”104.
O Período Joanino não trouxe apenas as melhorias na infraestrutura da cidade,
mas também um ideal de embelezamento artístico e cultural, com o propósito “de
difundir os ideais da razão, a cidade deveria exprimir tanto os seus valores mais
abstratos quanto os mais concretos (...)”105, com o objetivo de oferecer à sua corte as
mesmas distrações e prazeres que possuíam em Lisboa. D. João cria a Biblioteca
Nacional, o Jardim Botânico, o primeiro banco brasileiro, o Banco do Brasil, entre
outros, conforme descreve Linhares:
As consequências de tamanhas mudanças políticas não se fizeram esperar também em outros domínios. O primeiro estabelecimento de ensino superior do Brasil foi instalado em 1808 na Bahia: a Escola Médico-Cirúrgica. Seguiram-se fundações similares no Rio, que passou a ser sede, ainda, das academias Militares e de Marinha, enquanto escolas de Artilharia eram criadas na Bahia e no Maranhão. O Rio sediou também a Biblioteca Real, núcleo inicial da Biblioteca Nacional posterior, e uma Academia que deu origem à atual Escola Nacional de Belas-Artes. A presença da corte encorajou a vinda ao Brasil de várias missões exploradoras, científicas e artísticas europeias. (...) no Rio foi fundada a Impressão Régia – produzindo livros e folhetos, e imprimindo o primeiro jornal a funcionar no Brasil (a Gazeta do Rio de Janeiro) (...)106.
Nesse momento é importante manter a cidade em ordem, por meio de várias
obras de melhorias na infraestrutura, que Naxara considera uma “idéia da cidade tomada
como signo, como discurso que articula e domina – lugar a partir de onde se constrói, se
escreve e se interpreta a cultura do país”107, e é com tais medidas facilitadoras, como
por exemplo a abertura dos portos brasileiros e das iniciativas do príncipe regente de
embelezar a cidade, que foi possível a vinda de estrangeiros, principalmente das missões
científicas, exploradoras e artísticas, começando a pipocar Brasil adentro, “como o
104 CHAUNU, Pierre. A civilização da Europa das Luzes. Lisboa: Editorial Estampa, 1985. v. 2, p. 55. 105 CARVALHO, Marieta Pinheiro de. Uma idéia ilustrada de cidade: as transformações urbanas no Rio de Janeiro de D. João VI: (1808-1821). Rio de Janeiro: Odisséia, 2008. p. 32. 106 LINHARES, Maria Yedda (Org.). História Geral do Brasil. 9. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 1990. p. 124. 107 NAXARA, Márcia Regina Capelari. Sobre campo e cidade – Olhar, sensibilidade e imaginário: em busca de um sentido explicativo para o Brasil no século XIX. 1999. Tese (Doutorado em História) – IFCH - UNICAMP, Campinas, 1999. p. 71.
43
naturalista e mineralogista inglês John Mawe, o zoólogo bávaro Spix e o botânico
Martius, também bávaro, o naturalista francês Saint-Hilaire, autores de trabalhos que
são uma fonte indispensável de conhecimento daquela época”108, sem contar a vinda da
“Missão” Artística Francesa, em 1816, viajantes estes que escreveram e interpretaram o
Brasil em suas obras de viagens, construindo uma história do país por intermédio de
seus olhares.
Com o objetivo de trazer os prazeres que a corte estava acostumada em
Portugal, D. João precisaria de pessoas capacitadas a desenvolver no Brasil algumas
mudanças, e entre estas mudanças estariam as artes, já que a corte estava hospedada na
nova sede, necessitava que estes momentos fossem registrados através das pinturas.
Para Debret, no Brasil, havia uma decadência nessa área, pois nesse período “a arte
estava decadente ou, pelo menos, estacionária (...) abandonara a instrução de sua
colônia americana (...) por sua falta de recursos não protegia mais a arte (...)”109. A
intenção de Debret era demostrar que apenas com a vinda dos artistas franceses, foi
possível trazer a revolução no campo das artes, mas na verdade havia uma arte no
Brasil, mas com a vinda da corte, houve um deslocamento, “momento em que se
constata a origem da produção de retratos voltados ao âmbito oficial”110. Nesse sentido,
o regente contara com o serviço do Conde da Barca, “homem culto, atento às atividades
literárias, mas manifestando igualmente, na perspectiva pragmática da ilustração
portuguesa, um grande interesse pelo progresso científico e tecnológico”111, para
convidar e oferecer uma proposta de emprego para um grupo de artistas franceses. Para
essa empreitada, partiu do Marquês de Marialva (ministro das Relações Exteriores de
Portugal, em Paris) “o convite para a realização de um projeto de ensino artístico no Rio
de Janeiro. Marialva, provavelmente influenciado pelo iluminado ministro conde de
Barca e pelos relatos do engenheiro e naturalista Alexandre von Humboldt, teria sido o
articulador da proposta (...)”112. A respeito desse grupo de ministros responsáveis pelo
projeto da vinda dos artistas franceses, Debret não poupou elogios.
108 FAUSTO, Boris. História do Brasil. 14. ed. São Paulo: EDUSP, 2015. p. 109. 109 TAUNAY, Afonso de Escragnolle. A missão artística de 1816. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1983. p. 49. 110 DIAS, Elaine Cristina. Debret, a pintura de história e as ilustrações de corte da “Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil”. 2001. Dissertação (Mestrado em História) – UNICAMP, Campinas, 2001. p. 48. 111 VAINFAS, Ronaldo (Org.). Dicionário do Brasil imperial. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002. p. 50. 112 DIAS, Elaine. Correspondências entre Joachim Le Breton e a corte portuguesa na Europa. O nascimento da Missão Artística de 1816. Anais do Museu Paulista. São Paulo, N. Sér. v. 14, n. 2, p. 304, 2006.
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(...) Marquês de Marialva, escudeiro-mor do rei, por todos estimado em virtude de sua doçura e generosidade, distinguiu-se na diplomacia pelo seu devotamento à glória e à verdadeira prosperidade de seu país, bem como à do Brasil, residência adotiva da corte de Portugal, que aí fundou o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. Ministro plenipotenciário junto à corte de França em Paris, aí organizou um círculo íntimo de homens extremamente notáveis pelos seus conhecimentos e cultura. Entre estes se encontrava o Barão de Humboldt, um dos membros do Instituto de França que, em 1815, lhe inspiraram o desejo de fundar no Rio de Janeiro uma academia real de belas-artes113.
Para a criação dessa academia, foram convidados alguns artistas franceses que
“ligados a Napoleão sentiam os efeitos do retorno da Monarquia dos Bourbon ao poder,
interessada em tirar de cena toda e qualquer lembrança do Corso”114, como todos os
membros da “missão” eram simpatizantes de Bonaparte, que trabalharam durante seu
reinado, incumbidos de retratar cenas vitoriosas de suas batalhas. Contudo, com a queda
de Napoleão, estes passaram a ser perseguidos e a única saída era aceitar o convite de
vir ao Brasil. É neste contexto que referimos a “missão” entre aspas, sendo um termo
criado pela historiografia, que até hoje não se chegou a uma conclusão definitiva deste
termo, dividindo opiniões. Segundo Pedrosa, é preciso desmistificar o que a
historiografia brasileira chamou de “missão artística”, considerando ser uma lenda.
Há, hoje, uma lenda para o que se convencionou designar de “missão francesa”, ou aquele punhado de artistas e cidadãos da França napoleônica que embarcaram para o Brasil em janeiro de 1816, depois de tratos com o encarregado de negócios de Portugal em Paris e trazendo cartas de recomendação do mesmo diplomata para os ministros do rei.115
Ainda sobre o contexto da “missão”, Schwarcz argumenta que “a palavra missão
pressupõe uma ideia de obrigação, compromisso e dever por parte dos “missionários”,
tarefas que não se aplicavam, exatamente, a esse contexto preciso”116. Além de
perseguidos, esses artistas encontravam-se desempregados e desgostosos com a França,
e na busca por uma saída da situação pela qual passavam em Paris, surgiu a
oportunidade de oferecerem seus serviços para trabalhar no Brasil, ou seja, foi uma
questão pessoal. Tal proposta de trabalho foi aceito pelos ministros de D. João, como
113 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p. 612. 114 LIMA, Valéria. J. -B. Debret, historiador e pintor: a viagem pitoresca e histórica ao Brasil (1816-1839). Campinas: UNICAMP, 2007. p. 89. 115 PEDROSA, Mário. Da Missão Francesa – Seus Obstáculos Políticos: In: ARANTES, Otília Beatriz Fiori (Org.). Acadêmicos e Modernos III. São Paulo: EDUSO, 1998. p. 41. 116 SCHWARCZ, Lilia Moritz. O sol do Brasil: Nicolas-Antoine Taunay e as desventuras dos artistas franceses na corte de d. João. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. p. 180.
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citamos anteriormente, e o convite foi feito com o propósito de criar uma Academia de
Artes no país, fugir das perseguições e, consequentemente, com a criação da Academia,
encontrariam trabalho.
Os terríveis abalos pelos quais passou a França, invadida em 1814 e 1815, ameaçada de desmembramento, a queda do “Lobisomem da Córsega”, a volta dos Bourbons, todo esse conjunto de pasmosos acontecimentos, sucedidos em tão pequeno lapso de tempo, a numerosíssimos franceses desnorteava. Viram-se em situação insustentável muitos daqueles que haviam sido os corifeus do regime deposto pela invasão estrangeira. Entre eles numerosos artistas e intelectuais.117
Caso realmente fosse uma “missão”, eles receberiam todos os benefícios do
governo, e na realidade os próprios artistas pagariam suas passagens. Além disso,
também caberia ao governo francês fazer as negociações, porém, “os ministros de Luís
XVIII não se envolveram no caso. Conseguiu Lebreton dentro de curto prazo, constituir
o estado-maior da sua missão (...)”118. Após montar toda a equipe que iria compor a
colônia, o líder, Joachim Lebreton “(administrador das Obras de Arte no Musée du
Louvre desde 1798, convertendo-se em colaborador de Vivant Denon na organização
das coleções, em 1802)”119, possuía um histórico com as artes durante o regime de
Napoleão Bonaparte, onde “ocupou cargos para organizar uma política cultural que
estivesse em sintonia com uma sociedade que nascia sob o signo da revolução e em
nome do cidadão”120. Ficou sendo ele o responsável por negociar o custeio da viagem
com o Marquês de Marialva, escrevendo-lhe, “que alguns artistas de merecimento e
moralidade conhecida, desejavam estabelecer-se no Brasil, mas não tendo meios para
custear a passagem e as despesas de instalação, esperavam obter do governo lusitano
alguma ajuda de custo e a certeza real”121.
O pedido foi negado pelo Marquês, prometendo apenas bom acolhimento,
hospedagem e terras, mas “não estava, porém, autorizado a lhes pagar a passagem”122.
Após várias tentativas, eis que surge um negociante rico, disposto a pagar parte das
passagens, ficando o resto do custo de responsabilidade do Marquês de Aguiar e do 117 TAUNAY, Afonso de Escragnolle. A missão artística de 1816. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1983. p. 14. 118 TAUNAY, Afonso de Escragnolle. op. cit., p. 12 et seq. 119 DIAS, Elaine. Correspondências entre Joachim Le Breton e a corte portuguesa na Europa. O nascimento da Missão Artística de 1816. Anais do Museu Paulista. São Paulo, N. Sér. v. 14, n. 2, p. 304, 2006. 120 SOUZA, Iara Lis Carvalho. Pátria Coroada: o Brasil como corpo político autônomo - 1780-1831. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1999. p. 288. 121 TAUNAY, Afonso de Escragnolle, op. cit., p. 14 et seq. 122 Idem.
46
Conde da Barca. Ao contrário de Taunay, Debret, por ter se tornado pintor da corte, não
contrariaria o governo para o qual trabalhava, afirmando que os artistas franceses
tiveram o apoio do governo, pois “o embaixador português entregou ao Sr. Lebreton a
importância de dez mil francos para o pagamento das passagens dos artistas franceses
(...)”123. Todavia, novos estudos vêm ganhando força a respeito da teoria do historiador
Taunay, sobre que os artistas não tiveram nenhum apoio do governo para virem ao
Brasil, em que Dias ressalta ser necessário fazer uma pesquisa profunda em alguns
documentos no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Lisboa, “os quais colocam
em dúvida as palavras de Debret, reforçam as teses anteriores de Taunay e Pedrosa, e
jogam novas luzes (...)”124.
Para Lima, os artistas receberam o convite sem um caráter oficial, e aceitaram
por questões movidas “por intenções nem sempre fáceis de identificar, mas certamente
de cunho muito pessoal, decidiram pela travessia”125. Pronto, “estava organizada a
expedição artística”126, e no dia 26 de março de 1816, a bordo do navio Calpe, chegaram
do Havre de Grace, ao porto do Rio de Janeiro. Acabava de chegar ao Brasil, a colônia
Lebreton, composta dos mais variados artistas de diferentes ofícios.
(...) os artistas Nicolas-Antoine Taunay (pintor do mesmo Instituto), Auguste-Marie Taunay (escultor), Jean-Baptiste Debret (pintor de história e decoração), Grandjean de Montigny (arquiteto), Charles-Simon Pradier (gravador), François Ovide (engenheiro e mecânico, que trazia como companhia um serralheiro com seu filho e um carpinteiro de carros), François Bonreps (assistente de Auguste- Marie), Louis Symphrorien Meunié (especialista em corte de pedra e materiais de construção, assim como assistente de Grandjean de Montigny), Nicolas Maglioti Enout (mestre serralheiro), Jean-Baptiste Level (mestre ferreiro e perito em construção naval), Louis Joseph e Hippolyte Roy (pai e filho, ambos carpinteiros e fabricantes de carretas e rodas), Charles Louis Levasseur (auxiliar de Grandjean), Fabre e Pilite (surradores de peles e curtidores), e finalmente Dillon, secretário e homem de confiança de Lebreton, a colônia chegou ao Brasil. Eram no total cerca de quarenta pessoas que aportaram, depois da viagem no Calphe; isso contabilizando as famílias que acompanhavam os profissionais127 .
123 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p. 448. 124 DIAS, Elaine. Correspondências entre Joachim Le Breton e a corte portuguesa na Europa. O nascimento da Missão Artística de 1816. Anais do Museu Paulista. São Paulo, N. Sér. v. 14, n. 2, p. 305, 2006. 125 LIMA, Valéria. J. -B. Debret, historiador e pintor: a viagem pitoresca e histórica ao Brasil (1816-1839). Campinas: UNICAMP, 2007. p. 98. 126 TAUNAY, Afonso de Escragnolle. A missão artística de 1816. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1983. p. 17. 127 SCHWARCZ, Lilia Moritz. O sol do Brasil: Nicolas-Antoine Taunay e as desventuras dos artistas franceses na corte de d. João. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. p. 197.
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Sobre a chegada ao Brasil, Debret descreve as primeiras vistas do Rio de
Janeiro, e assim se inicia sua longa narrativa sobre o país, em especial sobre a cidade do
Rio, onde permaneceu durante seus quinze anos de permanência no Brasil.
(...) finalmente, pelas oito e meia da manhã, percebemos no horizonte a costa do Rio de Janeiro (...) depois de ter cuidadosamente evitado diversas correntes que fazem, às vezes, ultrapassar o ponto da costa que procurávamos, chegamos à entrada da baía ao cair do sol (...) ancoramos a duas distâncias de tiro de fuzil do rochedo cônico chamado Pão de Açúcar. Nesse momento o sinal de fechamento do porto já fizera cessar as salvas, e a obscuridade da noite só nos permitia perceber a silhueta da vegetação que coroa as montanhas circundantes. Parados a três quartos de légua da cidade, o silêncio das florestas permitia-nos ouvir, embora fracamente, os sons dos sinos, e o nosso olhar podia também distinguir, no horizonte longínquo, o brilho dos fogos de artifício que contribuíam para tornar solenes várias festas de Igreja prolongadas até tarde da noite. (...) não nos sentimos menos felizes, a 26, ao sermos acordados às cinco horas da manhã pelo tiro de canhão que assinala a abertura do porto, fiel indicador da aurora que ia clarear aos nossos olhos, pela primeira vez, a entrada interior da magnífica baía do Rio de Janeiro, citada por inúmeros viajantes como uma das maravilhas do mundo (...) os artistas já brasileiros, mas sempre franceses de coração, deixaram sozinhos o navio, na impaciência de contemplar as novidades dessa nova pátria, e abordaram no cais do Largo do Palácio a 26 de março de 1816, às seis e meia da tarde128.
Em seu relato, Debret já demonstrava um grande interesse pelo Rio de Janeiro,
maravilhado pela beleza natural, mas sua nova vida estava apenas começando, e o
cotidiano citadino era seu ateliê a céu aberto, deixando de lado a pompa monárquica
pelo cotidiano da rua, “Debret deixa de ser um viajante para se identificar com o povo
brasileiro”129. De acordo com Souza, “esses artistas viveram a experiência das festas
revolucionárias em Paris e os grandes funerais, o que lhes dava um conhecimento e uma
sensibilidade para o tema festas, sua importância e vitalidade política, bem como para a
força da praça pública”130. Afinal, por que o interesse dos artistas franceses sobre o
Brasil? Os fatores que levaram os artistas a escolher o Brasil, foram a calmaria que aqui
se encontrava, uma colônia que acabava de ser elevada à categoria de Reino, que pela
presença da corte portuguesa tornava-se um atrativo por parte da corte de registrar, por
meio das artes, o período de permanência no Brasil, diferentemente dos países de
colonização espanhola que se encontravam em dificuldades de emigração, devido às
128 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p. 150-152. 129 LEENHARDT, Jacques. Jean-Baptiste Debret: Um Filho da Revolução Francesa diante do Brasil Nascente. In: PERRONE-Moisés, Leyla (Org.). Cinco séculos de presença francesa no Brasil: invasões, missões, irrupções. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2013. p. 90. 130 SOUZA, Iara Lis Carvalho. Pátria Coroada: o Brasil como corpo político autônomo - 1780-1831. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1999. p. 286.
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“consequências das “possessões” e “agitações” que conturbavam esses países”131. Dias
se refere aos processos de independência que esses países estavam passando, criando
uma incerteza por parte dos artistas de desenvolveram seus projetos voltados às artes.
Entretanto, mal sabiam os artistas franceses, ao chegarem ao Brasil, a enorme tarefa que
lhes esperavam; com a coroação de D. João, contudo, suas experiências são ainda
maiores, já acostumados com as festas e cerimônias napoleônicas.
1.2 As coroações: o pintor do pai e do filho
D. Maria I expirara a 20 de março de 1816: findara aos 82 anos o seu longo vegetar. A 23 de fevereiro, na sua minuciosa crônica à família dos acontecimentos da corte do Rio, dava Marrocos notícias da gravidade da sua condição havia mais de um mês. De dia em dia a sua moléstia se tem agravado muito, principiando por uma disenteria, febre, fastio; e daqui tem prosseguido a uma insensibilidade notável da cintura para baixo, inchação de pés e mãos, e olhos quase sempre fechados (...)132.
D. João, em 16 de dezembro de 1815, “na véspera da comemoração do 81º
aniversário de d. Maria I, (...) elevou o Brasil à condição de Reino Unido a Portugal e
Algarves, e transformou a colônia em sede do Império português”133, era a última
homenagem e participação da rainha nos atos políticos, alguns meses depois, além dos
problemas mentais, e vários outros agravamentos de saúde, D. Maria I começou a
deixar, cada vez mais, o trono do império português para seu filho João, até que em 20
de março, faleceu a rainha de Portugal. Iniciaram-se os preparativos fúnebres da
monarca, que foi coberta com vestes de várias ordens militares para celebrar o beija-
mão da defunta. Mesmo tendo uma estadia curta no Rio de Janeiro, de apenas oito anos,
sem ser envolvida publicamente em questões políticas e demais assuntos da corte, a
morte da rainha gerou um clima de luto na capital sede da coroa, com direito a inúmeras
honras fúnebres. Após o anúncio da morte da rainha, “saíram à rua confrarias e clero,
secular e regular, com a cruz alçada e entoando ladainhas e preces, indo todos rojar-se
131 DIAS, Elaine. Correspondências entre Joachim Le Breton e a corte portuguesa na Europa. O nascimento da Missão Artística de 1816. Anais do Museu Paulista. São Paulo, N. Sér., v. 14, n. 2, p. 306, 2006. 132 LIMA, Oliveira. D. João VI no Brasil. 4. ed. Rio de Janeiro: TOPBOOKS, 2006. p. 583-584. 133 SCHWARCZ, Lilia Moritz; STARLING, Helena Murgel. Brasil: uma biografia. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. p. 189.
49
na Real Capela”134. As cerimônias foram presididas pelo núncio do papa e
acompanhados por várias autoridades da Câmara, do Senado e da nobreza.
Foram vários dias de ritos fúnebres, até que finalmente no dia 23 de abril, um
mês depois da morte de D. Maria I, foi celebrada as exéquias na Real Capela, “forrada
de alto a baixo de negro avivado de ouro que se casava com os entalhamentos dos
altares (...) a cerimônia no próprio dia prolongou-se das 10 ½ da manhã às 4 da tarde
(...)”135, mas o luto só se encerraria um ano depois. O clima de luto tomou conta da
cidade de tal maneira, que ao chegar ao Brasil, Debret descreve que, entrando na baía do
Rio de Janeiro, “ouvimos ainda os últimos ribombos fúnebres do canhão, que lembrava
de cinco em cinco minutos à população a morte recente da rainha de Portugal, inumada
no Rio de Janeiro há seis dias”136. Mal sabiam os artistas franceses a grande mudança
que a morte da rainha traria para o quadro político do Brasil, dando as cerimônias de
‘nojo’ lugar para as cerimônias de gala, onde “o governo já se ocupava dos projetos de
festas relativas à circunstância e que, por conveniência política, deveriam não somente
servir à aclamação do soberano do novo Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves,
mas ainda ao casamento do Príncipe Real Dom Pedro (...)”137.
O evento nada comemorativo que recebe os franceses no Rio de Janeiro – a morte da rainha de Portugal – acabaria por render aos artistas suas primeiras ocupações no país. Era preciso organizar, com brilho e fausto, a cerimônia de aclamação do novo monarca brasileiro, celebração para a qual logo se empregaram os talentos franceses. O momento marcava, para Debret, o começo de uma longa e movimentada carreira como pintor da Corte portuguesa138.
Para os preparativos da aclamação foram designados “Debret e o arquiteto
Grandjean de Montigny, já habituados às festas de consagração política anteriormente
realizadas em Paris sob a direção dos arquitetos Percier e Fontaine, colocavam em
prática a experiência francesa nas festas luso-brasileiras”139. A coroação marcada para o
ano de 1817 seria adiada para depois do casamento de D. Pedro, devido à Revolução
134 LIMA, Oliveira. D. João VI no Brasil. 4. ed. Rio de Janeiro: TOPBOOKS, 2006. p. 585. 135 Idem. 136 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p. 150. 137 Ibidem, p. 449. 138 LIMA, Valéria. J. -B. Debret, historiador e pintor: a viagem pitoresca e histórica ao Brasil (1816-1839). Campinas: UNICAMP, 2007. p. 99. 139 DIAS, Elaine. A representação da realeza no Brasil: uma análise dos retratos de D. João VI e D. Pedro I, de Jean-Baptiste Debret. Anais do Museu Paulista. São Paulo, N. Sér., v. 14, n. 1, p. 245, 2006.
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Pernambucana, o que faria tardar a subida ao trono, aumentando o tempo dos artistas
para a preparação da aclamação.
Depois de sufocada a revolta, agora finalmente D. João seria aclamado rei e
coroado, mas afinal, quem foi D. João VI? Para alguns, era um monarca inseguro que só
comia frango; para outros, um monarca que se passava de bobo, porém, na realidade,
era muito esperto e engenhoso, chegando ao ponto em que, Napoleão, em seu exílio,
disse a respeito de D. João VI: “foi o único que me traiu”. Enquanto muitos reis caiam,
o monarca português contornou a situação, ficando “longe dos campos de batalha e dos
horrores da guerra, livres do desespero do abandono e do estigma do conluio, mas
também perto da Coroa”140. Para Varnhagem “d. João VI era bom, religioso, justo,
honrado, fino, sem ambições, dotado de felicíssima memória, apreciava os sermões, o
pregador e a sua retórica. (...) foi um perfeito modelo de um soberano amante do
povo”141. Debret descreve D. João da seguinte maneira:
Dom João VI, nascido em Lisboa em 1767, desposou a infante de Espanha, Dona Carlota, foi regente de Portugal com a idade de trinta e oito anos e aclamado, no Rio de Janeiro, soberano do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves com quarenta e nove anos; perdeu, em seguida, a coroa do Brasil com cinquenta e cinco anos e morreu em Lisboa, em 1825, com cinquenta e oito anos. (...) o rei, bom cavaleiro na mocidade, tornando-se obeso no Brasil, abandonou a equitação. Era de temperamento sanguíneo e de pequena estatura; tinha as coxas e as pernas extremamente gordas e as mãos e os pés muito pequenos. Parcimonioso para consigo mesmo, mostrou-se, ao contrário, generoso para com seus servidores. A timidez de seu caráter muito prejudicou a sua bondade e a sua afabilidade, e no entanto ela atingia a superstição. Muito devoto e amador de música, levou o compositor Marcos, seu maestro da capela, a misturar à música religiosa o brilho da ópera-bufa, para maior encanto de suas beatas distrações. Ciumento e rancoroso (...)142.
Debret, em seu relato, descreve D. João VI um monarca de baixa estatura, fraco,
tímido, ciumento, rancoroso e obeso, sendo obrigado a abandonar a equitação pela
obesidade. Além disso, refere-se ao monarca como generoso para seus servidores,
destacando o exagero de camareiros e reposteiros próximos do rei, considerado por
Debret de abusos da velha corte, totalmente contrário com os ideais da política
revolucionária, sendo “o desejo dos franceses em afastar os privilégios do Antigo
140 SCHULTZ, Kirsten. Versalhes tropical: império, monarquia e a Corte real portuguesa no Rio de Janeiro, 1808-1821. Tradução de Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. p. 121. 141 REIS, João Carlos. As identidades do Brasil: de Varnhagen a FHC. 9. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007. p. 46. 142 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p. 499.
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Regime e instaurar um governo pelas luzes”143. Destaca também o caráter religioso do
rei, relatando ser ele muito devoto, tendo como distrações as beatas músicas religiosas.
Além de relatar em seu livro de viagem as características de D. João VI, era também o
pintor histórico do monarca, sendo responsável por retratar a imagem oficial do novo rei
português, já que na “missão” francesa “ele era o pintor de quadros históricos”144. O
grande interesse por parte do monarca por um pintor histórico é o papel que o artista
exerce, “por meio da realização de aquarelas e pinturas, seja na produção das
decorações para a exaltação daquele momento político”145. Por trabalhar a serviço do
Estado, o artista trabalha sob encomenda, “comprometido com a tematização da nação e
da política, narrando grandes atos e seus heróis”146. Para o Estado, não importa a
estética da obra histórica, afirma Lima, mas, sobretudo, “sua função histórica na
construção de uma imagem que se queria, naquele momento, propagar e perpetuar
(...)”147, a imagem do retratado.
143 DIAS, Elaine Cristina. Debret, a pintura de história e as ilustrações de corte da “Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil”. 2001. Dissertação (Mestrado em História) – UNICAMP, Campinas, 2001. p. 52. 144 TREVISAN, Anderson Ricardo. A redescoberta de Debret no Brasil modernista. São Paulo: Alameda, 2015. p. 49. 145 DIAS, Elaine. A representação da realeza no Brasil: uma análise dos retratos de D. João VI e D. Pedro I, de Jean-Baptiste Debret. Anais do Museu Paulista. São Paulo, N. Sér., v. 14, n. 1, p. 245, 2006. 146 ZANIN, Larissa Fabrício. A corte portuguesa e o escravismo no Brasil sob o olhar de Debret. 2007. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal do Espírito Santo, Centro de Ciências Humanas e Naturais, 2007. p. 24. 147 LIMA, Valéria. J. -B. Debret, historiador e pintor: a viagem pitoresca e histórica ao Brasil (1816-1839). Campinas: UNICAMP, 2007. p. 77.
52
Figura 3 – Jean-Baptiste Debret. Retrato de D. João VI. 1817; óleo sobre tela; 57 x 42,8cm. Acervo do
Museu Nacional de Belas Artes/ IPHAN/ MINC, Rio de Janeiro.
Ao pintar a imagem de D. João VI, atendendo a todas as suas exigências, Debret
faz uma crítica às tradições portuguesas, pela “repugnância desse povo pelas inovações
e a consolante compensação de reproduzir no Brasil o simulacro das antigas maravilhas
da metrópole que constituíam as mais seguras garantias da exata imitação da forma e
dos detalhes das insígnias reais”148. Debret, pelo seu histórico no mundo das artes,
acostumado com os novos costumes trazidos por Napoleão, que rompeu com as antigas
tradições, enxerga nas vestimentas de D. João VI, uma imitação das vestimentas dos
antigos monarcas europeus absolutistas do século XVII. Nessas vestimentas, verifica-se
a semelhança com os retratos de Luís XIV, feitas pelo pintor François José Hyacinthe
Rigaud e Luís XVI de Antoine-François Callet, considerando Debret que “todos os
abusos da uma velha corte (...)”149 acompanharam D. João VI no Brasil, referindo-se aos
costumes antigos trazidos por ele, e que D. Pedro I foi um “reformador cuidadoso dos
148 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p. 510. 149 Ibidem, p. 499.
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abusos que o haviam revoltado desde a infância na corte de seu pai”150, extinguindo tais
costumes considerados arcaicos somente com a independência do Brasil.
Mesmo considerados arcaicos, Debret não deixou de relatar minunciosamente as
vestimentas do novo rei português, formada por um “manto de cauda com gola dobrada;
é de veludo vermelho forrado de pano prateado. Magnífica presilha enfeitada de
enormes diamantes fecha o manto no peito. O fundo, de veludo vermelho (...)”151, nada
apropriado para o Rio de Janeiro com 40 graus de temperatura. Mas isso não importa
para o monarca, o sentido de suas vestimentas é relembrar “a imponência da majestade
e do próprio reino (...)”152, trazendo no manto as cores nacionais portuguesas,
enriquecido com os símbolos “emblemáticos dos três reinos unidos: a torre bordada a
ouro, a esfera celeste também bordada a ouro sobre o fundo azul-celeste e o escuto de
igual fundo sobre o qual se vêem as cinco quinas”153. Além das vestimentas e da pose
da monarca, o cenário também carrega consigo a arquitetura clássica, “representada pela
grande coluna dórica, à maneira dos retratos tradicionais de realeza (...)”154, realeza esta
confirmada pela maneira que Debret pintou D. João VI, todo iluminado, reafirmando o
seu caráter de realeza divina e suprema.
Tanto no retrato de Dom João VI como na imagem de sua aclamação que
analisamos a seguir, o rei não usa a coroa, que segundo a tradição portuguesa, com a
morte de Dom Sebastião na África em 1580, o rei “foi levado ao céu com a coroa à
cabeça e deve trazê-la novamente a Lisboa”155, e após a morte de D. Sebastião, os reis
portugueses não utilizaram mais a coroa. Debret também mantém esse costume ao
nomear as obras da “coroação” de D. João VI, usando o termo aclamação e não
coroação, atendendo a tradição dos Bragança. Enquanto Debret ficava ocupado
retratando o novo rei, os demais artistas franceses exerciam todos os demais
preparativos solicitados, para que a cidade do Rio de Janeiro estivesse impecável para as
cerimônias, e “no dia 6 de fevereiro de 1818 realizou-se, com pompa imperial, o ato da
gloriosa aclamação de D. João VI como rei de Portugal, Brasil e Algarves”156, e no
150 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p. 501. 151 Ibidem, p. 510. 152 DIAS, Elaine. A representação da realeza no Brasil: uma análise dos retratos de D. João VI e D. Pedro I, de Jean-Baptiste Debret. Anais do Museu Paulista. São Paulo, N. Sér., v. 14, n. 1, p. 250, 2006. 153 DEBRET, Jean-Baptiste, op. cit., p. 510-511 et seq. 154 DIAS, Elaine, op. cit., p. 250 et seq. 155 DEBRET, Jean-Baptiste, op. cit., p. 499 et seq. 156 NORTON, Luíz. A Corte de Portugal no Brasil: (notas, alguns documentos diplomáticos e cartas da imperatriz Leopoldina). 3. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2008. p. 102.
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grande dia “a cidade amanheceu numa alacridade de bandeiras, repiques de sinos e
salvas, todo o porto riscado pelas flâmulas das fragatas portuguesas, austríacas e
inglesas (...)”157. Para este momento, foram construídos vários monumentos no Rio de
Janeiro, para que a ocasião fosse sempre relembrada. Debret descreve cada monumento
erguido, já que foi todo arquitetado pelos artistas franceses.
À beira do cais, bem em frente da entrada principal do palácio, a Câmara fez erigir, a suas expensas, um templo em revelo consagrado a Minerva e dedicado ao rei. (...) no centro do pedaço de cais defronte do palácio, diante do chafariz, a Junta Real mandara erigir um arco de triunfo. (...) esses mesmos negociantes haviam mandado erigir no centro do largo um obelisco de estilo egípcio. (...) Sua Exa., o intendente-geral da polícia, protetor e diretor das festividades, mandara transformar uma grande parte do vasto Campo de Sant’Ana em um jardim muito espaçoso, cercado de uma sebe e de um fosso (...)158.
Figura 4 – Jean-Baptiste Debret. Cerimônia da faustíssima aclamação de S. M. o Senhor D. João VI.
1818; tinta e aquerela em sépia; 28,5 x 42,1cm. Museus Castro Maya, Rio de Janeiro. O momento escolhido é o da partida do rei, em que aparece ao balcão central do edifício para mostrar-se ao povo e receber as primeiras homenagens, antes de descer para a Capela Real a fim de assistir ao Te Deum com que termina a cerimônia da aclamação. Percebe-se, através da abertura das arcadas, na primeira janela à esquerda, o trono; na segunda, a tribuna da família real, das damas da corte e das legações estrangeiras; na terceira, antes do fim, vê-se a porta de comunicação que conduz à Capela Real e pela qual deve passar o cortejo (...)159.
157 NORTON, Luíz. A Corte de Portugal no Brasil: (notas, alguns documentos diplomáticos e cartas da imperatriz Leopoldina). 3. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2008. p. 102. 158 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p. 408-410. 159 Ibidem, p. 606.
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Com todas essas obras, a mais imponente foi a nova fachada do palácio, “a
famosa varanda ou galeria que Debret desenhou na sua famosa obra, com dezoito
arcadas, os troféus e as estátuas da decoração, e ao centro a tribuna em projeção
destinada à cerimônia”160. A Figura 4, feita por Debret, mostra a famosa varanda
segundo Oliveira, no momento da aclamação pública ao novo rei, na presença de uma
multidão que o saudava. A varanda está toda ocupada pela corte e pelo clero, que após
as cerimônias internas no palácio, marcada por missas na Real Capela e uma aclamação
apenas para a nobreza, chegava a vez de uma cerimônia pública. A aclamação de D.
João VI é marcada por vários aspectos simbólicos, políticos e de elevada importância.
Primeiramente, por se tratar da aclamação de um monarca europeu nos trópicos.
Segundo, pelos protocolos exigidos para manter as tradições e costumes portugueses,
sem contar que era o momento em que o soberano assumia seu trono publicamente
perante todos, legitimando seu direito, momento este de seu juramento com seu povo, e
automaticamente ganhando o respeito de seus súditos, que agora estavam sob seu
comando.
Para celebrar a proclamação de Dom João VI, construiu-se uma galeria aberta, de madeira, junto ao edifício que ocupa toda a fachada da praça, desde o palácio até a Capela Real. Erguia-se essa galeria até a altura do primeiro andar do palácio, comunicando com ele pelo lado esquerdo, e pelo direito com a Capela Real. A entrada pública se fazia por esse lado, achando-se o trono colocado na extremidade oposta. Toda a galeria era iluminada por dezoito arcadas; no meio da fachada do edifício, construíram-se um pavilhão, em cujo frontispício sobressaía uma estátua da Glória. O resto da parte superior era igualmente encimado por troféus militares e estátuas colocadas nos ângulos. Internamente, tudo estava forrado de veludo vermelho com alegóricos alusivos às virtudes do monarca. As tribunas ligavam-se ao edifício; a maior era a da família real, junto ao trono, e as outras quatro eram menores e todas do mesmo tamanho161.
Composta por simbolismo e pompa, a cena retratada por Debret enfatiza a
distância a galeria “construída e projetada pelos artistas franceses para a realização da
cerimônia, do que propriamente os personagens que tomam parte nela”162, tornando os
personagens-reis que compõem a varanda quase que invisíveis. Observa-se na imagem
uma distância do rei com a multidão que o acompanha, havendo próximo da galeria um
cordão de isolamento, formado pelo “comandante da praça e dois oficiais de seu estado-
160 LIMA, Oliveira. D. João VI no Brasil. 4. ed. Rio de Janeiro: TOPBOOKS, 2006. p. 608. 161 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p. 404-405. 162 SILVA, Valeria Piccoli Gabriel da. A pátria de minhas saudades: o Brasil na Viagem Pitoresca e Histórica de Debret. 2001. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2001. p. 77.
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maior (...)”163, contribuindo “bastante para tranquilizar o novo rei, temeroso da explosão
de um motim popular fomentado pelo descontentamento dos portugueses, enciumados
com sua longa permanência no Brasil (...)”164. Podemos perceber pela imagem que o
artista procurou dar maior foco para a galeria que para a aclamação, destacando a
imponência que esta galeria trouxe para a cerimônia, a qual o próprio Debret faz uma
descrição detalhada em seu livro de viagem.
Figura 5 – Jean-Baptiste Debret. Aclamação do rei D. João VI. 1834-1839; aquarela; 21,7 x 15,7cm.
Museus Castro Maya, Rio de Janeiro.
Escolhi o momento em que o primeiro-ministro terminou a leitura do voto formulado pelas províncias do Brasil, chamando ao trono do novo reino unido o príncipe regente de Portugal. O rei acaba de responder: “Aceito”, e o entusiasmo geral dos espectadores se manifesta pela aclamação “Viva el-rei, nosso senhor” e o gesto português de agitar o lenço. A bandeira real está desfraldada. O rei ocupa o trono, em grande uniforme, de chapéu na cabeça e cetro na mão, estando a coroa colocada numa almofada ao lado dele. À direita acham-se os príncipes Dom Pedro e Dom Miguel, este com a espada de condestável desembainhada na mão. O capitão da guarda mantém-se ao pé do trono, junto do ministro. À direita, perto da balaustrada, percebe-se a tribuna ocupada pela família real e na qual as damas de honra, de pé, formam a segunda fila. As personagens estão colocadas na seguinte ordem: a rainha, ocupando o lugar mais próximo do trono; a Princesa Real Leopoldina, logo em seguida, como a cabeça ornada de penas brancas, enquanto todas as outras princesas as usam vermelhas; Dona Maria Teresa, nessa época chamada a jovem viúva; Dona Maria Isabel; Dona Maria Francisca; Dona
163 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p. 606. 164 Idem.
57
Isabel Maria e, finalmente, Dona Maria Benedita, viúva do Príncipe Dom José e tia do rei165.
D. João VI ganha o respeito e o reconhecimento do povo com sua aparição em
público, mesmo que distante, enquanto no interior do palácio ganha a fidelidade e o
respeito da nobreza e do clero, membros do corpo político e administrativo do reino,
que para a mentalidade da época servir e estar próximo do rei era o mais alto grau de
nobreza. Para tal, ocorria uma aclamação interna, apenas na presença dessa minoria que
cercava o rei em seu cotidiano privado. A imagem da aclamação de D. João VI
representava com clareza a organização política através dos planos que compõem a
cena. O novo rei do Reino Unido ocupa ao fundo o centro da imagem, sentado ao trono
com seu uniforme de gala, que segundo Debret “só usou no dia de sua aclamação
(...)”166. O rei tem o poder, ele é o centro, é a divindade para a época, escolhido por
Deus para governar os homens, e ao seu lado, em pé, estão os príncipes, D. Pedro está
ao lado do seu pai, já que ele é o herdeiro do trono, o próximo da linha sucessória.
Próximo ao rei encontra-se o primeiro ministro, que acaba de ler o voto formulado das
províncias do Brasil, assim como Debret descreveu em seu relato, em que o Brasil
aceita permanecer como integrante do Reino Unido e não como colônia, dando um
passo importante para sua futura independência.
O lado esquerdo do salão é ocupado pelo clero, claro que seguindo uma
hierarquia. Próximos ao rei estão os bispos “de Angola e de Pernambuco, o prelado de
Goiás, o de Moçambique e o de São Tomé”167, que nessa cerimônia representam o mais
alto grau do clero secular e até mesmo da Igreja. Já no primeiro plano, e mais distante
do rei, está o clero regular, composto por monges e freis. O lado direito da imagem está
ocupado pela nobreza, que da mesma forma que o clero, também é ocupado de acordo
com a hierarquia, mais próximo do rei estão os ministros, e no primeiro plano, distante
do rei, estão alguns nobres e representantes do poder judiciário. A imagem proporciona
uma visualização e uma interpretação da enorme relação do rei com a nobreza, e uma
grande aproximação do Estado com a Igreja. A presença feminina na cerimônia
165 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p. 604. 166 Ibidem, p. 499. 167 NORTON, Luíz. A Corte de Portugal no Brasil: (notas, alguns documentos diplomáticos e cartas da imperatriz Leopoldina). 3. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2008. p. 105.
58
“totalmente separada de todo o público masculino espectador da cena, deixa clara a
marca do forte predomínio do homem sobre a mulher característica da época”168.
Após a aclamação de Dom João VI, restaria apenas dois anos para continuar
vestindo-se de rei absolutista, sendo obrigado a voltar a Portugal como rei
constitucional, encerrando o Período Joanino no Brasil. Já haviam se passado seis anos
após a queda de Napoleão, e Portugal ainda estava sendo comandado pelo seu rei que
continuava no Brasil. Se por muito tempo a monarquia abafou e aboliu todas as revoltas
liberais que ocorreram em sua colônia, como a Inconfidência Mineira, em 1789, a
Conjuração Baiana, em 1798, e a Revolução Pernambucana, em 1817, agora os ideais
iluministas chegavam na metrópole. Já com as primeiras invasões francesas em
Portugal, a insatisfação portuguesa com a monarquia gerou uma crise interna,
prejudicando o comércio e a economia, ocasionando a Revolução Liberal do Porto em
1820, pedindo, imediatamente, a volta da corte a Portugal.
D. João VI procurou impedir, por todos os meios, a invasão da doutrina dissolvente, atentatória das majestades absolutas (...) a Revolução Liberal de 1820, triunfando em Portugal do absolutismo inglês da regência de Beresford, impôs o regresso de D. João VI, vestido de rei constitucional. O pedido das Cortes portuguesas, para que o rei regressasse a Lisboa, veio atirar para a luta os partidos que há muito tempo viviam separados no Brasil: exaltou os brasileiros das lojas maçônicas e das academias secretas e os portugueses endinheirados e bem estabelecidos169.
De início, partiria para Portugal apenas D. Pedro, mas Dom João negou-se
deixar partir seu filho. Dom João VI, que já imaginava a futura independência do Brasil
e tendo seu filho como imperador, disse: “antes seja para ti, que me hás-de respeitar, do
que para algum destes aventureiro”170. Dom João VI tentou contornar a situação durante
um ano, porém após muitas pressões, no dia 21 de abril de 1821, seguiu para Portugal
juntamente com sua corte, deixando D. Pedro como regente do reino no Brasil. A corte
joanina no Brasil foi sem dúvida marcada por grandes avanços, evidentemente foi “(...)
uma oportunidade de desatar os nós que ligavam o Brasil a Portugal”171. “A sua partida
168 ZANIN, Larissa Fabrício. A corte portuguesa e o escravismo no Brasil sob o olhar de Debret. 2007. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal do Espírito Santo, Centro de Ciências Humanas e Naturais, 2007. p. 85. 169 NORTON, Luíz. A Corte de Portugal no Brasil: (notas, alguns documentos diplomáticos e cartas da imperatriz Leopoldina). 3. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2008. p. 146. 170 PEREIRA, Luiz Carlos Bresser (Org.). Nação, Câmbio e Desenvolvimento. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2008. p. 40. 171 TORRÃO FILHO, Amilcar. A Arquitetura da Desordem: Imagens Contraditórias da Corte Joanina no Brasil na Literatura de Viagem; In: OLIVEIRA, Paulo Motta (Org.). Travessias: D. João VI e o Mundo Lusófono. São Paulo: Ateliê Editorial, 2013. p. 133.
