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Jorge Caldeira fluente e empolgante O Brasil descobre Mauá Ana Maria Brescancini

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Jorge Caldeira fluente e empolgante O Brasil descobre Mauá Ana Maria Brescancini

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PERSONA

RAE Light: Mauá, empresário do Impé-rio é sua segunda biografia e parece es-tar na mesma rota de sucesso de livroscomo Chatô, de Fernando Morais, ou abiografia de Nelson Rodrigues, escritapor Ruy Castro. A que você atribui a va-lorização desse tipo de trabalho no mer-cado editorial brasileiro hoje?

Caldeira: É uma tendência que começouhá mais de dois anos. Fundamental paraesta safra de livros foi Luis Schwarcz,editor da Companhia das Letras. Há três

anos ele conseguiu que empresas privadasfinanciassem a pesquisa para uma coleçãode biografias. Isso é tudo. O que tomaestas biografias atraentes é que há muitomaterial desconhecido nelas, o que sedeve ao tempo de trabalho investido napesquisa. Biografia é fundamentalmentepesquisa. É muito difícil fazer uma bio-grafia rápida ou romanceada. As biogra-fias que a Companhia das Letras vem de-senvolvendo lançaram um padrão de pes-quisa absolutamente inusitado para omercado brasileiro. Eu, por exemplo, an-tes de escrever a primeira linha, tive doisanos de trabalho, juntando documentosem quatro países, lendo toda a bibliogra-fia do período. Isso só foi possível porqueexistia uma bolsa de pesquisa. Essa bolsatoma viável lançar o livro a preço de mer-cado,já que o custo da pesquisa em si nãocompõe o preço para o leitor.Além disso, escrever biografia é muitogostoso. Qualquer livraria no planeta,exceto no Brasil, tem uma seção de bio-grafias. Éum tipo de leitura de que gos-to muito. Sou um grande leitor de biogra-

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fias, UI)J. estilo sobre o qual também gostode trabalhar, embora nã9 escreva só.bio-grafia. O Brasil não tem a tradição defa-zer o estuda particular de um assunto de-limitado, sem grandes explorações, mascom profundidade. Aqui, geralmente apesquisa é para a grande teoria; aspessoas estão mais voltadas para as coi-sas abstratas, para as explicações geraise não para o aprofundamento de casosparticulares. Por isso, a soma de todo otrabalho da Companhia das Letras resul-ta em algo de muito impacto. O leitor

recebe muito:por um preçoacessível, temUm trabalho depesquisa enorme.Acho que o se-gredo maior des-ta biografia foi otrabalho préviodo Schwarcz, umesforço que tempermitido quepessoas se deslo-

quem de outras atividades, para, pelomesmo rendimento, investir no projeto.

R4E Light: Seu interesse pela figura deMauá surgiu no porão da casa grande deuma fazenda de café do Vale do Paraíba,onde você encontrou uma reedição, de1942, do livro Exposição aos credores,do próprio Mauá. O que motivou a curio-sidade inicial que logo se transformounum verdadeiro mergulho na figura dovisconde e sua época?

Caldeira: Foi uma decisão ilógica. Nãotinha qualquer motivo para fazer aquilo,nem a visão precisa de que resultarianuma biografia. Achava o seguinte:"preciso estudar muito afundo porque,sem um entendimento dessa pessoa edesse período, será difícil entender ahistória do. Brasil. "Eu tinha um drama:era editor da Exame, uma revista sobreeconomia e negócios, na qual, em tese,fornecia informações globais sobre eco-nomia para o leitor, e eu estava muito in-satisfeito com as informações ):Jue tinha.O resultado foi uma grande insatisfaçãono trabalho, no sentido de não estar cum-prindo O que poderia cumprir. Então re-solvi estudar mais. Não tinha nenhummotivo lógico para isso.

RAE Light: Mas chegou um momentoem que o estudo assumiu proporçõesmaiores, exigindo, por exemplo, maiordedicação.