59
foi triste como a de um saimento fúnebre”172, o rei não queria voltar para Portugal,
sendo favorável permanecer no Brasil, bem contrário da rainha Dona Carlota Joaquina
que no momento de sua partida exclamou ironicamente, como que em delírio: “Vou
enfim encontrar uma terra habitada por homens”173.
A volta da corte não foi suficiente para acalmar a revolta, onde a Revolução do
Porto alarmou o Brasil, o que “provocaram debate e especulação entre os funcionários
reais e os residentes sobre o que o evento significaria para o futuro da monarquia, do
novo império de portos abertos e do Reino do Brasil”174. O príncipe regente D. Pedro
seria o alvo, no qual, um decreto de Portugal determinava que “o regente deveria ser
substituído por um simples governador-geral, que, com a ajuda das tropas portuguesas,
seria obrigado a pôr em vigor o decreto de recolonização”175. Tais obrigações geraram
uma insatisfação no Brasil, fazendo com que D. Pedro negasse às pressões portuguesas,
e, assim, 9 de janeiro de 1822, tomando a decisão de permanecer no Brasil, ficou sendo
conhecido como o dia do “fico”. É dado o segundo passo para a independência, o Brasil
estava cada vez mais perto de conquistá-la. Após a sua decisão de permanecer, Dom
Pedro começou a procurar apoio de várias províncias.
A Bahia ainda não perdoara ao Rio de Janeiro a mudança da sede do vice-reinado. E, enquanto as províncias do Norte continuavam preferindo uma capital mais próxima – Salvador; por exemplo –, no Sul não faltavam aqueles que desejavam removê-la para São Paulo. No entanto, mesmo a mais consolidada divisão interna tende a ceder diante de um inimigo externo, fato que acabou levando à união das diversas províncias e facções. D. Pedro, cada vez mais imbuído do seu papel, já alegara estar “cansado de aturar desaforos”, e o sentido da independência começava a se delinear na opinião pública176.
D. Pedro começou uma marcha por algumas províncias do reino, controlando os
problemas e buscando apoio. Após passar por Minas Gerais e Rio de Janeiro, partiu
para São Paulo, enquanto no Rio de Janeiro, “a princesa Leopoldina era empossada
como regente: cabia a ela presidir o conselho de ministros e dar audiências públicas (...)
172 NORTON, Luíz. A Corte de Portugal no Brasil: (notas, alguns documentos diplomáticos e cartas da imperatriz Leopoldina). 3. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2008. p. 166. 173 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p. 636. 174 SCHULTZ, Kirsten. Versalhes tropical: império, monarquia e a Corte real portuguesa no Rio de Janeiro, 1808-1821. Tradução de Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. p. 334. 175 DEBRET, Jean-Baptiste, op. cit., p. 428 et seq. 176 SCHWARCZ, Lilia Moritz; STARLING, Helena Murgel. Brasil: uma biografia. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. p. 212.
60
sempre ao lado de José Bonifácio, a cabeça do gabinete”177. D. Leopoldina, juntamente
com José Bonifácio seriam as peças-chave na independência do Brasil, já que em 2 de
setembro, D. Leopoldina envia uma carta a D. Pedro dizendo “para que proclamasse a
Independência: “o pomo está maduro, colhe-o já, senão apodrece”178. Juntamente com a
carta, encontrava-se apelos de alguns ministros mais próximos do regente, como o de
José Bonifácio, orientando o fim dos vínculos com Portugal. Até que em 7 de setembro
de 1822, é proclamada a tão sonhada independência do Brasil. Agora era hora de
começar a consolidar o novo país, cortar tudo que fizesse lembrar a Portugal, e criar os
novos símbolos nacionais. Debret ficou sendo o responsável por criar a nova bandeira e
o símbolo do império.
(...) os novos símbolos de poder foram refeitos. Em 18 de setembro, d. Pedro e José Bonifácio assinaram e rubricaram diversos decretos instituindo a nova bandeira e o novo brasão de armas, que levava as cores verde, da casa de Bragança, e amarela, da casa dos Habsburgo. O desmonte histórico praticado pelos republicanos recodificaria essas cores e as transformaria no verde de nossas matas e no amarelo de nosso ouro, nossa riqueza. A aclamação de d. Pedro foi programada para 12 de outubro, data de seu aniversário de 24 anos.179.
Figura 6 – Jean-Baptiste Debret. Aclamação de D. Pedro I no Campo de Santana; aquarela; 25,5 x
18,7cm. Museus Castro Maya, Rio de Janeiro.
177 SCHWARCZ, Lilia Moritz; STARLING, Helena Murgel. Brasil: uma biografia. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. p. 216. 178 NORTON, Luíz. A Corte de Portugal no Brasil: (notas, alguns documentos diplomáticos e cartas da imperatriz Leopoldina). 3. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2008. p. 183. 179 REZZUTTI, Paulo. D. Pedro: a história não contada. São Paulo: LeYa, 2015. p. 160.
61
No momento da aclamação de Dom Pedro I como imperador do Brasil, Debret
retratou a cena apresentando várias mudanças, sejam elas nas vestimentas, no
comportamento e nos símbolos. Nas vestimentas, observamos as cores verde e amarelo
nos uniformes dos ministros que rodeiam o imperador, ocupando o primeiro plano da
imagem, no canto esquerdo, que “distribuem profusamente a resposta impressa do
imperador”180, como se observa no canto esquerdo os papéis caindo do balcão.
Diferentemente da aclamação de D. João VI, que analisamos anteriormente, onde as
mulheres ficaram isoladas em uma tribuna, nessa imagem, D. Leopoldina ocupa junto a
seu marido o centro do balcão, ficando ela ao lado direito do imperador, demostrando
sua importância durante o processo de independência, ou seja, foi o braço direito de D.
Pedro nas articulações políticas na separação com Portugal.
Logo atrás da imperatriz está o “capitão da guarda (José Maria Berco),
segurando nos braços, para mostrá-la ao povo, a jovem Alteza Imperial, Dona Maria da
Glória”181, herdeira do trono. Do outro lado do balcão, localiza-se a nova bandeira, o
novo símbolo nacional. Outra mudança que traz a cena, é a maneira como Debret
representou o grande momento, partindo de uma visão de cima para baixo, como se o
artista estivesse junto ao balcão, ao lado, ou seja, sua proximidade com o 1º reinado.
Diferentemente da aclamação de Dom João VI, nesta de D. Pedro, o povo está próximo
do novo imperador, como se D. Pedro estivesse sustentado pelo povo: tem o apoio
popular. Segundo Debret, logo em seguida da aclamação “o imperador saiu pela
passagem interna, que conduz da capela ao palácio, e dirigiu-se para a sala do trono,
onde se realizou o primeiro beija-mão imperial”182. Após a aclamação, começaram os
preparativos da coroação do primeiro imperador do Brasil, que ocorreu em 1° de
dezembro de 1822, sendo totalmente diferente da “coroação” de D. João VI.
Em 1º de dezembro, foi feita a cerimônia de sagração e coroação de d. Pedro. José Bonifácio, o barão de Santo Amaro, frei Arrábida, o bispo capelão-mor e o monsenhor Fidalgo elaboraram uma cerimônia que pouco tinha a ver com a aclamação dos reis até então realizada em Portugal. Ela uniu o cerimonial de coroação dos imperadores romanos-germânicos com aquele de Napoleão e do rei da Hungria, em quem se cortava o ar com a espada. Numa cerimônia que durou horas e em que até uma carruagem de Napoleão esteve presente, a coroa de mais três quilos, o cetro e a espada de ouro garantiam um imperador (...)183.
180 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p. 640. 181 Idem. 182 Ibidem, p. 418. 183 REZZUTTI, Paulo. D. Pedro: a história não contada. São Paulo: LeYa, 2015. p. 162-163.
62
Era coroado o primeiro imperador do Brasil, que diferentemente do costume
português “foi a mais espetaculosa e colorida de quantas se desdobraram em galas
aclamatórias ou comemorativas no Novo Mundo”184, tudo inspirado pela imperatriz
Leopoldina. Segundo Debret, o cortejo saiu do palácio e dirigiu-se à Capela Imperial,
após uma breve oração, D. Pedro I ocupou o centro do altar, “cercado pelos bispos (...)
ajoelhou-se e, colocando as duas mãos sobre o missal, prestou o juramento”185, em
seguida recebeu a unção, e logo após “recebeu das mãos do bispo a espada, a coroa e o
cetro”186. Sendo assistido pelos cônsules dos “Estados Unidos da América (...) da
Inglaterra, França e Rússia (...)”187.
Figura 7 – Jean-Baptiste Debret. Coroação de D. Pedro I, Imperador do Brasil. 1828; óleo sobre tela; 21
x 32,1cm. Palácio Itamaraty, Brasília.
Por meio da imagem da coroação de D. Pedro I, se comparada com a aclamação
de D. João VI analisada anteriormente, é possível notar a clara diferença de sua
composição. D. Pedro I não ocupa o centro da cena, ao contrário de seu pai. O
imperador aparece sentado em seu trono com o cetro e a coroa na cabeça, que marca
uma ruptura com o costume português de não usá-la, conforme mencionado 184 NORTON, Luíz. A Corte de Portugal no Brasil: (notas, alguns documentos diplomáticos e cartas da imperatriz Leopoldina). 3. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2008. p. 188. 185 DEBRET, Jean-Baptiste, op. cit., p. 422 et seq. 186 Idem. 187 NORTON, Luíz, op. cit., p. 189 et seq.
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anteriormente. Na cena, tanto os membros do clero como os da nobreza ocupam o
mesmo lugar, não havendo uma separação como ocorreu na aclamação de D. João VI.
Dona Leopoldina ocupa a tribuna com sua filha Dona Maria da Glória, e outras damas
da corte ainda continuam separadas, mas não distantes do centro da cerimônia. As cores
das vestimentas dos ministros e nobres ganham atenção na cena com as novas cores
imperiais, juntamente com a bandeira desfraldada. Enquanto o altar da Capela Imperial
é ocupado por todos os envolvidos na cerimônia, no fundo da imagem estão “os fidalgos
da corte, os delegados das províncias e outros convidados (...)”188, onde “os bancos são
ladeados à direita por uma fila de archeiros e sapadores e à esquerda por soldados da
cavalaria de São Paulo e caçadores da Guarda Imperial”189.
Figura 8 – Jacques-Louis David. A coroação de Napoleão I e da imperatriz Josefina na Catedral de Notre-Dame de Paris, 2 de dezembro de 1804, 1805-07; óleo sobre tela; 62,1 x 97,9cm. Musée du
Louvre, Paris.
A forma como Debret pintou a coroação de D. Pedro I, “pode ser entendida
como uma aplicação do modelo fornecido por Jacques-Louis David para as pinturas de
cerimonial”190, carregando fortes traços da pintura neoclássica. Tanto a coroação de D.
188 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p. 643. 189 Idem. 190 TREVISAN, Anderson Ricardo. A redescoberta de Debret no Brasil modernista. São Paulo: Alameda, 2015. p. 69.
64
Pedro I como a de Napoleão, trazem uma semelhança entre si, podendo ser verificado
um “movimento interno ao quadro que se volta todo para Napoleão (...)”191, o que
ocorre também no quadro de D. Pedro, destacado na imagem, ocupando um local
elevado na cerimônia. A mesma semelhança é encontrada na obra “Primeira
distribuição das condecorações da Legião de Honra, na Igreja dos Inválidos pelo
imperador”, obra esta pintada por Debret em 1812, em que traz Napoleão a um local
elevado perante os demais presentes na cena.
Figura 9 – Jean-Baptiste Debret. Primeira distribuição de condecorações da Legião de Honra na Igreja
dos Inválidos pelo imperador. 1812; óleo sobre tela; 40,3 x 53,1cm. Musée du Château de Versailles.
A única semelhança que a coroação de D. Pedro I possui com a aclamação de
seu pai é o caráter religioso dos Bragança, sobressaindo a arquitetura barroca, em que a
imagem passa uma espécie de santidade na coroação.
Com efeito, no Brasil, religião e realeza estão ligados de forma muito peculiar. Aqui não se atribuem ao rei poderes mágicos ou transcendentais (...), porém de toda maneira o ritual local aprimora o “fraco” cerimonial dos Bragança. No Brasil, os imperadores passam a ser ungidos e sagrados, numa
191 SOUZA, Iara Lis Carvalho. Pátria Coroada: o Brasil como corpo político autônomo – 1780-1831. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1999. p. 294.
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tentativa de dar sacralidade a uma tradição cuja inspiração era antiga, mas a realização datada. Nesse movimento, ao mesmo tempo que os monarcas ganham santidade, os santos, quando muito adorados, ganham realeza no Brasil. (...) De qualquer modo, mantos imperiais convivem com mantos divinos, e o imaginário da realeza acaba permeando fortemente o catolicismo brasileiro (...)192.
A respeito da afirmação de Schwarcz, é importante destacar que Debret, mesmo
tendo acompanhado as mudanças que a Revolução Francesa trouxe, acabando com as
antigas tradições, Debret não questiona a corte beata dos Bragança. Mesmo
considerando que D. Pedro I veio para acabar com os antigos costumes portugueses,
realizando várias mudanças nos retratos por ele pintado, marcando a ruptura com as
antigas tradições portuguesas, não tirou de cena a imagem do catolicismo nos
acontecimentos. Mesmo não concordando com a permanência de tais costumes, Debret,
no seu papel de pintor histórico, retratava de acordo com a tradição a que estava
inserido mesmo sendo um pintor “revolucionário”, atendendo aquilo ao que lhe era
solicitado.
Figura 10 – Jean-Baptiste Debret. D. Pedro no traje da Sagração. 1826; gravura; 57 x 42cm. Museu
Paulista da Universidade de São Paulo, São Paulo.
192 SCHWARCZ, Lilia Moritz. As barbas do imperador: D. Pedro II, um monarca nos trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 16.
66
A presença das novas cores não é apenas visível nas vestimentas dos ministros e
nobres presentes na coroação, mas também no manto imperial, no qual predomina o
verde e o amarelo “sob o nome de cores imperiais do Brasil (...) matrizes prodigalizados
pelo patriotismo desde o palácio do soberano até ao armazém do negociante”193. O que
chama a atenção para Debret é o estilo do manto, considerando ser “um pouco estranha
para o europeu”194, totalmente diferente dos estilos dos mantos de outros monarcas, pois
aquilo era inédito, carregado de significações.
Assim como o manto de D. João VI carregava os símbolos do Reino Unido, o
manto de D. Pedro I, com seu bordado “de estilo largo lembra, pela sua forma, grupos
de folhas de palmeiras e frutos da mesma árvore; grandes estrelas de oito pontas,
semeadas no fundo, completam a riqueza desse manto cuja execução merece justos
elogios”195. Sem contar o estilo “imitada do ponche, único manto usado em toda
América do Sul”196, no qual sua “abertura é feita de plumas de tucano”197, os símbolos
da fauna e flora do Brasil ganham destaque no manto do primeiro imperador do país. O
manto de D. João VI, feito de veludo, passaria agora a ser feito de seda, tecido mais leve
e fresco para aguentar o calor tropical do Rio de Janeiro. Outra mudança trazida por
Debret ao retratar D. Pedro I é o uso de botas, referente à força e ao militarismo,
“simbolizando a “força” com que conseguira tornar o Brasil independente”198. A mesma
força que antes de sua vinda ao Brasil, Debret representava Napoleão usando botas em
suas campanhas ainda como general. E é com grandes mudanças nos símbolos e
pequenas contas que se inicia o primeiro reinado brasileiro.
O primeiro reinado começa com as contas enxutas. D. João VI antes de voltar
para Portugal, fez uma visita ao Banco do Brasil e levou consigo grande parte do
dinheiro. Para completar, com a independência do Brasil, Portugal exigiu uma
indenização por suas perdas e para o reconhecimento do Brasil como nação, “somente
em 1825, depois de demoradas negociações e mediante indenização, d. João VI
reconheceu a independência do Brasil”199, mas para isso o Brasil precisou desembolsar
193 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p. 511. 194 Idem. 195 Idem. 196 Idem. 197 Idem. 198 DIAS, Elaine. A representação da realeza no Brasil: uma análise dos retratos de D. João VI e D. Pedro I, de Jean-Baptiste Debret. Anais do Museu Paulista. São Paulo, N. Sér., v. 14, n. 1, p. 254, 2006. 199 SCHWARCZ, Lilia Moritz; DA COSTA E SILVA, Alberto (Coord.). História do Brasil Nação. Crise colonial e independência: 1808-1830. Rio de Janeiro: Objetiva, 2011. v. 1, p. 101.
67
para sua antiga metrópole 2 milhões de libras, sem contar a compra da Biblioteca
Imperial, os navios de guerra, as pratas, enfim, Portugal se achava no direito de ter tudo
e julgava ainda que deveria receber uma indenização. Com as contas limitadas, e uma
possível ameaça de invasão de Portugal, o Brasil assumiu sua primeira dívida externa,
pegando emprestado dinheiro da Inglaterra. No primeiro ano de reinado, D. Pedro I
enfrentou grandes problemas, pagou uma enorme indenização à Portugal e mesmo
assim corria o risco de uma guerra contra este país, sendo necessário contratar corsários
para defender o Brasil, já que o país ainda não possuía um exército totalmente formado
e preparado.
Na expectativa de uma guerra contra Portugal, ativaram-se nos primeiros meses de 1823 os preparativos para repelir qualquer ataque português; fez-se uma mobilização para formar um exército de vinte mil homens de linha e quarenta mil de milícias; procurou-se auxílio na Europa e foi resolvido organizar um batalhão estrangeiro. Em março, o almirante Cochrane, aventureiro dos mares sul-americanos, como comandante-em-chefe de esquadra brasileira, bloqueava Salvador que se rendeu (...) depois, submeteu São Luís do Maranhão, entrando triunfalmente no Rio, em novembro do mesmo ano. Em Caxias, um destacamento do exército português só capitulou depois de heroica defesa, em 12 de agosto de 1824. Foi o último reduto da resistência portuguesa (...)200.
As resistências portuguesas ganharam força no início, pois contavam com o
apoio de algumas províncias do Brasil que não aceitavam a separação de Portugal, os
quais defendiam a volta dos domínios portugueses, onde “Belém registra levantes pró-
Lisboa. O mesmo ocorre no Maranhão, Piauí e Ceará (...) na Bahia, as lutas
desdobraram-se quase um ano”201, de outubro de 1822 a janeiro de 1823. Durante
alguns meses, D. Pedro I enfrenta uma crise interna, de um país recém-independente
dividido, províncias a seu favor e províncias contra, a situação complica-se gerando o
atraso da elaboração da nova constituição. Encerrado a crise interna do Brasil nos
primeiros meses de 1823, no mês de maio daquele ano, D. Pedro I inaugurou a primeira
Assembleia Geral Constituinte. Os trabalhos da constituinte iam bem, a constituição
estava sendo elaborada, na qual o Brasil teria três poderes: executivo, legislativo e
judiciário; a constituição seria liberal, prometida pelo imperador em seu juramento de
coroação, no entanto, D. Pedro I não gostou de retirar seu poder, queria manter o
absolutismo dos Bragança, interferindo nos trabalhos da constituinte alegando que o
200 NORTON, Luíz. A Corte de Portugal no Brasil: (notas, alguns documentos diplomáticos e cartas da imperatriz Leopoldina). 3. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2008. p. 190. 201 PRIORE, Mary del; VENANCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Planeta do Brasil, 2010. p. 165.
68
Brasil deveria ter uma “constituição digna do imperador e do Brasil”, tal decisão foi
chamada por Debret de golpe de Estado.
O golpe de Estado audaz aumentou momentaneamente o poder do imperador, mas ao mesmo tempo o isolou do povo, estupefato e alarmado por se ver repentinamente privado da dedicação patriótica que tentara e conseguira a independência do território nacional202.
Após dissolver a assembleia, o imperador convocou um grupo de pessoas de sua
confiança para elaborar uma constituição que atendesse a seus interesses, criando o
Poder Moderador, que detinha em suas mãos grandes poderes para nomear senadores,
sancionar decretos, nomear ministros e presidentes de províncias, ou seja, tudo passava
por suas mãos. D. Pedro I outorgou, em 25 de março de 1824, a primeira constituição
brasileira, que atendia a todos os seus interesses, mas não os interesses da nação,
gerando descontentamento em várias partes do Brasil, estourando uma nova revolta no
país, de cunho separatista e republicano, sendo esta uma pedra no sapato do imperador.
A nova revolta foi abafada, mas os problemas do imperador não. O primeiro
reinado foi marcado por grandes problemas políticos, econômicos e pessoais do
imperador, até que em 1831 abdicou seu trono e voltou para Portugal, e assim deixava o
Brasil o imperador que tornou independente um país quebrado economicamente,
abandonando um país fragilizado politicamente. No entanto, Debret admirava que no
final do 1º reinado “havia então no Parlamento muitos deputados jovens (...) que
contribuíram para as deliberações com os recursos de uma educação aperfeiçoada na
Europa. (...) Dignos não só pela sua erudição como pela pureza de seus princípios
patrióticos”203. Mesmo com os problemas que o Brasil atravessava, Debret ainda via
esperanças no governo brasileiro.
Neste tópico analisamos as várias representações que cada monarca trazia consigo. D.
João trazia os costumes antigos de Portugal, e D. Pedro I as mudanças como rupturas
dos costumes portugueses. Independentemente se houve ou não mudanças, percebemos
o papel que Debret exerceu como pintor histórico, realizando seu trabalho de acordo
com o tempo, e o monarca identificando “as mudanças políticas e de representação
202 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p. 429. 203 Ibidem, p. 430.
69
instauradas, presenciadas e documentadas iconograficamente por ele durante os anos em
que aqui permaneceu (...)”204.
1.3 “Amor” da diplomacia: os casamentos imperiais
Afinal, entre as negociações diplomáticas da regência de d. João, já em território americano, o casamento do príncipe-herdeiro d. Pedro foi uma das mais bem-sucedidas; até porque matrimônios entre reis são grandes negócios de Estado, quando as razões do coração influem pouco205.
Com a morte de Dona Maria I, em 1816, automaticamente o príncipe regente
Dom João elevava-se ao trono por direito. Depois dele, seria seu filho mais velho, Dom
Pedro, e assim sucessivamente. Se a subida de D. João ao trono garantiria novamente a
dinastia dos Bragança, futuramente, com a ascensão de D. Pedro, este deveria ter um
sucessor, um filho ou filha, mas o jovem príncipe não era casado. Então, deveria casar-
se, era hora de usar sua diplomacia para encontrar uma esposa para D. Pedro, de
preferência, como de costume das monarquias europeias, ser membro de outra
monarquia para garantir os tronos, uma linhagem nobre, prestígio, poder, e acima de
tudo os acordos econômicos, principalmente em se tratando de um príncipe-herdeiro do
trono português, conhecido pela grandeza e riqueza do império português e pela
imagem do príncipe. Segundo Oliveira Lima, “a própria garbosa pessoa do noivo
(...)”206. Para a escolha da futura esposa do príncipe Pedro, D. João cria uma comitiva
responsável pelas negociações com as monarquias europeias para encontrar uma
pretendente que agradasse seus interesses.
Diz-se que não ocorria na Áustria espetáculo tão esplendoroso desde quando, no ano de 1708, o embaixador de Portugal, conde de Vilar-Maior, conduzira dona Mariana para esposa de dom João V, o que se equiparava às funções dadas pelo marquês de Marialva ao pedir a Francisco I, imperador da Áustria, rei da Hungria e Boêmia, a mão de sua filha, a arquiduquesa dona Leopoldina, para o príncipe dom Pedro. A comparação entre as cerimônias permite dimensionar a pompa dos casamentos reais lusitanos, que não se
204 DIAS, Elaine. A representação da realeza no Brasil: uma análise dos retratos de D. João VI e D. Pedro I, de Jean-Baptiste Debret. Anais do Museu Paulista. São Paulo, N. Sér., v. 14, n. 1, p. 259, 2006. 205 SCHWARCZ, Lilia Moritz. O sol do Brasil: Nicolas-Antoine Taunay e as desventuras dos artistas franceses na corte de d. João. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. p. 224. 206 LIMA, Oliveira. D. João VI no Brasil. 4. ed. Rio de Janeiro: TOPBOOKS, 2006. p. 539.
70
abalou durante o século XVIII, além de se destacarem os elementos cênicos presentes em ambas207.
Estava escolhida a esposa do príncipe D. Pedro: sairia da casa dos Habsburgo,
que foi recebida com bom grado na Áustria e na corte portuguesa, o que significava a
união dos reinos. Ficara responsável pelas negociações, o Marquês de Marialva,
“destinado a ser o diplomata casamenteiro, recebendo, novamente, em 1817, a difícil
missão de ultimar as referidas negociações esponsalícias”208. A Áustria comemorou o
casamento, assim poderia comercializar pelos portos do Brasil. Portugal, por sua parte,
além do prestígio que ganharia ainda mais na Europa, a casa dos Habsburgo era
considerada a mais tradicional, pela educação, cultura, enfim, era conhecida pelas
características refinadas, com “muitos aspectos, e o caráter dos atos de etiqueta como
fetiches de prestígio (...)”209, que segundo Rezzutti:
Casar-se com uma Habsburgo era ter consigo a melhor mulher que um governante poderia ter, e d. João sabia muito bem disso. A máxima instituída pela imperatriz Maria Teresa da Áustria – os outros que façam guerra, tu, Áustria feliz, casa-te – já indicava o meio pacífico pelo qual o império dos Habsburgo garantia seu poder: a família criava as melhores princesas da Europa. (...). Os filhos da casa imperial deviam ser educados para serem instrumentos submissos e úteis da política de Estado”. (...). Desde cedo, d. Leopoldina inclinou-se mais para as disciplinas de ciências naturais, interessando-se principalmente por mineralogia. Ao estar certo o casamento com o herdeiro do trono português, a arquiduquesa passou a estudar com afinco tudo o que dizia respeito ao Brasil e Portugal e a aprender a língua da nova pátria que a aguardava210.
Tudo estava pronto para o casamento por procuração, que ocorreu em 13 de
maio de 1817. Após o casamento, estenderam-se vários dias de comemorações,
finalizando-se apenas em 1° de junho. Comemorações estas marcadas por vários bailes
e “jantares de gala, de quarenta serviços, para toda a corte imperial e mais de 2 mil
convidados”211. Foram nestes jantares que, pela primeira vez, D. Leopoldina conheceria
por retrato D. Pedro, recebendo, do embaixador português, um medalhão de brilhantes,
sem contar uma grande quantia em dinheiro. Após vários dias de comemorações, D.
207 MALERBA, Jurandir. A corte no exílio: civilização e poder no Brasil às vésperas da independência (1808-1821). São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 54. 208 NORTON, Luíz. A Corte de Portugal no Brasil: (notas, alguns documentos diplomáticos e cartas da imperatriz Leopoldina). 3. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2008. p. 73. 209 ELIAS, Norbert. A sociedade de corte. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. p. 103. 210 REZZUTTI, Paulo. D. Pedro: a história não contada. São Paulo: LeYa, 2015. p. 87. 211 PRIORE, Mary del. A carne e o sangue: A imperatriz D. Leopoldina, D. Pedro I e Domitila, a Marquesa de Santos. Rio de Janeiro: Rocco, 2012. p. 13.
71
Leopoldina despediu-se, deixando Viena e partindo para Florença para aguardar a
chegada das naus que a levaria para o Rio de Janeiro.
Figura 11 – Jean-Baptiste Debret. Desembarque de D. Leopoldina no Brasil. 1818; óleo sobre tela; 44,5 x
69,5cm. Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro.
No dia 15 de agosto, partiu para o Brasil. Acabou então o “corre-corre” em
Viena, e começaram as preparações no Rio de Janeiro para o desembarque da nova
princesa do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, que para as benções nupciais,
“foram restauradas e decoradas com novos revestimentos e pinturas a capela real e a
catedral, que ganhou uma nova torre, onde se montaram sinos monumentais”212, foi
“uma verdadeira batalha para organizar cada detalhe das funções do desembarque e dos
dias consecutivos”213 – o Rio de Janeiro precisava estar pronto para esse momento.
Enquanto isso, atravessava o oceano uma enorme comitiva, composta por damas
de honras, camareiras e uma expedição científica de vários estudiosos das áreas da
botânica, mineralogia, geografia, zoologia, na qual vieram Spix e Martius, dois grandes
212 NORTON, Luíz. A Corte de Portugal no Brasil: (notas, alguns documentos diplomáticos e cartas da imperatriz Leopoldina). 3. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2008. p. 88. 213 MALERBA, Jurandir. A corte no exílio: civilização e poder no Brasil às vésperas da independência (1808-1821). São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 60.
72
estudiosos que percorreram o Brasil estudando a fauna e flora, dando origem ao Livro
Viagem ao Brasil, relatando o período em que estiveram no país.
(...) ofereceu a mais bela oportunidade para a realização da idéia do rei. Justamente quando êsse laço unia a nova parte do mundo em relações mais estreitas com a Europa, estava S. M. o Rei da Baviera presente em Viena, e resolveu, de acôrdo com a côrte imperial, fazer seguir para o Brasil, no séquito da ilustre noiva, cientistas que acompanhassem, para os mesmos fins, alguns membros da sua Academia, componentes da expedição austríaca. A honrosa escolha, recaiu em nós ambos, e recebemos, portanto, a 28 de janeiro de 1817, o aviso de seguir viagem quanto antes para Viena e daí para Trieste, a fim de embarcarmos na fragata, já prestes a zarpar para o Rio de Janeiro214.
Após 84 dias de viagem, finalmente, em 12 de novembro, a princesa Leopoldina
chegava ao Brasil, onde todos esperavam com grande festa no Rio de Janeiro. De
acordo com Debret “às cinco horas da tarde, por tempo fresco, e foi salvado com vários
tiros de canhão ao passar pelo primeiro forte (...) da galeota saiu o príncipe real, a fim
de receber a rainha e as princesas (...) partiu para ir visitar a arquiduquesa a bordo
(...)”215. Somente no dia seguinte, D. Leopoldina pisaria em solo brasileiro, “ao raiar do
sol, as salvas de artilharia anunciaram a solenidade da festa. Às dez horas, a galeota
real, resplendente de ornamentos (...) dirigiu-se para o navio; a arquiduquesa desceu e
foi conduzida ao som da música (...)”216. Pela primeira vez, os noivos se conheceriam
pessoalmente. Mesmo sendo retratada a imagem a certa distância, Debret destaca o
enorme arco triunfal, construído especialmente para a ocasião, onde evidenciam-se os
noivos sob o arco e demais autoridades, todos apostos para receber e dar as boas-vindas
à princesa. Ao fundo da imagem, encontra-se o convento de São Bento, “cujas janelas
reservadas aos protegidos, são guarnecidas de ricas tapeçarias de seda”217, aos pés do
convento, uma fila de carruagens espera encerrar a recepção, saindo em desfile pelas
ruas da cidade até a Capela Real, para uma missa com direito à benção nupcial. A cena
traz em si a grande pompa e festividade, sendo o desembarque a primeira festa pública
da corte portuguesa no Brasil, em que Debret “realça as festividades no mar e em terra
(...)”218, ocupando na cena as saudações do povo, tanto dos que se encontram nas
214 SPIX, Johann Baptist von; MARTIUS, Karl Friedrich Philipp von. Viagem pelo Brasil: 1817-1820. São Paulo: Edições Melhoramentos, 1968. v. 1, p. 22. 215 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p. 402. 216 Idem. 217 Ibidem, p. 587. 218 SOUZA, Iara Lis Carvalho. Pátria Coroada: o Brasil como corpo político autônomo - 1780-1831. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1999. p. 289.
73
embarcações como aqueles que estavam próximos do arco e do convento, ganhando
uma festividade geral na imagem. Em seguida, houve um banquete, arrastando-se por
todo o dia, terminando apenas na madrugada do dia seguinte.
No início, D. Leopoldina se manifestava contente e apaixonada pelo marido,
demonstrando várias vezes por cartas que mandava para a irmã, afirmando estar
“completamente apaixonada”, de “1817-1820 a vida de D. Leopoldina decorreu
serenamente (...)”219, até que começaram a vir à tona boatos sobre os casos amorosos de
D. Pedro, pois antes da chegada de D. Leopoldina, o príncipe teve um caso amoroso
com uma dançarina do teatro, ganhando gravidade quando a dançarina apareceu
grávida. A mãe do príncipe, Dona Carlota Joaquina, teve que entrar em cena para
afastar a dançarina, oferecendo grande quantia de dinheiro, além de presenteá-la com
um enxoval para o filho, e um marido. A proposta foi aceita, e a dançaria partiu para
Recife, vindo dar à luz, mas o filho nasceu morto. O perigo estava longe do príncipe, e o
casamento com D. Leopoldina seguro, porém nada mudava o comportamento sedutor de
D. Pedro.
A vida na corte começou a virar rotina, e D. Leopoldina queixava-se por se
sentir isolada e abandonada, devido às intrigas “logo desagradou aos bons alemães; um
ano mais tarde só restava junto da princesa real o pintor de flores (...)”220. Para ela, a
alegria viria com o nascimento de sua primeira filha, e em “7 de maio de 1819, às cinco
horas da tarde (...) anunciaram aos habitantes do Rio de Janeiro o nascimento de Dona
Maria da Glória, hoje conhecida com Dona Maria II (...)”221. Na realidade, Debret
cometeu um engano ao escrever seu livro após retornar a Paris, em 1831, pois Dona
Maria da Glória nasceu em 4 de abril. D. Leopoldina passou a cuidar da filha, dos
estudos e do marido – período bem conturbado na corte. Primeiramente, devido à
Revolução do Porto, D. João VI foi obrigado a voltar para Portugal, deixando seu filho
como regente no Brasil. Segundo, porque a partir do momento que D. Pedro tornou-se
regente, suas responsabilidades e compromissos políticos aumentaram drasticamente,
chegando a um ponto que, devido às pressões portuguesas, por um lado, e as brasileiras,
por outro, tomou a decisão de proclamar a independência do Brasil. O processo de
independência não ocorreu do dia para noite, foi um processo longo, cansativo,
219 NORTON, Luíz. A Corte de Portugal no Brasil: (notas, alguns documentos diplomáticos e cartas da imperatriz Leopoldina). 3. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2008. p. 90. 220 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p. 520. 221 Ibidem, p. 415.
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cauteloso, tendo um jogo de cintura estratégico, e D. Leopoldina foi peça-chave nesse
processo, já que ela era a moça educada para ser rainha, ou seja, tinha os conhecimentos
e discernimentos do jogo político.
D. Leopoldina tivera contato com os “Patriotas Brasileiros”, grupo formado, entre outros, pelo frei franciscano Francisco de Santa Tereza de Jesus Sampaio, em cuja cela, no convento de Santo Antônio, conspirava-se, assim como nas lojas maçônicas, pela independência do país222.
Com a conquista da independência do Brasil, D. Pedro empregou na bandeira as
cores nacionais – o amarelo, cor da casa dos Habsburgo, como prova da importância
que sua esposa tivera nesse processo. Na política, para D. Pedro, D. Leopoldina era
importante, mas para seu coração, outra mulher começava a ter grande significado a
partir 1822: em uma visita na cidade de Santos, conheceu Domitila, futura Marquesa de
Santos. Com o passar do tempo, D. Leopoldina sofria com o distanciamento do marido,
com a perda de alguns filhos durante o parto, tornando-se uma mulher mal-humorada,
dedicando-se apenas para as orações e para a criação dos filhos. Para o estilo do
temperamento do imperador, D. Leopoldina “custou sem dúvida a adaptar-se às
maneiras violentas e quase selvagens de seu jovem esposo”223, tudo o que procurava em
Leopoldina, D. Pedro acabou encontrando em Domitila.
Uma crise conjugal instaurou-se na casa imperial. Debret não cita os casos
amorosos do imperador em seu relato, mas deixa claro que a situação era grave,
referindo-se às “contrariedades domésticas, que entre particulares seriam de molde a
provocar o divórcio, entristeceram e preocuparam a imperatriz durante os últimos anos
de sua vida”224, passando a imperatriz a ter problemas de saúde. Logo, o estado de saúde
de D. Leopoldina se agravou, assim como a situação do Brasil, que estava em guerra na
Cisplatina, ficando ausente D. Pedro do Rio de Janeiro, sem poder acompanhar o estado
de saúde da esposa, que “em estado de gravidez, sucumbiu ela a um tratamento
demasiado violento (um vomitório), que provocou um aborto, em consequência do qual,
atacada de tifo, expirou nas angústias de uma crise inflamatória”225. E assim, a
imperatriz não resistiu.
222 REZZUTTI, Paulo. D. Pedro: a história não contada. São Paulo: LeYa, 2015. p. 133. 223 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p. 520. 224 Ibidem. p. 522. 225 Idem.
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Há alguns dias já, santas relíquias, carregadas processionalmente e dispostas na Capela Imperial durante as orações das quarenta horas, reuniam todos os cidadãos admiradores das virtudes da princesa, para a invocação da proteção do Todo-Poderoso contra as horríveis angústias de uma inflação provocada pelo tifo e em virtude da qual sucumbiu. Com efeito, as salvas funerárias das artilharias das fortalezas anunciaram, cedo demais, essa funesta notícia, que impressionou dolorosamente toda a população do Rio de Janeiro. Morta a imperatriz e assinada a certidão de óbito pelos médicos e cirurgiões de serviço, presididos pelo primeiro-ministro do império (ministro do Interior), fizeram os cirurgiões uma pequena incisão no abdome, a fim de introduzir no corpo algumas substâncias corrosivas e aromáticas, comprimindo tudo por meio de uma costura (operação cirúrgica textualmente indicada na lei portuguesa, que proíbe, por decência, sejam os cadáveres de mulheres embalsamados). Durante a noite do primeiro para o segundo dia, ficou o corpo mergulhado num banho de espírito de vinho e de cal, a fim de provocar o endurecimento das carnes, sendo na manhã seguinte revestido com o grande uniforme imperial e exposto num leito de gala, ricamente decorado, a fim de receber a última homenagem dos fidalgos de seu serviço particular, que, com efeito, vieram todos beijar-lhe a mão direita, disposta de modo a facilitar o cerimonial de beija-mão226.
Iniciaram-se as “honras funerárias de toda a corte e do povo (...)”227, até mesmo
Debret não deixou de retratar o cortejo fúnebre e o mausoléu da imperatriz. Passado o
período de luto, D. Pedro necessitava de uma nova esposa para melhorar sua situação.
Segundo Debret, “o trono enlutado exigia igualmente uma segunda imperatriz. Ao
mesmo tempo, o sentimento paterno inspirava a Dom Pedro o desejo de dar
solenemente mãe adotiva à sua jovem família imperial”228. Depois de procurar em toda
a Europa, a nova imperatriz do Brasil seria Dona Amélia de Leuchtenberg, “princesa
bávara, sobrinha do rei da Baviera e neta da imperatriz Josefina, primeira esposa de
Napoleão”229. A questão conjugal e a imagem política de D. Pedro seriam resolvidas
com um novo casamento, que “o tirou dessa triste situação e fê-lo apreciar durante
algum tempo a felicidade da vida europeia junto de uma jovem princesa, cujas virtudes
e perfeita educação deram ao palácio imperial novo encanto”230. A corte começou a se
preparar para receber a sua nova imperatriz.
Em junho de 1829, d. Pedro enviou para a Europa o contrato de casamento
assinado. Enquanto o contrato era enviado para D. Amélia, aqui no Brasil começaram as
ordens para os preparativos de sua chegada para o casamento.
226 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p. 593. 227 Idem. 228 Ibidem, p. 647. 229 REZZUTTI, Paulo. D. Pedro: a história não contada. São Paulo: LeYa, 2015. p. 249. 230 DEBRET, Jean-Baptiste, op. cit., p. 430 et seq.
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Apesar da pouca idade, D. Amélia veio para mudar a vida de D. Pedro I e também a de sua corte. Ao chegar ao Paço de São Cristóvão, ficou impressionada com a desordem. O imperador recebia a todos de qualquer maneira. Imediatamente tratou de disciplinar o palácio, impondo etiqueta e cerimonial, obrigando o cumprimento de horários e colocando o francês como língua oficial. Além disso, introduziu o refinamento dos serviços e da indumentária. Feminina, belíssima e moça (...)231.
Figura 12 – Jean-Baptiste Debret. Casamento de D. Pedro I e D. Amélia. 1829; óleo sobre tela; 45 x
72,3cm. Coleção Banco Itaú, São Paulo.
Em 16 de outubro, chegava à baía de Guanabara a fragata que trazia a nova
esposa do imperador, D. Amélia, que trazia consigo seu irmão, e d. Maria da Glória que
estava na Europa estudando. O Rio de Janeiro se preparou, como já de costume de
outras solenidades da corte, para o grande casamento, construindo vários arcos do
triunfo, que para Debret “o entusiasmo geral dos brasileiros não podia deixar de ser
compartilhado pelos estrangeiros nos festejos organizados para a chegada da nova
Imperatriz Amélia (...)”232. Um dia após a sua chegada, os noivos trocaram as alianças,
para que já no dia seguinte ocorresse a cerimônia religiosa – cerimônia esta retratada
por Debret. Para o pintor, “o segundo casamento de Dom Pedro veio reavivar no Rio de
Janeiro a gloriosa recordação das festas da aclamação de Dom João VI e da chegada da
arquiduquesa austríaca Maria Leopoldina (...)”233. Em outras palavras, Debret quis
231 PRIORE, Mary del. A carne e o sangue: A imperatriz D. Leopoldina, D. Pedro I e Domitila, a Marquesa de Santos. Rio de Janeiro: Rocco, 2012. p. 245. 232 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p. 647. 233 Ibidem, p. 424.
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demostrar que o segundo casamento veio restabelecer a ordem e a moral na corte,
depois de vários anos de escândalos amorosos. Para Dias, D. Amélia “simbolizava,
além da beleza civilizadora ao instalar o modelo francês na etiqueta da corte portuguesa,
também uma tentativa de instaurar novamente a ordem a um trono cujo Rei, viúvo,
encontrava-se enfraquecido (...)”234. Além disso, a nova imperatriz foi alvo de vários
elogios por parte de Debret, que a considerava um exemplo de civilização europeia.
Debret, em sua obra, destaca a imperatriz Amélia, não pelo papel que exercia no Brasil,
mas pelo fato de ser francesa, e por seu parentesco com Napoleão.
Assim como a nobre e elegante estatura da Princesa de Leuchtenberg seduziu o imperador e os brasileiros, suas maneiras afáveis, sua perfeita educação, a suavidade de seus pensamentos, expressos com tanta graça, tornaram-se no palácio o exemplo da civilização europeia, que, imperfeita ainda, já se refletia em torno dela. Também se conhecia na capital o sistema regular estabelecido pela imperatriz no Palácio de São Cristóvão. Certas horas eram dedicadas a determinados estudos; outras cabiam aos cuidados maternos que ela consagrava à sua família adotiva; outras ainda, a seus divertimentos. E os europeus, admiradores da influência da nova soberana, louvavam com entusiasmo algumas primeiras reformas realizadas nos serviços internos do palácio. Graças a ela haviam desaparecido certas formas deprimentes, tanto para o caráter político do ministro como para a posição elevada do general. (...) Deve-se ainda a esse segundo casamento o restabelecimento, no palácio, da ordem devida à dignidade do trono, que fora sensivelmente perturbada durante a viuvez do imperador235.
Na imagem, Debret destaca, no altar, os noivos trocando as alianças,
sobressaindo a vestimenta da noiva, que para Priore: “D, Amélia adotou o costume que
vinha da época do consulado napoleônico: o “vestido de casamento” longo, branco e
acompanhado de véu de renda (...)”236. Ao lado de D. Pedro I, encontram-se enfileirados
os filhos, exceto D. Maria da Glória, órfãos de mãe que com o casamento de seu pai
trouxe “para os príncipes uma nova mãe (...)”237, que ajudaria a educar as crianças ainda
pequenas. As mesmas táticas que Debret utilizava nas imagens de Napoleão, em que o
imperador saúda um soldado ferido, e condecora um soldado inválido (Figura 9), Debret
também exibe na cena do casamento os filhos de D. Pedro I, trazendo “a mensagem que
234 DIAS, Elaine Cristina. Debret, a pintura de história e as ilustrações de corte da “Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil”. 2001. Dissertação (Mestrado em História) – UNICAMP, Campinas, 2001. p. 62. 235 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p. 523. 236 PRIORE, Mary del. A carne e o sangue: A imperatriz D. Leopoldina, D. Pedro I e Domitila, a Marquesa de Santos. Rio de Janeiro: Rocco, 2012. p. 244. 237 DEBRET, Jean-Baptiste, op. cit., p. 424 et seq.
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apela ao sentimento popular”238, demostrando o lado da compaixão e caridade dos
imperadores. Nas imagens de Napoleão que citamos, o imperador manifesta sua
humildade de agradecer o soldado ferido e outro inválido, reconhecendo os trabalhos
prestados por estes soldados. No caso de D. Pedro I, a presença das crianças denota a
preocupação do imperador com seus filhos que necessitavam de uma mãe adotiva.
Próximo aos noivos, na escada, encontra-se o Príncipe Augusto de Beauharnais, irmão
de D. Amélia e cunhado de D. Pedro I, que alguns anos depois também se tornaria
genro do imperador, casando-se com D. Maria da Glória.
Diferentemente de outras imagens feitas por Debret, das solenidades da corte
imperial e até mesmo da corte portuguesa, a imagem do segundo casamento de D. Pedro
não traz consigo tanta pompa e simbolismo, mas sim uma cerimônia simples, na qual o
pintor não destacou uma numerosa participação da corte, de ministros e do clero,
deixando maior parte da imagem para destaque dos noivos e do bispo celebrante, de
onde parte, do bispo, uma luz que irradia nos noivos, como se o casamento trouxesse
uma nova luz para o Brasil; como ele mesmo disse: que veio a “ornar o trono
imperial”239. No final de seu relato, a respeito do segundo casamento do imperador,
Debret aponta os problemas que Portugal e Brasil passavam: “quem haveria de pensar,
nesse dia solene, que dezoito meses mais tarde essas grandes personagens, todas as três
fugitivas, se veriam reduzidas a se sustentar mutuamente na desgraça”240, referindo-se à
situação política que mudaria os rumos da história desses dois países.
1.4 Começa um Novo Reinado e a despedida de Debret no Brasil
(...) já não vivia D. João VI; a notícia do seu falecimento, ocorrido em 10 de março de 1826, chegou ao Brasil no dia 24 de abril. Surgiu com essa notícia outro problema grave: o da sucessão de D. Pedro à coroa de Portugal. (...) podia o imperador herdar e aceitar a coroa de Portugal? Conviria ao imperador aquela herança? Seria útil e possível governar do Brasil a nação portuguesa? No caso negativo, como devia ser feita a abdicação e em quem? (...)241.
238 LIMA, Valéria. J. -B. Debret, historiador e pintor: a viagem pitoresca e histórica ao Brasil (1816-1839). Campinas: UNICAMP, 2007. p. 87. 239 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p. 424. 240 Ibidem, p. 650. 241 NORTON, Luíz. A Corte de Portugal no Brasil: (notas, alguns documentos diplomáticos e cartas da imperatriz Leopoldina). 3. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2008. p. 222.
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São com essas perguntas que D. Pedro I acabou entrando em uma situação
difícil, e estava tudo apenas começando, ainda viriam mais acontecimentos que o
deixaria bastante assustado. Primeiro foi a notícia da morte de D. João VI, abrindo um
novo caminho, pois agora D. Pedro I não saberia mais qual rumo tomar, se pelo
caminho da coroa portuguesa ou o de permanecer no Brasil com a coroa brasileira, já
que os dois países enfrentavam grandes problemas. Portugal perdeu seu rei em março de
1826, e o Brasil perdeu sua imperatriz em dezembro do mesmo ano; a política de
Portugal enfrentou tribulações, no Brasil o imperador enfrentou descontentamentos
populares. O quadro político na Europa mudou com “a queda de Carlos X na França e o
início da Monarquia de Julho, tida como liberal”242, colocando em risco os últimos
monarcas absolutistas, entre eles os do Brasil. Com a morte de Dom João VI, por
direito, Dom Pedro I subiria ao trono português, porém o imperador reconheceu que
isso não seria viável tanto para o Brasil como para Portugal, abdicando em maio de
1826, a coroa portuguesa a favor de sua filha, a princesa D. Maria da Glória, e para
garantir a paz em Portugal não dividindo a família, realizou-se por procuração o
casamento da nova rainha de Portugal com o tio D. Miguel, porém não saiu como o
esperado.
(...) grupos a soldo da rainha d. Carlota Joaquina, ainda presa em Queluz, puseram-se no pátio do Palácio da Ajuda para insultar os liberais e os constitucionalistas portugueses, chegando até a apedrejar carruagens. Quando de sua chegada a Lisboa, em 22 de fevereiro, d. Miguel havia ido a um Te Deum na Sé da cidade, onde foi ovacionado pela população. Agentes de d. Carlota infiltrados na multidão davam vivas a “d. Miguel I, nosso rei absoluto”, e gritavam “Morra d. Pedro e a Constituição”; a única reação do príncipe foi sorrir. No dia 1º de março, uma nova multidão acercou-se do paço para dar vivas ao rei absoluto. Instigado pelo clero e pela nobreza, e demais descontentes com a constituição outorgada por D. Pedro, d. Miguel dissolveu o parlamento sem marcar nova eleição, como determinava a Carta Constitucional. (...) em 25 de abril, d. Miguel foi aclamado rei de Portugal pelo Senado de Lisboa. (...) os Estados Gerais reunidos propuseram que d. Miguel assumisse como rei de Portugal, o que de fato ocorreu por aclamação em 7 de julho243.
Com o golpe de d. Miguel, Portugal passou por uma guerra civil, sendo
perseguidos os liberais e constitucionalistas, obrigados a fugirem para não serem
mortos. D. Miguel não cumpriria nenhuma das suas promessas, muito dos exilados
perseguidos refugiaram-se no Brasil, até mesmo D. Maria da Glória, que estava a
caminho de Portugal, foi exilada na Inglaterra por segurança. Ao saber da traição do 242 FAUSTO, Boris. História do Brasil. 14. ed. São Paulo: EDUSP, 2015. p. 136. 243 REZZUTTI, Paulo. D. Pedro: a história não contada. São Paulo: LeYa, 2015. p. 237-238.
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irmão, D. Pedro I denunciou-o, acusado de usurpar a coroa de D. Maria II. Enquanto
isso, no Brasil, as coisas para o lado do imperador iam de mal a pior, seu casamento não
resolveria a situação de sua imagem degradada. A economia estava péssima, com os
cofres públicos zerados depois da Guerra da Cisplatina, resultando numa intervenção da
Inglaterra, o que levou a criação de um novo país, o Uruguai. A derrota brasileira e os
cofres públicos vazios levaram a uma inflação, desvalorizando a moeda do império,
ocasionando o fechamento do Banco do Brasil, em 1829.
A mesma onda revolucionária que derrubou Carlos X do trono francês, discutido
anteriormente, chegou ao Brasil despertando nos liberais brasileiros uma onda contra o
absolutismo de d. Pedro, sendo dispersa a notícia pelo Rio de Janeiro por intermédio do
jornal O Observador Constitucional, do jornalista Libero Badaró, que em seus artigos
argumentava o autoritarismo negligente do governo; é claro que o jornalista se referia a
D. Pedro I, e junto com a imprensa espalhou pelo país um sentimento contra o
absolutismo do imperador, e pregavam um governo constitucional e liberal, totalmente
contrário do que D. Pedro I defendia, o que descontentou o imperador, sendo acusado
pelo assassinato do jornalista Badaró. Por fim, a Câmara de Deputados na sua maioria
liberal, passou a atacar o governo, enquanto algumas revoltas liberais estouravam em
Minas Gerias, sendo preciso que D. Pedro I deixasse o agitado Rio de Janeiro para
viajar para o estado mineiro.
Em Ouro Preto, d. Pedro discursou para a multidão diante do antigo palácio dos governadores. A fala praticamente resumiu-se a uma proclamação antifederalista, recebida com frieza pela população local. A viagem estava sendo um fracasso. D. Pedro sentiu na pele o quanto ele e seus súditos haviam se distanciado. Provavelmente lhe deve ter passado pela cabeça como havia sido recebido, em 1822, tanto em Minas Gerais quanto em São Paulo, bem como o modo como tudo aquilo havia ficado para trás244.
O Brasil estava dividido, portugueses de um lado e brasileiros de outro, gerando
uma revolta pelas ruas do Rio de Janeiro. Na noite em que o imperador chegaria de
viagem ao Rio de Janeiro, o partido português preparou uma festa para a chegada de d.
Pedro à cidade. Por outro lado, os brasileiros foram contra a festa de recepção, pois
“todos se queixavam abertamente da influência usurpadora dos portugueses no
Brasil”245. Iniciou-se um conflito, “quebraram-se os vidros das casas iluminadas e
244 REZZUTTI, Paulo. D. Pedro: a história não contada. São Paulo: LeYa, 2015. p. 268. 245 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro. 1986. p. 431.
81
muitas pessoas foram feridas ou mortas”246, o episódio ficou conhecido como a ‘Noite
das Garrafadas’, que marcou os últimos meses do primeiro reinado. Cada vez mais,
aumentavam os tumultos e revoltas pela cidade, d. Pedro I perdeu as rédeas do Brasil,
“o governo, indeciso, passava alternativamente do rigor à fraqueza, e decaía diariamente
na consideração do povo”247. Sempre em público, era motivo de insultos, por não ser
um imperador constitucional. Para os termos dos dias de hoje, o que marcou o fim do
primeiro reinado foi o antilusitanismo, de um lado os portugueses exilados no Brasil
defendiam um governo absolutista, de outro, os brasileiros defendiam um governo
constitucional.
Dom Pedro pensou restabelecer a calma nomeando um ministério inteiramente composto de deputados liberais, mas era tarde e as desordens não cessaram. Ao fim de dez dias de tentativas inúteis, o imperador censurou-lhes a inação e os substituiu por outros, absolutistas. Foi o sinal da desordem geral248.
Não havia mais outro caminho para d. Pedro I no Brasil, pois havia perdido todo
o apoio popular e agora também o apoio militar; não tinha mais volta: “Dom Pedro
achou mais digno recusar e preferiu abdicar em favor de seu filho”249, e partiu para
Portugal para garantir sua filha no trono português e destronar seu irmão D. Miguel.
“Ao retirar-se para a Europa, D Pedro dirigiu-se a Londres (...) para organizar a
esquadra”250, com objetivo de derrotar D. Miguel. O conflito durou anos até que “um
tratado foi firmado, a 22 de abril de 1834, pelos reis de França e Inglaterra e pelas
rainhas de Portugal e Espanha, nos termos do qual os dois monarcas absolutistas (...) D.
Miguel e D. Carlos, seriam afastados do cenário político”251. Finalmente, D. Pedro
conseguiu elevar ao trono sua filha, que agora era D. Maria II, rainha de Portugal.
Enquanto no Brasil, ele deixou o restante de seus filhos sozinhos e a coroa para seu
filho Pedro, de apenas cinco anos de idade.
246 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro. 1986. p. 431. 247 Ibidem, p. 430. 248 Ibidem, p. 431. 249 Idem. 250 CERVO, Amado Luiz; MAGALHÃES, José Calvet de. Depois das caravelas: as relações entre Portugal e Brasil; 1808-2010. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2000. p. 125. 251 Ibidem, p. 126.
82
Figura 13 – Jean-Baptiste Debret. Aclamação de D. Pedro II, Segundo Imperador do Brasil. 1839;
aquarela sobre papel; 20,7 x 33,7cm. Museus Castro Maya, Rio de Janeiro.
Efetivamente, antes da aurora do dia 7 de abril de 1831, era o trono do Brasil entregue a Dom Pedro II, sucessor de seu pai; e o novo soberano, menino de seis anos, comovendo-se, ao acordar, como o movimento extraordinário que observava em torno de si, reclamava inquietamente a presença do pai; mas este há já algumas horas o abandonara para sempre. Finalmente, gemendo sob o peso de uma grandeza prematura que o obriga, sem mesmo conhecê-la, a mostrar-se ao povo, o jovem imperador órfão, como os olhos banhados de lágrimas, por se ver colocado sozinho no fundo da carruagem de gala e privado da presença de seus pais, confia a cada instante sua ansiedade à sua governanta, única a sentar-se diante dele e única também, desde então, a prodigalizar-lhe os cuidados que com tanta solicitude lhe eram dados por sua mãe adotiva (...)252.
Na imagem em primeiro plano destaca-se a guarda imperial que faz o isolamento
próximo do palácio, onde os juízes de paz do Rio de Janeiro “reunidos em cavalgada e
dando com a saudação da bandeira o sinal das aclamações unanimemente repetidas
com: “Viva o nosso imperador”253. Enquanto isso, encontra-se no balcão, juntamente
com suas irmãs, o novo imperador “sustentado por seu tutor José Bonifácio, mantinha-
se de pé em cima de uma poltrona (...)”254. Mesmo que Debret não tenha acompanhado
de perto o 2º reinado, partindo logo após a aclamação de D. Pedro II, deixa em sua
imagem a figura de Bonifácio, considerado por Debret o responsável que “conduziu o
252 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p. 651. 253 Ibidem, p. 653. 254 Idem.
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Brasil à emancipação e foi quem ergueu o trono imperial para colocar Pedro I”255.
Agora, novamente, José Bonifácio sustentara e erguera o 2º reinado, sendo representado
na imagem carregando o novo imperador, que possuía apenas cinco anos, não tendo
condições de governar sozinho, sendo necessário ser amparado pelos regentes até a sua
maioridade.
Outro fato que chama a atenção no canto direito da imagem de Debret, é a
presença dos escravos, que diferentemente das aclamações de D. João VI e D. Pedro I,
percebemos nessa comparação as duas maneiras de retratar os acontecimentos políticos.
Nas cerimônias palacianas compõem as cenas apenas os nobres, militares e religiosos,
característica de suas imagens históricas, obedecendo a um determinado padrão de
“estética”. Ao retratar a aclamação pública do futuro d. Pedro II, traz consigo na
imagem a arte pitoresca; arte do cotidiano da rua, totalmente contraria com a arte
histórica, na qual insere toda a população, entrando em cena também os escravos.
Outro fato é a diferença dos ângulos das imagens, na aclamação de d. Pedro I
Debret retrata de uma visão de cima para baixo, a qual discutimos na imagem 6; na
aclamação do futuro d. Pedro II, é retratada de baixo para cima, demostrando seu
afastamento do próximo reinado, Debret provavelmente já tinha em mente sua volta
para a França.
Depois de uma estadia de 15 anos no Brasil, em 1831, Debret partiria novamente
para Paris. O objetivo de Debret no Brasil era fundar a Academia de Belas-Artes do Rio
de Janeiro, que por “circunstâncias políticas, entravando o nosso estabelecimento,
prolongaram nossa estada (...)”256, intrigas internas entre artistas, questões políticas, a
morte do protetor dos artistas franceses – o Conde da Barca, dificultaram o início dos
trabalhos para a criação da Academia, o que levou dez anos para que finalmente fosse
criada, o que para Debret foi tempo suficiente que “inspiraram o gosto pelas artes aos
jovens brasileiros (...)”257, e só depois possibilitou sua volta a Paris. Após a criação da
Academia de Artes, de incentivar os estudos das artes aos brasileiros e a partida de d.
Pedro I, Debret viu-se desamparado, na incerteza se continuaria ou não sendo pintor da
corte, decidindo voltar a Paris, argumentando que o motivo de seu retorno, “foi em
virtude dos êxitos rápidos de meus alunos que tive a ventura de obter, do conselho da
255 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p. 432. 256 Ibidem, p. 11. 257 Ibidem, p. 11.
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Regência, uma licença limitada para voltar à minha pátria e aí gozar, no seio de minha
família (...)”258.
Na verdade, os motivos do retorno de Debret eram outros, além dos problemas
de saúde, Debret sentia certamente o desamparo com a partida de D. Pedro I, que tanto
o apoiara. O artista simpatizante de Napoleão, que saiu às pressas de Paris por medo das
perseguições políticas após a queda do imperador francês, vivendo quinze anos longe de
sua pátria, novamente sentiria a falta de um incentivador, que o fez partir novamente
para a França, permitindo após seu retorno “no final do ano de 1831, até sua morte em
1848: terreno fértil e pleno de indícios que nos permitem reconstituir, mesmo que
parcialmente, a trajetória do artista durante esse período”259, no qual colocou em dia
seus trabalhos para a publicação dos três volumes da “Viagem Pitoresca e Histórica ao
Brasil”.
Nos quinze anos em que permaneceu no Brasil, o artista realizou ainda trabalhos variados com técnicas menos acadêmicas do que a pintura a óleo, em desenhos e aquarelas que figuravam cenas de rua do Rio de Janeiro, bem como imagens sugestivas da vida privada de algumas famílias, de elite ou não, compondo um cenário relativamente amplo dessa cidade e do seu modo de vida. A realização desses trabalhos revelava um projeto paralelo do artista: publicar um álbum pictórico sobre o Brasil quando retornasse à França, o que aconteceu entre os anos de 1834-39, como o lançamento do livro Voyage pittoresque et historique au Brésil foi divido em três volumes: o primeiro, editado em 1834, trata exclusivamente dos indígenas, o segundo, de 1835, figura o cotidiano nas ruas do Rio de Janeiro, especialmente a vida dos escravos, e o terceiro, publicado em 1839, contempla especialmente imagens sobre a vida política e religiosa na corte, com destaque para a monarquia260.
Além de suas ocupações, após retornar a Paris, começou a escrever e a organizar
o seu livro para a publicação. Debret também “retoma contato com seus antigos colegas,
com os quais realiza uma série de banquetes anuais em homenagem a Jacques-Louis
David, seu antigo mestre”261, tendo a oportunidade de contar suas experiências vividas a
seus amigos, sempre tendo o Brasil em mente, mantendo contato por meio de
“correspondência enviada a seu antigo aluno na Academia das Belas-Artes do Rio de
Janeiro”262, ficando por dentro de tudo aquilo que acontecia na cidade, sendo inserido
258 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p. 11. 259 LIMA, Valéria. J. -B. Debret, historiador e pintor: a viagem pitoresca e histórica ao Brasil (1816-1839). Campinas: UNICAMP, 2007. p. 104. 260 TREVISAN, Anderson Ricardo. A redescoberta de Debret no Brasil modernista. São Paulo: Alameda, 2015. p. 51. 261 LIMA, Valéria, op. cit., p. 105 et seq. 262 Idem.
85
em seu livro, no qual ele manifesta sua satisfação em saber dos “diversos
melhoramentos recentes introduzidos no Rio de Janeiro”263. Debret deixou o Brasil em
um momento quando “se iniciavam as Regências e uma nova fase da história
brasileira”264, marcada por grandes mudanças que levariam a imagem do Brasil pelo
mundo como uma grande potência, através do café e de outros avanços que o próprio
Debret descreve:
Assim, entre essas inovações, que datam apenas de cinco anos, já existem reconstruções louváveis por todos os aspectos, erguidas no lugar de certos edifícios cuja forma perdida para sempre para o viajante de 1836 se encontra fielmente traçada (...). Por ocasião da coroação de Dom Pedro II fixou-se para o ano de 1835 a redução do número de membros do Conselho da Regência Provisória; nesse mesmo ano deveria ser posto em vigor o novo sistema constitucional federativo, as Províncias Unidas do Império Brasileiro, o que faria com que a cidade do Rio de Janeiro, que continua capital do império, se tornasse o lugar de reunião dos governadores de província ou, em outras palavras, do Congresso Brasileiro. Com esta modificação, cidade de Praia Grande, situada na baía do Rio de Janeiro. Toma o nome de Niterói e se torna a capital da província do Rio de Janeiro. (...) outra inovação muito importante, e para cuja execução já existem fundos, é a construção, já iniciada, dos muros da cidade e a terminação do canal (...). Finalmente, é de crer, a julgar pelos preparativos, que muito proximamente as ruas da cidade, bem como a estrada de São Cristóvão, serão iluminadas a gás. Em resumo, tudo progride nesse país, onde a independência trouxe consigo a nobre emulação de distinguir-se pela ciência, as artes e o luxo265.
A partir de 1834, Debret publica seu primeiro volume, contendo juntamente com
seu relato um álbum de imagens do Brasil, na certeza de que sua obra faria sucesso,
porém, “o artista não faria grande sucesso na Europa e que o nome dele pouco
apareceria nos livros e enciclopédias dedicados aos pintores franceses do século
XIX”266. O mesmo ocorreu com as demais publicações de seus outros dois volumes,
chegando Debret a apelar ao seu ex-aluno, Manuel de Araújo Porto-Alegre, para que
recebesse sua aposentadoria, encontrando-se com “problemas de saúde e de moradia,
que o colocava numa situação financeira difícil”267. Sua situação financeira foi se
agravando até seus últimos anos, chegando ao final da vida sem esperanças de receber
“os pagamentos que lhe eram devidos pelo governo, das obras que fizera para dom João
263 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p. 347. 264 SCHWARCZ, Lilia Moritz. As barbas do imperador: D. Pedro II, um monarca nos trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 52. 265 DEBRET, Jean-Baptiste, op. cit., p. 347-348 et seq. 266 SCHWARCZ, Lilia Moritz. O sol do Brasil: Nicolas-Antoine Taunay e as desventuras dos artistas franceses na corte de d. João. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. p. 297. 267 LIMA, Valéria. J. -B. Debret, historiador e pintor: a viagem pitoresca e histórica ao Brasil (1816-1839). Campinas: UNICAMP, 2007. p. 113.
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VI e para dom Pedro I enquanto estava no Brasil”268. Um pintor que construiu a imagem
de D. Pedro I com características de seu antigo ídolo Napoleão Bonaparte, como as
campanhas de expansão de territórios, enfim, sempre elevando a imagem do imperador
brasileiro, terminaria sua trajetória fazendo um desabafo sobre a dívida a qual o
monarca deixou a ele.
Um artista que sempre dizia que o Brasil era novo e que ainda passava pelo
processo de civilização, veria após o seu retorno à Europa o grande crescimento e
desenvolvimento do país, sendo a base de informações necessárias para seu livro,
tornara-se um dos pintores mais reconhecidos no Brasil, com “um acervo fundamental
para a cultura brasileira”269 que com suas imagens e relatos possibilitaram estudar e
compreender a história do Brasil oitocentista.
Graças a seu trabalho, que diferentemente de outros viajantes, Debret procurou
em sua obra retratar e relatar a história do Brasil. Como afirma Lima, “Debret optou por
qualificar duplamente sua Viagem: não seria apenas pittoresque, mas também
historique (...)”270. Para Debret era importante conter em sua obra as duas
características; pitoreca e histórica. A arte histórica legitimava seu papel como pintor da
corte, a maneira como construiu a imagem daquela corte na época, tornando-se
praticamente uma propaganda imagética, como refere Burke, tendo como “necessidade
de uma boa “imagem pública””271. A arte pitoresca por sua vez, traz o exótico, os
costumes sociais como atrativo para os leitores, mas a característica pitoresca de Debret
aprofundaremos no próximo capítulo.
268 LIMA, Valéria. J. -B. Debret, historiador e pintor: a viagem pitoresca e histórica ao Brasil (1816-1839). Campinas: UNICAMP, 2007. p. 119. 269 BANDEIRA, Julio; LAGO, Pedro Corrêa do. Debret e o Brasil: obra completa, 1816-1831. 3. ed. São Paulo: Capivara, 2013. p. 17. 270 LIMA, Valéria, op. cit., p. 129 et seq. 271 BURKE, Peter. Testemunha Ocular: o uso de imagens como evidência histórica. São Paulo: UNESP, 2017, p. 95.
87
CAPÍTULO 2 – “A RUA: O PALCO DO COMÉRCIO”
2.1 O pão nosso de cada dia do comércio ambulante
Percorrendo as ruas fica-se espantado com a prodigiosa quantidade de negros, perambulando seminus e que executam os trabalhos mais penosos e servem de carregadores. (...) os mercados são abundantemente abastecidos de frutas, legumes, aves e peixes. Rio de Janeiro é o principal centro comercial do Brasil. (...) as inúmeras lojas da cidade são diariamente abastecidas pelas províncias de Minas Gerais, São Paulo, Goiás, Cuiabá e Curitiba. Por isso amiúde se encontram nas ruas tropas de mula, que se cruzam e se sucedem, entrando e saindo, carregadas de cargas enormes (...)272.
Pelo relato de Debret, temos claramente a noção do grande número de escravos
pelas ruas do Rio de Janeiro, e até mesmo espalhados pelo Brasil. No capítulo anterior,
discutimos a maneira como Debret criou a imagem da corte no Brasil, como pintor
histórico, devendo seguir um padrão de estilo de imagem, contendo nas cenas elementos
necessários para exaltar a majestade do imperador, conferindo-o “um caráter de maior
dignidade”273. O estilo triunfante da pintura histórica será diferentemente do estilo
pitoresco empregado por Debret para construir a imagem do cotidiano. Para o estilo
adotado por Debret, destacamos as duas influências que o artista adquiriu durante a sua
carreira artística; durante o período que esteve na Itália, provavelmente teve contato
com o estilo da pintura costumbrista italiana, a arte está voltada para cenas dos
costumes das sociedades, o cotidiano.
Outra influência artística de Debret, foi com a Revolução Francesa, tendo a festa
revolucionária no espaço público, trazendo para a arte neoclássica francesa “outras
esferas da existência, no intuito de manter um nexo forte entre estética e movimento
social”274. Podemos dizer que as duas influências na vida de Debret favoreceram para
que a maior parte das cenas retratadas no Brasil obtivesse ligação com a rua. Se
procurarmos no dicionário o significado de ‘pitoresco’ encontramos como definições:
curioso, exótico, festivo, agradável. Para Torrão, a marca dos viajantes pitorescos é a
busca em “povos exóticos um conhecimento social e político por meio de imagens e 272 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p. 126-127. 273 BURKE, Peter. Testemunha Ocular: o uso de imagens como evidência histórica. São Paulo: UNESP, 2017, p. 107. 274 NAVES, Rodrigo. A forma difícil: ensaios sobre arte brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. 132.
88
textos agradáveis, de interesse do grande público ávido por novidades”275. Todas essas
definições, Debret encontrara na vida social do dia a dia no Rio de Janeiro. Para
iniciarmos este capítulo, no qual abordamos esse cotidiano em que Debret construiu,
iniciaremos pela imagem do mercado de escravos, primeiro lugar destinado para os
escravos recém-chegados da África, até serem comprados e assim exercerem os mais
variados serviços, tanto na cidade como no campo.
Figura 14 – Jean-Baptiste Debret. Mercado de escravos na Rua do Valongo. 1816-1828; aquarela sobre
papel; 17,5 x 26,2cm. Museus Castro Maya, Rio de Janeiro.
Depois de alguns meses viajando nos porões dos navios negreiros, alimentando-
se e dormindo mal, sofrendo por doenças que levavam à morte de alguns e pelos maus
tratos, chegavam aos principais portos brasileiros. A imagem de Debret mostra
claramente o estado de saúde dos escravos que chegavam da África, todos desnutridos
pela viagem. Ao desembarcarem, eram batizados, recebendo nomes cristãos, e também
recebiam os cuidados necessários para serem levados aos mercados de escravos,
chamados de Valongo, “verdadeiro entreposto onde são guardados os escravos
chegados da África. Às vezes pertencem a diversos proprietários e são diferenciados 275 TORRÃO Filho, Amilcar. Cidade aberta, sem muralhas. A religião luso-brasileira na literatura de viagem (séculos XVIII-XIX). História [online], v. 29, n. 1, p. 71-90, 2010.
89
pela cor do pedaço de pano ou sarja (...) ou de um chumaço de cabelo na cabeça”276,
sendo possível verificar na imagem.
Ficavam expostos para os compradores, desde agricultores, comerciantes ou
particulares, para exercerem os mais variados serviços, de acordo com as necessidades
de seu novo dono: “ao sair do armazém, já não terá o direito de trocá-lo”277, foi desta
maneira que o tráfico de escravos durou aproximadamente trezentos anos no Brasil,
retirando os africanos de suas terras de origem para trabalhar de forma forçada do outro
lado do Atlântico. Discutimos anteriormente a fragilidade dos escravos ao serem
expostos no mercado, e mesmo debilitados pela viagem estavam sujeitos ao castigo da
chibata, podendo ser observado ao lado do dono do mercado, sentado em uma cadeira
confortavelmente com uma moringa de água ao lado, enquanto apresenta um menino
para o comprador. Ao fundo da imagem, logo acima das portas encontra-se o local onde
os escravos dormiam.
Ao serem comprados, seus destinos ficavam nas mãos de seus novos donos,
alguns escravos iam trabalhar nas lavouras, onde “fecundou os canaviais e os cafezais;
que lhe amaciou a terra seca”278. Para Debret, o escravo “na roça, ele rega com seu suor
as plantações do agricultor”279, nas cidades, principalmente nos principais centros, como
o Rio de Janeiro, “o comerciante fá-lo carregar pesados fardos (...) que aumenta a renda
do Senhor”280, nos mais variados serviços. Karasch descreve esses tipos de atividades
que eram empregados aos escravos.
(...) os senhores de escravos do Rio utilizavam seus cativos numa variedade extraordinária de ocupações manuais especializadas ou não, de diferentes setores da economia. Eles eram impressores, litógrafos, pintores, escultores, músicos de orquestra, enfermeiros, parteiras, barbeiros-cirurgiões, costureiras, alfaiates, ourives, açougueiros, caçadores, naturalistas e hortelões, para nomear apenas algumas profissões.281
Percebe-se a importância que a mão de obra escrava teve para o
desenvolvimento do Rio de Janeiro, onde em vários setores serão os responsáveis por
exercer suas profissões, e até mesmo seus ofícios. De acordo com Freyre, vieram da
276 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p. 229. 277 Ibidem, p. 231. 278 FREYRE, Gilberto. Casa grande e senzala. 51. ed. São Paulo: Global, 2006. p. 391. 279 DEBRET, Jean-Baptiste, op. cit., p. 121 et seq. 280 Idem. 281 KARASCH, Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro, 1808-1850. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 283.
90
África “técnicos para as minas; artífices em ferro; negros entendidos na criação de gado
e na indústria pastoril; comerciantes de panos e sabão; mestres, sacerdotes e tiradores de
reza maometanos”282. É por meio dessas características dos diversos ofícios e serviços,
o qual movimentavam o cotidiano citadino do Rio de Janeiro, que nessa seção
analisaremos as formas como Debret apresenta as dinâmicas sociais do comércio e do
consumo no Rio de Janeiro, através de várias imagens de escravos exercendo as
variadas funções nas ruas, como vendedores ou até mesmo exercendo um ofício. A
capital do império não se concentrava apenas nos palácios e nas repartições públicas,
mas sim nas ruas, palco do grande movimento diário. O primeiro aspecto, era por ser
uma cidade sede da colônia e mais tarde do império, onde toda decisão saia dela, e por
isso o grande movimento de pessoas de outras províncias na cidade. Outro fato, era por
ser uma cidade portuária, onde chegavam mercadorias de outras partes do mundo
diariamente, sendo as ruas do Rio de Janeiro tomadas por um grande número de
escravos com suas tarefas e com suas mercadorias ambulantes, que geravam maior
renda para seus senhores, e também por uma população pobre necessitada desse
comércio das ruas para sobreviver.
No início da colonização, a alimentação era precária tanto no litoral como no
interior, de acordo com Freyre, era “má nos engenhos e péssima nas cidades: tal a
alimentação da sociedade brasileira nos séculos XVI, XVII e XVIII”283. A base da dieta
alimentar era constituída de animais silvestres ou de criações, frutas e legumes, e poucas
vezes “davam-se eles ao luxo tolo de mandar vir de Portugal e das ilhas; do que
resultava consumirem víveres nem sempre bem conservados (...)”284, devido às
distâncias e ao mau acondicionamento, boa parte das mercadorias acabavam se
deteriorando. Se com as lavouras de cana-de-açúcar no litoral nordestino e as inúmeras
cidades que começavam a surgir pela costa brasileira, a escassez de alimentos já era de
costume da população, com o início da mineração em Minas Gerais, houve ainda mais
carência de alimentos pelo aumento e grande concentração da população em um só
local, e ainda por cima no interior do Brasil, o que dificultava o transporte e envio de
mercadorias, sendo transportadas por tropas em função das péssimas condições das
estradas, e ainda no decorrer do caminho boa parte das mercadorias se perdia.
282 FREYRE, Gilberto. Casa grande e senzala. 51. ed. São Paulo: Global, 2006. p. 391. 283 Ibidem, p. 102. 284 Ibidem, p. 98.
91
A carestia marcou profundamente os anos iniciais de exploração das minas. À distância entre as lavras e as regiões que produziam alimentos e artigos necessários aos mineradores, somavam-se as péssimas condições de acesso, a precariedade dos meios de transporte, a falta de moedas, que dificultava as trocas comerciais, e a multiplicidade de tributos que incidiam sobre as mercadorias importadas pelos mineiros. (...) e era tal a falta de mantimentos que se vendia no Ribeirão [do Carmo] um alqueire de milho por vinte oitavas, e de farinha por 32, e de feijão por 32; uma galinha por 12 oitavas, um cachorrinho ou gatinho [por] 32, uma vara de fumo [por] 5 oitavas, um prato pequeno de estanho cheio de sal por 8. E tudo o mais a este respeito, por cuja causa e fome morreu muito gentio tapanhunos e carijós, por comerem bichos de taquara (...).285
O aumento do comércio no Brasil, e, especialmente no Rio de Janeiro ocorre a
partir de 1808, com a vinda da corte, pois do dia para a noite seriam mais de 15 mil
bocas a mais para alimentar, “o ritmo da economia se intensificara. Novo mercado
consumidor surgira”286, ficando as demais províncias próximas ao Rio de Janeiro,
responsáveis por abastecer a sede da coroa com alimentos, e com a medida de Dom
João de abrir os portos brasileiros, o Brasil seria abastecido também com mercadorias
de luxo vindo da Europa, assim “o Rio crescia também como centro distribuidor,
entreposto para a movimentação dos negócios com o interior”287, tudo se concentrava
no Rio de Janeiro fazendo com que a população crescesse muito, “passando de 50.000
almas, que constava em 1808, a mais de 110.000, número atingido em 1817”288.
Juntamente com o aumento da população, viria o aumento do comércio, seja ele nos
estabelecimentos ou nos ambulantes, mas neste item iremos analisar o comércio
ambulante, feito por escravos de ganho ou forros, e pela população mais pobre, que
dependiam para sobreviver ou aumentar a renda de seu senhor. A partir de agora a
demanda de mão de obra escrava na cidade ultrapassara as barreiras agrícolas.
Nesta cidade, os escravos circulavam por todos os cantos, dedicando-se a várias atividades, quer fossem escravos domésticos encarregados de pequenas compras ou recados para seus senhores, alugados a negociantes, ou mesmo escravos empregados ao ganho por seus proprietários.289
Na cidade havia variações do trabalho escravo, sendo domésticos, de ganho e
alugados. Os escravos domésticos eram os responsáveis pelos serviços internos da casa
do seu senhor, se “dividiam em: mucamas, ou arrumadeiras (...) amas-de-leite (...)
285 VAINFAS, Ronaldo. Dicionário do Brasil colonial. Rio de Janeiro: Objetiva, 2000. p. 11. 286 COSTA, Emília Viotti da. Da senzala à colônia. 5. ed. São Paulo: Editora UNESP, 2010. p. 68. 287 SILVA, Marilene Rosa Nogueira da. Negro na rua: A nova face da escravidão. São Paulo: HUCITEC, 1988. p. 46. 288 LIMA, Oliveira. D. João VI no Brasil. 4. ed. Rio de Janeiro: TOPBOOKS, 2006. p. 87. 289 SILVA, Marilene Rosa Nogueira da, op. cit., p. 31 et seq.
92
copeiras e copeiros (...) as cozinheiras e os cozinheiros gozavam de grande prestígio”290,
além dos serviçais responsáveis pela limpeza da casa. Os escravos de aluguel exerciam
os ofícios como sapateiros, barbeiros, responsáveis pelos serviços públicos, todo tipo de
serviço que fosse preciso em um determinado local, no qual “o dono recebia pagamento
em contrato de pelo menos um ano e o arrendário se comprometia a manter o
escravo”291, e depois de executado, o serviço voltava novamente para o seu senhor.
O que mais se via pelas ruas do Rio de Janeiro eram os escravos de ganho, que
desempenhavam os trabalhos da rua, vendendo os mais variados produtos e gêneros
alimentícios, onde “carregadores e mulheres ambulantes, ligeiramente vestidas,
transportavam toda sorte de mercadoria na cabeça”292; muitas vezes alguns escravos
obtinham de seus senhores gorjetas pelos lucros arredados das vendas, conquistando
futuramente sua liberdade. O trabalho escravo na cidade se diferenciava do trabalho na
roça, pois dificilmente o escravo da roça conseguia comprar sua liberdade, ao contrário
do escravo da cidade, onde havia certa mobilidade social, que através das gorjetas
adquiridas, com o tempo, muitos escravos compravam sua liberdade. Eles eram os
donos da rua, saiam diariamente, sejam de casas na cidade, chácaras vizinhas e até
mesmo de outras províncias para vender seus produtos.
Do interior, isto é, de Minas Gerais, a cidade do Rio de Janeiro recebia, para seu abastecimento e para exportar, ouro em barra, pedras preciosas, algodão, café, fumo, queijos, rapadura, marmelada, pano grosseiro de algodão (para uso dos escravos e da gente pobre), farinha, feijão, toucinho e carne de porco. O Rio Grande do Sul enviava, por terra, gado para corte, cavalos, mulas. Porém, outros produtos vinham do mar, a saber: couros, chifres, carne seca e salgada, sebo, farinha de trigo e arroz. São Paulo também mandava, por via terrestre, gado para corte, algodão, açúcar e queijos. A província de Santa Catarina estava representada pelos seguintes produtos: couros, louças de barro, peixe seco, cebolas, alhos e alguma madeira para construção. Da Bahia e do Espírito Santo vinham desde as mais ricas madeiras, para construção e para a feitura de móveis, até lenha, carvão vegetal, pau-brasil, pranchões para construção naval, tinas, pipas, cascas, coco, fumo, açúcar, feijão, farinha, arroz, pimentas, azeites, hortaliças, peixes, louça de barro, cal de marisco e virgem, e uma infinidade de artigos manufaturados pelos negros africanos. Pernambuco se especializara no envio de sal, salitre e farinha. O Maranhão mandava algodão e sal.293
290 RIOS FILHO, Adolfo Morales de Los. O Rio de Janeiro Imperial. Rio de Janeiro: TOPBOOKS, 2000. p. 283-284. 291 LIBBY, Douglas Cole. Escravo e capital estrangeiro no Brasil: o caso de Morro Velho. Belo Horizonte: Itatiaia, 1984. p. 165. 292 PRIORE, Mary del. Histórias da gente brasileira. São Paulo: Leya, 2016. v. 1, p. 164. 293 RIOS FILHO, Adolfo Morales de Los, op. cit., p. 337 et seq.
93
De acordo com Los Rios, percebemos o grande movimento que se dava pelas
ruas do Rio de Janeiro, de mercadorias vindas de quase todo o país, pelas tropas de
mulas, navios e por escravos, abastecendo e fortalecendo o mercado local. Para melhor
compreendermos a forma como as mercadorias chegavam ao Rio de Janeiro, Debret, em
sua imagem titulada “Vendedores de Aves”, apresenta três maneiras diferentes de como
as aves chegavam à cidade, e a diferenciação de valor que “o consumidor brasileiro
reconhece o ponto mais ou menos longínquo de origem dessas aves pelos meios
empregados no transporte”294.
Figura 15 – Jean-Baptiste Debret. Negros vendedores de aves. 1835; litografia; 14,4 x 21,2cm. Arquivo
Nacional, Rio de Janeiro.
Muitas pessoas praticam esse comércio, bastante lucrativo, apesar da devastação das epidemias muito frequente e que servem de pretexto aos especuladores para manterem um preço elevado (...). Esse comércio é tanto mais apreciável para o brasileiro quanto nas suas propriedades rurais, a criação de aves é pouco dispendiosa; estas são fáceis de criar, pois em verdade são largadas durante o dia para que se alimentem exclusivamente de grandes insetos, numerosos nas sebes. (...) a razão mais importante, talvez, que obriga o cidadão a suportar sem recriminar a elevação do preço dessa espécie de ave é o uso da canja de galinha, importada pelos portugueses no Brasil e tão generalizada hoje no Rio de Janeiro que é possível observar a presença diária desse alimento na mesa do homem abastado e mais estritamente ainda no quarto do doente. (...) assim, a canja, tornada
294 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p. 99.
94
indispensável, encontra-se preparada desde manhã nas casas de pasto e nas enfermarias (...).295
A questão levantada por Debret, em seu relato, demonstra que não existe uma
produção de alimentos, e somente se vendessem as aves porque não precisavam criá-las,
viviam soltas, sendo ironizado por ele o fato de serem vendidas a altos preços, o que
tornava um comércio grande e lucrativo. De acordo com Debret, as aves transportadas
para o comércio variavam de acordo com a distância de origem. No primeiro plano,
destacam-se dois escravos, no qual um deles carrega as aves em um cesto, conhecida
como capoeira, “nome dos grandes cestos, destinados ao transporte de aves, fechados na
parte superior por uma espécie de cúpula feita de cipó entrelaçado. Por extensão,
homens dos capoeiros eram os respectivos carregadores”296, trazendo as aves das
chácaras ou bairros rurais próximos do Rio de Janeiro, tendo seu preço mais valorizado,
pois “chegam frescas ao mercado antes do sol”297.
O escravo que vende as aves amarradas pelos pés e levadas pelas mãos é de
origem de criações dentro da cidade, criadas nos fundos das casas. Segundo o relato de
Debret, “aproveitam ainda a vantagem de serem conhecidos na cidade e oferecem suas
aves de porta em porta, já as vendendo em parte no caminho”298. Em segundo plano, ao
fundo da imagem, encontra-se um escravo tropeiro, que traz das províncias de São
Paulo e Minas Gerais as aves para serem vendidas na cidade, pois no mercado possuem
menor preço, porque “sofrem tanto do calor durante o trajeto que quase nunca
sobrevivem mais de um mês à fadiga da viagem”299, por serem transportadas dentro de
jacas, e a duração das viagens era longa, já que por “via terrestre eram relativamente
difíceis e irregulares, apesar de existirem caminhos sofríveis (...)”300, chegando ao ponto
de comércio com parte das mercadorias, e outra parte se perdia no caminho.
Para a cidade do Rio de Janeiro, os seus “distritos rurais, quer os de montanha,
quer os de planícies, davam uma impressão de colonização intencional, denunciando
diligência e um resultado positivo colhido da cultura dos cereais, do açúcar e do café e
da criação de gado vacum, cavalar e sobretudo muar”301. São das zonas rurais, próximas
295 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p 200. 296 RIOS FILHO, Adolfo Morales de Los. O Rio de Janeiro Imperial. Rio de Janeiro: TOPBOOKS, 2000. p. 72. 297 DEBRET, Jean-Baptiste, op. cit., p. 199 et seq. 298 Idem. 299 Idem. 300 LIMA, Oliveira. D. João VI no Brasil. 4. ed. Rio de Janeiro: TOPBOOKS, 2006. p. 89. 301 Ibidem, p. 103.
95
da capital, que saíam boa parte dos alimentos da mesa diária, sendo a rua tomada por
escravos vendedores de café torrado, palmito, legumes, verduras, ervas, milho, leite,
capim e tantas outras especiarias que discutiremos mais adiante, no final deste segundo
item. O leite era a mercadoria encontrada na cidade todos os dias; seus vendedores, já
no início das primeiras horas do dia, percorriam a cidade batendo de porta em porta,
oferecendo o produto.
Figura 16 – Jean-Baptiste Debret. Carregadores de leite vindo para a cidade. 1827; aquarela sobre papel;
16,2 x 22,5cm; assinada e datada. Museus Castro Maya, Rio de Janeiro. O leite era vendido por negros montados em burricos. Tais vendedores estavam conhecidos como pretos do leite. Depois, começaram a aparecer os depósitos de leite. (...) depois, apareceu nas ruas o leiteiro que, fazendo-se acompanhar da vaca leiteira, parava à porta do freguês e a mungia. A aproximação da mesma e consequente chegada era conhecida pelo badalar da sineta, que trazia presa por meio de uma correia. E quando os fâmulos da mansão demoravam em trazer as vasilhas, o robusto condutor do animal soltava a estridente advertência de: Olha o leiteiro!302
De acordo com Los Rios, os escravos vendedores de leite iam para a cidade de
burricos, mas na cena de Debret, esse trabalho era feito caminhando pelas ruas de casa
em casa, oferecendo o leite transportado em latões na cabeça, como observamos nos
302 RIOS FILHO, Adolfo Morales de Los. O Rio de Janeiro Imperial. Rio de Janeiro: TOPBOOKS, 2000. p. 283.
96
escravos que compõem o centro da imagem em primeiro plano, uma escrava e um
escravo com os latões na cabeça e outra escrava segurando o latão na mão, como se
estivesse terminado de vender o leite, pela facilidade pela qual segura o latão. Além dos
latões, observamos junto aos escravos o porte de caneca, utilizado como medidor de
leite: o valor pago pelo leite variava de acordo com a quantidade de canecas solicitadas
pelo comprador. Contudo, o que mais chama a atenção na imagem é o latão carregado
pelo escravo no primeiro plano à esquerda, que traz um cadeado, devido às inúmeras
reclamações dos consumidores, pelas fraudes que ocorriam com o leite, com o objetivo
“de conseguir, ilicitamente, um copo de cachaça sem diminuir, entretanto, a importância
a que está obrigado; assim é que, no caminho, acrescenta ao leite um copo de água”303.