Caldeíra. Eu tive dedicação exclusivadesde o primeiro dia. Larguei a Examepara estudar. Durante seis meses fiqueilendo a bibliografia do Império, atéaquele período "correr bem" na minhacabeça. Depois, parti para a documenta-ção do Mauá. Fiquei mais uns seis meseslevantando informações. A impressãoinicial era de que eu conseguiria fazertudo em um ano de pesquisa, mas, quan-do entrei na documentação do Mauá,percebi algo que tornava inviável o pro-jeto inicial: se eu quisesse um trabalhobem feito teria que fazer uma pesquisainternacional. O Mauá era um persona-gem de importância mundial porque fa-zia negócios fora. A estrutura de seu im-pério era algo mundialmente importante

RAE Light: Quando a Companhia dasLetras entrou na história de Mauá?

Caldeira: Um ano depois. Já tinha pensa-do nisso porque conhecia Schwarcz. Eleera trainee na editora Brasiliense e traba-lhou na biografia do Noel Rosa, minhaprimeira obra. Eu via as publicações eachava que era algo que poderia ser ven-dido à Companhia das Letras, mas nãofizera contato com ela porque acreditavaqu~ primeiro, era preciso ter a coisa bemdelineada. Foi um casamento fácil por-que, de fato, tinha muito a ver com os pro-jetos dele. Os resultados deste trabalhosão excepcionais. Todas as biografias quesaíram desse projeto foram significati vas,e sempre que antecedidas de uma grandepesquisa o foram mais ainda. Chatô temuma pesquisa extraordinária do FernandoMorais, Nelson Rodrigues tem uma pes-quisa brilhante do Ruy Castro. O Mauá éuma pesquisa muito boa.

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e ele tinha repercussão, quer dizer, eraum empresário conhecido não só aqui noBrasil mas também lá fora, como na In-glaterra, o centro do capitalismo naquelemomento. Aí tive a certeza de que.preci-sava fazer uma pesquisa internacional.Nesse momento recebi, por meio daCompanhia das Letras, fmanciamento doBanco BBA (Banco BBA CreditanstaltS.A, associado ao Creditanstalt -Bankverein, Viena), o que me permitiudar esta dimensão ao projeto. Levei maisum ano inteiro de pesquisa para poderchegar a este ponto.

RAE Ligkt: Você trabalhou sozinho outeve uma equipe de suporte?

Caldeira: Pois é. Isto foi um erro: traba-lhei absolutamente só. Não por mérito,mas por erro. No começo trabalhei sozi-nho porque não sabia como encaixar ascoisas, isto é, não tinha um projeto ra-cional. Foi bom porque permitiu que eufizesse uma abordagem própria da bio-grafia, diferente de todas as outras. Pre-cisava desta liberdade porque mudeimuito fontes documentais, fiquei muitosolto. Isto acabou se revelando adequa-do, mas não é um bom método de traba-lho. Mexer, sozinho, com um volumemuito grande de dados é muito compli-cado. Tenho uma experiência acadêmicagrande. Teria sido mais difícil se não ti-vesse um bom treino acadêmico.

RAE Light: Um livro de aproximada-mente 600 páginas, resultado de trêsanos de trabalho, deve ter suas própriashistórias. O que ficou como o momentomais dificil para você?

Caldeira: Foi quando achei que não iadar conta do estudo, pela dimensão dopersonagem. Tinha muita coisa paraentrar emjogo e montar o quebra-cabe-ça e tudo isso estava sendo muito difí-cil. Teve um momento em que eu esta-va quase desistindo, optando por umtrabalho menor, que devo retomar maistarde. Este foi o maior desafio: a quan-tidade e o ineditismo dos dados. Quan-

Suplemento da RAE

História nunca reforçou a dimensão em-presarial deste personagem?

do se está trabalhando com alguém quejá tem multo material publicado é mui-to mais fácil. Há uns 30 livros sobre oMauá, mas nada parecido com este.Este tem muito mais coisa. É mais fá-cil trabalhar em algo que tenha.maisgente estudando, discutindo; dá ~macerta referência. Este trabalho foi deuma solidão miserável! Eu não tinhacom quem falar do assunto.