Para evitar essa fraude, e não perder a freguesia, adotou-se um meio de inserir o
cadeado nos latões de leite, abertos perante a presença do freguês que possuía uma
segunda chave. Debret considera o escravo “inventor dessa pequena fraude”304 o ato
dele alterar o leite inserindo água, em troca de um copo de cachaça ou até para seu
próprio consumo, porém não é um infrator, havendo tantos outros casos da mesma
fraude em outros lugares, não necessariamente apenas pelos escravos. O ato do escravo
fraudar o leite está ligado a uma resistência contra o patrão, já que a alimentação dos
escravos era restrita e “o leite era escasso e inacessível à bolsa do pobre”305, sendo
possível observar ao fundo da imagem, do lado direito, duas escravas vendedoras de
leite próximas da fonte de água, na qual a escrava em pé toma a caneca de leite,
enquanto a outra, ajoelhada, insere água no latão para repor a quantidade de leite
retirado. As várias formas de resistência por parte dos escravos, como analisamos da
fraude do leite, estão ligados aos maus tratos sofridos, pelas chibatas, palmatórias e
colares de ferro, sejam da cidade, sejam no campo. Muitas vezes, mal sabiam os
motivos pelos quais estavam sendo castigados, e o mais humilhante que um escravo
podia imaginar em passar era ser castigado em praça pública, no pelourinho.
Segundo o Código Penal, havia “a pena do açoite, aplicável a todo escravo negro
culpado de falta grave: deserção, roubo, ferimentos recebidos em briga, etc.”306, mas
não era obedecido pelos senhores de escravos e os feitores, tornando a chibata um
instrumento do dia a dia nas mãos dos feitores, pois “o escravo raramente tinha a quem
303 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p. 223. 304 Idem. 305 RIOS FILHO, Adolfo Morales de Los. O Rio de Janeiro Imperial. Rio de Janeiro: TOPBOOKS, 2000. p. 338. 306 DEBRET, Jean-Baptiste, op. cit., p. 320 et seq.
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apelar”307. De acordo com Costa, o escravo que trabalhava na fazenda “era tratado mais
brutalmente do que o da cidade, onde era mais fácil o controle das arbitrariedades”308.
Na cidade, os castigos eram aplicados em público, para serem fiscalizados pelas
autoridades: “nessa circunstância, o senhor requer a aplicação da lei e obtém uma
autorização do intendente da polícia, que lhe dá o direito de determinar de acordo com a
natureza do delito, o número de chibatadas”309. O propósito do castigo em público era
para que o grande número de escravos que circulava pelas ruas observasse o castigo, e
assim fossem disciplinados, ou seja, uma forma de intimidação. Pelo relato de Debret,
todas as praças mais frequentadas tinham pelourinhos, ou seja, o constrangimento do
escravo castigado era exemplo a ser seguido pelos demais.
Por isso, todos os dias, entre nove e dez horas da manhã, pode-se ver sair a fila de negros a serem punidos; vão eles presos pelo braço, de dois em dois, e conduzidos sob escolta da polícia até o local designado para o castigo, pois existem em todas as praças mais frequentadas da cidade pelourinhos erguidos com o intuito de exibir os castigos, que são em seguida devolvidos à prisão.310
Para Debret, o Brasil é “a parte do Novo Mundo onde o escravo é tratado com
maior humanidade”311, mas não coincide com as regras impostas para manter o controle
e o domínio da grande população escrava do país, não impedindo os escravos burlarem
as regras, das quais “conseguiam escapulir e, à noite, nas praias, à hora em que os
brancos dormiam, reuniam-se em grupos da mesma nação”312. Outro lugar de encontro
dos escravos eram as tabernas, onde “não eram apenas locais de diversão e bebida,
como parece à primeira vista, mas cantos de socialização e até mesmo locais de troca
com diferentes grupos sociais não escravos, servindo como centros de recepção de
mercadorias roubadas”313, além disso, há uma série de regras impostas para os escravos,
Costa as enumera desde punições até multas.
307 COSTA, Emília Viotti da. Da senzala à colônia. 5. ed. São Paulo: Editora UNESP, 2010. p. 333. 308 Ibidem, p. 331. 309 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p. 320. 310 Idem. 311 Idem. 312 COSTA, Emília Viotti da. op. cit., p. 276 et seq. 313 SOARES, Carlos Eugênio Líbano. A capoeira escrava e outras tradições rebeldes no Rio de Janeiro (1808-1850). 2. ed. Campinas: UNICAMP, 2004. p. 180.
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Não era permitido vender pólvora ou armas a escravos, bem como consertar armas ofensivas a eles pertencentes, sem ordem escrita do senhor. As medidas de segurança multiplicavam-se na legislação e eram reforçadas a cada passo. O escravo encontrado na rua, depois do toque de recolher, sem bilhete do patrão, era sumariamente aprisionado pelas patrulhas e conduzidos à presença do senhor ou encerrado na cadeia pública, de onde só saia mediante multa paga pelo dono. A ninguém era permitido alugar casa ou quartos a escravos, sem que estes apresentassem licença por escrito de seus senhores. Quem desse asilo a negro fugido ou o acoitasse, sem prevenir as autoridades dentro de 48 horas, sujeitava-se à multa de 20$000. Apesar de todas as proibições tendentes a reprimir-lhe os abusos, o vício da bebida, que não era, aliás, privilégio de negros, tornava-se uma calamidade, chegando a preocupar, em São Paulo, a assembleia legislativa, que tentou reprimi-lo por várias formas. Não obstante, o registro policial acusava, com frequência, prisões de escravos e escravas encontrados a vagar, ébrios, pelas ruas da cidade, depois do toque de recolher.314
Figura 17 – Jean-Baptiste Debret. Castigo de escravo que se pratica nas praças públicas. 1826; aquarela
sobre papel; 16,3 x 22,1cm; assinada e datada. Museus Castro Maya, Rio de Janeiro.
A imagem de Debret mostra a maneira como os escravos eram castigados, sendo
acompanhado pela multidão ao fundo da imagem. Do lado esquerdo encontra-se uma
fila de escravos, todos acorrentados, aguardando para serem punidos, enquanto outros
dois escravos do lado direito já receberam o castigo, que após serem desamarrados
ficam deitados no chão para estancar o sangue, “a fim de evitar-se a perda de sangue, e
a chaga, escondida sob a fralda da camisa, escapa assim à picada dos enxames de
314 COSTA, Emília Viotti da. Da senzala à colônia. 5. ed. São Paulo: Editora UNESP, 2010. p. 276.
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moscas que logo se põem à procura desse horrível repasto”315. Alguns voltam para seus
donos, outros para a prisão novamente, que de acordo com a legislação “o máximo da
pena é administrado em duas vezes com um dia de intervalo”316, ou seja, alguns
escravos ainda eram castigados novamente. Ao retornarem para a prisão ou para seu
senhor, “as feridas resultantes eram curadas com sal, vinagre, limão e pimenta, o que
agravava os sofrimentos”317, todo esse processo é parte da “operação sanitária destinada
a evitar a infecção do ferimento”318.
Numa época em que os castigos corporais ainda se achavam incorporados à educação – como meio eficaz (...) não é de estranhar que os senhores recorressem, sem hesitar, a esses processos para contenção da escravaria. O açoite tornara-se tão normal aos olhos da sociedade que a própria legislação o consagrava como corretivo disciplinar. A justiça legalizava a ação privada. O chefe policial concedia ao senhor uma autorização para aplicar o castigo, mencionando o número de chibatadas que o escravo deveria receber.319
Em seu relato, Debret não chama a atenção para a rigidez dos castigos, como se
fosse algo brando; pelo contrário, eram leis rígidas, um código antigo, conhecido como
Código Filipino que regeu por um bom tempo as normas no Brasil, até 1840, quando o
Brasil passou a ter seu próprio código. Na imagem, no chão do lado esquerdo, podemos
observar vários chicotes usados pelo feitor no decorrer das penalidades. Segundo
Debret, “esse instrumento contundente nunca deixa de produzir efeito quando bem seco,
mas, ao amolecer pelo sangue, precisa o carrasco trocá-lo”320. O que chama a atenção na
imagem é a resistência do escravo, que mesmo totalmente amarrado, imobilizando suas
forças, e sofrendo as dores das chibatas, encontra forças suficiente para manter-se
erguido pelas pontas dos pés, o que “demostram uma grande força de caráter, sofrendo
em silêncio até a última chicotada”321. A partir de 1829, as penas de chibatas passaram a
ser realizadas em um local apenas, e não tão frequentado como as praças.
Se a rua era local de comércio ambulante e de castigo, era também local de
higiene dos escravos, nesse caso dos barbeiros ambulantes, profissão esta “bastante
lucrativa, pois, manejando com habilidade navalha e tesouras, consagram-se à faceirice
315 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p. 323. 316 Ibidem, p. 320. 317 COSTA, Emília Viotti da. Da senzala à colônia. 5. ed. São Paulo: Editora UNESP, 2010. p. 334. 318 DEBRET, Jean-Baptiste, op. cit., p. 320 et seq. 319 COSTA, Emília Viotti da, op. cit., p. 334 et seq. 320 DEBRET, Jean-Baptiste, op. cit., p. 321 et seq. 321 Ibidem, p. 323.
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dos negros de ambos os sexos”322. Estes escravos barbeiros encontravam-se nos pontos
mais movimentados do Rio de Janeiro, nos portos de desembarque para aproveitar a
chegada dos marinheiros e escravos que trabalhavam nos cais como carregadores, nas
praças públicas devido ao grande movimento de outros escravos de ganho, ou até
mesmo “em certos dias e a certas horas na estrada de Mata-Porcos a São Cristóvão, pois
aí encontram as tropas que chegam de São Paulo e Minas e cujos tropeiros, após uma
longa viagem, se mostram sempre dispostos a cortar a barba”323. Para Debret, a
profissão dos barbeiros ambulantes era bastante lucrativa, apenas com alguns utensílios
já era o suficiente para exercer a profissão, como poderemos observar na imagem a
seguir: os utensílios do barbeiro no chão, enrolado em um lenço, próximo dos pés do
escravo, ocupando o lado esquerdo da imagem.
Um pedaço de sabão, uma bacia de cobre de barbeiro, quebrada ou amassada, duas navalhas, uma tesoura, embrulhados num lenço velho à guisa de maleta, eis os instrumentos com que lidam os jovens barbeiros, apenas cobertos de trapos quando pertencem a um senhor pobre, e sempre dispostos, onde quer que se encontrem, a aperfeiçoar seu talento à custa dos fregueses confiantes, que consentem em entrega-lhes a cabeleira ou o queixo.324
Figura 18 – Jean-Baptiste Debret. Barbeiros ambulantes. 1826; aquarela sobre papel; 17 x 23cm;
assinada e datada. Museus Castro Maya, Rio de Janeiro.
322 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p. 185. 323 Idem. 324 Idem.
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Observamos na imagem a presença de quatro barbeiros, sendo dois no primeiro
plano e os outros dois no segundo plano à esquerda, demostrando a grande presença dos
barbeiros na cidade, devido à vaidade dos escravos, como Debret denomina de
“apaixonados pela elegância de seus cabelos”325, buscando manter suas identidades
étnicas, pois muitas etnias se destacavam pelas tatuagens no corpo ou pelo corte de
cabelo desenhado. Segundo Debret,
(...) distinguem-se pela variedade que sabem dar ao corte de cabelo dos negros de ganho, sobre a cabeça dos quais desenham divisões pitorescas, formadas por chumaços de cabelos cortados com a tesoura e separados uns dos outros por pedaços raspados a navalha e cujo colorido mais claro lhes traça o contorno de uma maneira nítida e harmoniosa.326
Na imagem de Debret, os barbeiros se encontram próximos do cais do porto,
como podemos observar no segundo plano ao fundo os navios ancorados, local de
grande movimentação. O primeiro plano é ocupado por dois barbeiros e dois fregueses
– um corta o cabelo e o outro faz a barba. O escravo barbeiro do lado esquerdo trabalha
provavelmente para uma família de baixo poder aquisitivo, pelo estado de suas roupas,
todas rasgadas. Já os escravos fregueses dos barbeiros são de posse de uma família rica
pelo bom estado de suas vestimentas e por ostentar acessórios de ouro, do lado esquerdo
com um colar, e do lado direito com um brinco. Outro detalhe da imagem é a presença
de outros dois escravos barbeiros no segundo plano da imagem do lado esquerdo:
enquanto esperavam seus clientes, jogavam o jogo da casquinha, no entanto, eram
punidos severamente, pois era considerado um jogo que gerava disputas e conflitos
entre os escravos.
Não deixa de ser curioso que o motor dos conflitos entre escravos fossem os jogos, denominados pelas autoridades (...) jogos de casquinha. Estes jogos, de acordo com o que aponta o ofício do intendente, definiam os conflitos entre os grupos divididos por partes determinadas da cidade, como uma forma ritualizada de regular os combates, ao invés do puro e simples derramamento de sangue. (...) os jogos de casquinha eram realizados em locais predeterminados, no caso os largos e praças (rossios) (...) os jogos de casquinha também retinham esta natureza contraditória: conflito e convivência. Eles constituíam uma disputa que ordenava os vendedores e derrotados a partir de normas comuns, que todos aceitavam, ou melhor, aceitavam até certo limite, como as desavenças provocadas pelo jogo apontavam cabalmente.327
325 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p. 185. 326 Idem. 327 SOARES, Carlos Eugênio Líbano. A capoeira escrava e outras tradições rebeldes no Rio de Janeiro (1808-1850). 2. ed. Campinas: UNICAMP, 2004. p. 179-181.
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Percebemos que a legislação não proibia os jogos de casquinha por considerarem
perigosos, mas sim, para evitar aglomerações de escravos em um só local, por medo de
rebeldia, podendo afirmar ao fundo da imagem, do lado esquerdo, a presença do soldado
na quarita e logo a sua frente os dois escravos jogando, não apresentando perigo de
aglomeração por ser apenas dois escravos. Entretanto, não passava apenas de
oportunidades de convivência e lazer, raros momentos para estes fins que os escravos
possuíam. De acordo com Costa, “nas cidades, as ocasiões de sobrevivência dos ritos
africanos eram maiores (...) dada a concentração de escravos da mesma nação (...)”328.
Os escravos exerciam todas as funções da cidade, mas sempre se apresentando para seu
senhor, que segundo Debret, a respeito dos barbeiros ambulantes, “são no entanto
obrigados a se apresentar 2 vezes por dia na casa de seus senhores, para as refeições e
para entregar o resultado da féria”329.
Os negros deslocam-se pelas ruas, em sua faina diária, mas todas as suas atividades eram estreitamente regulamentadas: não podiam andar à noite sem bilhete do senhor, não podiam vender nada sem sua autorização, não podiam servir-se de condução coletiva nem dispor livremente do próprio pecúlio.330
Durante a semana, os escravos de ganhos se localizavam próximos dos portos,
devido à grande agitação dos portos, com um vai e vem de mercadorias e tripulantes,
favorecendo seu comércio ambulante. Nos domingos e dias de festas religiosas, havia
uma concentração maior dos ambulantes próximo às Igrejas, uma das poucas ocasiões
na qual a mulher “de condição saía (...) para ir à missa e à novena (...)”331. Quando saia
de casa, devia ser acompanhada pelo marido, pai, ou pelas escravas criadas de quarto.
Em alguns casos, quando a senhora era conduzida até a Igreja de cadeirinha, liteira ou
carruagem, os escravos ficavam do lado de fora à espera de sua senhora, enquanto as
escravas de quarto a acompanhava em seus afazeres ou orações na Igreja. As mucamas,
ao ir à Igreja com sua senhora, levavam o véu e o livro de orações, em visita levavam os
agrados, ou seja, eram o braço direito das senhoras, sem contar as amas de leite que
cuidavam dos filhos da senhora, tudo em nome do recato, pois não podiam ter contato
com ninguém desconhecido em suas saídas de casa.
328 COSTA, Emília Viotti da. Da senzala à colônia. 5. ed. São Paulo: Editora UNESP, 2010. p. 276. 329 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p. 185. 330 COSTA, Emília Viotti da. op. cit., p. 276 et seq. 331 SCHWARCZ, Lilia Moritz. História do Brasil Nação. Crise colonial e independência: 1808-1830. Rio de Janeiro: Objetiva, 2011. v. 1, p. 51.
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Quando se tratava de uma casa rica, a saída de uma senhora de seu lar para ir à
Igreja ou à uma visita, constituía em uma espécie de procissão pela rua, pela quantidade
de escravas e escravos que a acompanhava; quanto mais rico o senhor, maior era a
criadagem que conduzia sua senhora pelas ruas, ou quando ia à missa acompanhada de
vários(as) escravos(as) era a marca da diferenciação social. Mas as idas constantes à
missa não deixavam as senhoras mais piedosas, não poupando de castigar suas
mucamas e escravas, estas mais próximas de suas senhoras. No ambiente doméstico,
quem tomava conta da administração da casa, dos afazeres domésticos, da cozinha, da
compra dos alimentos, dos cuidados com os filhos, era a senhora dos escravos, sendo
ela a responsável pelas ordens e castigos, dependendo do sistema da senhora, em que
muitas se destacavam pela crueldade que tratavam suas mucamas. Segundo Chalhoub,
“a escrava Francelina tornou-se suspeita de ter envenenado sua senhora. Ao prestar seu
depoimento, a negra contou que havia tentado de tudo para se livrar das crueldades da
senhora, tendo inclusive recorrido à polícia na esperança de ser vendida”332.
O relato de Chalhoub mostra claramente a relação da senhora com sua mucama
– fatos estes não eram raros, nem tão visíveis perante a população, pois aconteciam
dentro do ambiente doméstico, escondido pelo discurso do recato da época. A imagem
intitulada “Vendedor de flores e de fatias de coco” retrata uma senhora indo à Igreja
acompanhada por suas mucamas, que segundo Debret trata-se de uma senhora de boa
sociedade, pelo estilo elegante de suas roupas, e juntamente com seu véu bordado e a
saia de filó preto também bordada, “constitui o traje rico mais decente; um calçado
elegante completa a indumentária da devota, rebuscada nos seus enfeites”333.
332 CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na Corte. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. 220. 333 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p. 488.
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Figura 19 – Jean-Baptiste Debret. Vendedor de flores e fatias de coco. 1829; aquarela sobre papel; 17,5 x
23,2cm; datado e assinado. Museus Castro Maya, Rio de Janeiro.
A imagem mostra claramente a maneira como uma senhora rica vai à Igreja,
acompanhada pelas escravas de quarto, que a seguem em uma fileira, ficando à espera
da senhora que compra um cravo, seja para enfeitar os cabelos, ofertar ao santo
padroeiro da Igreja ou como símbolo de galanteio: “se manda um cravo a uma senhora,
significando-lhe com isso que ela soube prender um coração”334. Em uma época de
recato das mulheres, fortemente comandado pelos pais e maridos, as flores ganham
significados para expressar os sentimentos amorosos a distância.
O aparecimento às janelas, das moças casadoiras, deu origem à linguagem das flores, espécie de código de comunicação entre os namorados. Cada flor tinha um significado, expressava um sentimento, possuía o seu simbolismo. Assim, o miosótis queria dizer: não te esqueças de mim; o cravo rosa representava fidelidade; o cravo amarelo, desprezo; o cravo branco rajado, suspirar; o cravo branco, inclinação; o cravo-da-índia, portador seguro; o cravo rosa rajado, alento; o jacinto, dor, pesar; o jasmim amarelo, vergonha; o jasmim miúdo, paixão; o jasmim-da-itália, zelos; o jasmim-do-cabo, pretensão; o lírio branco, ardor; o lírio roxo, confiança (...).335
334 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p. 488. 335 RIOS FILHO, Adolfo Morales de Los. O Rio de Janeiro Imperial. Rio de Janeiro: TOPBOOKS, 2000. p. 333.
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Era uma infinidade de flores, com seus simbolismos e códigos, resultando em
um comércio muito lucrativo. Na cena, o escravo vende os cravos em benefício de seu
senhor, que por sinal é de uma casa rica pelas vestimentas do escravo e por portar
brinco na orelha, “observe-se ainda o cuidado com que o vendedor mantém a frescura
dos cravos, fincando-os num talo de bananeira, que serve ao mesmo tempo de
bandeja”336. Em outra mão, o escravo vende fatias de coco, “iguaria econômica da
classe média”337, acrescentando a venda de coco por conta própria, segundo Debret,
resultando futuramente a garantia de sua liberdade. Independentemente da condição do
escravo pertencer ou não a um senhor rico, é o fato da preocupação do escravo com a
sua vestimenta, pelo contato que tinha com as senhoras que iam à Igreja como forma de
se apresentar bem vestido, pois isso lhe traria maior confiança das compradoras.
Outro detalhe que chama a atenção na cena é a vestimenta das beatas como
denomina Debret, podendo observar ao fundo da imagem do lado direito, vestimenta
parecida com uma burca, toda preta de cima a baixo. Enquanto a senhora escolhe o
cravo, fica a escrava de quarto responsável pelo pagamento, retirando da bolsa a moeda,
como podemos observar a escrava logo atrás de sua senhora. O que chama a atenção no
relato de Debret a respeito dessa imagem, é o fato dele mencionar que “a cena é real”, o
que coloca em discussão e dúvida a respeito da veracidade das demais cenas retratadas
por ele. Por que apenas essa cena ele afirma ‘ser real’? E as demais? Seriam factuais?
Evidentemente, cabe a nós, historiadores, investigarmos com um olhar investigativo ou
até mesmo inquisidor, a busca por respostas. Para Panofsky, “quer o observador de um
fenômeno natural, quer o examinador de um registro não ficam só circunscritos aos
limites do alcance de sua visão e ao material disponível (...)”338.
Voltando para a questão do comércio ambulante, outra profissão que se
destacava no Rio de Janeiro, não pela venda de mercadorias e produtos, mas pela venda
de serviço, eram as lavadeiras.
É de 1816, que data a inovação, no Rio, da indústria da lavagem de roupa. Essa época coincide também com a chegada de inúmeros estrangeiros à capital. Esse novo ramo de atividade, pouco a pouco desenvolvido, já tomara grande incremento em 1822, graças à presença, no momento, de uma multidão de indivíduos atraídos pela solenidade da sagração do imperador.
336 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p. 488. 337 Idem. 338 PANOFSKY, Erwin. Significado nas artes visuais. São Paulo: Perspectiva, 2014. p. 25.
106
Com efeito, antes da implantação dessa indústria europeia, o brasileiro de todas as classes fazia, como ainda hoje, lavar sua roupa pelo seu escravo.339
Até 1808, as lavadeiras eram escravas das casas ricas, responsáveis por lavar as
roupas de seus senhores, ou seja, realizavam apenas este serviço para seus donos. Com a
abertura dos portos, tornou-se um atrativo para as famílias de classe média, que
possuíam um número razoável de escravos, o que seria suficiente para iniciar um
empreendimento de lavagem de roupa, no qual “essas empresas devem seu êxito e seus
lucros, aliás grandes, não somente à presença dos estrangeiros residentes no Rio, mas
ainda às casas de cômodos inglesas e francesas, quase sempre cheias de viajantes”340.
Dessa maneira, um senhor de classe média dividia seus escravos no serviço da lavagem
de roupas, enquanto alguns executam a lavagem nos ribeirões, “uma ou duas das mais
inteligentes são encarregadas de passar a roupa, e a digna de maior confiança vai
entregá-la na cidade e receber o pagamento”341. Essas empresas de lavagem de roupa
ocupavam os riachos próximos da cidade ou de chácaras, que segundo Costa, “nos
arredores, em chácaras, junto aos ribeirões, amontoavam-se as lavadeiras”342. Já a
população mais pobre, que possuía apenas um escravo “mandam-no lavar roupas nos
chafarizes da cidade. (...) por isso aí se encontram dia e noite lavadeiras, cujo bater de
roupa se ouve de longe”343. Para melhor compreendermos o serviço das lavadeiras, e
suas formas de lavar as roupas, analisaremos a seguir a imagem a qual Debret pintou
das lavadeiras próximas a um riacho.
339 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p. 332. 340 Idem. 341 Idem. 342 COSTA, Emília Viotti da. Da senzala à colônia. 5. ed. São Paulo: Editora UNESP, 2010. p. 274. 343 DEBRET, Jean-Baptiste, op. cit., p. 332 et seq.
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Figura 20 – Jean-Baptiste Debret. Lavadeiras do rio das Laranjeiras. 1826; aquarela sobre papel; 16,6 x
22,3cm; datada e assinada. Museus Castro Maya, Rio de Janeiro.
Na imagem, observamos várias lavadeiras no riacho lavando roupas, utilizando
pedras para baterem as peças. Para perfumar as roupas, Debret descreve a maneira que
costumavam usar, era bem natural, “servindo-se unicamente de vegetais saponáceos,
como a folha de aloés e a folha da árvore chamada timbubá”344. Em algumas peças mais
sujas, era empregado a fervura da peça em água, facilitando a lavagem, como podemos
observar em primeiro plano ao centro da imagem. Depois de lavadas as roupas, eram
estendidas na grama, para que o sol as secasse, ficando um escravo regando-as
“constantemente à medida que secam. Esse tipo de lavagem em geral adotado é muito
cômodo e economiza bastante a roupa”345, visível no fundo da imagem as roupas
estendidas na grama, por sinal uma grande quantidade de peças, e um escravo regando-
as.
No primeiro plano da imagem, do lado direto, encontra-se uma escrava
recolhendo as fezes de um cavalo, que segundo Debret, em alguns processos de
344 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p. 332. 345 Ibidem, p. 333.
108
lavagem, utilizava-se “a bosta do cavalo e o suco de limão, este para fixar as cores do
algodão estampado”346, mesmo parecendo um processo estranho, Debret não deixa de
relatar: “as lavadeiras brasileiras, aliás muito mais cuidadosas que as nossas”347, pelo
preparo, cuidado e zelo na lavagem das roupas, além de lavarem, passavam e
transportavam cuidadosamente em cestos, como podemos observar ao fundo da
imagem, um escravo com um enorme cesto na cabeça com as peças. Outro fato
chamativo da imagem, retratado por Debret, é a cena ser em um riacho indicando a falta
de fontes suficientes no Rio de Janeiro, para a quantidade de lavadeiras optando pelos
riachos próximos da cidade.
De acordo com Debret, as roupas, depois de lavadas, tinham perfume de flores
odoríferas, como a rosa de quatro estações, jasmim e a flor de esponja, flor esta
destinada para este fim, em que “vendem-na nas ruas em pequenos ramalhetes com
cerca de quarenta flores arranjadas em torno de uma vareta”348. Mesmo Debret
elogiando as lavadeiras brasileiras, não deixa de inserir na cena, do lado direito, uma
marca da instituição escravista, pois mesmo distantes da cidade, não eram poupadas de
serem vigiadas, podendo observar no rosto do homem a cavalo, voltado para o lado
onde se encontram as lavadeiras.
Assim como as lavadeiras tornaram-se um comércio forte na cidade, surge
também o comércio atrelado às lavadeiras, tanto o da flor de esponja para perfumar as
roupas como também o de sabão, tanto estrangeiros como os nacionais, que segundo
Debret, o sabão nacional não era propício para roupas finas por possuírem cor escura.
Neste item percorremos desde a chegada dos escravos ao Rio de Janeiro, passando pelos
variados tipos de comércios e serviços prestados pelos escravos, até mesmo os castigos
sofridos. Mesmo exercendo todos os tipos de serviços e perseguidos pelas autoridades,
os escravos foram os maiores difusores das tradições alimentares, com um cardápio
variado e riquíssimo, presente até os dias atuais na mesa do brasileiro, sendo nosso
próximo item, onde perceberemos a variedade dos quitutes vendidos pelas ruas do Rio
de Janeiro.
346 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p. 333. 347 Idem. 348 Idem.
109
2.2 A rua dos quitutes: o dia a dia das negras escravas e libertas na cidade
A cozinha africana proporcionava, também, muitos pratos gostosíssimos e quitutes, como o angu, o anguzó, a moqueca, o vatapá, o ambrozó, a acassá, a quenga, o cucumbe, o aberém, o bobó, o acarajé, a abará, o xiu-xiu, o efó, o arroz-de-hauçá, a hoje brasileiríssima feijoada, o tutu de feijão, e uma outra série de coisas saborosas: pamonha, fubá, quibebe, gergelim, cuscuz, pé-de-moleque, cocada, doce de batata, arroz doce, manjar-branco. Aos cozinheiros africanos é também devido o preparo do mugunzá ou canjica branca, da canjica de milho verde, do milho assado, da pipoca, do inhame, do amendoim torrado, do içá torrado, das empadas de peixe e de camarão, e do pirão. Mas a feitura de muitos pratos só foi possível depois de serem trazidas da África diversas culturas especiais e já, então, perfeitamente aclimatadas no Brasil, tais como as do feijão preto, dos guandos, dos maxixes, da malagueta, do chuchu, dos quiabos e do coqueiro de dendê.349
Percebemos a grande variedade de comidas que os escravos de ganho ou até
mesmo libertos vendiam, porém, sua alimentação não era tão variada, “na África, o
escravo não escolhia o que comer: recebia ração”350. Ao chegarem ao Brasil, de início,
os escravos estranharam a variedade de alimentos, que após sofrerem durante a viagem,
recebiam uma alimentação mais reforçada para recuperar e serem levados para outras
províncias. Nas fazendas do interior, a alimentação dos escravos era mais restrita,
“alimentavam-se com dois punhados de farinha seca, umedecidos na boca pelo sumo de
algumas bananas ou laranjas”351, quando se matava um porco para os senhores, as
carnes inferiores as quais não eram consumidas na casa grande eram dadas para os
escravos, como a cabeça, pés, toucinho, e juntamente com o feijão preto formava um
banquete para os escravos, tranformando-se na famosa feijoada brasileira. Era comum,
também, os escravos alimentarem-se de animais silvestres que caçavam, “apreciavam as
carnes de lagarto, macaco, gambá, paca, veado e tatu”352.
Nas cidades, a alimentação era mais variada se comparada a da fazenda,
composta de “mandioca (Cassava), o fubá e o feijão prêto, em geral cozidos com
toucinho e carne sêca ao sol e salgada”353, além de uma variedade de alimentos e
quitutes. A variedade de alimentos na alimentação dos escravos nas cidades ocorre por
serem centros comerciais, ou pela grande presença de escravos nas ruas, um grande
349 RIOS FILHO, Adolfo Morales de Los. O Rio de Janeiro Imperial. Rio de Janeiro: TOPBOOKS, 2000. p. 338. 350 PRIORE, Mary del. Histórias da gente brasileira. São Paulo: Leya, 2016. v.1, p. 253. 351 Ibidem, p. 254. 352 RIOS FILHO, Adolfo Morales de Los, op. cit., p. 338 et seq. 353 SPIX, Johann Baptist von; MARTIUS, Karl Friedrich Philipp von. Viagem pelo Brasil: 1817-1820. São Paulo: Edições Melhoramentos, 1968. v. 1, p. 60.
110
número de bocas para alimentar, fortalecendo o mercado alimentício da cidade. O maior
responsável pelo fortalecimento de comida de rua é a presença de muitos escravos
livres, que após conseguirem suas alforrias, tornavam-se pequenos empreendedores do
comércio de rua. De acordo com Marilene, “o negro comprava sua liberdade com os
ganhos conseguidos de todas as formas (roubando, escondendo ganhos reais, fazendo
serviços extras)”354, ou até mesmo adquirindo pelo seu senhor a alforria.
Para Debret, a escrava era alforriada mais facilmente do que o escravo, “pois
acha-se colocada sob a influência direta da generosidade de seu padrinho, não raro
homem rico, dos filhos e amigos de seus senhores e finalmente de seus amantes”355.
Não podemos deixar passar despercebido o relato de Debret sobre a relação íntima de
muitos senhores com suas escravas, tornando-as suas amantes. Para agradá-las ou até
mesmo silenciar, com quem tinham um caso amoroso por um longo tempo, muitos
senhores concediam sua liberdade, sendo assim era grande o número de forras vendendo
comida e quitutes no Rio de Janeiro, que segundo Priore:
Nas cidades (...) os recursos se acresciam pela venda de comida preparada e oferecida pelas negras nas praças e cais: angu, mingau de carimã ou milho, peixe assado, milho cozido em grãos servidos no caldo, mungunzá e iguarias vindas da Bahia, possivelmente acaçá, caruru, moquecas com o peixe enrolado em folhas, farinha de castanha-de-caju e milho torrado açucaradas, o tão elogiado por todos os viajantes aluá de arroz. E as carnes: seca, afogueada nas brasas ou assada nos braseiros, escaldada em rápida fervura. Para adoçar a boca e a vida, caldo de cana, rapadura, manuês, bolo-preto, pé de moleque, arroz-doce com canela, doce de coco ralado (...)”356.
Se os serviços braçais ou a venda de outros produtos era feito por escravos, na
área da alimentação eram as escravas ou até mesmo as negras libertas as responsáveis
por esse comércio lucrativo. Possuíam quitandas, estabelecimentos estes que vendiam
diversos produtos para os escravos, mas aprofundaremos isso no próximo item. Neste
tópico, analisaremos o comércio ambulante de quitutes, no qual “nesse pequeno
comércio de rua as ganhadeiras, juntamente com as negras livres, exerciam verdadeiro
monopólio. Organizavam-se em feiras livres chamadas quitandas, ou oferecendo seus
quitutes de casa em casa”357. Perceberemos a grande presença de negras libertas
dependendo do comércio de rua para sobreviver; além disso, é possível verificar em
354 SILVA, Marilene Rosa Nogueira da. Negro na rua: A nova face da escravidão. São Paulo: HUCITEC, 1988. p. 83. 355 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p. 262. 356 PRIORE, Mary del. Histórias da gente brasileira. São Paulo: Leya, 2016. v. 1, p. 254. 357 SILVA, Marilene Rosa Nogueira da, op. cit., p. 108 et seq.
111
Debret a influência do contumbrismo italiano e a Revolução Francesa na vida do artista
ao construir as imagens dessas forras.
Em várias imagens que analisaremos neste item, a cena é composta apenas por
mulheres, que após a Revolução Francesa, atráves do famoso quadro “Liberdade
guiando o povo” de Eugène Delacroix, traz a mulher como símbolo de liberdade,
podemos relacionar com as imagens das quituteiras que gozam da liberdade para
venderem seus produtos pelas ruas. Para Burke, após a Revolução Francesa “foram
feitas várias tentativas de traduzir em linguagem visual os ideais de liberdade (...)”358.
Debret também traz para as suas imagens os ideiais do costumbrismo italiano, mas a
partir do século XVIII, os “aspectos da vida da classe trabalhadora estavam começando
a ser percebidos com “pitorescos””359 junto com as influências artísticas de Debret,
outra característica trazida ao Brasil pelos africanos era o domínio das mulheres no
ramo alimentício, práticas culturais africanas que “delegavam às mulheres as tarefas de
alimentação e circulação de gêneros de primeira necessidade (...)”360.
Para melhor compreender a maneira como Debret construiu essas imagens,
começaremos pela vendedora de angu. Os escravos oriundos das casas da cidade que
trabalhavam na rua se alimentavam na casa de seus senhores; os escravos vindos de
bairros rurais ou até mesmo de outras províncias se alimentavam do comércio
ambulante, das negras cozinheiras que possuíam seus pontos nos locais mais
movimentados, entre elas as vendedoras de angu. Segundo Debret, esse comércio era
feito por negras livres: “para o exercício dessa indústria suplementar, bastam-lhes duas
marmitas de ferro batido colocadas sobre fornos portáteis; (...) acrescentam duas
grandes colheres de pau de cabo comprido”361, eram suficientes para iniciar as vendas
de angu, “comida básica do cativo urbano”362.
358 BURKE, Peter. Testemunha Ocular: o uso de imagens como evidência histórica. São Paulo: UNESP, 2017, p. 97. 359 Ibidem, p. 169. 360 DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1995. p. 157. 361 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p. 277. 362 SOARES, Carlos Eugênio Líbano. A capoeira escrava e outras tradições rebeldes no Rio de Janeiro (1808-1850). 2. ed. Campinas: UNICAMP, 2004. p. 212.
112
Figura 21 – Jean-Baptiste Debret. Angu da quitandeira. 1826; aquarela sobre papel; 16,2 x 22,4cm;
assinado e datado. Museus Castro Maya, Rio de Janeiro.
O angu, iguaria de consumo generalizado no Brasil, e cujo nome se dá também à farinha de mandioca misturada com água, compõe-se, no seu mais alto grau de requinte, de diversos pedaços de carne, coração, fígado, bofe, língua, amídalas e outras partes da cabeça à exceção do miolo, cortados miúdos e aos quais se ajuntam água, banha de porco, azeite-de-dendê, de cor de ouro e com gosto de manteiga fresca, quiabos, legume mucilaginoso e ligeiramente ácido, folhas de nabo, pimentão verde ou amarelo, salsa, cebola, louro, salva e tomates; o conjunto é cozido até adquirir a consistência necessária. Ao lado da marmita do cozido, a vendedora coloca sempre uma outra para a farinha de mandioca molhada.363
Como podemos observar no relato de Debret, e já discutido anteriormente, a
utilização de carnes inferiores do porco servia para o preparo do angu, que segundo o
artista não deixava de ser suculenta e gostosa, sendo visível na imagem uma grande
concentração em torno das vendedoras. Não podemos passar despercebido o tom irônico
de Debret ao se referir a comida como suculenta e gostosa, já que a comida de rua era
destinada aos escravos e repulsiva aos brancos, como podemos perceber na cena, pois
somente os escavos estão consumindo o angu. Estas vendedoras se concentravam
próximo da praia do mercado de peixes, “naturalmente muito movimentada por se
363 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p. 277.
113
encontrar, além do mais, nas proximidades da Alfândega”364, podendo observar ao
fundo da imagem uma grande concentração de pessoas. O comércio do angu se dava na
parte da manhã, estendendo-se até o início da tarde: “lá pelas seis horas, e vai até as dez,
continuando do meio-dia às duas, hora em que se reúnem em torno delas os operários
escravos”365, como podemos observar em primeiro plano do lado direito, uma fila de
escravos na espera por conseguir um prato de angu, sendo servidos em “conchas
grandes e chatas e cacos de barro fazem às vezes de pratos para os transeuntes”366.
Enquanto os escravos aguardavam na fila para serem servidos, outros dois
escravos sentados no chão em primeiro plano do lado direito já saboreiam o angu. Do
outro lado da imagem, no mesmo plano, uma vendedora de tomates “frequentadora
assídua do mercado de peixe, de xale à cabeça e colher na mão, almoça com mais
decência, sentada no seu banquinho”367, aproveitando o movimento de pessoas para
oferecer seu produto. Debret refere-se “almoçando com mais decência” à vendedora de
tomates por estar utilizando uma colher para comer o angu, enquanto os outros dois
escravos utilizam os dedos. A mobilidade de classe na cidade era grande, pois após
conseguir a liberdade e iniciar seu comércio, possibilitava alguns forros ou forras
comprarem escravos, como podemos observar na imagem, há duas sócias do
empreendimento, na qual uma delas “de maior fortuna, ostenta o luxo de um turbante
branco”368 serve o angu e o escravo mexe a farinha de mandioca. Além de conseguirem
comprar escravos, o angu tornou-se um grande comércio no Rio de Janeiro, como
podemos identificar na imagem quatro grandes panelas e uma fila de fregueses,
chegando ao ponto em que esse comércio sai das ruas e acaba indo para os
estabelecimentos.
Durante toda a primeira metade do século XIX, as barracas de angu pontilharam a cidade. Mas, a partir de certo momento, surgiram as casas de angu, pequenos sobrados no coração da cidade para onde escravos das mais diversas direções vinham, a fim de se reunirem com seus iguais (...).369
364 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p. 278. 365 Ibidem, p. 277. 366 Idem. 367 Ibidem, p. 278. 368 Idem. 369 SOARES, Carlos Eugênio Líbano. A capoeira escrava e outras tradições rebeldes no Rio de Janeiro (1808-1850). 2. ed. Campinas: UNICAMP, 2004. p. 213.
114
Passava agora a ser um local de convívio social, de trocas de experiências entre
os escravos. Podemos dizer então que estes são os primórdios dos atuais restaurantes,
deixando de ser apenas um local para realizar as refeições, para se tornar um convívio
de outras práticas culturais, que ainda eram proibidas de ser expressadas em público
pelas autoridades locais. Se para Debret a negra liberta, vendedora de angu, ostentava o
luxo pelas vestimentas, não podemos deixar de lado os adornos, sendo uma
característica significativa de ostentação dos negros. Possuir um brinco ou uma pulseira
de ouro significava ser escravo de um rico senhor, mas a partir do momento que o negro
trazia consigo uma grande quantidade de adornos, demonstrava sua liberdade e sua
posição social. Segundo Costa, as negras libertas possuíam “braços cobertos de rústicas
pulseiras, ostentando anéis, às vezes colares nos quais se misturavam pedaços de
marfim, dentes, conchas, feitiços que, ao seu entender, conjuravam a má sorte (...)”370.
Debret retratou uma negra liberta, vendedora de milho, na qual podemos observar a
grande quantidade de adornos que trazia consigo; nessa época o comércio de milho no
Rio de Janeiro também era um negócio lucrativo.
Os escravos, ao chegarem ao Brasil, desconheciam o milho, cereal este muito
consumido pelos nativos das Américas, “o milho começou a ser cultivado no México
por volta de 5000 a. C., mas por volta de 200 a. C., fora melhorado na Meso-américa,
transformando-se em algo parecido com a planta que conhecemos hoje”371. O milho era
a base da alimentação da população escrava e da população do interior, sendo o
“principal alimento do homem em certas províncias do interior, o milho tornou-se
também um dos principais objetos de especulação dos cultivadores”372, sendo muito
comum o comércio do milho na cidade do Rio de Janeiro, tanto pela população local
como pelos viajantes, podendo encontrar “sempre milho seco para os animais e canjica
para a restauração do viajante. Chama-se canjica uma sopa feita com uma espécie de
milho branco, fervido no leite ou simplesmente na água com açúcar (...)”373.
O milho era consumido de várias maneiras e alimentava diferentes grupos étnicos e sociais. No Rio de Janeiro era assado ou preparado em pipoca para regalo dos negros. A farinha, simplesmente moída e separada do farelo por uma peneira, tinham o nome de fubá e entrava na preparação do angu, principal alimento dos escravos. Com ele se preparava também a canjica, doce feito fervendo o milho em leite, com açúcar e gemas de ovos; ou a
370 COSTA, Emília Viotti da. Da senzala à colônia. 5. ed. São Paulo: Editora UNESP, 2010. p. 272. 371 ROBERTS, J. M. O livro de ouro da história do mundo. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001. p. 416. 372 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p. 216. 373 Idem.
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jacuba, mistura da farinha de milho com rapadura (resíduo do melado cozido) e água. (...) ou então usavam a farinha bem preparada, em substituição da farinha de mandioca, para polvilhar os alimentos.374
Na imagem de Debret, percebemos as diferentes formas de preparo do milho e a
maneira de comercializar, sempre em locais de maior movimentação, como praças e
ruas, tornando-se “um regalo para os escravos e seus filhos”375. Na imagem a vendedora
se localiza próximo a praia, como podemos observar ao fundo algumas embarcações. É
importante destacar a questão das embarcações, porque no decorrer deste capítulo,
iremos deparar com sete imagens que trazem ao fundo embarcações, pois Debret,
mesmo pintando cenas do dia a dia da cidade do Rio de Janeiro, não deixa de exaltar o
império marítimo, mostrando várias embarcações de pequeno e grande porte como
característica da ótima localização dos portos do Rio de Janeiro, citados por inúmeros
viajantes.
Figura 22 – Jean-Baptiste Debret. Preta vendendo milho verde. 1820; aquarela sobre papel; 15,2 x 21cm; assinada e datado. Museus Castro Maya, Rio de Janeiro.
374 SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Vida privada e quotidiano no Brasil: na época de D. Maria I e D. João VI. Lisboa: Estampa, 1993. p. 223. 375 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p. 216.
116
Percebemos na imagem, a maneira como o milho era vendido, encontrando-se
em primeiro plano do lado direito, próximo da vendedora sentada no banco, “algumas
pedras enfumaçadas constituem o forno improvisado de uma cozinha barata, que exige
com utensílio apenas um pequeno caldeirão”376, contendo as espigas de milho, sendo
fervidas em água que serão saboreadas como milho cozido. A vendedora aproveita o
calor do fogo para assar outras espigas, que ficam em pé encostadas na panela, tornando
o milho assado, ou seja, a vendedora procura agradar a todos os paladares oferecendo
várias opções de preparo do milho. Do lado esquerdo da imagem, em primeiro plano,
uma menina escrava, com a criança nos braços, sai saboreando uma espiga. Como já
discutimos anteriormente a respeito dos adornos que as negras libertas possuíam,
destacamos nesta imagem a vendedora, de acordo com Debret, é “meiga, ativa, opulenta
e faceira, tudo nela caracteriza a negra livre”377, ostentando “seus braceletes de cobre, é
de nação monjola”378. É interessante observar, neste relato de Debret, sua familiaridade
com as características peculiares de cada nação africana, deixando no ar uma pergunta,
como Debret, sendo um viajante, conseguiu diferenciar as diversas nações dos
escravos? Podemos deduzir seu contato com traficantes e vendedores de escravos, já
que o artista retratou um mercado de escravos, como analisamos na Figura 14.
Na imagem há também uma escrava com um saco na cabeça, vendedora de
milho seco, pois “no Rio de Janeiro importa-se também grande quantidade de milho
seco para a alimentação dos cavalos, dos burros, do gado e das aves”379. O milho seco
era vendido em pequenas porções, sendo medidos “por uma espécie de caneca, medida
de capacidade; a vara serve-lhe para acertar os grãos na medida, no momento da
venda”380, sendo possível observar, em cima do saco que a escrava traz na cabeça, a
caneca, e em sua mão, a vara. Se o angu e o milho constituíam a alimentação dos
escravos, não podemos deixar de mencionar suas sobremesas, os famosos quitutes,
consumidos após as principais refeições do dia, ou nos intervalos das refeições, estes
quitutes eram ótimos petiscos. Os doces eram indispensáveis na vida portuguesa
“representando a solidariedade entre as pessoas”381. Uma herança dos portugueses desde
o século XIV, que após séculos chegaram ao Brasil, ou melhor, nas mesas brasileiras.
376 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p. 219. 377 Idem. 378 Idem. 379 Ibidem, p. 219. 380 Idem. 381 PRIORE, Mary del. Histórias da gente brasileira. São Paulo: Leya, 2016. v. 1, p. 272.
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Tão famosos em Portugal, feitos em conventos, ganharam a marca religiosa, e com o
tempo popularizaram-se tanto que todas as casas tinham o costume do preparado de
doces.
(...) os conventos portugueses aumentavam seus proventos graças à confecção de bolos, compotas, licores e outros regalos à base de muitos ovos e açúcar. Desde o reinado de Afonso IV, em 1325, até maio de 1834, quando as ordens religiosas foram dissolvidas, a doçaria conventual trazia nomes e aromas dignos de registro. Havia os confessionais: bolinhos do amor, esquecidos, melindres, paciências, raivas, sonhos, beijos, suspiros, caladinhos, saudades, os que traziam a marca da vida religiosa: beijos de freira, triunfos de freira, fatias de freira, creme da abadessa, toucinho do céu, cabelos da Virgem, papo de anjo, celestes; e ainda os satíricos: barriga de freira, orelhas de abade, sopapos, casadinhos, velhotes; ou os cerimoniais: manjarreal, marqueses, morados, bolorei etc. Herança mourisca quando feitos com mel na forma de alfenim, alféola, pinhoada ou bolo de mel, muitas das receitas incentivaram bem guardados segredos de cozinha.382
Para Câmara Cascudo, o bolo estava presente em todas as ocasiões da sociedade,
“figurava sempre em noivados, casamentos, visitas de parida, aniversários,
convalescença, enfermidade ou condolências. Ele significava oferta, lembrança, prêmio,
homenagem”383, já para os agrados, os doces, “visitava, fazia amizade, carpia e
festejava”384, sempre presente nas casas como também nas festas religiosas. No Brasil,
os doces tinham uma combinação perfeita, que juntamente com as receitas portuguesas,
as receitas africanas e uma variedade de frutas tropicais, se popularizaram em todas as
províncias. Se a primeira riqueza econômica do Brasil foi o açúcar, na terra do ouro
branco não faltava o ingrediente principal no preparo dos doces, “cuja fabricação
constitui excelente negócio”385. Negócio este feito pelas “escravas de tabuleiros,
vendendo quitutes e biscoitos, alternavam-se com vendedoras (livres, caipiras,
mestiças)”386; as cativas saiam pelas ruas vendendo os doces cuja renda era destinada ao
seu senhor, as negras libertas constituíam a maioria das vendedoras de quitutes pelas
ruas, e dependiam desse comércio para sua própria sobrevivência.
382 PRIORE, Mary del. Histórias da gente brasileira. São Paulo: Leya, 2016. v. 1, p. 269. 383 Ibidem, p. 272. 384 Ibidem, p. 273. 385 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p. 307. 386 DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1995. p. 156.
118
A tradição da doçaria passou da cozinha à rua, graças aos tabuleiros das negras forras, enormes e forrados com panos alvos. “Negras doceiras”, contou Freyre, tinham o cuidado de enfeitar seus doces com papel azul ou encarnado, arrumados sobre folhas de bananeiras. “Desses tabuleiros de pretas quituteiras, uns corriam as ruas, outros tinham seu ponto fixo à esquina de algum sobrado grande ou pátio de Igreja, debaixo de velhas gameleiras. Aí os tabuleiros repousavam sobre armações de pau escancaradas em X (...) De noite os tabuleiros se iluminavam como que liturgicamente de rolos de cera preta; ou então de candeeirinhos de folha de flandres ou de lanternas de papel” (...).387
De porta em porta ou em pontos fixos, analisaremos algumas imagens pintadas
por Debret deste comércio de quitutes pelas ruas do Rio de Janeiro, observando a
grande presença de fregueses em torno das doceiras, podendo-se concluir a apreciação
dos brasileiros, independentemente da classe social, pelos quitutes. Segundo Debret,
devido a algumas perturbações políticas na Bahia, houve no Rio de Janeiro uma
imigração de pessoas, entre elas algumas quituteiras, “oferecendo como novidade
algumas guloseimas importadas da Bahia e cujo êxito foi grande”388, fortalecendo e
ampliando ainda mais o comércio de doces nas ruas. Entre essas novidades estava a
ataçaça, feito do “creme de arroz doce vendido frio dentro de um canudo de folha de
bananeira”.389
Figura 23 – Jean-Baptiste Debret. Mocotós pelados, bolos da Bahia e polvilhos de forma. 1826; aquarela
sobre papel; 15,1 x 21,6cm; assinado e datado. Museus Castro Maya, Rio de Janeiro. 387 PRIORE, Mary del. Histórias da gente brasileira. São Paulo: Leya, 2016. v. 1, p. 274. 388 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p. 271. 389 Idem.
119
No primeiro plano da imagem, do lado direito, encontra-se a vendedora baiana,
reconhecendo “facilmente pelo seu turbante, bem como pela altura exagerada da faixa
da saia. (...) a quantidade de jóias de ouro são os objetos sobre os quais se expande a sua
faceirice”390. Em seu tabuleiro, observamos as ataçaças dentro dos cones de folhas de
bananeira, acabando de vender o quitute para uma escrava, que sai todos os dias para
fazer as compras para seus senhores, como vemos na sacola que carrega no braço
contendo o pagamento da compra. O que chama a atenção é a maneira como Debret
denomina a escrava de “infiel”, pois “retira do seio uma pequena moeda, benefício
ilícito já auferido nas compras da manhã”391. Ao contrário de Debret, identificamos
nessa cena um fato que chama a atenção, a circulação de dinheiro por parte dos
escravos, mesmo na condição de cativos, movimentava de forma pequena a economia,
já que estão também inseridos na sociedade.
Juntamente com as ataçaças, vende o bolo da Bahia, conhecidos como “bolos de
canjica, pasta açucarada feita com farinha de milho e leite e vendida em folhas de
mamoeiro”392, e aproveita o seu tabuleiro para acrescentar a venda do “polvinho de
forma, amido preparado em pequenos quadrados de uma polegada de espessura e
próprio para engomar roupa”393. No segundo plano, do lado esquerdo, uma escrava
vende mocotós de porco, que compra ou até mesmo ganha dos açougues e vende pelas
ruas, muito apreciado pelos escravos no preparo da feijoada. Outros quitutes apreciados
no Rio de Janeiro eram o sonho e o manuê. De acordo com Debret, os sonhos “são
fatias de pão passadas no melado e com certa quantidade de pevides por cima”394,
porém, de acordo com seu relato, era um doce que deixava a desejar, pois encontrava-se
“sempre cheio de poeira, porque se vende a descoberto e amontoado em pirâmides”395,
mas de qualquer forma ainda era muito apreciado pelas crianças.
Se para Debret, as negras livres quituteiras se destacavam pelos cuidados da
roupa, pela limpeza do corpo, não seria diferente no preparo e venda dos quitutes, como
forma de chamar a atenção dos fregueses, mas aprofundaremos esta questão mais
adiante. O manuê, diferentemente dos demais quitutes vendidos durante o dia, era
390 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p. 271. 391 Idem. 392 Idem. 393 Idem. 394 Ibidem, p. 266. 395 Idem.
120
apenas vendido à noite, pois era feito “com os restos do jantar do senhor”396 – o escravo
utilizava toda carne que sobrava do jantar, fazendo um “folhado recheado de carne,
bastante suculento e bom para se comer quente”397, e para manter o manuê quente, a
escrava procurava sempre cobrir o tabuleiro com uma toalha e a cobria com lã. Mesmo
Debret considerando o quitute bastante suculento, sua venda era mais restrita pelo alto
preço, tendo como compradoras as “negras das casas ricas ou das empregadas de loja,
únicas capazes de pagar o preço exigido”398. Novamente observamos no relato de
Debret a contrariedade de seu discurso, pois na imagem junto a seu relato, Debret
refere-se à escrava que comprava ataçaça de infiel, acreditando que ela ficava com parte
do dinheiro destinado a seu senhor, porém, ao contrário deste seu outro discurso,
menciona que as únicas capazes de comprar o manuê eram as escravas das casas ricas
ou empregadas de loja, comprovando, de uma forma ou de outra, que havia uma
circulação de dinheiro entre os escravos, deixando claro que a escrava da imagem
anterior não podia ser de uma casa rica? Na imagem seguinte analisaremos as
vendedoras de sonho e de manuê e compreenderemos melhor as características de cada
vendedora.
Figura 24 – Jean-Baptiste Debret. Vendedores de pastel, manuê, pudim quente e sonho. 1826; aquarela
sobre papel; 15,8 x 22cm; assinado e datado. Museus Castro Maya, Rio de Janeiro.
396 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p. 266. 397 Idem. 398 Idem.
121
Na imagem destacamos as vendedoras de manuê, sonhos, pastel e pudim. Uma
das vendedoras acaba de vender um manuê para uma escrava – percebemos ser este o
quitute vendido pela descrição que Debret faz a respeito da vendedora, cobrindo seu
tabuleiro com panos para manter os quitutes quentes. Destacamos também a riqueza da
vestimenta da vendedora do lado esquerdo da imagem em primeiro plano, toda bordada.
A utilização da aquarela por Debret, deixa na pintura um realçamento nos trajes, com
isso “os escravos inicialmente parecem adquirir uma presença mais marcante (...) os
volumes aumentam, ganham o espaço das aquarelas, contrastam entre si”399. Enquanto
isso, a vendedora de sonhos aguarda um freguês para vender seu quitute, porém todo
amontoado. Ela aguarda os fregueses pois, segundo Debret, é um quitute todo
empoeirado e por isso menos consumido. Ressaltamos que “de todos os doces
brasileiros, cuja fabricação constitui excelente negócio no Rio, o pão-de-ló é sem dúvida
o mais lucrativo, por causa do enorme consumo desse bolo leve que acompanha o café
ou o chocolate”400. De acordo com Debret, as vendedoras deste quitute são escravas,
que todos os dias saem da casa de seus donos para vender de porta em porta, tendo
suficiente lucro de venda do quitute para a alimentação dos escravos do senhor.
Afirmava-se que os principais fabricantes dessa guloseima eram membros de uma família numerosa, entregue a esse ativo comércio, e cujas negras, que percorriam a cidade duas vezes por dia, se reconheciam pelo traje. Saindo bem cedo de casa, essas vendedoras começavam abastecendo os cafés, e em caminho entravam nas casas de suas freguesas mais madrugadoras para entregar o pão-de-ló do almoço, à razão de um por pessoa. O negócio é tanto mais interessante quanto as famílias brasileiras são em geral numerosas. A venda nas ruas não é menos lucrativa, pois nem sequer o negrinho enviado a recado de manhã deixa de tirar do dinheiro que lhe é confiado o vintém necessário à aquisição do pão-de-ló; as quitandeiras não deixam tampouco de comprar um pão-de-ló para seus moleques; finalmente, a primeira despesa matutina da maioria dos operários consiste na compra do pão-de-ló, que eles consideram substancial e bom para o peito.401
Pelo relato de Debret, percebemos claramente o grande consumo do quitute,
sendo considerado o primeiro alimento comprado pelos operários e donos dos
estabelecimentos. Se na Europa, o pão era a base da mesa alimentar, feito de trigo,
consumido mergulhado em molhos, com peixes, ou simplesmente puro, no Brasil a
399 NAVES, Rodrigo. A forma difícil: ensaios sobre arte brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. 104. 400 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p. 307. 401 Idem.
122
farinha de trigo foi substituída pela farinha de mandioca, de milho ou polvilho, e
“juntos, eles tiveram no carimã, no polvilho, na goma da mandioca e no fubá parceiros
ideais para fazer bolos, cremes, papas, mingaus, tortas e pudins”402. Sem contar a
presença de frutas tropicais, que contribuíram nos preparos, pois “as frutas cristalizadas
eram guloseima encontrada em toda a colônia”403, transformando-se em uma variedade
de doces com várias frutas de acordo com as estações do ano. Na imagem da vendedora
de pão de ló, analisaremos o grande sucesso que o doce fazia na cidade, onde as
vendedoras sempre estavam rodeadas de fregueses que buscavam comprar um quitute.
Figura 25 – Jean-Baptiste Debret. Vendedoras de pão de ló. 1826; aquarela sobre papel; 16,3 x 20,8cm;
assinada e datado. Museus Castro Maya, Rio de Janeiro.
Debret retrata nessa imagem várias vendedoras de pão de ló, inserindo duas
vendedoras no primeiro plano e outras duas em segundo plano, na qual estas últimas
andam pela cidade com os tabuleiros na cabeça em busca de fregueses em outros pontos
de venda, já que naquele local outras duas vendedoras já atraíram a freguesia. No lado
direito da imagem, a vendedora vende seu quitute para uma menina acompanhada por
402 PRIORE, Mary del. Histórias da gente brasileira. São Paulo: Leya, 2016. v. 1, p. 273. 403 Idem.
123
sua criada, responsável pelo pagamento, enquanto a outra vendedora vende para dois
escravos, estando um deles mais ao centro da imagem – vendedor de trabalhos feitos de
chifres de boi. Percebemos na imagem, como era vendido o pão de ló: em fatias
tornava-se mais acessível para a população sua compra. É importante ressaltar na cena o
fato da menina branca escolher seu quitute, como uma futura senhora que fiscaliza a
cozinha de sua casa, enquanto o escravo recebe da vendedora o seu quitute, sem ter a
mesma chance de escolher. Outro fato que chama a atenção não só dessa, mais das
outras imagens das quituteiras, são as escravas portarem o turbante e alguns escravos os
chapéus, importante conotação simbólica, sendo um dos símbolos de status na cidade,
sendo muito comum encontrar escravos com variados estilos de chapéus, que segundo
Karasch eram valores africanos.
As plumas, turbantes e panos usados pelos negros distinguiam-nos de todos os outros homens do Rio e, em alguns casos, proclamavam suas filiações religiosas. Em outros casos, os chapéus indicavam, sem dúvida, soberanos africanos que continuavam a utilizar o símbolo de status dos sobas de Angola.404
Tudo para os negros forros ou escravos possuíam um significado, símbolos
sempre ligados às tradições africanas. Os cortes de cabelos variavam de acordo com as
regiões de origem dos escravos, os adornos, sejam eles brincos, colares ou braceletes
são símbolos de destaque e de ostentação, mas juntamente com esses adornos
encontravam-se os amuletos e talismãs, variando de acordo com as representações.
Muitos escravos ou libertos carregavam consigo amuletos e escapulários católicos com
imagens de santos e da Virgem Maria; já outros carregavam consigo amuletos com
símbolos ancestrais africanos com marfim, dentes e conchas, como forma de proteção.
Muitos africanos que vieram para o Brasil trouxeram consigo o costume da
escarnificação, com o objetivo de marcar a pele com cicatrizes, como representação da
tribo de origem ou demonstração de força e resistência, para Debret demostrava saudade
da pátria.
A tatuagem é praticada de diversas maneiras, por incisões de inúmeras formas, gravuras pontilhadas ou simplesmente linhas coloridas. No Rio de Janeiro é esta a maneira mais comum e pode ser observada diariamente nas negras, a isso levadas pela saudade da pátria.405
404 KARASCH, Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro, 1808-1850. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 304. 405 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p. 282.
124
O que mais chamou a atenção de Debret, foram as vestimentas das negras
libertas, que de acordo com seu relato “as negras andam sempre vestidas com muito
asseio e às vezes elegância”406, pelo fato de circularem pelas ruas do Rio de Janeiro,
traziam consigo marcantes características de vaidade e ostentação, ou até mesmo para
atrair fregueses. As libertas “podiam usar fina camisa guarnecida de renda, saia de
musselina branca sobre outras cores vistosas, turbante à cabeça e chinelas de tacões
altos (...)”407. No caso das escravas, “a maioria andava descalça e miseravelmente
vestida; as mulheres mal cobriam o corpo com uma camisa e uma saia de tecido
grosseiro (...)”408. É importante realçar as vestimentas das vendedoras, ricas em detalhes
e cores, tornando “um indicador indentitário da figura, seja no que diz respeito à raça,
condição social, contexto cultural ou mesmo atividade desempenhada no quadro da
sociedade que se observa”409. Um exemplo do cuidado com a aparência, como a
ostentação dos adornos, encontramos na imagem da vendedora de aluá, pela notável
elegância. De acordo com Debret, tal sofisticação das negras estava vinculada a dois
tipos distintos de serviços: à venda de seus quitutes e à prostituição, referindo-se às
visitas furtivas, quando a escrava entrava na casa para “vender” seu quitute, sendo um
meio aplicado para poder se prostituir disfarçadamente.
Essas vendedoras de aluá são notáveis pela elegância ou, ao menos, pela limpeza de seus trajes, naturalmente proporcionais à fortuna dos senhores, sempre interessados em conseguir, assim, alguma vantagem na concorrência momentânea. Dessa preocupação se aproveita duplamente a negra, de natural faceira e interesseira, para travar novos conhecimentos lucrativos que ela cultiva durante o resto do ano mediante visitas furtivas que lhe dão algum dinheiro, a título de esmola ou de recompensa por pequenos obséquios prestados com condescendência.410
Até agora analisamos várias imagens de vendedoras de quitutes, mas para matar
a sede do calor tropical do Rio de Janeiro, destacavam-se as vendedoras de refrescos.
Com a influência da colonização portuguesa e a vinda dos africanos, o consumo de
bebidas foi se tornando variado, desde sucos de “certas frutas de verão, como a
melancia, a pitanga, a jabuticaba, o araçá e a polpa de tamarindo, etc.”411. Tanto os
406 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p. 308. 407COSTA, Emília Viotti da. Da senzala à colônia. 5. ed. São Paulo: Editora UNESP, 2010. p. 272. 408 Idem. 409 SILVA, Valéria Piccoli Gabriel da. Figurinhas de brancos e negros: Carlos Julião e o mundo colonial português. 2010. Tese (Doutorado em História) – FAUUSP, São Paulo, 2010. p. 15. 410 DEBRET, Jean-Baptiste, op. cit., p. 265 et seq. 411 Ibidem, p. 266.
125
indígenas como os africanos já conheciam as bebidas fermentadas, porém, apenas as
consumiam em celebrações tribal e religiosas, caso contrário somente tomavam água. A
colonização portuguesa trouxe o vinho, consumido em qualquer ocasião e lugar, “era
solicitado à mesa dos engenhos ricos e constava da hospitalidade dos conventos. Em
recepções, as autoridades não economizavam o conteúdo (...)”412.
Já para os europeus, não era possível beber sem comer. Um sem o outro era atitude de bêbados, ou melhor, “beberrões ou beberrazes”, adjetivo dicionarizados no século XVIII para definir os que cometiam excessos. Para “beber miúdo” se usava “beberricar”. Ao fundar a indústria do açúcar, o português criou a do álcool. E se o estado de embriaguez indígena ou africana resultava da quantidade de líquidos fermentados, a rapidez com que eles se embriagavam com cachaça, aguardente de cana destilada dos alambiques, surpreendia.413
O consumo exagerado de aguardente pelos escravos passou a ser motivo de
preocupação pelas autoridades, principalmente nas cidades onde os escravos tinham
mais acesso à fonte de aguardente, sendo que “os alambiques, no entender de uma
autoridade, eram prejudiciais ao sossego público, posto que era lugar para ‘bebedices’
dos negros”414. O medo das autoridades era o excesso do consumo, e alegavam levantar
a rebeldia e revolta por parte dos escravos, sem contar os riscos que poderiam causar no
trabalho e os problemas de saúde, como alega Debret em seu relato, entre os flagelos
incuráveis dos escravos “é o abuso de aguardente, cachaça. Essa bebida, infelizmente de
preço módico e com que se embebedam todos os dias, acaba por torná-los tuberculosos,
ceifando grande parte deles”415, passando ser severamente proibido, os escravos o
consumirem. Outras bebidas, a base de frutas tropicais, também imperavam nas casas,
como os licores, “destilados em casa e preparados segundo receitas avoengas, podiam
ser de abacaxi, jenipapo, anis, macaxeira, butiá (...)”416 ou qualquer outra fruta de fácil
acesso.
O que se mais via pelas ruas do Rio de Janeiro, durante o excessivo calor
tropical, era o “grande consumo de bebidas refrescantes, principalmente do econômico
aluá, com arroz macerado e açucarado, néctar da classe baixa. Vêm em seguida a lima,
412 PRIORE, Mary del. Histórias da gente brasileira. São Paulo: Leya, 2016. v. 1, p. 266. 413 Ibidem, p. 263. 414 Ibidem, p. 264. 415 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p. 324. 416 PRIORE, Mary del, op. cit., p. 266 et seq.
126
o limão-doce e a cana-de-açúcar”417, vendidos por escravas de ganho ou até mesmo por
libertas. Diferentemente de outras vendedoras de quitutes, que andavam pela cidade
vendendo de porta em porta, ela tem seu lugar fixo no comércio do Rio de Janeiro,
quando durante os períodos mais quentes do ano são vendidos “por uma multidão de
vendedoras”418. Pelo relato de Debret, temos a noção de como era grande o consumo
dessas bebidas refrescantes no Rio de Janeiro.
Figura 26 – Jean-Baptiste Debret. Aluá, limões doces e canas-de-açúcar, os refrescos usuais nas tardes de verão. 1826; aquarela sobre papel; 15,3 x 21,2cm; assinado e datado.; Museus Castro Maya, Rio de
Janeiro.
O comércio de aluá “bebida muito fresca, composta de água de arroz
fermentado, ligeiramente acidulada (...)”419, se dá na imagem por duas forras, que
ostentam os adornos e a delicadeza das suas roupas, principalmente da vendedora que
ocupa o centro da imagem em primeiro plano, servindo uma lavadeira e sendo
aguardada por outra lavadeira, destacada pelo cesto de roupas que carrega na cabeça, na
qual, a lavadeira sentada aguarda para ser servida para depois dirigir-se ao riacho mais
próximo para lavar as roupas, pelo fato de colocar seu cesto no chão e usá-lo como
417 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p. 263. 418 Ibidem, p. 265. 419 Idem.
127
apoio. Para a lavadeira em pé com o cesto na cabeça, a imagem remete estar voltando
com as roupas lavadas, percebendo o cuidado para não sujar as peças, não tirando o
cesto da cabeça. Debret relata também na imagem a maneira como era vendido o aluá,
destacando os instrumentos de trabalho, composto de um “pote de barro, um prato, uma
grande xícara de porcelana e, finalmente, um coco de cabo de madeira, espécie de
colher e ao mesmo tempo medida de capacidade que serve para tirar do pote a
quantidade de bebida suficiente para encher a xícara”420. A vendedora que fica logo
atrás, incrementa juntamente com a venda do aluá, a venda de limão-doce e cana-de-
açúcar, aumentando ainda mais sua renda. O limão-doce é vendido já descascado, que
segundo o artista, a vendedora vende a fruta descascada para “conservar a casca a fim
de fazerem doce”421, conhecido como doce de casca.
A venda em pedaços de cana-de-açúcar, “permite obter-se com mais facilidade o
caldo. Esse sistema consiste em cortar a cana em pequenos pedaços (...), pois a cada
dentada enchem-lhe a boca de um suco abundante, inodoro e muito doce”422. Na
imagem, a vendedora acaba de vender a cana em rolos para um menino, pago por sua
mãe. Logo atrás, encontra-se uma escrava ou forra que acaba de chegar no ponto de
venda, e por sinal também é uma vendedora de aluá, pelo estilo do pote e também pela
colher que traz na cabeça. Em uma das mãos estão grandes pedaços de cana, que serão
cortados em pequenas porções para serem vendidas em rolos. Em toda a imagem,
Debret procurou dar uma dinâmica social gerada pelo desenvolvimento desse comércio,
destacando a presença das vendedoras do mesmo refresco.
A rua para as vendedoras é local de convívio social, de troca de experiências.
Destacamos isso nas imagens que analisamos no decorrer desses dois primeiros itens,
aparecendo em várias imagens os escravos e escravas conversando, aproveitando a
liberdade e o distanciamento dos seus senhores, para transitar na cidade, mantendo os
convívios sociais com os demais escravos da mesma etnia, “enredadas nos laços
pessoais muito fortes e conturbados que as ligavam às proprietárias, era com o
desdobramento de relações sociais inerentes ao pequeno comércio ambulante que as
escravas reconstruíam seus laços primários, para além do espaço doméstico”423.
Dinâmicas estas presentes em toda a cidade, pelas vendedoras forras ou escravas, que se 420DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p. 265. 421Idem. 422 Idem. 423 DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1995. p. 157.
128
encontram em todos os pontos mais movimentados do Rio de Janeiro, sejam nas praças,
Igrejas, ruas movimentadas ou nos cais do porto, local onde se encontram “lá pelas
quatro da tarde que se podem ver esses homens de pequenas rendas chegar de todas as
ruas adjacentes ao Largo do Palácio, a fim de sentarem nos parapeitos do cais, onde têm
por costume respirar o ar fresco até a hora da ave-maria”424. Conforme Debret, em
pouco tempo, todo o parapeito do cais estava lotado pelos pequenos capitalistas.
(...) encontramos na classe média e mais numerosa o pequeno capitalista, proprietário de um ou dois escravos negros, cuja renda diária, recolhida semanalmente, basta à sua existência. Satisfeito com essa fortuna, ou melhor, com a posse desse imóvel, adquirido por herança ou com o fruto de suas economias, emprega filosoficamente o resto da vida na monotonia dos passatempos habituais. Esse homem tranquilo, observador religioso dos usos brasileiros mais tradicionais, levanta-se antes do sol, percorre com a fresca uma parte da cidade, entra na primeira Igreja aberta, reza ou ouve missa e continua o seu passeio até as seis horas da manhã. Volta, então, despe-se, almoça, descansa, limpa seus trajes, janta ao meio-dia, faz a sesta até duas ou três horas da tarde, torna a fazer o toilette e sai de novo às quatro horas.425
Figura 27 – Jean-Baptiste Debret. Uma tarde na praça do Palácio. 1826; aquarela sobre papel; 15,5 x
21,4cm; assinado e datado. Museus Castro Maya, Rio de Janeiro.
424 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p. 179. 425 Idem.
129
Após os parapeitos do cais serem tomados pelos pequenos capitalistas, segundo
Debret, não faziam nada na vida, a rua é tomada pelas quituteiras, aproveitando o
movimento de vários senhores que compravam “generosamente um novo doce, cujo
pagamento se acompanha de uma olhadela protetora, que encoraja a interessante
vendedora a se apresentar espontaneamente no dia seguinte”426. É interessante notar a
maneira como Debret destaca a preguiça dos brancos, considerando-os capitalistas, que
não faziam nada da vida devido à escravidão, já que boa parte desses “pequenos
capitalistas” viviam do trabalho de seus escravos de ganho. As vendedoras também
aproveitavam a ocasião para acompanhar a venda dos quitutes oferecendo água, como
podemos observar as vendedoras, em uma das mãos trazem o tabuleiro de quitute, e na
outra, a moringa. Contudo, muitos senhores se aproveitavam da ocasião, não para
comprar o doce, mas sim para tomar a água. Desta maneira, “o bebedor malicioso
chama de preferência um vendedor de aspecto tímido e, certo de confundi-lo, deprecia-
lhe a mercadoria num tom extremamente duro e se aproveita da atrapalhação do negro
para apossar-se da moringa e beber a água de graça”427.
Embora a imagem exiba uma cena da vida cotidiana num espaço público do Rio
de Janeiro, o artista retrata uma cena que contém todas as classes sociais da época,
representando todos os personagens, ficando bem evidente a forma como constituía-se a
sociedade em um modelo colonial. Enquanto os negros, sejam eles forros ou escravos, e
os militares trabalham, outros dedicavam-se a aproveitar a brisa durante a tarde. Na
imagem, os negros, que nesse caso são representados na maioria pelas negras
quituteiras, saem pelas ruas vendendo seus doces e tantas outras coisas; os militares são
representados por dois soldados, um tomando água de um barril e outro fica em pé
próximo da guarida, fazendo a guarda do local. Estes personagens representam a base
da sociedade, os únicos que trabalham no Brasil, enquanto os senhores brancos sentados
no parapeito do cais, são servidos de água pelas escravas e aproveitam o flanar do fim
da tarde, que relembra o ditado popular “sombra boa e água fresca”. Esta cena procede
todos os dias de acordo com Debret, após a Ave-maria “cumprimentam-se mutuamente
e marcam encontro para o dia seguinte”428.
Neste item, analisamos a maneira com Debret construiu o dia a dia das
quituteiras, e através de suas imagens e relato, podemos observar que Debret em
426 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p. 180. 427 Ibidem, p. 179. 428 Ibidem, p. 180.
130
momento algum questionou o porquê apenas mulheres são as vendedoras de quitutes.
Percebemos a submissão da mulher, branca ou escrava do domínio da cozinha. Como
exemplo temos a imagem 25, discutido anteriormente, na qual a menina escolhe o
quitute; assim também pudemos observar nas imagens das vendedoras no decorrer do
item. Para a menina da imagem 25, esta era a característica do século XIX, na qual a
mulher era responsável pelo espaço doméstico, mas para as escravas havia outro
processo cultural ancestral africano, em que garantia seu papel na sociedade, uma
autonomia perante os homens, argumenta Odila.
Na costa ocidental da África, o pequeno comércio era prática essencialmente feminina; atravessar e revender gêneros alimentícios de primeira necessidade garantia às mulheres papéis sociais importantes. Nessa esfera própria, adquiriam autonomia com relação aos homens e, se não prestígio, certamente um papel econômico de provedoras e organizadoras da circulação dos gêneros alimentícios.429
Se fossemos enumerar todas as cenas e os tipos de mercadorias que os forros ou
escravos vendiam pelas ruas do Rio de Janeiro, teríamos mais uma vasta gama de
informações pela variedade de mercadorias e alimentos, como podemos citar: refrescos,
frutas, legumes, galinhas, vassouras, espanadores, colheres de pau, gamelas, peneiras,
estiras, gaiolas de passarinhos, café torrado, palmito, ervas, milho, leite, capim, cestos,
flores, coco, água, folha de bananeira, angu, pastel, manuê, pudim sonho, pão de ló,
mocotó, bolo da Bahia, polvilho de forma, caju, pó de sapato, tripas, linguiça, arruda,
banha de cabelo, aluá, limões doce, cana de açúcar, carvão, pita, telha, sapé, samburás,
cebola, alho, madeira, pedra, lenha, cabras, cavalo, ataçaça, ovos, carne, panelas,
moringas, copos, pratos, talheres e vasos, roupas, bolsas, sapatos, chapéus, jóias,
bijuterias, etc., sem contar com os estabelecimentos comerciais da cidade, que também
se encontravam em grande quantidade, vendendo produtos nacionais vindos de outras
províncias, e os importados vindos principalmente da Europa, mas analisaremos isso no
próximo tópico.
429 DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1995. p. 158.
131
2.3 O Rio de Janeiro dos estabelecimentos comerciais
Em 1822 estavam espalhadas pela cidade 1.619 casas de negócios. Nesse número se contavam 1.032 tavernas! As demais compreendiam, principalmente, armazéns de comestíveis, vendas de carne seca, depósitos de café, molhados, queijos, toucinho, fumo, massame, louça, objetos de metal, cordoalha, materiais de construção. Os principais comerciantes eram 120, sendo que 22 se dedicavam a negócios de café. No ano de 1828, havia 1.400 negociantes franceses. Especializavam-se no comércio a retalho. O número de ingleses era justamente o de metade daquele total. Dedicavam-se ao comércio por atacado. Em 1831, como reflexo da situação política, o comércio fica totalmente paralisado. (...) em 1840, estavam licenciadas 3.501 casas comerciais. Dessas, 2.417 pertenciam a brasileiros natos ou naturalizados e 1.084 a estrangeiros. Com a ascensão ao trono do 2º imperador, a situação comercial melhora.430
Se o comércio interno do Rio de Janeiro já era aquecido com produtos vindos
das províncias do Brasil até 1808, a vinda da corte no mesmo ano fez com que o
mercado consumidor mudasse radicalmente. Por séculos, o Brasil ficou fechado para o
mercado estrangeiro, recebendo apenas mercadorias de Portugal, até que em 1808, D.
João abriu as portas do Brasil para o comércio internacional, passando a comercializar
diretamente com as nações europeias, fortalecendo o comércio europeu, em especial o
da Inglaterra, que via o Brasil como um grande mercado consumidor e
consequentemente favoreceu o comércio interno brasileiro, passando os portos a terem
grande movimento de mercadorias que chegavam da Europa para o Brasil, e
mercadorias de outras províncias para serem levadas para a Europa. Com o passar dos
anos, o mercado ia sendo ampliado e outras partes do mundo passavam a comercializar
com o Brasil, entrando no mercado consumidor brasileiro os produtos vindos da Ásia,
entre eles, os da China. De acordo com Shillibeer, “o movimento comercial nesse porto
é muito significativo e envolve vários países. Há aqui um armazém chinês de grandes
proporções e, em certas épocas do ano, produtos da China podem ser adquiridos a baixo
preço”431.
(...) de Portugal lhe chegavam vinhos, azeites, farinha de trigo, sal, vinagres, bacalhau, azeitonas, lãs, presuntos e paios, frutas secas, chapéus, algodões, sapatos, pólvora, cordame etc.; da Índia e China, diretamente, porcelanas, musselinas, sedas, chá, canela, cânfora etc.; do Reino Unido, fazendas, metais, gêneros alimentícios e mesmo vinhos espanhóis por via de Gibraltar; da França, artigos de luxo, quinquilharias, móveis, livros e gravuras, sedas, manteiga, licores, velas, drogas; da Holanda, cerveja, vidros, linho e genebra;
430 RIOS FILHO, Adolfo Morales de Los. O Rio de Janeiro Imperial. Rio de Janeiro: TOPBOOKS, 2000. p. 274. 431 SHILLIBEER, John. A Narrative of the Briton’s Voyage, to Pitcairn’s Island. Taunton: Impresso para o autor por J. W. Marriott. Londres: Law and Whittaker, 1817. In: FRANÇA, Jean Marcel Carvalho. Viajantes estrangeiros no Rio de Janeiro joanino: antologia de textos (1809-1818). Rio de Janeiro: José Olympio, 2013. p. 73.
132
da Áustria, que comercialmente abrangia o norte da Itália e o sul da Alemanha, relógios, pianos, fazendas de linho e seda, veludos, ferragens, produtos químicos; do resto da Alemanha, vidros da Boemia, brinquedos de Nuremberg, utensílios de ferro e latão; da Rússia e Suécia, utensílios de ferro, aço e cobre, couro, alcatrão, breu, vigas; da Costa da África, isto é, tanto de Angola como de Moçambique, negros (20.000 no ano de 1817), ouro em pó, marfim, pimenta, ébano, cera – de que as Igrejas consumiam carregamentos – azeite de dendê, goma arábica; de Cabo Verde, sal e enxofre.432
De acordo com Lima, compreendemos como era movimentado o comércio
brasileiro e sua variedade, principalmente o Rio de Janeiro, que era a porta de entrada
das mercadorias estrangeiras, sendo as lojas abastecidas com produtos europeus e
também nacionais. De acordo com Debret: “as inúmeras lojas da cidade são diariamente
abastecidas pelas províncias de Minas Gerais, São Paulo, Goiás, Cuiabá e Curitiba”433,
ao chegarem ao Rio de Janeiro, vendiam suas mercadorias e levavam para suas
respectivas províncias, produtos europeus e até mesmo produtos de outras províncias,
como por exemplo, o sal. Era a cena cotidiana do Rio de Janeiro: mercadorias sendo
carregadas por escravos nos portos para as lojas e de tropas “que se cruzam e se
sucedem, entrando e saindo, carregadas de cargas enormes que transportam a uma
distância não raro de seiscentas a setecentas léguas”434, garantindo uma variedade de
produtos nos estabelecimentos comerciais espalhados pela cidade carioca.
Os mercados são abundantemente abastecidos de frutas, legumes, aves e peixes. Rio de Janeiro é o principal centro comercial do Brasil. Sua população em 1816 era avaliada em cento e cinquenta mil almas, com três quintos de escravos. Em 1831 essa população quase dobrara, em grande parte por causa da imigração de franceses, alemães e ingleses. Considera-se, geralmente, que, para o comércio, seu porto é o mais bem situado da América, e passa com razão por uma das primeiras bases navais, em virtude da sua segurança e das outras vantagens que nele encontram os navios e as frotas.435
A abertura dos portos favoreceu o aumento da variedade de mercadorias,
aumentando também o número de pessoas de acordo com o relato de Debret, passando
muitos estrangeiros a morarem no Brasil para cuidar mais de perto de seus negócios
mercantes. Juntamente com esse aumento, houve uma maior demanda na questão da
moradia, vestuário e na área alimentícia, e são estas questões que abordaremos neste
item: como Debret construiu a imagem do Rio de Janeiro, através dos estabelecimentos
432 LIMA, Oliveira. D. João VI no Brasil. 4. ed. Rio de Janeiro: TOPBOOKS, 2006. p. 240-241. 433 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p. 127. 434 Idem. 435 Ibidem, p. 126.
133
comerciais, principalmente aqueles voltados para a alimentação e usos próprios, entre
eles, as sapatarias. Segundo Debret, o Rio de Janeiro, em sua chegada, possuía um
“número considerável de sapatarias, todas cheias de operários”436. Na época, o uso de
sapatos, era sinônimo de poder, sendo uma pequena parcela da população que andava
calçada, enquanto “cinco sextos da população andam descalços”437. O relato de Debret
deixa claro o quanto era difícil o acesso da população em obter um calçado “que era
pouco usado – pois os escravos andavam descalços e as livres só enfiavam borzeguins
para sair à rua”438.
Muitas famílias abastadas faziam esforços para comprarem um par de sapatos,
para exibirem nas festas religiosas, “essa faceirice só pode brilhar durante o trajeto da
casa à Igreja, pois aí, de joelhos sobre o tapete estendido no chão, a brasileira esconde
escrupulosamente seus saltos com o vestido (...)”439, após o fim das celebrações da
Igreja, os sapatos eram guardados até a próxima festa, dando lugar “em casa, o chinelo
ou o pé no chão (...)”440, costume brasileiro que no recato da casa as pessoas se mantêm
mais desleixadas, e de acordo com muitos viajantes, este fato se deve ao calor exaustivo
do Rio de Janeiro. Em caso de visitas, sempre se conserva um par de sapatos velhos
para o dia a dia. O mesmo acontecia com os escravos: por um bom tempo, foi defendido
a questão dos escravos não usarem calçados, sendo “uma das astúcias dos escravos
fugidos no Rio consistia em arranjar sapatos, calçá-los, e misturar-se aos negros e
mulatos livres e libertos que circulavam pela cidade”441. Há vários casos em que ao
saírem de casa, os senhores obrigavam seus escravos domésticos a calçarem sapatos
para acompanhá-los, símbolo de seu poder econômico.
Esse luxo, aliás, não é exclusivo dos senhores; ele obriga a brasileira rica a fazer calçarem-se como ela própria, com sapatos de seda, as seis ou sete negras que a acompanham na Igreja ou no passeio. A mesma despesa tem a dona-de-casa menos abastada, com suas três ou quatro filhas e suas duas negras. A mulata sustentada por um branco faz questão também de se calçar com sapatos novos, cada vez que sai, e o mesmo ocorre com sua negra e seus filhos.442
436 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p. 249. 437 Idem. 438 RIOS FILHO, Adolfo Morales de Los. O Rio de Janeiro Imperial. Rio de Janeiro: TOPBOOKS, 2000. p. 273. 439 JEAN-BAPTISTE DEBRET, op. cit., p. 249 et seq. 440 RIOS FILHO, Adolfo Morales de Los, op. cit., p. 273 et seq. 441 ALENCASTRO, Luiz Felipe de. Vida privada e ordem privada no Império. In: NOVAIS, Fernando A. História da vida privada no Brasil: Império. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 79. 442 DEBRET, Jean-Baptiste, op. cit., p. 249 et seq.
134
Figura 28 – Jean-Baptiste Debret. Loja de sapateiro. 1830; aquarela sobre papel; 16,7 x 23,1cm. Museus
Castro Maya, Rio de Janeiro.
Na imagem da sapataria, Debret destaca ao centro o dono castigando
severamente o escravo com a palmatória “aplicada de preferência nas mulheres e
crianças, era de uso frequente para as pequenas faltas”443, enquanto o escravo aguarda
pacientemente, já com a mão estendida, para receber a punição. Os outros dois escravos
continuam trabalhando por medo de receber o mesmo castigo, apenas um deles ocupa
do primeiro plano da imagem do lado direito, e observa o castigo sem levantar a cabeça
e sem parar o seu serviço. O ambiente da loja funciona na parte da frente da casa,
contendo uma vitrine onde ficam os sapatos em exposição, servindo ao mesmo tempo
de divisória, separando a sapataria e a casa do dono, com uma porta “que comunica com
um pequeno pátio onde se acham a cozinha e o local em que dorme o escravo do
sapateiro”444, bem característico do pequeno comércio do Rio de Janeiro, onde o
comerciante divide uma parte de sua casa com seu comércio, assim como os escravos
que moravam nos fundos da loja, na própria loja ou nos porões do seu senhor,
considerado por Debret como verdadeiras senzalas urbanas.
443 COSTA, Emília Viotti da. Da senzala à colônia. 5. ed. São Paulo: Editora UNESP, 2010. p. 334. 444 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p. 251.
135
Os escravos sublocavam quartinhos sem ventilação e úmidos, ou então seus proprietários, que viviam no primeiro ou no segundo andar das velhas casas coloniais, reservavam para seus escravos os piores cômodos, a parte de baixo, geralmente lojas térreas ou porões, sem divisões, sem a menor privatividade. Eram espécies de armazéns, verdadeiras senzalas urbanas onde se aglomeravam os escravos, geralmente dormindo no chão ou sobre esteiras.445
No canto esquerdo da imagem, destacamos a presença da mulher do dono da
sapataria, amamentando seu filho e ao mesmo tempo não perdendo a oportunidade de
observar a aplicação do castigo, demonstrando aparente satisfação com um sorriso
discreto. Nesta imagem, podemos perceber que mesmo em se tratando de uma mulata a
mulher do dono da sapataria, ela sente satisfação em ver o escravo ser castigado. Debret
também destaca a preparação dos sapatos, com os instrumentos nas mãos dos escravos e
no chão, no qual cada um realiza um estágio na confecção, e ao centro, junto com o
dono, encontra-se o couro, ficando evidente que o dono da sapataria é o responsável por
cortá-lo de acordo com os moldes dos sapatos. Em primeiro plano do lado direito,
aparece um feixe de folhas de uma planta de onde é extraído a cola, chamado de “grude
de sapateiro; basta, com efeito, raspar-lhe o caule descascado para obter uma espécie de
gelatina de um branco esverdeado que pode ser empregada imediatamente e que seca
com rapidez”446.