Caldeira: Acho que isso é grave porquese trata de um personagem com dimen-são suficiente para não ser esquecido.Mauá tem uma característica muito espe-cial, que é o fato de ter sido um empresá-rio muito bem-sucedido. A memória dosucesso, no Brasil, é muito menor do quea memória do fracasso. Por exemplo, atéhoje não temos uma boa história sobrePelé. O brasileiro tende a relegar o suces-so ao segundo plano, ele tem uma cultu-

RA.E Ligiu: Mauá émais lembrado pelotítulo do que por suas realizações e em:preendimentos. Por que você acha que a

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Ia do fracasso muito grande. A pergun-ta básica em história do Brasil é: por queo Brasil não deu tão certo quanto os Es-tados Unidos? Esta pergunta é muitomais atrativa do que, por exemplo: porque os dois países tiveram evoluções di-ferentes? Aqui se estabelece muito essacultura comparativa. Se pegarmos a de-finição do que é caso de sucesso no Bra-sil, nem Deus é caso de sucesso! Trata-sede uma forte estrutura interna no brasilei-ro. Se Napoleão fosse brasileiro, seria ohomem de Waterloo morto em SantaHelena, e ninguém gostaria de lembrarque era brasileiro. No entanto, ele é oherói da França até hoje porque levou opaís da fase mercantilista para a fase ca-pitalista, no Estado moderno.Acho que Mauá é uma espécie de grito:"olha, não é bem assim". Isso é especial-mente importante no mundo empresa-rial. As empresas que não dão certono Brasil tendem a ser mais bem tratadasdo que as que dão certo. Prova típica sãoos empréstimos rurais: as grandes em-presas que não dão certo recebem gran-des créditos para continuar a não dar cer-

loca a questão do papel do empresárionum momento em que está se discutindoprivatização, por exemplo. O livro reco-loca este papel, tão mal resolvido dentroda estrutura da sociedade brasileira.

RAE Líght: Após dissecar a figura deum empresário corno Mauá, você diriaque existem habilidades críticas e postu-ras inerentes a empresários bem-sucedi-dos de um modo geral, independente daépoca em que atuem ou das forças e pres-sões que sofram do seu ambiente'?

Caldeira: Mauá tem características deempresário de grande sucesso inter-nacional, não de empresário de sucessomédio. Em primeiro lugar é um inovadordaquilo que é, no momento, negócio deponta no planeta: no seu porte, foi a pri-meira pessoa à pensar a estrutura multi-nacional no seu cerne. A estratégia e aestrutura administrativa de seu império éa mesma do Keiretsu japonês: um ban-co está no núcleo de financiamento dosprojetos industriais. A Mitsubishi, porexemplo, funciona nessa estrutura. A di-

ferença é que obanco dele eramultinacional,não montadoem cima depoupanças lo-cais, mas no fi-nanciamentode comércioexterior, o que,

naquele tempo, era muito raro. Portanto,o núcleo central dos negócios dele, mon-tado na metade do século XIX, era algode fmal do século XX.A segunda característica de empresáriode sucesso era o jeito de administrar. Eraum administrador tão extraordinárioquanto estrategista. Numa sociedade deescravos montou uma administraçãocentralizada, com estruturas não-autori-tárias e com alto grau de participação dosempregados, que ele chamava de colabo-radores. Isso era absolutamente contrárioà cultura brasileira, e Mauá não era en-tendido de jeito nenhum naquela época.

to e a não pagar. Os 99% que pagam suasdívidas não existem na memória. Pode-se pensar em raízes sociológicas paraesse comportamento. O poder políticoraramente está nas mãos do empresário.Ser bem-sucedido para o empresário nãoé uma questão de querer; é uma questãode vida ou morte. O empresário que nãotem sucesso deixa de ser empresário.Não há atividade humana com seleçãonatural mais violenta do que a atividadeempresarial.O comportamento brasileiro é especial-mente complicado para pensar o empre-sário, Acho que O livro sobre Mauá reco-