No geral, a imagem mostra a dinâmica da cidade e a relação que os escravos
possuíam e suas participações na fabricação de objetos que eram utilizados pela
população do Rio de Janeiro, escravos estes, que de uma forma ou de outra exerciam
algum ofício. Muitos africanos após obter sua alforria, abriam algum comércio para
exercer seu ofício, sua habilidade em um determinado trabalho. Destacamos, por
exemplo, a loja de barbeiros, “antigos escravos de ofício, de boa conduta e econômicos,
conseguiram comprar sua alforria (possibilidade legal que lhes devolveu a liberdade e
lhes assinou o lugar de cidadãos, que ocupam honestamente na cidade)”447. Debret
refere-se à ocupação dos libertos em um ofício, nesse caso como barbeiros, obtendo
uma barbearia no Rio de Janeiro. Seguindo ainda o relato de Debret, o artista menciona
que nos momentos vagos, até a espera dos fregueses, os barbeiros dedicam-se ao
conserto de meias de seda, “ramo de indústria explorado exclusivamente nos seus
445 SILVA, Marilene Rosa Nogueira da. Negro na rua: A nova face da escravidão. São Paulo: HUCITEC, 1988. p. 125. 446 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p.252. 447 Ibidem, p. 189.
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momentos de lazer”448. Aos finais de semana e festas religiosas, dedicavam seu tempo
para formarem a banda de música, tocando nas portas de Igrejas. Para Debret, esses
barbeiros possuiam mil talentos, sempre aproveitando seus ofícios e talentos para a
realização de diversas funções, com o objetivo de aumentar ainda mais sua renda.
No Rio de Janeiro, como em Lisboa, as lojas de barbeiros, copiadas das espanholas, apresentam naturalmente o mesmo arranjo interior e o mesmo aspecto exterior, com a única diferença de que o oficial de barbeiro no Brasil é quase sempre negro ou pelo menos mulato. Esse contraste, chocante para o europeu, não impede o habitante do Rio de entrar com confiança numa dessas lojas, certo de aí encontrar numa mesma pessoa um barbeiro hábil, um cabeleireiro exímio, um cirurgião familiarizado com o bisturi e um destro aplicador de sanguessugas. Dono de mil talentos, ele tanto é capaz de consertar a malha escapada de uma meia de seda como de executar, no violão ou na clarineta, valsas e contradanças francesas, em verdade arranjadas a seu jeito. Saindo do baile e colocando-se a serviço de alguma irmandade religiosa na época de uma festa, vemo-lo sentado, com cinco ou seis camaradas, num banco colocado fora da porta da Igreja, a executar o mesmo repertório, mas desta feita para estimular a fé dos fiéis que são esperados no templo (...).449
Figura 29 – Jean-Baptiste Debret. Loja de barbeiro. 1821; aquarela sobre papel; 18 x 24,5cm; assinado e
datado. Museus Castro Maya, Rio de Janeiro.
448 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p. 189. 449 Ibidem, p. 188.
137
Debret procura destacar na imagem os ofícios exercidos pelos respectivos
barbeiros, focando, do lado esquerdo, um barbeiro que aproveita o tempo vago no
conserto de meias de seda, e próximo a ele, várias meias a espera para serem
consertadas ou que já foram remendadas. O artista tem o objetivo de destacar no
barbeiro, a delicadeza com que manuseia a agulha apenas com dois dedos, enfatizando a
habilidade de consertar a malha escapada, como ele mesmo relata. Do outro lado da
barbearia, o outro barbeiro afia suas navalhas na mó, sendo girada a manivela por um
menino, aproveitando a falta de fregueses para colocar em ordem sua barbearia para a
chegada de fregueses, “mas é principalmente no sábado que a porta do barbeiro é
assaltada pelos clientes, ansiosos por um lugar no simples banco ou na poltrona de
honra”450.
A presença do menino na cena remete, a preocupação do barbeiro em passar
para as gerações futuras os ofícios. Debret retratou a cena destacando dois ofícios: o
conserto de meias de seda e o barbeiro. Entretanto, procurou evidenciar que não eram
apenas estes dois ofícios os exercidos, e para isso colocou em cima da porta da
barbearia uma placa indicando os demais ofícios oferecidos: “Barbeiro, Cabeleireiro,
Sangrador, Dentista e Deitão Bixas”. Destacamos no letreiro da barbearia a
importância que tais ofícios, extrapolando o espaço das lojas e ganhando o espaço
público, tornando para si motivo de orgulho de destacar no letreiro os vários ofícios que
exercia. Notamos também, em seu relato, o barbeiro, nos dias vagos, aproveita para
tocar na banda de música a serviço de uma irmandade religiosa.
O mais marcante na imagem são as práticas exercidas nesse estabelecimento, o
cuidado com a saúde e a beleza, a preocupação dos escravos com a saúde por meio de
práticas de sangrias – tradição ancestral africana na busca pelo equilíbrio; a “deitão
bixas”, que consistia na aplicação de sanguessugas, tais termos aprofundaremos no
próximo capítulo, e a preocupação com os dentes, passando a ser dentista, em que o
senhor de escravos “entrega à sua imperícia, levados sem dúvida pela isca da
modicidade dos preços”451. O cuidado com a beleza fica com a barba e o corte de
cabelo, que para os africanos os cortes de cabelo traziam consigo a marca do grupo
étnico a qual pertenciam, como citamos anteriormente na imagem dos barbeiros
450 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p. 189. 451 Idem.
138
ambulantes. Debret apresenta uma pequena barbearia, sendo possível observar ao fundo
da barbearia várias navalhas penduradas na parede, um pequeno espelho e uma tigela.
Ao centro da barbearia encontra-se a poltrona e logo acima um lustre,
“economicamente construído com alguns pedaços de madeira torneada, reunidos entre
si por um arame cujos contornos variados formam os caules de uma folhagem de
zinco”452, para dar ao local um toque de elegância, conquistando mais fregueses. O local
de trabalho também é sua morada. De acordo com Debret, após finalizar seu trabalho
por volta da meia-noite, nos dias mais movimentados, “deita até de madrugada na sua
marquesa, leito de descanso sem colchão, colocado no fundo da loja (...)”453, mas deita
satisfeito com a renda obtida no dia, relata o artista. No lado direito da imagem, em
primeiro plano, encontra-se uma escrava quituteira, junto a seu tabuleiro de doces,
oferecendo a um senhor na janela, “recém-acordado e com o estômago cheio de água
fresca, olha com indiferença o tabuleiro de doce (...)”454, enquanto o cachorro olha para
o tabuleiro com desejo de saborear o quitute.
Os forros, ao abrirem seu próprio comércio, compartilhavam o espaço
juntamente com sua casa, sentiam satisfeitos por terem seu próprio estabelecimento,
garantindo seus lugares na sociedade. O estabelecimento variava de acordo com a
necessidade ou experiência do liberto; se possuíam um ofício, abriam para si um
estabelecimento referente a este ofício, mas caso não tivessem nenhum, abriam um
estabelecimento de alimentação, como por exemplo as tabernas e as quitandas, motivos
de contentamento por parte do liberto de obter seu próprio negócio. Para os brancos,
conforme Soares, era motivo de inveja, discórdias e denúncias.
Para o africano, o racismo dos vizinhos brancos, ao verem um comerciante de cor prosperar, era o motor da atitude intolerante e violenta contra ele. A inveja também era um componente, na visão de Adão, que se misturava ao caldeirão de ressentimentos, ódios implacáveis, incômodos, que acabaram desembocando na invasão de sua moradia por um funcionário de Justiça, veículo da discórdia.455
Esses forros eram motivos de preconceitos por parte dos brancos, por não
aceitarem que possuíssem um lugar na sociedade por meio de um estabelecimento, era
452 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p. 189. 453 Idem. 454 Ibidem, p. 188. 455 SOARES, Carlos Eugênio Líbano. A capoeira escrava e outras tradições rebeldes no Rio de Janeiro (1808-1850). 2. ed. Campinas: UNICAMP, 2004. p. 200.
139
um incômodo para os brancos verem a ascensão de um ex-escravo. Diferentemente da
escravidão rural, a escravidão urbana possibilitava uma mobilidade social na cidade,
fruto de acumulação de ganhos obtidos no comércio de rua. Com o passar do tempo, o
escravo conseguia comprar sua alforria, abrir um comércio e até mesmo ter seus
próprios escravos, como é o exemplo que Debret relata em seu livro sobre uma rica
liberta, dona de uma quitanda, cujo “o lucro deve bastar ao abastecimento da mercearia
e à aquisição de dois moleques que ela educa no trabalho ou no comércio de rua para,
com seus salários, garantir os recursos da velhice”456. Esta ascensão gera o incômodo e
perseguição por parte das autoridades, que muitas vezes se viam aliadas dos brancos
para pressionar esses comerciantes africanos a saírem do local ou até mesmo serem
presos, por uma farsa, na qual “a invasão era parte de uma política de intimidação das
autoridades legais – juntamente com os moradores brancos – para submeter o africano,
que recorria aos mais altos poderes para se ver livre da perseguição”457.
Figura 30 – Jean-Baptiste Debret. Quitandeiras de diversas qualidades. 1826; aquarela sobre papel; 14,8
x 22,3cm; assinado e datado. Museus Castro Maya, Rio de Janeiro.
A imagem da casa de quitandas não foi inserida no livro “Viagem Pitoresca e
Histórica ao Brasil” e pouco falado a respeito dessas casas por Debret: “pontilhavam o 456 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p. 263. 457 SOARES, Carlos Eugênio Líbano, op.cit., p. 201 et seq.
140
ambiente urbano do Rio de Janeiro dos princípios do século XIX eram frequentadas
principalmente por pessoas de cor – escravos, africanos e seus descendentes, libertos –
quando compravam gêneros alimentícios (...)”458, sendo visível na imagem uma
variedade de alimentos como frutas e legumes, e usos domésticos como vassouras,
colheres e mercadorias, ocupando todo o interior da loja. Percebemos nos produtos,
tanto alimentícios como de uso, uma pequena opção de produtos, remetendo a uma
alimentação simples, sem muita variedade. As donas ficavam dentro de sua loja, sendo
uma ao fundo sentada no chão e a outra deitada próxima da porta, parecendo estar
escondida atrás de um banco e sustenta uma cesta de frutas, com o objetivo de ouvir a
conversa de duas outras mulheres na rua, sendo uma delas vendedora de laranjas,
possuindo um ponto fixo na rua, e a outra que não teve a mesma sorte, dependendo do
comércio ambulante, transitando pela cidade oferecendo seus produtos que traz na
cabeça.
No momento quando não aparecem compradores, a vendedora de laranjas
aproveita para amarrar seu turbante enquanto conversa. A casa de quitandas é
representada na imagem por um lugar simples, podendo ser observado na porta do lado
esquerdo, uma criança africana aproveitando a parte quebrada da porta para se
acomodar e degustar o suco de um pedaço de cana de açúcar. Ao fundo da loja, logo
atrás da vendedora sentada, observamos uma cortina que evidentemente serve para
separar a quitanda da casa, não havendo separação do público com o privado.
Muitos tinham a sorte de possuir o próprio estabelecimento, outros ainda
continuavam sendo escravos e ajudando seus donos em seus estabelecimentos, como é o
caso do açougue de carne de porco, pertencente a um açougueiro branco e possuía um
escravo para auxiliar em seu açougue. De acordo com Debret, “consome-se muita banha
e muita carne de porco”459. A banha do animal era utilizada como óleo no preparo das
refeições, já que o azeite de oliva era caro e só se encontrava nas casas ricas, ficando
nas casas abastadas, a banha de porco. A carne de porco era muito consumida pelos
africanos no Brasil, tanto pelo valor econômico como pela facilidade de criar o animal.
Segundo o viajante James Morier, “porcos há em grande abundância (...) são vistos aos
458 SOARES, Carlos Eugênio Líbano. A capoeira escrava e outras tradições rebeldes no Rio de Janeiro (1808-1850). 2. ed. Campinas: UNICAMP, 2004. p. 200. 459 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p. 326.
141
montes, aparentemente sem donos, remexendo o lixo das ruas”460, e consequentemente
com o grande número de porcos “encontram-se nos bairros isolados do Rio de Janeiro
inúmeros matadouros de porcos”461. Com o relato de Debret, temos claramente a noção
da quantidade de pessoas que consumiam carne de porco, motivando a construção de
inúmeros matadouros, e juntamente com isso gerando o aquecimento da economia de
outras províncias que criavam porcos.
A todo instante vêem-se chegar numerosas porcadas, vindas em grande parte da província de São Paulo, principalmente da comarca de Curitiba, tanto mais favorável à criação desses animais quanto suas vastas planícies são cobertas de florestas de pinheiros, cujas árvores gigantescas produzem enormes pinhas, compostas de pinhões de uma polegada e meia de circunferência, que contêm uma substância farinhosa abundante, análoga, pelo gosto, à castanha. Percorrendo-se em fins de outono essas imponentes florestas, não se pode deixar de admirar a prodigalidade da natureza, que revela suas liberdades ao instinto desses animais, mesmo quando domesticados. Nessa época desertam eles às residências de seus donos para virem espontaneamente, de duas ou três léguas de distância, internar-se nas florestas de pinheiros e alimentar-se em liberdade de pinhões maduros, profusamente espalhados pelo chão.462
460 MORIER, James Justinian. A Second Journey Through Persia, Armenia, and Asia Minor, to Constantinople, Between the Year 1810 and 1816: with a journal of the voyage by the Bombay to the Persian Gulf: together with an account of the proceedings of His Majesty’s embassy under His Excellency Sir Gore Ouseley. Londres: Longman, Hurst, Rees, Orme, and Brown, 1818. In: FRANÇA, Jean Marcel Carvalho. Viajantes estrangeiros no Rio de Janeiro joanino: antologia de textos (1809-1818). Rio de Janeiro: José Olympio, 2013. p. 40. 461 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p. 326. 462 Idem.
142
Figura 31 – Jean-Baptiste Debret. Loja de carne de porco. 1827; aquarela sobre papel; 15,5 x 22,5cm;
assinado e datado. Museus Castro Maya, Rio de Janeiro.
Como na sapataria e na barbearia, a imagem apresentada por Debret mostra um
lugar simples e pequeno, no qual o proprietário divide sua casa com sua loja. Local este
constituído de um simples balcão e uma armação no teto para pendurar os pequenos
pedaços de carne, enquanto os pedaços maiores são colocados na porta, onde o
açougueiro “corta um pedaço de toucinho, que, retalhado miúdo, servirá de base para a
módica refeição de um cidadão pobre”463. Para as casas ricas, os senhores mandavam
seus escravos domésticos comprar a carne, como podemos observar dentro do açougue
uma escrava e um menino escravo, que segundo Debret, “a negra com a mão apoiada no
balcão está adquirindo um soberbo lombo de porco, iguaria do cidadão mais rico”464. Na
cena em primeiro plano, encontra-se o dono da loja cortando um toucinho, que se
destaca com um roupão e chinelo, podendo observar uma roupa suja do açougueiro. Em
seu relato, Debret designa como repugnante, “tanto pelo cheiro enjoativo que dele se
exala como pela banha espalhada por todos os lados (...)”465. O artista destaca ainda,
463 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p. 326. 464 Idem. 465Idem.
143
dentro da loja, a maneira com que o escravo do açougueiro corta a carne, utilizando a
boca para firmá-la, facilitando o corte da peça.
Se, por um lado, o açougue de carne de porco era um pequeno espaço, por outro,
os armazéns de carne seca ocupavam um espaço mais amplo pela variedade de produtos
derivados, onde “os armazéns dos negociantes de carne-seca acham-se reunidos em
número bastante elevado, especialmente nas ruas antigas e estreitas das proximidades
das praias (...)”466, sendo consideravelmente exportada pela província do Rio Grande do
Sul, grande fornecedora de carne seca, conhecidas como charqueadas. Debret em seu
relato de viagem explica minuciosamente a maneira de preparação da carne seca,
porém, apenas ilustra a loja e como era vendida a carne seca no Rio de Janeiro. Já na
Bahia, o comércio de carne seca se dava por negras “caxiteiras que vendiam carne seca
com licença da Câmara. Esta obrigava-as a vender a peso, utilizando balanças bem
aferidas”467. Para Priore, a carne seca é herança dos indígenas e com o passar da
colonização foi difundida para outras partes do Brasil, graças aos tropeiros.
A carne-seca, por sua vez, é herança do moquém, a grade de varas sobre as quais os indígenas pousavam as carnes de caça que ali passavam do ponto. E com razão: em terra tropical, a vianda ressecada se conservava melhor. Transportada em lombo de mulas, ela vinha das charqueadas sertanejas para o litoral graças ao tropeirismo. O boi em pé sofria com as viagens e chegava magro aos mercados de abate. Se criado próximo às cidades, o gado era mau.468
466 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p. 297. 467 SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Vida privada e quotidiano no Brasil: na época de D. Maria I e D. João VI. Lisboa: Estampa, 1993. p. 220. 468 PRIORE, Mary del. Histórias da gente brasileira. São Paulo: Leya, 2016. v. 1, p. 249.
144
Figura 32 – Jean-Baptiste Debret. Loja di carne secca. 1825; aquarela sobre papel; 15,2 x 20,4cm;
assinado e datado. Museus Castro Maya, Rio de Janeiro.
O artista destaca a grande variedade de produtos e opções que os armazéns de
carne seca vendiam. No primeiro plano, próximo da porta, encontram-se quatro cubos
de sebo comum, vendidos a varejo para a fabricação de velas, que de acordo com
Debret eram comprados por alguns brasileiros e alemães que dependiam da fabricação e
comercialização de velas pelas ruas do Rio de Janeiro. Para as pessoas que quisessem
comprar velas a varejo, o armazém também fornecia velas, ocupando “uma carreira de
pacotes de velas dependuradas na beirada dessas prateleiras estabelece uma espécie de
franja entorno do armazém”469, podendo ser visto em todo o interior da loja, e possuíam
dois tamanhos “a vela ordinária vende-se a um vintém, e a menor, de metade do
tamanho a dez réis”470. Dividindo o mesmo espaço com as velas nas prateleiras,
“sustenta uma vasta provisão de gordura superfina dentro de bexigas”471, utilizada no
preparo dos alimentos, no lugar do azeite de oliva. No teto do armazém ficavam
expostas para os fregueses as línguas de boi salgadas.
469 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p. 297. 470 Idem. 471 Idem.
145
A iguaria que mais se destaca na loja eram os montes de toucinhos “que um
pequeno pedaço, do tamanho de um dedo, basta para a cozinha diária de grande número
de brasileiros”472, na qual o artista expõe na imagem em primeiro plano um pedaço de
toucinho envolvido em uma esteira de palha, destacando a maneira como era
transportada e embalada para o comércio, pois ao chegarem nos pontos de vendas, eram
tirados das esteiras e empilhados em montes, ocupando o segundo plano da imagem no
fundo do armazém. Juntamente com os toucinhos, em primeiro plano, o comerciante
incrementa na venda peixes secos, vindos da província de Santa Catarina.
Não podemos deixar de analisar o comerciante no primeiro plano do lado direito,
de cabeça cabisbaixa, aguardando a vinda de fregueses, e como atrativo, ele expõe nos
batentes de seu armazém pedaços de suas mercadorias para mostrar “ao consumidor a
qualidade da mercadoria”473. Se comparada com a imagem anterior do açougue de carne
de porco, deparamos com uma diferença da presença de fregueses, enquanto o açougue
de carne de porco é tomado por fregueses, na loja de carne seca o dono aguarda a
freguesia pacientemente. Assim como a maior parte dos comerciantes do Rio de Janeiro,
o dono do armazém de carne seca também divide sua casa com seu armazém, logo atrás
do comerciante encontra-se um “pequeno sótão em que dorme”474.
Segundo Debret, “o comércio de couros de boi não deixa de constituir no Brasil
um excelente negócio para o charqueadeiro do Rio Grande (...)”475, tanto pela utilização
na fabricação de vestimentas, calçados e tantas outras coisas da época como também na
fabricação de sacos para transportar os grãos de trigo para outras províncias.
Conhecidos como surrões, eram “simplesmente dobrados em dois e cozidos com tiras
do próprio couro”476, ao chegarem nas padarias, cabiam aos escravos do padeiro,
descascarem os grãos e depois moer em um moinho de funil, movimentado por um
escravo. No próximo relato de Debret, notaremos que o artista considera o Brasil um
país pouco civilizado, devido ao grande uso da farinha de mandioca, tão utilizada antes
mesmo da colonização pelos indígenas, já que na Europa a falta de pão, ou nesse caso
da farinha de trigo, significava atraso e pouca civilização.
472 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p. 297. 473 Idem. 474 Ibidem, p. 295. 475 Idem. 476 Ibidem, p. 315.
146
O emprego generalizado da farinha de mandioca em lugar da farinha de trigo fazia da profissão de padeiro uma indústria de luxo no Brasil, consagrada apenas à satisfação das necessidades de alguns portugueses e outros estrangeiros no Rio de Janeiro. Assim é que, em 1816, existiam no Rio de Janeiro somente seis padarias, todas de proprietários ricos. (...), entretanto, dois anos após a coroação do rei, a afluência de estrangeiros, principalmente de franceses, foi tão considerável, que provocou o estabelecimento de inúmeras padarias francesas, alemãs e italianas, já abundantes na cidade em 1829. Esse comércio foi principalmente lucrativo para os primeiros capitalistas que a ele se dedicaram, pois anos mais tarde muitos deles, enriquecidos, já se haviam retirado dos negócios.477
Figura 33 – Jean-Baptiste Debret. Padaria. 1830; aquarela sobre papel; 15,2 x 22cm. Museus Castro
Maya, Rio de Janeiro.
De acordo com Debret, o momento da cena se passa às sete da manhã, horário de
grande movimento nas padarias, em que “um negrinho de uma casa rica acaba de encher
um saco com uma provisão de pão para seus senhores, enquanto um moleque e uma
negra compram o pãozinho de vintém indispensável ao almoço”478. Sendo atendidos os
fregueses pelo dono da padaria, seus escravos ocupam o fundo descascando os grãos de
trigo que acabaram de chegar, na qual o artista destacou no chão da padaria os surrões
de couro, comentado anteriormente, e após descascarem, tem a tarefa de moer os grãos
no moinho localizados em cima do armário, no canto do lado direito da imagem. Ao 477 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p. 315. 478 Ibidem, p. 317.
147
fundo, atrás dos escravos, há uma pilha de barris de madeira, oriundo das farinhas
exportadas da América do Norte.
Entre os fregueses da padaria, destacamos a presença de dois meninos,
responsáveis todos os dias por comprarem os pães, e até mesmo por outras compras da
casa de seus senhores, iniciando desde crianças com a responsabilidade das menores
tarefas da casa como aprendizes, para futuramente exercerem serviços mais pesados.
Assim como a sapataria, a padaria concentra um número elevado de escravos,
remetendo serem estabelecimentos lucrativos na cidade, necessitando de um maior
número de mão de obra. Diferentemente de alguns estabelecimentos que analisamos,
assim como o armazém de carne seca, a padaria também apresenta um espaço mais
amplo característico dos solares, pelo seu estilo de construção, ocupando na parte
interior, ao nível da rua, o próprio estabelecimento, e na parte superior, a casa do
proprietário. Se as províncias do sul do Brasil ficavam responsáveis por abastecer o Rio
de Janeiro de carne seca, couro e trigo, Minas Gerais tornou-se a maior responsável por
fornecer o fumo.
A maior produção de tabaco do Brasil vem da província de Minas; embora indígena, aí se cultiva a nicociana com cuidados particulares, o que dobra o rendimento e favorece o comércio, tão vantajoso, de sua exportação. (...) o tabaco, ao chegar à cidade, à loja do varejista, é picado ou socado de acordo com a qualidade que se deseja: para cheirar ou para fumar. Essa indústria é muito lucrativa, porquanto não há brasileiro que recuse uma pitada de rapé. Todas as negras fumam cachimbo, mas os negros preferem os cigarros de fumo picado. Muitas vezes fabricam esses cigarros com rapé enrolado em pequeno tubo de papel, distração que não prejudica em nada a de mascar, durante o resto do dia.479
Debret destaca em seu relato o grande consumo de tabaco pelos escravos,
principalmente o cachimbo, “seguindo costume ancestral africano. Aliás, cachimbo vem
da palavra do idioma quimbundo Kixima, que quer dizer “coisa oca””480. Um exemplo
do uso de cachimbo pelas escravas consta na Figura 22 desta seção, que apresenta uma
vendedora de milho seco com um cachimbo na boca enquanto perambula pela cidade
vendendo seu produto. De acordo com Soares, “o tabaco também era um produto de
valor na época, muito consumido por escravos (...)”481. Na imagem que Debret retratou
479 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p. 303. 480 ALENCASTRO, Luiz Felipe de. Vida privada e ordem privada no Império. In: NOVAIS, Fernando A. História da vida privada no Brasil: Império. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p. 62. 481 SOARES, Carlos Eugênio Líbano. A capoeira escrava e outras tradições rebeldes no Rio de Janeiro (1808-1850). 2. ed. Campinas: UNICAMP, 2004. p. 203.
148
de uma loja de tabaco, destaca-se a quantidade de escravos na frente do estabelecimento
para comprar o fumo, estabelecimento este de “um português muito gordo, de lenço no
pescoço para enxugar o suor que o inunda e servindo com a mesma indolência o forçado
e o capitalista”482.
Figura 34 – Jean-Baptiste Debret. Loja de rapé. 1823; aquarela sobre papel; 18,3 x 23cm; assinado e
datado. Museus Castro Maya, Rio de Janeiro.
Enquanto um escravo é “encarregado dos negócios dos companheiros e da
contabilidade da missão”483, os demais aguardam sentados em seus barris do lado de
fora da loja; o segundo escravo da fila é obrigado a ficar de pé em função das correntes
que trazem no pescoço, o artista não fala da resistência dos escravos em função das
correntes, apenas foca o trabalho, ocultando essa característica em suas obras. Nesse
momento de distração dos escravos, um vendedor de trabalhos feitos de chifres de boi
aproveita a oportunidade para oferecer seus produtos na intenção de obter lucro e
provavelmente também comprar o tabaco para seu próprio uso. No interior da loja,
destacamos as prateleiras lotadas de latas de zinco que contém os tabacos, vendidas pelo
482 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p. 304. 483 Idem.
149
proprietário da loja: “cada uma das latinhas representa uma encomenda”484, sendo
possível observá-las no balcão.
O guarda, durante esse momento de descanso, conversa com uma negra vendedora de legumes que carrega o filho à moda africana. No fundo, outra fila em marcha regressa com uma provisão de água. Empregam-se os forçados duas vezes por dia para abastecer de água as fortalezas; honrados com uma escolta, têm eles a prerrogativa de tomar conta das fontes e espalhar os negros vagabundos que aí se encontram sempre. O triunfo dessa canalha acorrentada repercute nos clamores dos descontentes que a cercam.485
Pelo relato de Debret, percebemos que estes escravos são forçados, estão presos,
e são obrigados a realizar algum tipo de serviço público, e estão acompanhados de uma
escolta. Como diz o texto de Debret, são carregadores de água, escravos estes de ganho
que “faziam parte do cotidiano da cidade”486. Estes escravos eram “utilizados para levar
água das fontes públicas às casas dos senhores (...)”487, ou nos órgãos públicos como é o
caso da imagem que, de acordo com Debret, eles trabalham para levar água até as
fortalezas. Para muitos senhores, o emprego de seus escravos como carregadores de
água constituía em um comércio muito lucrativo, já que “o abastecimento de água era
precário”488, ficando os moradores na dependência de poços e chafarizes. As fontes e
chafarizes do Rio de Janeiro tornaram-se lugares movimentados e evidentemente
transformaram-se em locais de confusões, pois todos queriam pegar água primeiro. Pela
quantidade de escravos presentes em primeiro plano da imagem e outros ao fundo, não
podemos passar despercebido o problema da falta de água na cidade.
Por falta de água, em muitas regiões havia queixas constantes, protestos e brigas envolvendo escravos e aguadeiros. Não faltavam confusões por várias razões nas bicas e nos chafarizes que ficavam depredados, prejudicando o abastecimento. Para evitar problemas, patrulhas públicas vigiavam os tanques e chafarizes como o da Carioca. Mantinham a ordem e puniam os infratores. Carroceiros iam de casa em casa oferecendo as bilhas cheias; eram os aguadeiros.489
484 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p. 304. 485 Idem. 486 SILVA, Marilene Rosa Nogueira da. Negro na rua: A nova face da escravidão. São Paulo: HUCITEC, 1988. p. 122. 487 OUSELEY, William Gore. Travels in Various Countries of the East; More Particularly Persia. A Work Wherein the Author has Described, as far as his Own Observations Extended, the State of Those Countries in 1810, 1811, and 1812. Londres: Rodwell and Martin, 1819-1823. 3v. In: FRANÇA, Jean Marcel Carvalho. Viajantes estrangeiros no Rio de Janeiro joanino: antologia de textos (1809-1818). Rio de Janeiro: José Olympio, 2013. p. 47. 488 PRIORE, Mary del. Histórias da gente brasileira. São Paulo: Leya, 2016. v. 2, p. 179. 489 Ibidem, p. 180.
150
Não podemos deixar passar despercebidos, na imagem, todos os escravos
ligados uns aos outros, por meio de correntes, utilizados em escravos fugidos, o que
tornava o escravo vigiado, tendo a polícia “ordem de prender qualquer escravo que o
use, quando encontrado de noite vagabundeando na cidade, e de deixá-lo na cadeia até o
dia seguinte”490. Vale ressaltar na imagem de Debret, a maneira como constituiu a cena,
focando o trabalho escravo, enquanto a polícia fica de braços cruzados, como na Figura
27. Foram várias as imagens expostas nesta seção que apresentam os castigos dados aos
escravos, desde o pelourinho em praça pública, a palmatória e o colar de ferro, mas
existiam vários outros instrumentos e formas de castigar os escravos e outras maneiras
de punições, como a perseguição que analisamos na imagem da casa de quitanda, sendo
ocultado por Debret, como algo normal, os castigos como elemento de disciplina, onde
“as correntes, as máscaras de metal, os colares de ferro e as cenas de punição
rapidamente o trariam de volta à realidade do cativeiro”491.
O artista também traz ao centro das atenções o trabalho escravo, como elemento
civilizador, expondo “sua vitalidade física e uma presença espiritual que ultrapassam o
caráter documental das cenas (...)”492, no qual no decorrer deste capítulo,
acompanhamos os inúmeros trabalhos exercidos pelos escravos na cidade, ocultando
nas imagens apenas um trabalho muito comum no cotidiano do Rio de Janeiro: os
escravos carregadores de tigre. Tendo possivelmente em mente a futura publicação de
seus trabalhos, Debret optou por ocultar os carregadores de tigres para não chocar a
visão europeia a respeito dessa prática no Brasil. É interessante ressaltar que durate a
análise das imagens deste capítulo, Debret além de mostrar os estabelecimentos, inseriu
juntamente às cenas, os instrumentos de trabalho, ajudando ainda mais a identificar as
maneiras e os procedimentos na realização dos serviços. Para Panofsky, o artista
demonstra “a familiaridade com objetos e fatos (...)”493, adquiridos no decorrer dos anos
em que viveu no Rio de Janeiro.
As imagens deste capítulo “oferecem virtualmente a única evidência de práticas
sociais (...)”494. Diferentemente da iconografia histórica do primeiro capítulo, trazendo
490 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p. 309. 491 NAVES, Rodrigo. A forma difícil: ensaios sobre arte brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. 83. 492 LIMA, Valéria. J. -B. Debret, historiador e pintor: a viagem pitoresca e histórica ao Brasil (1816-1839). Campinas: UNICAMP, 2007. p. 294. 493 PANOFSKY, Erwin. Significado nas artes visuais. São Paulo: Perspectiva, 2014. p. 58. 494 BURKE, Peter. Testemunha Ocular: o uso de imagens como evidência histórica. São Paulo: UNESP, 2017, p. 19.
151
na imagem poucas cores, destacando apenas o vermelho, cor da realeza e poder,
trazendo ao “traje, a postura e as propriedades que os rodeavam, transmitiam um senso
de majestade e poder (...)”495. Ao contrário, encontra a iconografia pitoresca, da vida
cotidiana, regada de cores alegres, vivas como códigos culturais da cena, como
argumenta Burke, tornando essas imagens “valiosas na reconstrução da cultura
cotidiana de pessoas comuns (...)”496, levando para a aquarela a construção social e
visual, cujas táticas continuaremos a analisar no próximo capítulo – a maneira como
Debret continua construindo esse cotidiano social, através das imagens dos festejos
sagrados e profanos.
495 BURKE, Peter. Testemunha Ocular: o uso de imagens como evidência histórica. São Paulo: UNESP, 2017, p. 107. 496 Ibidem, p. 123.
152
CAPÍTULO 3 – “RIO DE JANEIRO: A CIDADE DAS CRENÇAS”
3.1 O padre e o curandeiro: a arte da cura dos males
O século XIX recebeu de herança o que ficou conhecido por “religiosidade colonial” ou “catolicismo barroco”, como mais recentemente denominou João Reis. As práticas católicas eram marcadas pelas espetaculares manifestações externas da fé, presentes nas pomposas missas, “celebradas por dezenas de padres e acompanhadas por corais e orquestras”; nos “funerais grandiosos, nas procissões cheias de alegorias” e nas festas, onde centenas de pessoas das mais variadas condições se “alegravam com a música, dança, mascaradas e fogos de artifícios”497.
Essa denominação de Abreu, a respeito da religiosidade no Brasil, será nosso
ponto de partida para as discussões e interpretações, pelas quais abordaremos a maneira
como Debret retratou as mais diversas formas de manifestações religiosas que ocorriam
no Brasil, mas de modo especial no Rio de Janeiro. No Brasil, a Igreja Católica exerceu
grande influência desde a posse portuguesa, em 1500. Um dos primeiros atos realizados
foi erguer uma cruz e celebrar uma missa, que além de representar uma forte
característica portuguesa de fé católica, a cruz erguida simbolizava, nessa época, a
tomada de posse dessas terras, garantindo, assim, o domínio de Portugal nas Américas.
Após a posse do Brasil, esse território ficou esquecido por trinta e dois anos,
quando, em 1532, começaram a chegar as primeiras expedições com o objetivo de
explorar e colonizar a América Portuguesa. Entretanto, nesse período ocorreram na
Europa vários acontecimentos que mudariam o rumo do mundo, entre eles a Reforma e
a Contrarreforma, que foi o surgimento de novas religiões cristãs ocasionando a perda
de vários fiéis católicos que aderiram aos novos dogmas das outras religiões. A Igreja
Católica, para permanecer com sua enorme influência e poder na Europa, reagiu contra
as reformas protestantes reunindo seus cardeais, bispos e demais membros do clero em
uma reunião que ficou conhecida como Concílio de Trento, na qual “reconheceram que
sua Igreja precisa de mudanças”498, e assim deveriam imediatamente decidir quais
seriam os novos rumos da Igreja.
497 ABREU, Martha. O Império do Divino: festas religiosas e cultura popular no Rio de Janeiro, 1830-1990. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 33. 498 BLAINEY, Geoffrey. Uma Breve História do Cristianismo. São Paulo: Fundamentos, 2012. p. 203.
153
Para salvar o catolicismo, durante o concílio, surgiria a Ordem dos Soldados de
Cristo conhecida por jesuítas, que teriam a tarefa de contrapor os fiéis perdidos. Mas
como conseguir atrair novos fiéis? Por meio desta pergunta compreendemos a
religiosidade no Brasil. A Igreja Católica havia perdido um grande rebanho. No novo
continente havia um enorme rebanho com suas religiões, mas pelo olhar eurocêntrico
eram pessoas sem religião e sem alma, que deveriam ser catequizadas.
Para a Igreja Católica e os jesuítas que logo vieram para o Brasil, o importante era destacar sua “humanidade” e seu pendor para a cristianização. Entusiasmado com a perspectiva de convertê-los ao catolicismo, padre Nóbrega, em 1563, gravou que, com “papel branco”, neles se poderia escrever à vontade.499
Como “papel branco”, o papa via com olhos grandes uma boa oportunidade de
contrapor os fiéis perdidos na Europa catequizando os nativos, garantindo assim seu
poder e influência no Novo Mundo. Juntamente com as primeiras expedições de
exploração e povoamento vieram os jesuítas, em 1549, com a missão de catequizar os
nativos, iniciando os primeiros passos da influência do catolicismo no Brasil. No
decorrer deste capítulo iremos analisar a maneira como Debret construiu a imagem do
Rio de Janeiro através das festas religiosas e populares, na qual, perceberemos a
maneira como Debret denominara tais práticas religiosas. Muitos viajantes, ao chegarem
ao Brasil, estranhavam a “superstição religiosa, com a qual os ibéricos eram
identificados em todos os seus territórios e domínios”500. O fato de tais estranhamentos
não era a questão de seguirem aqui no Brasil com a fé católica, já que muitos viajantes
também eram católicos ou pelo menos de países europeus ainda católicos, mas sim a
maneira como se dava o culto. Para Torrão, “não é a falta de devoção que incomoda aos
viajantes, mas uma devoção mal posta, inadequada e muitas vezes anacrônica”501.
Está devoção anacrônica, perceberemos no decorrer das imagens que
analisaremos neste item, pois para atrair os escravos, a Igreja recriará várias devoções
trazendo consigo uma mistura do catolicismo com as religiões ancestrais africanas. Os
escravos, através da mistura das suas crenças ancestrais, buscam a cura dos males com
as sangrias e proteção de ervas. Os católicos, por sua vez, buscam a cura com os
499 PRIORE, Mary del. Histórias da gente brasileira: colônia. São Paulo: Leya, 2016. p. 21. 500 TORRÃO Filho, Amilcar. A Arquitetura da Desordem: Imagens Contraditórias da Corte Joanina no Brasil na Literatura de Viagem; In: OLIVEIRA, Paulo Motta (Org.). Travessias: D. João VI e o Mundo Lusófono. São Paulo: Ateliê Editorial, 2013. p. 128. 501 TORRÃO Filho, Amilcar. Cidade aberta, sem muralhas. A religião luso-brasileira na literatura de viagem (séculos XVIII-XIX). p. 79.
154
sacramentos e promessas aos santos. No relato de Debret, as cerimônias católicas
“conservaram seu caráter bárbaro, isto é, o exagero (...)”502, e percebemos pelo relato do
artista a influência que a Revolução Francesa trouxe para sua vida, sendo um artista
filho da revolução que pregava o fim de toda ligação com o antigo regime. Debret não
questiona o fato de seguirem a fé católica, mas questiona e considera bárbaro o exagero
com que se professava o catolicismo no Brasil. Um exemplo disso são as procissões (e,
portanto, obscurantista, na visão de Debret), “uma herança medieval largamente adotada
pelos povos ibéricos, que se baseia na dramatização de episódios da história sagrada,
usada, como forma de propagação do Evangelho”503.
Analisaremos, a seguir, a imagem intitulada “Casa de um doente preparado para
ser sacramentado”. Debret retrata uma procissão que leva a extrema unção a um doente.
Pela religiosidade da população, raramente, no Rio de Janeiro, as pessoas faleciam sem
primeiro receberem a extrema-unção. Este quinto sacramento da Igreja destinado aos
enfermos, é uma preparação para uma boa morte, como era chamado às pessoas que
recebiam o viático, as pessoas que não recebiam esse sacramento, acreditava-se que
teriam uma “má morte”. Para entendermos melhor essa questão da “boa morte” e da
“má morte”, surgiram através das tradições populares que as pessoas que receberam
esse sacramento na hora da sua morte teriam a defesa do Arcanjo São Miguel contra as
forças do mal, já os que morriam sem o sacramento na hora da morte seriam tentados
pelas forças do mal, acabando no purgatório.
Segundo as regras da Igreja, ao enfermo se devia ministrar a comunhão, se sua condição física permitisse, e a extrema-unção. Esta última era uma espécie de empurrão final para fora do ciclo da vida. A Igreja explicava sua função: “auxílio na hora da morte, em que as tentações de nosso comum inimigo costumão ser mais fortes, e perigosas, sabendo que tem pouco tempo para nos tentar”. (...) a disputa entre as forças do Bem do Mal pela alma do moribundo era tema frequente de estampas piedosas em toda a cristandade504.
A extrema-unção era tão respeitada, que a Igreja negava sepultar um falecido
dentro da própria Igreja caso o doente recusasse esse sacramento. Este pensamento
fervoroso com a preocupação dos familiares, parentes e do próprio doente em receber o
502 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p. 371. 503 SILVA, Valeria Piccoli Gabriel da. A pátria de minhas saudades: o Brasil na Viagem pitoresca e histórica de Debret. 2001. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2001, p. 84. 504 REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 103-107.
155
viático, está ligado ao discurso religioso da Igreja, através do Evangelho de São João:
“quem come a minha carne, e bebe o meu sangue, tem a vida eterna, e eu o ressuscitarei
no último dia”505, esse era o motivo de receber o sacramento, por medo de não ser
ressuscitado e tornar uma alma vagante pelo mundo, como a tradição popular
costumava dizer, ou até mesmo, medo de permanecer no purgatório, tornando tal
sacramento “uma união íntima de Deus com o homem e por isso situavam-se em
momentos cruciais da vida (...)”506.
Mas na verdade o que seria a extrema-unção? Um costume muito antigo do
catolicismo e presente até os dias atuais, na manhã da quinta-feira santa é realizada a
missa da crisma ou dos santos óleos, sendo consagrados pelo bispo uma determinada
quantidade desses óleos e depois distribuídos em pequenas quantidades para as
paróquias. São três tipos de óleo, cada um destinado a um determinado sacramento;
sendo um deles o óleo dos enfermos, utilizado na extrema unção. Juntamente com o
santo óleo do enfermo, também se levava a eucaristia para o doente.
Para receber o viático atapetava-se a entrada da casa com folhas de cravos, canela e laranjeira, iluminando-a com candeias, castiçais e lanternas de que exalava o perfume triste de vetustos ritos. Nesse cenário lúgubre, os presentes, ajoelhados e contritos, acolhiam o padre. Mergulhado na fumaça de incenso, o moribundo recebia a extrema-unção: “posto o óleo sobre a mesa, que para isso deve estar aparelhada com toalha limpa, e ao menos uma vela acesa, dada a cruz a beijar ao enfermo”, o padre lia-lhe as preces e ungia olhos, orelhas, nariz, boca e mãos - os instrumentos dos sentidos e dos pecados - segundo os ritos da Igreja católica. Aos escravos cabia memorizar a seguinte fórmula: “o teu coração ama a Deus? Responda: sim”. Uma vez confessado e perdoado, o moribundo devia ser consolado e ouvir exortações. Em algumas regiões, cantavam-se excelências, cantos sem acompanhamento musical, incentivando-o a arrepender-se dos pecados. Assim, embalado, ele podia entregar sua alma a Deus507.
505 (JOÃO, 6, 54-55). 506 PEREIRA, Júlio César Medeiros da Silva. À flor da terra: o cemitério dos pretos novos no Rio de Janeiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Garamond, 2014. p. 40. 507 PRIORE, Mary del. Ritos da vida privada; In: NOVAIS, Fernando A. História da Vida Privada no Brasil: Cotidiano e vida privada na América portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. 326-327.
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A preocupação de levar o sacramento para o doente, era importante para o
católico, e mais importante ainda era para a família, deixando o cenário que acontecia
na rua com a procissão do viático, para o interior da casa do moribundo, tornando uma
relação mais integrada entre o privado e o público, sendo a casa do doente tomada por
padres, rezadeiras, familiares e até mesmo desconhecidos, o que acabava tornando “uma
manifestação social”508, durante o tempo que permanecia o doente em cama, sendo
presidido o doente ou até mesmo a morte, pelas pessoas em torno do seu leito.
Figura 35 – Jean-Baptiste Debret. Casa de um doente preparado para ser sacramentado. 1826; aquarela sobre papel; 15,3 x 21,7cm; assinado e datado. Museus Castro Maya, Rio de Janeiro.
Pela afirmação anterior de Reis podemos observar na imagem, próximo da porta
da casa do moribundo, a rua coberta de folhas. A imagem retratada por Debret do
cortejo, traz como principal característica do ritual católico no Brasil, “a pompa e a
ostentação, resultando numa simbiose entre culto e espetáculo”509, podendo analisar na
imagem a grande presença de pessoas na rua e até mesmo nas varandas das casas que
saem para acompanhar a passagem do cortejo. Ao observarmos a imagem do cortejo,
508 ARIÈS, Philippe. Images de I’ homme devant la mort. Paris, 1983, p. 110. 509 SILVA, Valeria Piccoli Gabriel da. A pátria de minhas saudades: o Brasil na Viagem pitoresca e histórica de Debret. 2001. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2001, p. 79.
157
nos traz na memória as procissões de Corpus Christi realizados nos dias atuais em
muitas cidades do interior.
A marcha se abria com um irmão carregando a campainha na imagem do lado
direito, responsável em anunciar a aproximação do cortejo, e três membros carregavam
uma cruz ladeada por tocheiros no lado esquerdo da porta. Logo atrás, havia outro
membro da irmandade com o turibulo de incenso, seguido por outro irmão carregando o
livro da liturgia da extrema-unção, em frente à porta. Finalizando, os membros que
abriam o cortejo, próximo do padre, um irmão levava a caldeirinha e o aspersório,
seguido por um membro que carregava o santo óleo dos enfermos. O padre que levava a
eucaristia se encontrava sob o pálio (espécie de toldo), carregado por três membros da
irmandade de cada lado. Os irmãos que acompanhavam o cortejo pertenciam à
irmandade do Santíssimo Sacramento devido à cor vermelha de suas vestes.
O pálio era utilizado como uma cobertura, forma de reverência e respeito à
eucaristia, que representa o corpo de Cristo. Na imagem, percebemos no padre sob o
pálio, suas mãos postas que segurava a eucaristia coberta por uma toalha, algo muito
pomposo pelo fato da hóstia consagrada representar o mais alto grau da santificação da
Igreja, e por isso havia muito cuidado durante o trajeto da Igreja até a casa do doente.
Além disso, o cortejo era escoltado por soldados da polícia, que se encontram logo atrás
do pálio, enquanto a banda de música, composta por negros encontram-se posicionados
em frente à porta da casa, reunindo os demais escravos para juntos entoar cânticos e
ladainhas. Percebemos na banda de música dos negros em primeiro plano, do lado
esquerdo da imagem, um número maior de um tipo de instrumento musical: a trombeta.
O uso da trombeta no cortejo da extrema-unção remete a tradições antigas desde do
Antigo Testamento, passando pelo Novo, e incorporado pela Igreja que diz: Jesus subiu
aos céus ao toque da trombeta. Como Jesus subiu ao toque da trombeta, os doentes
também durante a morte subiriam desta forma – é uma mistura de significados e
simbologias. Debret, ao se referir a questão da banda de música, considera um exagero,
tanto pelo barulho como pela desafinação, mas não deixa de mencionar que era
necessário “para persuadir o moribundo de que já o céu se abre para recebê-lo e os anjos
o anunciam com seu concerto harmonioso”510, tornando praticamente a extrema-unção
um verdadeiro empurrão para a morte.
510 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p. 517.
158
Enquanto o discurso do catolicismo ressoava nas pessoas devotas, a respeito da
importância que a extrema-unção trazia para o doente, feita para a recuperação da saúde
ou nos casos mais graves, obterem uma “boa morte”, a busca dos escravos para
recuperar a saúde não estava nas mãos do Criador, mas sim nas mãos dos cirurgiões
sangradores. Além dos conhecidos médicos, cirurgiões e boticários, que ocupavam
cargos mais reconhecidos na sociedade, havia também os sangradores, parteiras e
curandeiros, que apesar de obterem licenças para exercer os ofícios, “os limites de
atuação eram mais rígidos e é bem evidente sua posição subalterna no quadro das
práticas de cura”511, sendo procurado em boa parte por escravos ou forros. Desde o
percurso da África até ao Brasil, os sangradores são o “único recurso terapêutico para
quem estivesse doente”512, o ofício já exercido dentro dos navios negreiros, chegou ao
Brasil e se espalhou pelas cidades de grande movimento.
Era comum na cidade a presença dos chamados “cirurgiões negros”, que eram encontrados em todos os bairros. Esses curandeiros utilizavam ervas, benzeduras, talismãs, aplicações de ventosas nos seus tratamentos. Negros cirurgiões rivalizavam com a medicina importada da Europa, gozando de grande prestígio entre negros, escravos ou não, e até mesmo entre a população branca pobre.513
Vale ressaltar, no discurso de Silva, a grande presença dos cirurgiões negros
pelas ruas do Rio de Janeiro, pela grande presença de escravos numa só cidade,
ocasionando a busca pelos serviços de toda a população subalterna da sociedade, que
Debret considera um “consolador generoso da humanidade negra, ele dá suas consultas
de graça (...)”514. Enquanto o padre leva o viático até a casa do doente, acompanhado
pelos membros da irmandade, a população escrava vai até a casa do cirurgião negro, que
exerce seu oficio acompanhado de sua mulher e filhos. Na imagem a seguir,
observaremos vários aspectos presentes na cena, demonstrando não apenas a prática da
sangria, mas também outras práticas de cura, “não havia separação de tarefas e de
511 PIMENTA, Tânia Salgado. Sangrar, sarjar e aplicar sanguessugas: sangradores no Rio de Janeiro da primeira metade do oitocentos. In: PIMENTA, Tânia Salgado, Gomes, Flávio (Org.). Escravidão, doenças e práticas de cura no Brasil. Rio de Janeiro: Outras Letras, 2016. p. 230. 512 PIMENTA, Tânia Salgado. Terapeutas populares e instituições médicas na primeira metade do século XIX. In: CHALHOUB, Sidney et al. (Org.). Artes e ofícios de curar no Brasil. Campinas: UNICAMP, 2003. p. 313. 513 SILVA, Marilene Rosa Nogueira da. Negro na rua: A nova face da escravidão. São Paulo: HUCITEC, 1988. p. 127. 514 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p. 324.
159
entendimento entre doenças internas e externas”515, ou seja, a doença do corpo e da
alma.
Figura 36 – Jean-Baptiste Debret. Cirurgião negro colocando ventosas. 1826; aquarela sobre papel; 14,7
x 20,6cm; assinado e datado. Museus Castro Maya, Rio de Janeiro.
Na imagem encontram-se três negros com ventosas, na qual dois esperam
completar o tempo necessário para retirá-las, enquanto o outro escravo que ocupa o
primeiro plano da imagem do lado direito é atendido pelo cirurgião, que retira as
ventosas, e nesse caso é feito de “chifre de boi, preciosa jóia de seis linhas de altura
(...)”516. Ainda, segundo Debret, “à colocação das ventosas, ciência positiva e de
aplicação externa, ele a executa em plena rua, perto de uma casa, ou mais comumente,
numa pequena praça (...)”, o fato de o cirurgião realizar tal tratamento na rua e não
dentro de sua casa, justifica certo “medo” de muitas doenças não serem apenas do
corpo, mas da alma, como mal olhado, e tantas outras. Há uma preocupação
515 PIMENTA, Tânia Salgado. Sangrar, sarjar e aplicar sanguessugas: sangradores no Rio de Janeiro da primeira metade do oitocentos. In: PIMENTA, Tânia Salgado, Gomes, Flávio (Org.). Escravidão, doenças e práticas de cura no Brasil. Rio de Janeiro: Outras Letras, 2016. p. 236. 516 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p. 324.
160
supersticiosa desses males da alma entrarem na casa do cirurgião, e Debret mesmo
preferindo em seu relato manter silêncio, deixa na cena pistas importantes de tais
superstições, analisadas mais adiante.
Podemos observar, os dois filhos do cirurgião que brincam próximo da porta da
casa. Logo acima, pendurados na porta “chapéus de palha e cestos fabricados pelo
doutor nos seus momentos de folga”517. Mesmo Debret, em seu relato, afirmando
encontrar em cada bairro da cidade um cirurgião negro, percebemos que estes cirurgiões
exerciam seus ofícios mais pelo dom do que por dinheiro, oferecendo o cirurgião seus
produtos feitos de palha, ajudando ainda mais na renda de sua família. Vale ressaltar a
maneira como ele trata o cirurgião, destacando a palavra “doutor”, mas de forma irônica
refere-se ser apenas ao “doutor” dos negros, totalmente diferente do verdadeiro doutor
da medicina acadêmica, o qual os negros não tinham acesso. A mulher do cirurgião
acompanha da janela da casa os procedimentos realizados pelo marido, sendo ela a
responsável por conferir “o número de doentes que devem pagar (...)”518. Mesmo que as
consultas realizadas eram de graça, os medicamentos receitados pelo cirurgião eram
mediante pagamento, e “eram feitos à base de ervas, cinzas, pedras, excrementos
etc”519.
O cirurgião procura se prevenir utilizando no pescoço um cavalo-marinho,
amuleto este venerado pelos negros como proteção de feitiços. Por sua vez, a mulher se
preocupa de se proteger dos males, acreditando que alguns casos não se tratavam de
doenças no corpo, mas sim da alma, que consequentemente esses males poderiam após
sair do corpo do doente, entrar em seu corpo, e disso decorre a preocupação de cobrir
seu rosto, deixando apenas os olhos descobertos, acrescentando galhos de alguma erva
medicinal. De acordo com Nogueira, o “uso do reino vegetal para remediar doenças e
feitiços, somando-o a outras práticas de cura (...)”520. O autor se refere às “doenças de
feitiço”, muito presente na crendice popular dos supersticiosos. São essas superstições
que segundo Debret mantém a venda de erva de arruda pelas ruas da cidade do Rio de
Janeiro.
517 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p. 326. 518 Ibidem, p. 324. 519 COSTA, Emília Viotti da. Da senzala à colônia. 5. ed. São Paulo: Editora UNESP, 2010. p. 300. 520 NOGUEIRA, André Luís Lima. Dos tambores, cânticos, ervas. Calundus como prática terapêutica nas Minas setecentistas. In: PIMENTA, Tânia Salgado, Gomes, Flávio (Org.). Escravidão, doenças e práticas de cura no Brasil. Rio de Janeiro: Outras Letras, 2016. p. 24.
161
É a superstição que mantém em voga a erva de arruda, espécie de amuleto muito procurado e vendido todas as manhãs nas ruas do Rio de Janeiro. Todas as mulheres de classe baixa, da qual constituem as negras cinco sextos, a consideram um preventivo contra os sortilégios, por isso têm sempre o cuidado de carregá-las nas pregas do turbante, nos cabelos, atrás da orelha e mesmo nas ventas. As mulheres brancas usam-na em geral escondida no seio. A acreditar-se na credulidade generalizada, essa planta, tomada como infusão, asseguraria a esterilidade e provocaria o aborto, triste reputação que aumenta consideravelmente a sua procura.521
Pelo relato de Debret percebemos que a erva de arruda serve como amuleto
contra sortilégios, como medicamentos contra “dores reumatismais, ou ainda como
fricção (...)”522. No entanto, o que chama a atenção do relato do viajante é o uso da erva
para a esterilidade, ocasionando aborto. Debret considera tal prática de triste reputação,
mas para a população escrava, em especial às mulheres, encontravam através de tal
infusão uma forma de resistência contra a escravidão, que preferiam abortar seus filhos
ao invés de deixarem sofrer com a escravidão. Ao contrário do que Debret considera o
uso de ervas como espécie de amuletos e remédios apenas para a classe baixa, o uso de
plantas consideradas medicinais sempre esteve presente na medicina colonial e até
mesmo nos periódicos médicos, como denomina Ferreira.
A utilização de plantas medicinais foi uma das práticas terapêuticas mais recorrentes na tradição médica colonial. A exuberante diversidade da flora tropical brasileira estimulava a busca de novos medicamentos, entre eles os que pudessem servir de antídoto para veneno de plantas e peçonha de animais. Desse modo, não é de estranhar que os periódicos médicos tenham publicado artigos tratando desse assunto. Tais matérias eram, na maioria das vezes, de autoria de leigos que comunicavam aos médicos a descoberta e/ou existência de uma prática terapêutica consagrada pela cultura popular. Além disso, era comum os autores solicitarem a opinião dos especialistas, convocando-os a discutir abertamente a eficácia de tais procedimentos.523
Percebemos que não havia uma separação de classes sociais no uso de ervas
medicinais na cura de doenças ou sortilégios, estava presente em praticamente todas as
recomendações, sejam elas dos curandeiros ou dos médicos acadêmicos. Enfim, na
imagem retratada por Debret, percebemos a grande presença de compradoras de arruda
próxima do vendedor da erva.
521 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p. 513. 522 Idem. 523 FERREIRA, Luiz Otávio. Medicina Impopular. In: CHALHOUB, Sidney et al. (Org.). Artes e ofícios de curar no Brasil. Campinas: UNICAMP, 2003. p. 105.
162
Figura 37 – Jean-Baptiste Debret. Negra comprando arruda para se preservar do mau olhado. 1827;
aquarela; 15,6 x 21,6cm; assinado e datado. Museus Castro Maya, Rio de Janeiro.
Na imagem, o vendedor da erva se encontra rodeado pelas compradoras, e duas
delas distribuem as ervas pelo corpo, principalmente nas orelhas e nariz, acreditando ser
por ali que entravam os sortilégios afetando o corpo. A segunda, à direita do vendedor,
segundo Debret, é filha de uma negra quitandeira livre comprando uma quantidade
considerável de arruda para repartir com sua mãe. Podemos destacar em suas
vestimentas, o avental todo bordado e logo abaixo de seu vestido, os bordados
relembram cavalos marinhos. Novamente Debret insere na imagem elementos da
cultura popular dos africanos, a negra filha da quituteira não se sente satisfeita apenas
com os galhos de arrumas, bordando também em seu vestido cavalos marinhos,
considerado amuletos contra sortilégios, como discutimos na imagem do cirurgião
negro.
Vale ressaltar na cena o local onde se encontra o vendedor de arrudas. Pela
arquitetura atrás do vendedor, trata-se de uma Igreja, pela pequena janela e parte de uma
grande porta que aparece no lado direito da imagem. Enquanto muitos procuram se
livrar dos sortilégios através de curandeiros, amuletos e ervas como costume ancestral
africano, que busca “o auxílio das divindades e dos antepassados para controlar e
163
combater as forças maléficas que causavam transtornos na vida de seus consulentes”524,
outros procuram o padre e a confissão nas Igrejas acreditando se livrar dos maus
espíritos, através do perdão dos pecados, considerando o pecado a porta de entrada de
tais males no corpo. Nesse sentido, destacamos a maneira como Debret construiu a
imagem do vendedor de arrudas, localizado próximo de uma Igreja, na qual podemos
tirar a conclusão que Debret quis indicar uma aproximação da religiosidade popular e
africana com o catolicismo luso-brasileiro. O artista retratou inúmeras cenas a respeito
da religiosidade brasileira, mostrando os interiores das Igrejas no Rio de Janeiro, como
a imagem da coroação de D. Pedro I, o segundo casamento de D. Pedro I e o casamento
entre escravos de uma casa rica, mas apenas focou na cena os personagens envolvidos,
deixando de destacar grande parte do interior da Igreja. Apenas uma imagem que o
artista retratou, de um modo geral, foi a imagem intitulada “Uma manhã de Quarta-
Feira Santa na Igreja Mãe dos Homens”, exibindo cada detalhe do interior da Igreja. O
viajante James Prior, durante sua passagem pelo Brasil, destacou a tocante da
religiosidade no Rio de Janeiro e a grande presença de Igrejas pela cidade, fazendo uma
descrição dessas construções.
As igrejas são os principais edifícios públicos da cidade. (...) as Igrejas são oblongas e desprovidas de naves laterais; a entrada é no fundo e, em dias de culto, uma curiosa cortina é colocada na porta, para proteger o recinto dos olhares de quem passa na rua. Geralmente, na extremidade oposta, há um retábulo representando alguma cena do calvário de Nosso Salvador. As paredes são decoradas com pinturas dos apóstolos e de outros personagens das escrituras e com retratos de santos que só são conhecidos pelo lugar que ocupam no calendário romano.525
Pelo relato do viajante, notamos as características do interior das Igrejas,
compostas de decorações pelas paredes, característico da arte barroca, que servia como
“literatura popular visual”526, como uma catequese visual para as pessoas analfabetas.
Com a contrarreforma católica, os estilos decorativos das Igrejas mudaram, deixando de
se tornar um ambiente carregado de cenas, mostrando para os católicos o poder de Deus
e dos Santos, que em qualquer atitude contra a fé (pecado) o fiel estaria condenado ao
524 LIMA, Adriano Bernardo Moraes. Desfazendo feitiço: curandeirismo e liberdade nos engenhos do oeste paulista (século XIX); In: COSTA, Valéria e Gomes, Flávio (Orgs.). Religiões negras no Brasil: da escravidão à pós-emancipação. São Paulo: Selo Negro, 2016, p. 121. 525 PRIOR, James. Lisburn, to Mozambique, Johanna, and Quiloa; to St Helena; to Rio de Janeiro, Bahia. Londres: Sir Richard Phillips and Co, 1819. In: FRANÇA, Jean Marcel Carvalho. Viajantes estrangeiros no Rio de Janeiro joanino: antologia de textos (1809-1818). Rio de Janeiro: José Olympio, 2013. p. 64. 526 BURKE, Peter. Testemunha Ocular: o uso de imagens como evidência histórica. São Paulo: UNESP, 2017. p. 85.
164
purgatório ou até mesmo ao inferno. Após tais reformas católicas, essas práticas foram
deixadas de lado, assim como a decoração das Igrejas, tornando um ambiente mais claro
e alegre, menos carregado de pinturas, e as que permaneceram traziam consigo um Deus
salvador, que vai ao encontro dos fiéis para salvá-los e não mais para condenar, havendo
uma mudança de ênfase “dos sofrimentos da alma no século XVII para as imagens de
salvação no século XVIII”527, e Debret como um herdeiro dessas revoluções, escolhe
uma Igreja que traz as características neoclássicas na construção para ser retratada.
Figura 38 – Jean-Baptiste Debret. Uma manhã de Quarta-feira Santa na Igreja Mãe dos Homens. 1827;
aquarela sobre papel; 14,80 x 22,9cm; assinado e datado. Museus Castro Maya, Rio de Janeiro.
Notamos os detalhes apenas nas colunas e tribunas, enquanto as paredes são
desprovidas de detalhes e pinturas. Os locais mais decorados estão nos retábulos dos
altares central e lateral da Igreja, destacando apenas os candelabros que compõem os
degraus do altar e a imagem do santo padroeiro, como podemos observar no altar do
lado direito da imagem. Notamos em todo o interior da Igreja a presença de várias
mulheres recebendo ou aguardando a confissão, considerado por Debret um ato
obrigatório para os fiéis, como obediência e recenseamento dos paroquianos. Segundo
527 BURKE, Peter. Testemunha Ocular: o uso de imagens como evidência histórica. São Paulo: UNESP, 2017. p. 74.
165
Debret, para a Igreja controlar o número de fiéis para a confissão, solicita-se a
“distribuição dos cartões de confissão, em cada paróquia manda-se imprimir a fórmula
(...)”528. Através desses cartões, as pessoas se sentem obrigadas, quando próximas das
festas solenes da Igreja a confessarem: “no dever não apenas de obrigar todas as pessoas
de sua família a comungarem, mas ainda o maior número possível de seus escravos,
principalmente suas negras, as quais, empregadas exclusivamente nos serviços das
amas”529.
É interessante ressaltar, no relato de Debret, a obrigatoriedade de práticas
católicas que os senhores impunham a seus escravos, principalmente dos escravos
domésticos, responsáveis por acompanhá-los na Igreja, como podemos observar na
imagem de Debret no interior da Igreja, onde várias negras, sejam elas forras ou cativas,
mesmo mantendo escondidas suas práticas religiosas ancestrais, cumpriam as
obrigações católicas, seja pela sua aproximação e contato direto com seus senhores no
ambiente doméstico no caso das escravas. Já as forras, após adquirirem sua liberdade,
tentavam de uma maneira ou de outra, se inserir na sociedade dos brancos mesmo
sofrendo muito o preconceito e a rejeição da sociedade escravocrata.
Diferentemente dos escravos de ganho que viviam diariamente nas ruas, sendo
obrigados a seguirem a fé católica, mantinham seus costumes ancestrais, devido o
contato com outros escravos e pela liberdade que gozavam de circularem pelas ruas e o
distanciamento de seus senhores. Observamos também do lado direito da imagem dois
confessionários, e entre os dois confessionários uma fila de senhoras esperando para se
confessarem. Do mesmo lado direito da imagem, em segundo plano, se encontram
outros confessionários, próximo dos corredores laterais de acesso à Igreja e à sacristia.
O que percebemos na imagem é a vestimenta das senhoras na Igreja, todas vestidas de
preto, como era de costume na época, as mulheres usarem vestidos pretos, além dos
véus obrigatórios em todas as ocasiões religiosas.
O confessionário - o tribunal da penitência - foi previsto pelos arquitetos do catolicismo para ser a um só tempo o mais privado e o mais público dos espaços sacros, pois destinava-se a manter absolutamente secreto o diálogo do pecador com o sacerdote, embora devesse situar-se em local estratégico para ser visível por todos os circunstantes, evitando desse modo as tentações de intimidade entre confessor e penitente e as murmurações dos maldizentes. Em seu interior, portanto, o tribunal da confissão era o espaço mais privado da Casa de Deus, e em seu exterior, obrigatoriamente, devia estar ao alcance
528 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p. 583. 529 Idem.
166
do olhar público. Institucionalizada a confissão auricular com sacramento necessário e indispensável à vida cristão, a Igreja católica devassou o mais secreto e recôndito das consciências de seus fiéis, obrigando-os a narrar detalhadamente seus pensamentos, ações e omissões que pudessem se enquadrados na categoria de pecado (...)530.
Notamos na citação de Mott, que nem tudo que se refere ao espaço sagrado era
tão respeitado, sendo os confessionários situados em locais visíveis, devido às tentações
de intimidade entre o padre e o penitente, remetendo haver durante as confissões certos
abusos ou malícias por parte de ambos, e o que era para ser um local de perdão dos
pecados, acabava se tornando um local de supostos novos pecados. Mesmo Debret em
não mencionando a questão das tentações durante a confissão, o estilo dos
confessionários se destaca na imagem, todo aberto nas laterais, havendo apenas uma
separação entre o padre e as penitentes, sendo visível a todos da Igreja.
Em primeiro plano na imagem, ao centro da Igreja, se encontram várias
mulheres sentadas no chão, na espera por serem atendidas nos confessionários, e logo
após a confissão os fiéis se dirigiam aos pés do altar central da Igreja para receberem a
comunhão e fazer as orações penitenciais solicitadas pelos padres durante a confissão.
Percebemos também no chão da Igreja as numerações das sepulturas dos irmãos
pertencentes da irmandade dessa Igreja, acreditando que as pessoas cristãs deveriam ser
enterradas em solos sagrados, nesse caso ocasionando mau cheiro dentro das Igrejas,
pois “os cadáveres humanos contavam entre as principais causas de formação de
miasmas mefíticos, e afetavam com particular virulência a saúde dos vivos, porque eram
depositados em Igrejas e cemitérios paróquias dos centros urbanos (...)”531. Mesmo com
este mau cheiro, isso não impedia dos fiéis frequentarem as Igrejas, na busca de ouvir
uma missa, rezar, confessar ou até mesmo agradecer por uma graça alcançada, pois
Debret considerava que a população brasileira estava submetida “desde a infância às
práticas religiosas (...)”532, acompanhando-as até a morte, como analisamos na imagem
35.
530 MOTT, Luiz. Cotidiano e vivência religiosa; entre a capela e o calundu; In: NOVAIS, Fernando A. História da Vida Privada no Brasil: Cotidiano e vida privada na América portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. 210. 531 REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 76. 532 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p. 484.
167
(...) o brasileiro naturalmente levado pela devoção, quando atacado de doença grave, a fazer uma promessa em benefício da Igreja, a fim de merecer a convalescença; essa promessa devota é aprovada imediatamente pelo confessor e o convalescente apressa-se em cumpri-la imediatamente após a sua cura. Mas, em virtude de um sentimento mundano que se ajunta ao dever religioso, esse ato de humildade e de gratidão para com o Criador adquire, no homem rico, um caráter de ostentação que eclipsa diariamente, aos olhos do povo, a mesma promessa do pobre, cuja oferenda modesta, mas igualmente meritória, apenas se nota ao ser levada ao pé do altar.533
O que se percebe no relato de Debret, é que muitas vezes as pessoas ao pagarem
a promessa, após se recuperarem de alguma doença, viam uma oportunidade de mostrar
seu poder doando grandes quantidades de velas, enquanto as pessoas mais simples
doavam apenas uma vela. O rico, por exemplo, chegava a doar até cem velas. Mas
podemos perguntar agora: quem fez a maior doação? O rico com cem velas ou o pobre
com uma vela? Se analisarmos pelo lado quantitativo, o rico fez a maior doação, com
cem velas; porém se olharmos pelo lado religioso, o pobre fez a doação maior. O rico
pode até doar cem velas, mas sua intenção é demonstrar para sociedade sua riqueza, seu
poder econômico, como Debret denominou de ostentação. Já o pobre foi humilde e fez a
doação de acordo com a sua condição econômica. Compreendemos também sua forma
de resistência para demonstrar, mesmo que por uma quantidade pequena, sua
capacidade de doar velas para a Igreja. São nesses acontecimentos que percebemos as
inversões de valores, dando a entender que as pessoas pagavam as promessas apenas por
obrigação e prestígio na sociedade, ou por medo de um castigo divino e não por
agradecimento. Uma população que considerava fervorosamente religiosa saberia
interpretar o verdadeiro sentido das promessas, com o sermão da montanha feito por
Jesus.
Cuidado para não praticarem a justiça de vocês diante das pessoas, para serem vistos por elas. Caso contrário, vocês não terão a recompensa do Pai de vocês que está nos céus. Quando der esmola, não mande tocar a trombeta à sua frente, como fazem os hipócritas nas sinagogas e nas ruas, para serem glorificados pelas pessoas.534
Se o sentido de pagar a promessa era por obrigação ou devoção, percebemos que
essas práticas ainda estão presentes nos dias atuais. Um exemplo disso é a Basílica de
Aparecida, onde inúmeros devotos pagam suas promessas, seja pela saúde recuperada, a
conquista da casa própria, carro, estudos, etc.; são inúmeras as promessas, tornando um 533 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p. 484. 534 (MATEUS, 6, 1-4).
168
local de comércio de velas, órgãos e partes do corpo, casa e carros feitos de cera que são
comprados pelos pagadores de promessa, e estes doam para a Basílica.
Figura 39 – Jean-Baptiste Debret. Velho convalescente indo à Igreja para cumprir promessa. 1826;
aquarela sobre papel; 15,8 x 21,9cm; assinado e datado. Museus Castro Maya, Rio de Janeiro.
Debret retrata dois rituais distintos, mas que possuem ligações há muito tempo e
com as mesmas intenções de agradar a Deus. O senhor rico apresenta-se descalço, já a
mulher simples apresenta sua doação levada por uma criança. No primeiro caso, o
senhor busca agradecer com um gesto de humildade e respeito, entrando descalço, que
remete a antiga escritura do Êxodo: “não se aproxime. Tire as sandálias dos pés, porque
o lugar onde você está posicionado é solo sagrado”535. Já no segundo caso, a mulher
leva as crianças, pensando em agradar mais a Deus pelo fato da criança ser pura de
coração, tendo uma relação com a mentalidade medieval de quinhentos anos atrás,
quando ocorreu a Cruzada das crianças para libertar Jerusalém das mãos dos turcos,
acreditando que pela pureza das crianças Deus teria compaixão e ajudaria libertar a
cidade, mas não foi isso que aconteceu, tornando essa Cruzada um verdadeiro massacre
de inúmeras crianças. Todos os rituais ligados a fé trazem consigo algo de significativo
535 (ÊXODO, 3;5).
169
para a pessoa que está professando, como argumenta Eliade, tendo sempre o objetivo de
manter uma ligação com o divino.
Para o homem religioso, o espaço não é homogêneo: o espaço apresenta roturas, quebras; há porções de espaço qualitativamente diferentes das outras. (...) Há, portanto, um espaço sagrado, e por consequência “forte”, significativos, e há outros espaços não-sagrados, e por consequência sem estrutura nem consistência, em suma, amorfos. Mais ainda: para o homem religioso essa não-homogeneidade espacial traduz-se pela experiência de uma oposição entre o espaço sagrado - o único que é real, que existe realmente - e todo o resto, a extensão informe, que o cerca536.
Na imagem, em segundo plano, encontra-se um pedinte sentado próximo da
Igreja, em que uma mulher devota dá uma esmola. Desta cena podemos retirar duas
análises. A primeira era comum, próximo das Igrejas se encontrarem pessoas simples
pedindo esmolas, devido a que aos fins de semana o local era movimentado, tornando
para os pedintes um lugar ideal para as esmolas. A segunda análise trata-se sobre as
vestimentas das beatas, mulheres fervorosas na fé, que utilizavam para irem à Igreja.
Não é apenas o modo de se vestir fervorosamente ao ir à Igreja que se destacava, mas
também a maneira como os fiéis demonstravam a sua fé, seu agradecimento ou até
mesmo a busca pela santidade, como argumenta Eliade. É interessante discutirmos que
as imagens que analisamos no decorrer deste item, trouxe a maneira como Debret
construiu a imagem religiosa do brasileiro, e todas as imagens tem uma semelhança em
si: a mistura dos costumes litúrgicos que a Igreja recomenda e os costumes populares
que cada pessoa realiza, acreditando estar agradando a Deus, ocasionando duas
modalidades: sagrado e profano, como classifica Eliade, independentemente se tais
práticas estão ligadas à fé Católica ou às religiões ancestrais africanas.
(...) o homem religioso se esforça por manter-se o máximo de tempo possível num universo sagrado e, consequentemente, como se apresenta sua experiência total da vida em relação à experiência do homem privado de sentimento religioso, do homem que vive, ou deseja viver, num mundo dessacralizado.537
Um exemplo sobre os argumentos de Eliade nos referimos às festas religiosas,
que por trás da comemoração do dia litúrgico do santo padroeiro, acaba se tornando um
536 ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano: a essência das religiões. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013. p. 25. 537 Ibidem, p. 19.
170
momento também de descontração e de “liberdade”, uma abertura maior para o
convívio social. É nessa questão que abordaremos no próximo item.
3.2 A rua dos festejos sagrados e profanos
As festas, organizadas pelas irmandades em homenagem aos santos padroeiros, ou outros de devoção, eram o momento máximo da vida dessas associações. Para desagrado de muitas autoridades civis e religiosos, preocupadas com a continuidade da ordem e com o não cumprimento das normas litúrgicas, tais festas costumavam confundir as práticas sagradas com as profanas, tanto nas comemorações externas como nas que eram realizadas dentro das Igrejas.538
A respeito das festas, como citou Abreu, interpretamos que o caráter da festa
além de fazer memória do santo homenageado, também trazia consigo o caráter social,
por meio das quermesses. O cristianismo adaptou várias festas pagãs no intuito de atrair
mais fiéis, pois considerava as festas um grande atrativo, maior do que as celebrações
religiosas. Tais costumes europeus também foram difundidos no Novo Continente, pelo
menos nas colônias cujas metrópoles eram ainda católicas, tornando uma das
identidades mais marcantes na sociedade brasileira; o catolicismo português no Brasil,
foi uma herança que se enraizou profundamente.
As revoluções e Reformas que mudaram os costumes europeus passaram a
considerar as festas uma fé deturpada, com “hábitos atrasados, religiosidade
“superficial”, estas crenças menos do que religiosas eram superstições (...)”539. Tais
mudanças marcaram também os relatos de vários viajantes que aqui passaram, como por
exemplo, o relato de Saint-Hilaire, que chama a atenção pelo exagero das expressões
religiosas, construindo “templos sem necessidade, fazem-se despesas insanas para
celebrar festas patronais em cerimonias quase pagãs”540. Debret também chama a
atenção pela quantidade de Igrejas no Rio de Janeiro.
538 ABREU, Martha. O Império do Divino: festas religiosas e cultura popular no Rio de Janeiro, 1830-1990. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. p. 34. 539 TORRÃO Filho, Amilcar. Cidade aberta, sem muralhas. A religião luso-brasileira na literatura de viagem (séculos XVIII-XIX). p. 81. 540 SAINT-HILAIRE, Auguste de. Voyages dans I’ intérieur du Brésil. Première Partie. Voyage dans les Provinces de Rio de Janeiro et de Minas Geraes. Paris: Grimbert et Dorez, 1830. v. 1, p. 175.
171
(...) ergue-se a Igreja de Nossa Senhora da Glória, cuja esplanada coroa todo o platô da montanha do mesmo nome (...) o grupo de casas que parecem constituir a base do morro é formada pelas residências do bairro da Glória e da Lapa, cortadas pela bela Igreja da Candelária, cujo telhado parece alcançar o morro sobre a qual está construído o Convento de Santo Antônio, com as duas capelas de Santo Antônio e São Luís (...) mais abaixo, o zimbório da Igreja do Hospício da Conceição, e mais à direita o pórtico e as duas torres da bela Igreja de São Francisco de Paula. À direita (...) vê-se a Igreja de São Pedro, reconhecível pelas formas arredondadas (...) à beira do Campo de Sant’Ana (...) torres de São Joaquim (...) à casa do bispo, notável pela capela que a domina (...) morro de São Bento (...) esplanada da Igreja e do Convento dos Beneditinos (...) da montanha de Santa Teresa, nome tomado ao convento de freiras (...) o bairro de Mata-Cavalos, do lado do Largo da Lapa, onde se encontra a Igreja do Carmo, reconhecível por uma de suas torres, ainda inacabada (...) numa colina, vê-se a Basílica de São Sebastião, padroeiro da cidade (...) voltando-se à beira-mar, encontra-se a praia de Santa Luzia, onde se acha situada a Igreja consagrada à santa do mesmo nome (...) outra capela, à esquerda da mesma Igreja, atrai número igual de devotos: a de Nossa Senhora dos Navegantes (...) na praça Convento da Ajuda (...).541
Assim como Debret chama a atenção sobre o exagero de Igrejas pela cidade, o
relato do viajante Shillibeer também destaca o grande número de Igrejas: “a cidade
conta com um número considerável de Igrejas, mas nenhuma delas se destaca por seu
esplendor (...)”542. Enquanto as torres dominavam o alto da cidade, na parte baixa, os
oratórios tinham seus espaços garantidos dentro das casas e até mesmo nas ruas, como o
relato da Missionary Society: “cada esquina se podia encontrar uma figura de Nosso
Senhor e da Virgem Maria colocada num nicho, ou uma espécie de armário, com uma
cortina e janela de vidro (...) as pessoas param para dirigir suas devoções (...)”543. Pelo
elevado custo de manter as cerimônias e as inúmeras Igrejas, como relatou Saint-
Hilaire, terão, em contrapartida, pessoas saindo diariamente em nome da Igreja, pedindo
esmolas para a manutenção de suas irmandades. Para Debret, as irmandades foram
importadas no Brasil pelos jesuítas, com o objetivo de unir aos “sacrifícios pecuniários
a prática da humildade e impôs a obrigação da coleta (...)”544. Como a coleta arrecadada
era destinada para as obras de caridade e para a manutenção de cada Igreja, ou até
541 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p. 474-478. 542 SHILLIBEER, John. A Narrative of the Briton’s Voyage, to Pitcairn’s Island. Taunton: Impresso para o autor por J. W. Marriott. Londres: Law and Whittaker, 1817. In: FRANÇA, Jean Marcel Carvalho. Viajantes estrangeiros no Rio de Janeiro joanino: antologia de textos (1809-1818). Rio de Janeiro: José Olympio, 2013. p. 73. 543 MISSIONARY SOCIETY. A missionary Voyage to the Southern Pacific Ocean, performed in the years 1796, 1797, 1798, in the ship Duff, commanded by Captain James Wilson. Compiled from journals of the officers and the missionaries, and Illustrated With Maps, Charts, and Views, Drawn by Mr. William Wilson, and engraved by the most eminent Artists. With a Preliminary Discourse on the Geography and History of the South Sea Islands; And An Appendix, Including Details Never Before Published, of The Natural and Civil State of Otahiti; By a Committee Appointed For the Purpose, By the Directors of Missionary Society. London: T. Chapman, 1799. p. 33. 544 DEBRET, Jean-Baptiste, op. cit., p. 479 et seq.
172
mesmo para a construção de uma Igreja para as irmandades que ainda não possuíam a
sua, tal fato justifica o exagero das Igrejas na cidade, pois cada irmandade deveria
possuir a sua Igreja dedicada a seu santo patrono.
As ordens religiosas, por sua vez, mais preparadas para disseminarem um catolicismo dentro da ortodoxia religiosa, não conseguiam atingir todos os fiéis. Desta forma, os leigos tornaram-se os maiores agentes do catolicismo barroco, repleto de sobrevivências pagãs, com seu politeísmo disfarçado, superstições e feitiços, que atraíam muitos negros, facilitando sua adesão e paralela transformação.545
Em seu relato a respeito das irmandades, Debret considerava sacrifícios
pecuniários, obrigação e exploração para com a população, principalmente as mais
simples, que para poder venerar e beijar o relicário do Santo de devoção, deveriam
primeiro doar uma esmola, uma forma de obrigação, principalmente nessa época que a
população era fervorosa na fé. Pelo contrário que se pensava, as irmandades levavam a
fé e as práticas religiosas para além das Igrejas, aproveitando a movimentação dos
escravos pelas ruas para propagarem o catolicismo, como verdadeiros agentes do
catolicismo barroco, como denominou Abreu. As irmandades aproveitavam as
superstições e crendices das religiões ancestrais africanas para disseminarem as
superstições católicas, fazendo com que cada vez mais atraíssem os negros.
É com tais práticas que as irmandades iam adquirindo mais devotos, e
consequentemente ganhando mais prestígios na sociedade, como foi o caso da
irmandade do Santíssimo Sacramento, que possuía mais de duas Igrejas na cidade do
Rio de Janeiro. Buscavam, por meio de construções de Igrejas, desde a antiguidade
cristã, uma “imitação da Jerusalém celeste (...) o paraíso ou o mundo celeste”546. Para
termos uma noção do papel que as irmandades exerciam diariamente, uma obra de
Debret, intitulada de “Primeiras Ocupações da Manhã”, retratou os membros das
irmandades que todos os dias de manhã, logo após as primeiras missas do dia, saiam em
um verdadeiro movimento pelas ruas do Rio de Janeiro, com suas vestes, relicários e
sacos de esmolas, indo de casa em casa ou parando as pessoas que encontravam pelas
ruas a fim de receberem algumas doações.
545 ABREU, Martha. O Império do Divino: festas religiosas e cultura popular no Rio de Janeiro, 1830-1990. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. p. 34. 546 ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano: a essência das religiões. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013. p. 57.
173
O tiro de canhão da manhã, que anuncia a abertura dos portos às cinco e meia como já o dissemos antes, põe em circulação nas ruas da cidade todos os irmãos pedintes das confrarias, já certos de encontrar devotos a caminho da primeira missa, marinheiros, não menos religiosos, abastecendo-se, e vendedores instalados nos pontos de desembarque, dispostos a sacrificar alguns vinténs na esperança de um dia feliz. O resultado desse hábito de caridade interessava, que se observa em todas as negras velhas, constitui as primeiras esmolas recolhidas. Um pouco mais tarde, abrindo-se sucessivamente as lojas e as portas das casas burguesas, mais fácil e lucrativa se torna a última coleta, que termina em geral lá pelas onze horas da manhã.547
Figura 40 – Jean-Baptiste Debret. Primeiras ocupações da manhã. 1826; datado e assinado; aquarela sobre papel; 18,7 x 24,2cm. Acervo dos Museus Castro Maya, Rio de Janeiro.
Em uma só imagem, Debret insere todas as ocupações do início do dia, desde o
escravo que é o responsável pelos cuidados diários da limpeza do lampião. Do lado
esquerdo da imagem, encontra-se uma escrava vendedora de balas, pois era um costume
da manhã, os pais, ao voltarem da missa, passarem na fábrica de balas para comprar
algumas para seus filhos. Encontra-se também os negros vendedores de leite, com seus
baldes à cabeça, indo de porta em porta oferecendo a seus fregueses.
O que se encontra em primeiro plano é um membro da irmandade de Nossa
Senhora da Conceição. Isto se evidência pela cor de sua vestimenta – azul – que entrega 547 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p. 479.
174
um relicário contendo a imagem da padroeira desta irmandade para que uma simples
escrava a beije, evidentemente após a doação de sua esmola, como a observamos
entregando-a ao pedinte. O outro pedinte que se encontra em segundo plano, à direita da
imagem, pertence à irmandade do Santíssimo Sacramento, em função de sua vestimenta
vermelha, que com um guarda-chuva entreaberto, aguarda receber a doação de uma
senhora, que a joga da janela de seu sobrado.
Mesmo se tratando de recolher doações para fins religiosos, seja para a
manutenção da irmandade ou para obras de caridade, ocorreram alguns casos no Rio de
Janeiro, de pessoas se disfarçarem de pedintes de irmandades para recolher doações
para si próprias, gerando a desconfiança de muitos, o que resultou na interferência da
polícia.
(...) dando origem, em 1829, ao abuso sacrílego do pedinte malandro, vestido como o outro e arrecadando em seu benefício as esmolas destinadas ao santo patrão que finge servir. O primeiro vigarista encontrou logo grande número de imitadores, cuja atividade prejudicou de tal maneira as coletas lícitas que essa especulação religiosa quase desapareceu por completo. A novidade, inquietante para as confrarias, também alertou a polícia, e num só dia prenderam-se no Rio de Janeiro mais de vinte falsos pedintes, todos desconhecidos das irmandades da cidade, pois vinham em sua maioria das aldeias vizinhas.548
Todas as arrecadações obtidas pelas irmandades eram destinadas para a
manutenção de suas Igrejas e obras de caridades. No entanto, mesmo em se tratando de
uma irmandade rica, ainda era necessária a realização de quermesses para arrecadar
mais fundos para suas Igrejas. A quermesse era a festa anual da irmandade; quando
acontecia no dia da festa litúrgica do seu santo patrono, por exemplo, a quermesse da
irmandade do Santíssimo Sacramento ocorria cinquenta dias após a Páscoa, conhecida
como Pentecostes, com a descida do Espírito Santo sobre os apóstolos e a Virgem
Maria, marcando o nascimento da Igreja, sendo considerada a festa mais tradicional e
popular para os fiéis, caindo no gosto dos cariocas.
A festa servia tanto para arrecadar fundos como para fazer memória do santo
patrono, mantendo essa ligação com o divino, seja para agradecer ou para pedir
proteção durante o ano, pois “na festa reencontra-se plenamente a dimensão sagrada da
548 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p. 480.
175
Vida, experimenta-se a santidade da existência humana como criação divina”549, uma
ligação entre a fé e a religiosidade de um povo que se dedicava alguns dias para fazer
memória a um determinado santo. Ao mesmo tempo, a festa tornava-se uma
contradição, pois por detrás do vínculo religioso a festa era uma ocasião de
“divertimentos ou de vida social”550, como cita Torrão. Para a realização da quermesse,
a irmandade tinha toda uma preparação para que ocorresse como o esperado. Nas
semanas que a antecediam, todos os membros saiam pelas ruas pedindo esmolas,
sempre andando em marcha, acompanhada de músicos, estandartes, relicários e com o
menino imperador, como era chamado o festeiro, ou seja, que representava a festa como
um todo. Esta espécie de procissão percorria a cidade toda, chamando a atenção de
todos por onde passavam, como uma folia, como ficou conhecida popularmente no Rio
de Janeiro.
Ao se ouvir a música ao longe, todos corriam às janelas para ver a folia, que entrava pelas casas, cantando e dançando. Enquanto cantavam e tocavam a música, os irmãos de opa levavam bandeiras encarnadas e pediam esmolas. Um deles conduzia o imperador e o outro, uma espécie de custódia, no centro da qual havia uma pomba esculpida, frequentemente beijada pelas pessoas.551
549 ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano: a essência das religiões. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013. p. 80. 550 TORRÃO Filho, Amilcar. Cidade aberta, sem muralhas. A religião luso-brasileira na literatura de viagem (séculos XVIII-XIX). p. 85. 551 ABREU, Martha. O Império do Divino: festas religiosas e cultura popular no Rio de Janeiro, 1830-1990. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. p. 48.
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Figura 41 – Jean-Baptiste Debret. Coleta de óbulos para festa do Espírito Santo nos primeiros dias de
julho. Festa do Divino. 1826; datado e assinado; aquarela sobre papel; 15,5 x 21,3cm. Acervo dos Museus Castro Maya.
O imperador, como podemos observar logo atrás do pelotão, sendo conduzido
por dois membros da irmandade, era um menino escolhido pela irmandade como se
fosse o principal festeiro da festa, e simbolicamente ocorria sua coroação. O imperador
da festa deveria ter as vestimentas próprias, composta por “casaca vermelha, calão da
mesma cor e colete branco bordado em cores. Usa chapéu armado e de plumas debaixo
do braço, espada à cinta, meias de seda branca, sapatos de fivela de ouro; tem a cabeça
empoada e carrega uma sacola”552. A imagem do imperador era tão comum entre a
população do Rio de Janeiro que se acredita que o título de “Imperador” ter sido
escolhido para Dom Pedro I seria um nome mais comum e habituado pelo povo.
Procurando atestar a grande popularidade da festa no Rio de Janeiro e, consequentemente, do imperador do Divino, na primeira metade do século XIX, o folclorista Câmara Cascudo defende ter sido este o motivo que levou José Bonifácio a decidir pelo título de imperador para o chefe político do país. Segundo o autor, “o povo estava mais habituado com o nome de “Imperador” (do Divino) do que com o nome de “Rei””.553
552 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p. 577. 553 ABREU, Martha. O Império do Divino: festas religiosas e cultura popular no Rio de Janeiro, 1830-1990. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. p. 46.