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Outro dado fundamental é Mauá terconseguido montar 17 empresas em seispaíses, e geri-las por cartas, mandadaspor navio a vela! Quando você está fa-lando de empresas que trabalham a lon-go prazo é uma coisa, mas ele fazia ope-rações de câmbio e hedge cambial porcarta, mandada em navio a vela. Isso sóera possível por sua percepção e finezaadministrativa. Mauá foi competente naadministração e inovador na concepção.A terceira característica que define seuperfil de sucesso, onde ele era genial, é asua capacidade de observar a realidade.Ele valorizava a máxima de que" valia oque funcionava", raramente seguida noBrasil. Se existisse uma teoria dizendoque aquilo não deveria funcionar assim,ele não acreditava na teoria. Sempre olha-va a realidade do mercado e ensinava isso.Todas as suas cartas tinham, obrigatoria-mente, um parágrafo dizendo: "presteatenção na realidade do mercado, nos de-talhes do dia-a-dia, e só monte as coisasdepois de olhar o dia-a-dia: o balcão, Ocliente, o produto que você tem". Por con-ta disso, acabou utilizando a seu favorcertas características da realidade brasilei-ra. Pode até parecer.bizarro, mas a realida-de brasileirado século XIX, no que se re-fere à estrutura monetária, era uma ante-cipação do século XX. Só que naquelaépoca todos pensavam que o Brasil esta-va errado, E Mauá acreditava: "se fun-ciona, está certo". IS$O era uma anteci-pação do futuro e ele soube ser fiel a ela.Do que estou falando: à época da Inde-pendência, e por decorrência do movi-mento, a circulação monetária no Brasilficou restrita ao papel-moeda; não tiuhaouro aqui, era só nota de papel. Segundoas teorias econômicas da época, e até de-pois, com Marx, Ricardo e a escola clás-sica, a economia precisava necessaria-mente do padrão ouro para funcionar. Oouro cumpria a função de representaçãode valor. Os economistas brasileirosquedam comprar ouro para substituir asmoedas de papel por moedas de ouro.Mauá se perguntava por que, se o papelfuncionava, gastar dinheiro com ouro?Ele começou a estudar para comprovar

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que o papel-moeda poderia cumprir afunção do ouro. Este foi o padrão demoeda pós-1971, quando foi extinto opadrão ouro, e Mauájá operava com issoem 1840. Percebeu, em algo que todosviam como erro, um mecanismo econô-mico fundamental que veio a ser utiliza-do no futuro. O primeiro teórico de econo-mia a mexer com isso foi Keynes, já no iní-cio do século. Mauá era estritamente keyne-siano em 1840. Isto - o seu jeito de olharareal.idadedomercado-deu-lheadimen-são, raríssima, de gênio internacional.

RAE Light: Você vê este perfil associa-do ao do empresário brasileiro de hoje?

Caldeira: O Brasil está lotado de empre-sários que fazem isso. A maior parte dosbons empresários brasileiros, você nãosabe nem quem são. São pessoas quemontam, fazem funcionar e não apare-cem. Há muitas empresas boas e empresá-rios que têm esse tipo de observação. Liuma notícia, por exemplo, de que a DBBrinquedos tem uma participação doMorgan Bank. É tipicamente o caso deuma empresa que resolveu ser diferente,em telIDOSde eficiência, funcionalidade,visão pelo menos até onde o jornal noti-cia. Acho muito interessante. Quem é esseempresário? Está aí, trabalhando, fazendosua empresa etc. Voltamos à estória debuscar o sucesso reconhecido, enquanto overdadeiro empresário é o que está fazen-do. No Brasil sempre foi assim. Umexemplo é o Matarazzo, para quem, nocomeço. ninguém ligava porque vendiabanha de porco. Mas as coisas que dãocerto neste país nascem assim mesmo, dapessoa que vai ver seu mercado, e não degrandes planos de governo.

RAE Light: Além de todas estas caracte-rísticas, o trânsito poJitico de Mauá nãofoi umfator determinante de seu sucesso?

Caldeira: Mauá tinha trânsito políticopor uma razão muito simples: ele eramaior do que o Estado. Não dava paranão ter trânsito. Eram duas coisas domesmo tamanho: o Estado brasileiro e

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as empresas do Mauá. Não era um trân-sito fluente nem fácil; era muito compli-cado, feito com muitas trombadas.

RAE Light: Exatamente por estarmos fa-lando de duas forças com poder de bar-ganha semelhante, até que ponto as prá-ticas deste relacionamento põem em ris-co a ponta do capital privado? Podemoscitar, por exem-plo, a questãoda troca de fa-vores que aindahoje permeia asrelações entreas forças políti-cas e a iniciati-va privada noBrasil.