177
Entre os membros da confraria, destacamos apenas a presença de brancos, em
especial os meninos, chegando à conclusão de que se trata de uma irmandade de
homens brancos, sendo proibido serem negros seus membros. No pelotão, destacamos o
uso de chapéus por todos os meninos, de modo especial o rapaz que vai à frente com o
estandarte, o qual procura enfeitá-lo com galhos de flores. Notamos também na cena,
juntamente com o pelotão, a presença de um policial acompanhando o cortejo pelas
ruas, demonstrando a proximidade entre a Igreja e o Estado na Folia do Divino. Do lado
direito da imagem, um membro da irmandade ostenta o relicário do Divino, em uma
mão, e na outra, a sacola de esmolas, que aguarda o escravo pegar a moeda do chão para
doá-la. Evidentemente que a moeda que o escravo pega deve ter caído de cima da casa,
na qual Debret destaca logo acima, na sacada do solar, uma senhora branca
acompanhada de sua mucama, indicando com o dedo como se estivesse orientando o
escravo a pegar a moeda que ela doou para colocar na sacola de esmolas.
Ao mesmo tempo em que as confrarias dos brancos saiam às ruas, pedindo
esmolas para suas festas, notamos na imagem que analisaremos a seguir, das coletas
realizadas pelas irmandades dos negros, uma diferenciação ao retratar as imagens. Nas
imagens analisadas anteriormente, das coletas das irmandades dos brancos, notamos que
além de percorrerem as ruas da cidade, recebiam doações tanto de brancos como de
negros que perambulavam pelas ruas. No entanto, na próxima imagem, notamos que a
coleta das irmandades dos negros encontrava-se somente em um local, e as pessoas que
doam para a confraria são apenas negros, e não há presença de brancos doando para
estas confrarias.
Ao nos referirmos sobre as irmandades dos negros é impossível deixar de
mencionar a irmandade do Rosário, a mais famosa das irmandades dos negros forros ou
cativos, atraídos desde o século XVI à devoção da Nossa Senhora do Rosário, na qual
“a imagem da Virgem exibia o rosário que lhes lembrava seu orixá oracular Ifá
(consultado pelo lance, ao acaso, de cascas de uma árvore sagrada reunidos em rosário)
(...)”554. Para Costa, a festa do Rosário “era de grande importância para os negros que,
durante as celebrações, pareciam escapar momentaneamente à situação de
oprimidos”555. Com essa familiarização encontrada nas imagens católicas, como
554 TINHORÃO, José Ramos. Festa de negro em devoção de branco: do carnaval na procissão ao teatro no círio. São Paulo: UNESP, 2012. p. 46. 555 COSTA, Emília Viotti da. Da senzala à colônia. 5. ed. São Paulo: Editora UNESP, 2010. p. 279.
178
argumenta Tinhorão, os negros sentiram-se atraídos pelos ícones presentes nas imagens
católicas, adaptaram, remodelaram seus ícones das religiões ancestrais para o
catolicismo, principalmente aqui no Brasil, fortalecendo um catolicismo mais variado
de significações, tornando algumas festas religiosas um tanto carnavalescas.
Figura 42 – Jean-Baptiste Debret. Coleta de esmolas para a Igreja do Rosário. Porto Alegre. 1828;
aquarela sobre papel; 14,7 x 20 cm; assinado e datado. Museus Castro Maya.
Segundo Debret, a imagem foi retratada no Rio Grande do Sul, devido à
proibição dos negros se fantasiarem no Rio de Janeiro a partir da presença da corte na
cidade, e por serem “as festas fantasiadas extremamente ruidosas (...)”556. Podemos
considerar que tais proibições não estavam atreladas à questão das festas ruidosas, mas
sim ao fato dos negros responsáveis pela festa se vestirem de rei e rainha, o que tornava,
aos olhos do Estado, um insulto por uma só cidade ter dois reis, o que tirava o poder da
coroa “oficial” de domínio de toda população, não admitindo haver mais de uma coroa
“festiva”, que controlava, de uma forma ou de outra, os festejos do rosário, tão
apreciado pelos negros. Observamos ao centro da imagem, o rei, acompanhado da
rainha, príncipe (em pé) e princesa (sentada ao lado do rei, segurando a calda do manto),
556 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p. 582.
179
todos vestidos em trajes reais, como manto, coroa e cetro. Se compararmos esta imagem
com a imagem 41 notamos que a proibição do uso de vestes e títulos reais estava
vinculado apenas aos negros, já que na imagem da folia do Divino encontra-se um
menino intitulado de imperador.
Mesmo sendo retratada em 1828, em pleno primeiro reinado de D. Pedro I, que
aboliu vários costumes portugueses, como por exemplo, suas vestes reais, notamos nas
vestimentas da família real do rosário, trajes parecidos com as da monarquia europeia,
destacando o vermelho dos mantos, parecido com o manto de D. João VI. Enquanto a
realeza permanece sentada, observamos na mesa, o livro de inscrição dos devotos e a
bandeja de doações, na qual depositam sua oferta para o santo padroeiro, que de acordo
com Debret “a enorme bandeja de prata que se enche e se esvazia, sucessivamente, de
quarto em quarto de hora, pois logo se acha apinhada de inúmeros pequenos óbolos
(...)”557. Pelo relato do artista, notamos primeiramente a grande devoção e os esforços
dos negros para ajudar a manutenção de sua Igreja, o que mais chama a atenção é a
grande circulação de dinheiro entre os escravos, como podemos observar no canto
direito da imagem um tumulto de negros se acotovelando para depositar sua oferta na
bandeja, enquanto a banda de música do lado oposto toca para atrair os fiéis.
Ao mesmo tempo em que os negros eram proibidos de realizar qualquer tipo de
manifestação contra o poder o Estado, de outra forma vinculada por trás de uma
representação religiosa, os negros demonstravam sua resistência contra o sistema
escravista dos brancos, tornando o boneco de Judas um referencial para demonstrar sua
insatisfação. O mesmo percebemos no relato de Debret, no qual apenas relata a maneira
como se preparava o boneco.
(...) caracterizando-se pela capacidade de fazer suceder ao espetáculo lamentável das cenas da Paixão de Cristo, carregadas processionalmente durante a Quaresma, o enforcamento solene de judas no Sábado de Aleluia. Compassiva justiça que serve de pretexto a um fogo de artifício queimado às dez horas da manhã, no momento da Aleluia, e que põe em polvorosa toda a população do Rio de Janeiro, entusiasmada por ver os pedaços inflamados desse apóstolo perverso espalhados pelo ar com a explosão das bombas e logo consumidos entre os vivas da multidão! (...) vemos a classe indigente, que se presta facilmente às ilusões, armar um judas enchendo de palha uma roupa de homem a que se acrescenta uma máscara com um boné de lã para formar a cabeça; algumas bombas colocadas nas coxas, nos braços e na cabeça servem para descolar o boneco no momento oportuno (...).558
557 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p. 582. 558 Ibidem, p. 546.
180
Figura 43 – Jean-Baptiste Debret. Queima de Judas. 1823; aquarela sobre papel; 17 x 23,5cm; assinado e
datado. Museus Castro Maya, Rio de Janeiro.
Debret continua em todo seu relato a respeito do boneco de Judas, fazendo
apenas uma descrição da festa, da maneira como era vestido o boneco e os demais
personagens da festa, não trazendo em momento algum a descrição da cena por ele
retratada. Ao analisarmos a cena, percebemos certa inversão, associada à cor branca
para o boneco enquanto os escravos são os carrascos do boneco, trazendo consigo a
resistência dos escravos, aproveitando a oportunidade festiva para malhar o boneco,
como podemos observar na cena vários pedaços do boneco espalhados pelo chão,
enquanto as crianças com pequenos pedaços de madeira terminam de atacá-lo, e
enquanto isso os escravos ficam todos em volta dele, pendurado na árvore, assistindo as
bombas estourarem, ocasionando uma fumaça em torno das pessoas, como podemos
observar do lado esquerdo da imagem em primeiro plano.
Não podemos deixar de lado, a possibilidade de Debret ter desenhado os
bonecos de branco para demonstrar o perigo de um dia os escravos se rebelarem contra
os brancos, sendo necessário serem educados dentro dos princípios racionais da fé.
Nesse sentido, o boneco de Judas, que foi o traidor de Jesus e responsável por sua
morte, ganha um papel exemplar, indicando que o lugar do traidor é a forca e o
181
esquartejamento, ou seja, mesmo o boneco indicando uma ameaça aos brancos, torna-se
um instrumento de intimidação contra qualquer tentativa de ameaça aos seus senhores,
levando à morte aos traidores.
Em segundo plano da imagem do lado direito, logo atrás das crianças,
percebemos um casal de senhores brancos, observando espantosamente as crianças
malhando uma parte do boneco, pois “parecem prefigurar, sem querer, os quadros de
envenenamento e violência física imprevista por parte dos servos contra seus
proprietários, convertidos em espécies de Judas (...)”559. Ao mesmo tempo em que a
cena traz consigo a violência social, uma ameaça dos escravos, uma divisão social
contra o sistema escravocrata, percebemos também a oportunidade que uma parcela da
população (crianças) tinha para festejar, um momento de convívio social, tornando a rua
não apenas um local de trabalho, mas também de diversão.
O Brasil fortemente católico conduzia seu rebanho dentro da conduta religiosa,
liberando a população para os momentos de prazer e lazer nos três dias que antecediam
a quarta-feira de cinzas, marcando o período de silêncio e penitências. Nos chamados
três dias gordos, eram liberados, pelas autoridades civis e eclesiásticas, determinadas
práticas proibidas durante o resto do ano. Para Debret, o carnaval, no Brasil,
representava para a população dias de diversões e festas.
Para os brasileiros, portanto, o carnaval se reduz aos três dias gordos, que se iniciam no domingo às cinco horas da manhã, entre as alegres manifestações dos negros, já espalhados nas ruas a fim de providenciarem o abastecimento de água e comestíveis de seus senhores, reunidos nos mercados ou em torno dos chafarizes e das vendas. Vemo-los aí, cheios de alegria e de saúde, mas donos de pouco dinheiro, satisfazerem sua loucura inocente com a água gratuita e o polvilho barato que lhes custa cinco réis.560
Em seu relato, Debret deixa várias características do carnaval brasileiro,
considerado para ele uma manifestação dos negros, uma festa totalmente pagã, já que é
liberada apenas por três dias, chamado por ele de “três dias gordos”. Por se tratar de
uma festa de negros e de pobres, considera que por ignorância estas pessoas se sentem
satisfeitos com a água e o polvilho barato, ou seja, de fácil acesso para qualquer um,
chamados por Debret de “donos de pouco dinheiro”, mas nada impedia de “satisfazerem
suas loucuras”.
559 COSTA, Cléria Botelho da; MACHADO, Maria Clara Tomaz. As Vítimas-Algozes e o Imaginário do Medo. 2. ed. Uberlândia: EDUFU, 2004. s. l, p. 21. 560 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p. 267.
182
Figura 44 – Jean-Baptiste Debret. Carnaval. 1823; assinado e datado; aquarela sobre papel; 18 x 23cm.
Acervo Museus Castro Maya, Rio de Janeiro.
Na imagem, observamos uma cena de carnaval no Rio de Janeiro, no século
XIX, diferentemente de como o conhecemo nos dias atuais, com desfiles e carros
alegóricos. Na cena do lado direito, percebemos um menino escravo com uma seringa
de lata, atirando um jato de água na escrava, que além de equilibrar a cesta que leva na
cabeça com as encomendas de seus senhores, ainda recebe no rosto o polvilho, que fazia
parte das diversões carnavalescas, sujando todo o rosto e sua roupa. Pelo fato dos
escravos serem obrigados a trabalhar no carnaval, estes saíam nas ruas, seja para
comprar as encomendas de seus senhores, seja para venderem seus produtos, com suas
roupas mais velhas, pois sabiam que seriam atingidos pela água, polvilho ou por limões-
de-cheiro; todos se preparavam para esses dias de diversões.
O carnaval no Rio e em todas as províncias do Brasil não lembra em geral nem os bailes nem os cordões barulhentos de mascarados que, na Europa, comparecem a pé ou de carro nas ruas mais frequentadas, nem as corridas de cavalos xucros tão comuns na Itália. Os únicos preparativos do carnaval brasileiro consistem na fabricação dos limões-de-cheio, atividade que ocupa toda a família do pequeno capitalista, da viúva pobre, da negra livre que se reúne a duas ou três amigas, e finalmente das negras das casas ricas, e todas, com dois meses de antecedência e à força de economias, procuram constituir sua provisão de cera. O limão-de-cheiro, único objeto dos divertimentos do carnaval, é um simulacro de laranja, frágil invólucro de cera de um quarto de
183
linha de espessura e cuja transparência permite ver-se o volume de água que contém. (...) a fabricação consiste simplesmente em pegar uma laranja verde de tamanho médio, cujo caule é substituído por um pedacinho de madeira de quatro a cinco polegadas que serve de cabo, e mergulhá-la na cera derretida (...).561
Esses limões-de-cheiro, citados por Debret, são possíveis de serem observados
na imagem no lado esquerdo, em um tabuleiro de uma escrava sentada à porta de uma
venda, onde um rapaz escravo compra alguns desses limões. Mais ao fundo, um menino
aproveita os festejos para vender pequenos saquinhos de polvilho, que servem para
serem jogados no rosto das pessoas que passam na rua, como é possível ver os escravos
retratados na imagem com os rostos sujos de polvilho. Os festejos e as manifestações
alegres das pessoas que participam do carnaval só terminavam quando “a ave-maria
impõe uma trégua e algumas rondas policiais acabam por implantar a paz”562. Com as
simples manifestações do carnaval, com água, polvilho e limões-de-cheiro, tornou-se
uma das festas mais tradicionais do Brasil.
As ruas cariocas eram o palco do teatro que evangelizavam a população com as
procissões, e alegravam com as festas de carnaval e outras festas. Palco das orquestras,
das reais bandas do império, até as simples marimbas dos negros que alegravam as
tardes de domingo. Entre inúmeras manifestações, sejam elas religiosas ou profanas,
uma coisa era certa, os brasileiros não viviam sem as suas festas, pois “não se associam
por interesses racionais, mas pela festa (...)”563.
Observamos no decorrer deste item, o papel que as irmandades exerciam tanto
para a manutenção de suas Igrejas como para atrair novos fiéis, utilizando várias
adaptações de outras religiões como, por exemplo, as africanas, ocasionando um
sincretismo na mistura do sagrado com o profano. Para Pereira, os leigos que agiam
através das irmandades foram os responsáveis por adquirir “espaço de sociabilidade”564.
Tais sincretismo podemos observar não apenas nas cenas das cerimônias e festas
analisadas, mas também nos ritos fúnebres, que variavam de acordo com o costume das
etnias africanas ou posições sociais que cada irmandade realizava.
561 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p. 267. 562 Ibidem, p. 270. 563 REIS, José Carlos. As identidades do Brasil. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007. p. 127. 564 PEREIRA, Júlio César Medeiros da Silva. À flor da terra: o cemitério dos pretos novos no Rio de Janeiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Garamond, 2014. p. 53.
184
3.3 Até que a morte nos separe...
O culto dos mortos tinha uma relevância muito maior na tradição africana, embora não estivesse absolutamente ausente da portuguesa. Entre os angolanos, os espíritos ancestrais chegavam mesmo a influir mais no dia-a-dia do que as próprias divindades. Os africanos, de um modo geral, tinham meios rituais mais complexos de comunicação com os mortos, como o culto ioruba dos eguns. Enquanto isso, a doutrina da Igreja não se interessava especificamente em cultuar os mortos, concentrando-se em salvá-los. Os vivos, é verdade, podiam interceder por eles mediante orações e missas, mas os mortos, por ignorarem as coisas do mundo no momento em que aconteciam, pouco podiam fazer pelos vivos. Os mortos ganharam mais importância no catolicismo popular, ainda impregnado de fortes componentes mágicos e pagãos.565
Percebemos em Reis, a diferenciação dos cortejos fúnebres no Rio de Janeiro,
diferenciando-se de acordo com todas as tradições, sejam elas portuguesas composta de
cortejos que pareciam mais com procissões, conservando “elementos particulares, tais
como os cantos, o carregamento de estandartes, da cruz e as relíquias dos santos”566. Já
as tradições africanas consideravam a morte uma ligação com outro mundo,
ocasionando assim cortejos mais “festivos”. É através dessas diferenciações das
manifestações diante da morte que não podemos deixar de analisar os quadros dos ritos
fúnebres feitos por Debret, que entre as representações do cotidiano religioso, o artista
demonstra certo interesse pelos ritos de morte. Logo após o falecimento, cabia à família,
iniciar o preparo do defunto, do velório e do cortejo até a Igreja, caso pertencesse à
alguma irmandade.
Primeira providência: preparar o defunto para o velório e tratar do funeral. O cuidado com o cadáver era da maior importância, uma das garantias de que a alma não ficaria por aqui penando. Cortavam-se cabelo, barba, unhas. O banho não podia tardar, sob pena de o cadáver enrijecer, dificultando a tarefa. (...) o defunto baiano devia estar limpo, bonito, cheiroso para o velório, esse último encontro com parentes e amigos vivos.567
Nessa época, o Brasil possuía profissionais especialistas em manipular os
defuntos, que deveriam ser mulheres e homens probos, honestos, especialistas da arte.
Estes especialistas eram responsáveis em vestir o defunto com as mortalhas escolhidas
pela família, pois até mesmo antes de falecer, a pessoa deixava testamentado como 565 REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 90. 566 PEREIRA, Júlio César Medeiros da Silva. À flor da terra: o cemitério dos pretos novos no Rio de Janeiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Garamond, 2014. p. 56. 567 REIS, João José, op. cit., p. 114-115 et seq.
185
gostaria de ser vestido: com mortalha franciscana, brancas, pretas ou até com o
uniforme da irmandade que pertencia, porém, a mortalha mais utilizada era a
franciscana, pois acreditava-se que São Francisco era o santo que resgatava as almas do
purgatório. Na imagem a seguir, observamos que o defunto veste as vestimentas da
irmandade pertencente.
Os cortejos funerários só se põem em marcha ao cair da noite, mas são entretanto anunciados desde o meio-dia pelo tanger intermitente dos sinos da Igreja para a qual se dirigem; como, porém, as irmandades se constituem de indivíduos de ambos os sexos, distingue-se o repique anunciando o falecimento de um homem pelo fato de se ouvir apenas o som do sino maior; para o falecimento de uma mulher tange-se o segundo sino.568
Figura 45 – Jean-Baptiste Debret. Enterro de um membro da irmandade de Nossa Senhora da Conceição.
1823; assinado e datado; aquarela sobre papel; 14,8 x 22cm. Acervo Museus Castro Maya, Rio de Janeiro.
Neste contexto, havia uma diferenciação do cortejo fúnebre de uma pessoa que
não pertencia a alguma irmandade, e nestes casos o caixão era levado em carroças ou
carruagens adaptadas, cobertas por um grande tecido preto que cobria todo o caixão.
Entretanto, os membros das irmandades recebiam velórios e cortejos especiais, que mais
pareciam procissões, nos quais todos os membros da confraria compareciam para
568 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p. 582.
186
aumentar seu prestígio, como era o caso da irmandade de Nossa Senhora da Conceição,
no qual o membro defunto era colocado em um esquife, como podemos observar na
imagem anterior. É possível notar que esse cortejo pertence à irmandade de Nossa
Senhora da Conceição devido às cores das vestimentas dos membros, azul e branca –
cores do manto da Virgem Maria. O cortejo é aberto por três membros da irmandade e
um deles carrega a cruz ladeada por tocheiros.
Para facilitar a colocação e a retirada do corpo nesse leito portátil, fez-se a tampa móvel prendendo-a apenas por meio de pequenas pontas de ferro nos quatro cantos, que se encaixam nos pequenos buracos adrede preparados. O pontalete de ferro que cada um dos portadores carrega à mão serve para, colocado sob o varal, descansar o ombro do peso do caixão durante as paradas do trajeto, as quais obedecem a uma exclamação prévia, “Deo gratias”, renovada ao pôr-se o cortejo novamente em marcha.569
Os cortejos fúnebres das irmandades mais tradicionais do Rio de Janeiro
pareciam mais procissões de dias solenes da liturgia da Igreja, com todo o ritual que
deveria seguir, que segundo Reis, tinha início desde o anúncio da morte pelos repiques
dos sinos até sua sepultura.
A morte era anunciada pelos sinos, avisando da reunião às seis da tarde. O compromisso previa a saída para a casa do morto às sete da noite. Puxava o cortejo o “irmão diretor” (um sacerdote) e um outro irmão levando a água benta e o livro usado na encomendação. Depois seguia a cruz da irmandade entre dois tocheiros conduzidos por noviços ou, na falta desses, por irmão professores. Atrás se arrumavam os confrades em duas fileiras com seus tocheiros. Após a encomendação do cadáver pelo pároco, o irmão vigário do Culto Divino escolhia entre os noviços os carregadores do caixão, fazendo desta tarefa, veja-se bem, uma prática iniciática. O mesmo chefe de cerimônias “irá administrando as mudas quando forem pedidas”. Imediatamente atrás do féretro seguiam os irmãos, à frente de convidados, familiares e outras irmandades. Só no caso de o defunto pertencer a uma confraria do Santíssimo Sacramento, os dominicanos abriam mão de o carregarem sozinhos, dividindo o peso com os irmãos dessa confraria. Chegando à Igreja, o cadáver era recebido pelo capelão da ordem, cujas obrigações incluíam dar a extrema-unção em casa, fazer a encomendação na Igreja (que se somava à do pároco em casa) e o acompanhamento com pluvial até a sepultura.570
Enquanto os cortejos das confrarias eram todas pomposas, os cortejos dos negros
escravos ou dos forros, ocorriam da forma mais simples, mas ao mesmo tempo alegres e
festivas, verdadeiros intercâmbios culturais, na mistura dos costumes africanos com as
práticas católicas, como forma de resistência por parte dos escravos para manter seus
569 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p. 568. 570 REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 144-145.
187
costumes ancestrais. Um exemplo, é a imagem “Enterro de um Rei Negro”, que mesmo
com a vinda dos africanos para o Brasil, na condição de escravos, não romperam com as
hierarquias africanas, que de acordo com Reis, “a pompa católica tinha uma
contrapartida africana que foi recriada pelos escravos no Brasil oitocentista”571.
(...) no Brasil, outros elementos entravam na reconstituição pelos escravos de suas tradições originais. Por exemplo, a escravidão não eliminou na comunidade africana daqui as hierarquias trazidas da África. Objeto de muita reverência em vida, os fidalgos africanos no exílio brasileiro recebiam funerais de dignitários. Foi assim com o filho de um suposto rei da África. Durante o concorrido velório, o morto foi cerimoniosamente visitado por delegações das várias nações africanas que compunham a população escrava carioca.572
Figura 46 – Jean-Baptiste Debret. Cortejo fúnebre para o enterro de um rei ou filho de rei negro africano
católico; 1826; assinado e datado; aquarela sobre papel; 14,7 x 21,2cm. Acervo Museus Castro Maya, Rio de Janeiro.
Ainda a respeito da conservação das hierarquias africanas, Debret comenta:
Não é extraordinário encontrar-se, entre a multidão de escravos empregados no Rio de Janeiro, alguns grandes dignitários etiópicos e mesmo filhos de soberanos de pequenas tribos selvagens. É digno de nota que essas realezas ignoradas, privadas de suas insígnias, continuem veneradas por seus antigos vassalos, hoje companheiros de infortúnio no Brasil. Esses homens de bem,
571 REIS, João José. O cotidiano da morte no Brasil oitocentista. In: NOVAIS, Fernando A. História da Vida Privada no Brasil: Império: a corte e a modernidade nacional. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. 121. 572 REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 161.
188
que na sua maioria prolongam sua carreira até a caducidade, morrem em geral estimados por seus senhores. É comum, quando dois pretos se encontram a serviço na rua, o súdito saudar respeitosamente o soberano de sua casta, beijar-lhe a mão e pedir-lhe a benção. Dedicado, confiando nos conhecimentos de seu rei, consulta-o nas circunstâncias difíceis. Quanto aos escravos nobres, graças à sua posição, conseguem de seus súditos os meios suficientes para comprar a própria liberdade; e desde então empregam escrupulosamente toda a sua atividade no reembolso da dívida sagrada.573
No cortejo representado na imagem, o corpo do defunto é carregado em uma
rede, coberta com um pano mortuário contendo o desenho da cruz. Em clima de festa,
por meio de danças acompanhadas por percussões africanas e palmas, à frente do
cortejo, o mestre de cerimônia vai abrindo passagem, ao som de tambores, alegrando o
cortejo com o som, o que entusiasma os escravos que vão à frente fazendo acrobacias e
piruetas, além dos foguetes e bombas. Enquanto o cortejo é realizado no estilo africano,
ao chegar à Igreja, a cerimônia é realizada nos moldes católicos e na presença dos
representantes das nações africanas, além do todo um cerimonial, representado de várias
maneiras. Podemos notar a existência de uma relação entre vassalo e soberano.
O defunto é visitado também por deputações das outras nações negras, representadas cada qual por três dignitários: o diplomata, revestido de um colete, calças pretas, chapéu de bicos bastante seboso e mais ou menos rústico; o porta-bandeira, segurando um varapau comprido no alto do qual se desfralda um trapo de cor; e o capitão da guarda, armado de uma vareta enrolada numa fita estreita ou simplesmente enfeitada com um laço, limitando-se o uniforme militar a uma simples calça para esconder a nudez. Cada deputação, ao chegar, é introduzida pelo seu capitão da guarda, que faz uso da arma para abrir passagem através da multidão; a delegação torna a sair da mesma maneira.574
Debret também traz uma diferenciação nos cortejos fúnebres dos escravos, não
apenas retratando o cortejo de um príncipe negro, mas também um cortejo de uma
escrava, que nos ajuda a observar as diferentes maneiras que os escravos realizam os
cortejos funerários de seus conterrâneos, na qual mesmo estando todos na mesma
condição escrava, não havendo aqui no Brasil uma hierarquização entre os cativos, os
negros mantinham de uma forma ou de outra entre as etnias o respeito pela
hierarquização. Na imagem do enterro de um filho ou rei congo, observamos um
magnífico enterro africano, com direito a todas as manifestações religiosas e civis, como
podemos observar a frente do cortejo, um negro portando uma bandeira, e mesmo de
573 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p. 532. 574 Ibidem, p. 532-534.
189
forma improvisada, carrega consigo o símbolo da soberania de um chefe de Estado. Na
imagem que analisaremos a seguir, do enterro de uma negra, observamos carregando
consigo aspectos mais culturais de sociabilidade e de musicalidade.
Figura 47 – Jean-Baptiste Debret. Enterro de uma negra católica chegando à Igreja da Lampadosa. 1826; aquarela sobre papel; 15,3 x 22,4 cm; assinado e datado. Museus Castro Maya, Rio de Janeiro.
A única diferença que existe entre o acompanhamento do enterro de uma negra e o de um homem da mesma raça reside no fato de o cortejo se constituir unicamente de mulheres, à exceção de dois carregadores, de um mestre-de-cerimônias e do tambor. Este carrega um caixote de madeira de tamanho médio, sobre o qual executa de vez em quando uma espécie de rufo lúgubre com as palmas das mãos (...) o mestre-de-cerimônia, negro, com uma vara na mão, vestindo uma dupla cota formada por lenços de cor e com sua rodilha à cabeça, faz parar o cortejo diante da porta, que só é aberta no momento da chegada, a fim de evitar a entrada da multidão de curiosos, seus compatriotas575.
Assim como no relado de Debret, na imagem observamos a chegada do cortejo
fúnebre à Igreja, onde a negra falecida é carregada em uma simples rede puxada por
dois escravos. Também observamos a frente da rede, o mestre-de-cerimônia com uma
vara erguida para cima, onde percebemos que o cortejo é recebido por palmas, enquanto
a porta da Igreja se abria, como podemos verificar a porta entreaberta. Notamos, em
575DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p. 531.
190
ambas as cenas, uma diferenciação dos cortejos: enquanto o cortejo do rei negro é
marcado por danças, fogos e algazarras, passando uma desordem na cena, um
distanciamento da civilização, podendo observar na imagem o cortejo se dirigindo para
uma zona mais distante da cidade, na cena do enterro da negra católica, notamos uma
presença maior da religião, um cortejo ordenado, já que se encontra dentro da cidade,
podendo-se observar as construções no entorno da Igreja. Mesmo sendo mais simples
que os cortejos das irmandades, não deixa de seguir algumas “normas” e rituais
fúnebres. Quando se tratava de um escravo muito simples, e seus familiares e parentes
não tinham condições de pagar o cortejo para o falecido, eles transportavam o corpo do
defunto pela manhã até uma Igreja ou um comércio, acendiam uma vela e ficavam ali
pedindo esmolas para as pessoas que passavam pelo local para que arrecadassem a
quantia necessária para seu sepultamento. Tal prática foi citada por vários viajantes que
ali passavam, como cita por exemplo John Shillibeer: “quando um desses corpos era
encontrado (...) um soldado com uma caixa colocava-se próximo ao corpo, que era
removido do lugar até que a soma necessária para o enterro fosse arrecada entre os
passantes”576.
Além dessas imagens, Debret também chama atenção para a morte dos filhos
dos escravos ou forros, que segundo o viajante era alta a mortalidade entre as crianças.
Mesmo no caso das crianças, a família contava com a colaboração de alguma
irmandade, responsável pelos preparativos do cortejo fúnebre do “anjinho”, termo
utilizado para se referir as crianças falecidas pelo fato de não ter cometidos o pecado
original. Em algumas vezes, esse pensamento era tão conservador e religioso, que
vestiam as crianças falecidas, principalmente os recém-nascidos, de anjos, rodeados de
flores.
Havia mortos que pesavam menos na consciência e nos braços dos vivos. Assim eram as crianças (...) não houve região no Brasil que não conhecesse esses funerais sem lágrimas (...) tendo morrido uma criança de família importante, seu batalhão, estacionado sem ocupação em Serrito, foi convidado e compareceu ao enterro, levando banda de música. O cadáver foi vestido de anjo e velado numa cama coberta de flores e coroas (...) o costume entrou pelo século XX, como no interior do Ceará, onde a morte do recém-
576 SHILLIBEER, John. A Narrative of the Briton’s Voyage, to Pitcairn’s Island. Taunton: Impresso para o autor por J. W. Marriott. Londres: Law and Whittaker, 1817. In: FRANÇA, Jean Marcel Carvalho. Viajantes estrangeiros no Rio de Janeiro joanino: antologia de textos (1809-1818). Rio de Janeiro: José Olympio, 2013. p. 78.
191
nascido era recebida com tiros e foguetes, comida, bebida e música - uma festa em que se “dançava para o anjinho”577.
A mesma cena retratada por Debret foi presenciada pelo viajante Kidder, que em
seu relato destaca a presença de uma “multidão promíscua, quase todos adornado de
cores berrantes, cantando o que lhe pareceu um canto Etíope”578, seguindo atrás,
acompanhando o funeral.
Na imagem que iremos analisar a seguir, percebemos dois tipos de enterros de
crianças negras, nos quais podemos verificar a desigualdade até mesmo nos cortejos
fúnebres. Quando se tratava da família do “anjinho” pertencente a uma irmandade mais
rica, havia uma pompa no cortejo, sendo o “defuntinho” conduzido em uma cadeirinha,
mas diferentemente em que as senhoras ao irem à Igreja nas suas liteiras de cortina
fechada, no cortejo fúnebre da criança, as cortinas eram retiradas e enfeitavam com
ramalhetes de flores artificiais.
Quando se tratava de irmandades mais simples, sem muitos recursos, alguns
alugavam as cadeirinhas para o cortejo, e logo após era devolvida a liteira e pagavam o
aluguel pelo empréstimo. Contudo, muitas vezes alguns cortejos exigiam “apenas um
carregador para o caixão (...) que utiliza o seu tabuleiro recoberto por uma toalha de
renda, a fim de nele depositar o corpo, o enterro custa apenas a remuneração do
carregador, quando não é este pedido de empréstimo ao vizinho, último recurso da
extrema pobreza”579. Através desse relato de Debret, percebemos a desigualdade social
no Brasil, chegando ao ponto da família emprestar dinheiro para pagar o cortejo fúnebre
de seu filho. Mesmo o recém-nascido, nascendo já falecido ou falecendo logo após o
nascimento, ainda era realizado o batismo dos recém-nascidos mortos, para serem
enterrados de forma digna como “anjinhos”, evitando serem enterrados como pagãos.
577 REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 139-140. 578 KIDDER, D. P. Sketches of Residence and Travels in Brazil. Filadelfia, 1845. 2v; In: COSTA, Emília Viotti da. Da senzala à colônia. 5. ed. São Paulo: Editora UNESP, 2010. p. 277. 579DEBRET, Jean Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil II. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p. 529-530.
192
Figura 48 – Jean-Baptiste Debret. Anjinho preto de cadeirinha. 1823; aquarela sobre papel; 14,9 x
23,9cm; assinado e datado. Museus Castro Maya, Rio de Janeiro.
Na imagem, observamos no primeiro plano o cortejo de uma criança negra
pertencente a uma irmandade mais rica que teve condições de alugar a cadeirinha para o
cortejo fúnebre. A escrava que acompanha ao lado da cadeirinha é a escrava que seria a
ama de leite da criança ou até mesmo a própria mãe. No segundo plano, percebemos a
simplicidade do cortejo das irmandades mais simples, em que a criança é carregada na
cabeça do escravo, com se fosse alguma mercadoria amostra para ser vendida na rua, na
qual tiramos a conclusão da falta de organização e respeito para com a família da
criança falecida, com se fosse algo normal. Mas mesmo assim com a simplicidade de
alguns, as crianças falecidas eram dignamente paramentadas com mortalhas dos santos.
Segundo Debret,
(...) Os meninos, por exemplo, usavam muito o uniforme militar de São Miguel Arcanjo (...) os meninos também se vestiam de São João Batista e as meninas de Nossa Senhora da Conceição, ambos santos patronos da fertilidade no Brasil. Nesses casos, os pais pareciam querer reparar a perda dos filhos com gestos que propiciassem a sobrevivência de futuros rebentos580.
580 REIS, João José. O cotidiano da morte no Brasil oitocentista. In: NOVAIS, Fernando A. História da Vida Privada no Brasil: Império: a corte e a modernidade nacional. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. 112.
193
No decorrer deste item, notamos que Debret, ao construir a imagem do Rio de
Janeiro através das festas e religiosidade, enfatizou a grande variedade de costumes
portugueses, indígenas e africanas. Nesse sentido, percebemos que a população
aproveitava destes festejos sagrados ou profanos como uma oportunidade de
sociabilização, de divertimento por meio de músicas, fogos de artifícios e danças, e
festejos presentes até os dias atuais.
194
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Frente à rica variedade de temas abordados nesta pesquisa, por meio das obras
de Debret que analisamos e discutimos no decorrer de cada capítulo, tivemos uma
multiplicidade de representações visuais que Debret constituiu no Brasil, revelando-se
de diversas maneiras; de pintor histórico a pintor pitoresco. A maioria dos viajantes
estrangeiros que aqui passaram, preocupavam-se apenas em classificar os elementos da
natureza, diferentemente dos demais. Debret tinha como propósito criar uma história do
país visitante, através de seu relato, acompanhado por suas imagens.
A missão do artista viajante era, ao chegar ao Brasil, exercer o papel de pintor
histórico da corte portuguesa, que aqui já se encontrava instalada, sendo ele o
responsável por registrar os importantes momentos da corte como os eventos políticos:
casamentos, aclamações, coroação, chegada e partida de membros da realeza.
Futuramente, com a independência do Brasil, Debret continuaria sendo o pintor
histórico da nova monarquia dos trópicos. Vale ressaltar a maneira como Debret
construiu o imaginário histórico político das cortes de D. João VI e D. Pedro I, com os
mesmos princípios da pintura histórica, porém, trazendo consigo várias diferenciações
nos símbolos que cada corte carregava em si.
Para entendermos essas diferenciações na maneira como Debret retratou cada
corte, é necessário retornarmos à trajetória artística de Debret, sendo o pintor histórico
de Napoleão Bonaparte, cujas obras estavam voltadas à exaltação do monarca. Ainda
sobre sua trajetória artística, não podemos deixar de ressaltar sobre a influência do
neoclassicismo de seu primo David. No Brasil, Debret aproveitou-se da situação política
para iniciar através de produções artísticas a propaganda política com as imagens
históricas. Ao retratar a imagem de D. João VI, Debret criou uma imagem absolutista do
monarca no Brasil, claramente presente na representação à maneira da realeza europeia,
por meio dos atributos reais da velha corte portuguesa. Já nas representações de D.
Pedro I, o artista trouxe nas cenas, características que as Revoluções demonstraram,
rompendo com os antigos costumes. Os mesmos atributos que Debret inseriu nas cenas
de Napoleão, foram introduzidos nas cenas de D. Pedro I, carregado de atributos que
enalteceram e reforçaram o novo imperador com sua vitalidade e militarismo.
Além de exaltar a imagem da corte, Debret também retratou e relatou as
transformações que a presença da corte trouxe na cidade do Rio de Janeiro, mudanças
195
necessárias para agradar uma corte acostumada com os confortos de Lisboa. Ao mesmo
tempo que Debret exalta, traz o luxo das cortes portuguesa e brasileira, com cenas ricas
em detalhes históricos e da pompa da realeza, em contrapartida a arte neoclássica não
traz apenas traços históricos, mas também o exótico do país, ou seja, o cotidiano.
Mesmo Debret tendo sido o pintor histórico da corte portuguesa e logo depois da
corte brasileira, favorecendo uma aproximação ainda maior com D. Pedro I, na qual
acompanhou o imperador a uma viagem ao Sul do país, passando por várias províncias,
Debret, ao fim do primeiro reinado, sentiu-se desamparado e incerto ao seu futuro no
Brasil, escolhendo retornar a Paris, dedicando o resto de sua vida à publicação do seu
Voyage Pittoresque Et Historique Au Bresil.
Diante das cenas que Debret retratou da corte, não excluiu de seu álbum a
imagem do negro, salientando a participação na sociedade, incluindo os negros libertos
através dos ofícios que exerciam na cidade, desde barbeiros, vendedoras ambulantes e
donos(as) de quitandas, que após adquirirem a liberdade também assumiam um papel de
destaque em relação aos negros cativos, já que para os forros era sinal de prestígio
possuir seu próprio estabelecimento ou ofício após sua alforria, mesmo enfrentando
muitas dificuldades diante de uma sociedade escravocrata, que não os respeitavam, pois
seus ofícios não eram tão respeitados socialmente. Destacamos também o papel que
exerceram os negros de ganho, que para aumentar a renda de seus senhores,
perambulavam pelas ruas do Rio de Janeiro, vendendo os mais variados tipos de
produtos e comidas.
O traço colorido e espontâneo dessas imagens, destacavam-se nas roupas, gestos
e vivacidade dessa população que compõe o cotidiano citadino. Outro aspecto que
chama a atenção nas imagens do cotidiano é a quantidade de estabelecimentos
comerciais na cidade, remontando a importante posição geográfica dos portos do Rio de
Janeiro e do grande número de consumidores, destacando entre os consumidores, os
escravos, e em várias cenas são representados comprando determinado produto, sinal de
circulação de capital entre os cativos.
É importante notar que ao retratar cenas do cotidiano da cidade, Debret enfatiza
o importante papel que a rua trazia para a sociedade, principalmente a escrava, tornando
um local de sociabilidade, convívio e permanência dos costumes e tradições africanas,
pois gozavam da liberdade e distanciamento de seus senhores para manter viva a sua
cultura, seja através dos ofícios, da música (banda), religiosidade e culinária, tendo esta
última a rua como o principal local de difusão da culinária africana, e na mistura da
196
cozinha portuguesa e indígena gerou uma diversidade de comidas e bebidas. Foram as
quitandeiras e cozinheiras as responsáveis de tal difusão, seja perambulando pelas ruas
ou portos com tabuleiros na cabeça, seja em pontos fixos. Independentemente da
maneira como vendiam, não podemos deixar de destacar o importante papel que estas
escravas ou forras exerceram, sendo elas as responsáveis por alimentar uma grande
massa populacional de escravos que trabalhavam na cidade.
Debret também destacou em seu álbum o papel que a religiosidade exercia na
sociedade brasileira. As inúmeras manifestações que se realizavam na cidade, sejam
elas sagradas ou profanas, desde as pomposas procissões percorrendo as ruas da cidade,
gerando aos olhos das pessoas um verdadeiro espetáculo até as grandiosas celebrações
litúrgicas em latim, acompanhada por dezenas de padres. Para o mundo católico, a
presença da Igreja trazia os confortos e ajudas, através dos sacramentos, único meio de
adquirir a salvação da alma. Para o mundo das religiões africanas, que se adaptaram ao
chegar ao Brasil, transformando vários símbolos africanos em católicos, como
resistência contra a imposição do catolicismo, mantendo assim vivo vários costumes.
Desta maneira, os africanos cultuavam suas religiões ancestrais, por meio dos
curandeiros, buscando a invocação dos espíritos ancestrais, a cura dos males do corpo e
da alma. Mesmo havendo algumas diferenciações na maneira de professarem a fé entre
brancos e negros, não podemos deixar de lado o papel que as irmandades e confrarias
exerceram na disseminação entre as pessoas, quando todos os dias saiam às ruas com
seus relicários e estandartes na coleta de esmolas, sejam para manter suas obras de
caridades ou até mesmo para a manutenção de suas Igrejas.
Somente as esmolas arrecadas não eram suficientes, buscando as irmandades a
realização de festas e quermesses, que ajudavam a complementar os fundos
arrecadados. Notamos que estas festas não constituiram apenas um momento de culto
religioso, mas acima de tudo, momentos de socialização, de convívio social, nos quais
muitas pessoas aproveitavam para o lazer, divertimento, comida e bebida, ou seja,
gozam de certa liberdade que as festas proporcionavam. Notamos também que mesmo
em se tratando de irmandades católicas, cada uma se diferenciava da maneira como se
realizavam suas coletas e festas: umas saiam pelas ruas pedindo esmolas para as
pessoas, outras preferiam se posicionarem próximas de sua Igreja para arrecadar dos
fiéis que saiam das missas. O que podemos concluir é que foi o papel que as irmandades
exerceram, utilizando várias formas, como festas, relicários, escapulários e estandartes,
197
uma teatralização dos costumes religiosos para conquistar a população, principalmente a
escrava, tão atraída pelos simbolismos e significados.
O simbolismo estava em todas as manifestações sagradas e profanas, desde as
procissões até os cortejos fúnebres. Debret em sua obra deu um maior destaque nos
diferentes tipos de cortejos fúnebres realizados no Rio de Janeiro, no qual observamos
que até mesmo na hora da morte havia certa desigualdade. Nos cortejos das irmandades
ricas notamos a pompa com que se realizavam uma grande preparação para o cortejo, já
que era o último ato do membro falecido, e uma preocupação de manter o ritual
litúrgico dentro do que a Igreja recomendava, no intuito de que a alma do falecido
ganhasse o céu, livrando-o do purgatório. Já nos cortejos dos negros, mesmo utilizando
de alguns símbolos católicos, notamos a grande diferenciação no cortejo fúnebre,
acompanhado de músicas, danças ritmadas pelas palmas e fogos de artifícios, que para
os africanos a morte significava uma ligação com seus antepassados ancestrais, e acima
de tudo a liberdade da condição de escravo.
O caráter reformador de Debret não ficou apenas confinado nas páginas de seus
relatos, sua expressão também estava em suas ações como pintor. As influências da
Revolução Francesa e do histórico artístico com a influência do neoclassicismo
marcaram a maneira de como Jean-Baptiste Debret relatou e retratou o Brasil.
Mesmo com toda a sua contribuição ao retratar a diversidade cultural, trazendo o
papel que a rua e as festas exerciam na sociabilização, Debret não deixou de lado sua
crítica e ironia, ao considerar tais práticas um atraso perante uma Europa pós-revolução.
Não apenas a diversidade cultural será questionada, mas também as práticas da
monarquia portuguesa, argumentada por Debret como velhas práticas, já abolidas na
Europa.
Nesse sentido, mesmo Debret considerando-se um reformulador, herdeiro da
revolução, que questiona todas as práticas ligadas aos antigos regimes, considerando-o
civilizado perante os brasileiros, deixa de lado e não questiona que tais práticas ainda
também eram exercidas em boa parte da Europa.
O estreito diálogo entre texto e imagem de Debret, ofereceu-nos chaves
interpretativas do imaginário histórico e pitoresco do artista, que levou aos
pesquisadores pequenas partes da história brasileira do século XIX, porém deixando
ainda muito a decifrar.
198
REFERÊNCIAS
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