Caldeira: Issonunca foi umaquestão bem resolvida na história doBrasil. A idéia, no tempo do Império,era a de que um empreendedor privadoera uma má pessoa, alguém nãointeres-sado no bem público. Acho que issoainda permanece. A idéia do empresáriorico é muito dolorosa para ser engolidaaté hoje no Brasil. Usualmente vocêatribui a riqueza do empresário a umfavor público. Num momento de muitaestatização isso é verdade. É uma da-quelas profecias que se auto-alimen-tam. Se você tem uma estatização mui-to grande da economia, o empresário édependente do Estado. Isso precisa serdesmontado no Brasil Épreciso repen-sar o papel do empresário, para que lheseja dado sentido.No caso do Mauá, por exemplo, as pes-soas não entendiam como ele ganhavadinheiro. Mauá basicamente ganhavadinheiro por inovações tecnológicas.Esse era o fundamento de sua riqueza.Ele ganhava dinheiro numa esfera inter-nacional: tomou o mercado financeirode bancos ingleses porque oferecia umserviço melhor, muito mais adequado aUma economia que começava a se inter-nacionalizar. Não existiam bancos comvárias agências; os bancos tinham 80-

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oBRASIL DESCOBRE MAUÁ

mente uma sede. Ele tinha agência emtodo lugar e servia pessoas que transi-tavam em mais de um lugar. Para aque-les interessados em negócios entre Bra-sil e Inglaterra, Brasil e Prata ou Brasile Estados Unidos, Mauá era melhor doque qualquer outro banco. Oferecia umserviço melhor; cobrava menos e ga-nhava mais porque ganhava no volume

e no custo do serviço, dada sua estrutu-ra menor, o que lhe dava um ganho deescala. No Brasil, as pessoas não sabiamda existência desta estrutura e achavamque o M a~á f'azi a i sso porque tinhaconseguido um favor, o que não eraverdade.Houve uma discussão famosa relacio-nada a urna concorrência que Mauá ga-nhou, oferecendo o preço mais baixopara fornecimento de gás no Rio de Ja-neiro. Era bem mais baixo, algo emtorno de 20%. Montou uma empresaque obtinha lucro com a tarifa prede-terminada. Durante 20 anos tinhamtentado fazer isso, sem sucesso. Quan-do Mauá começou a ganhar dinheiro,todos atribuíram o fato a um favor queo governo lhe teria feito. As coisas nãoeram assim. Ele ganhou muito dinheiroporque foi eficiente em montar o negócioa partir de um preço dado.Este mal-entendido corre o Brasil atéhoje. Por causa disso, muitas pessoastêm a impressão de que o livro é sobreo presente e não o passado. Não é. Essasituação melhorou muito do século XIXpara cá, mudou na sua essência. O livrotraz esse lado bom.O Brasil é um país que tem sua trajeto-

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ria própria. Como o brasileiro não temnoção da história, acha que tudo está co-meçando hoje, quando, na verdade,muita coisa tem por trás uma longa tra-dição; se você conhece a tradição sabepara onde as coisas vão. O grande pon-to positivo de conhecer o passado é ve-rificar que as pessoas não mudam tãoradicalmente; certos comportamentospermanecem. No caso do Brasil, comcerteza.Nessa linha de se achar que tudo estácomeçando hoje, há dados espantosos:o Brasil é um dos países com maior es-tabilidade política do planeta. Tem umCongresso que funciona desde 1826, sócom duas interrupções no funcionamen-to. A primeira interrupção, no EstadoNovo, em 1945, foiademaiorduração.Depois, foi fechado por um ano no regi-me militar, na edição do AI 5 em de-zembro de 1968; em 1970 já houve elei-ção. O Brasil tem mais tempo de fun-cionamento regular do Congresso doque a França, Alemanha, Itália, Espa-nha e Portugal. Provavelmente só doispaíses no mundo têm um Congressomais estável que o Brasil: Inglaterra eEstados Unidos. Isso é uma idéia muitocontrária ao senso comum do país. Ou-tro dado: o Brasil é um país estável emsuas relações financeiras internacionais.É um dos poucos países do mundo a tersomente duas moratórias: urna, nosanos 30, e outra, em 1987. Todos oscontratos internacionais foram cumpri-dos, desde a Independência. Nós não te-mos muita noção de tais dados porquenão estudamos. Daí acharmos sempreque tudo está começando, tudo é crise.

RAE Light: Você não acha que a super-ficialidade da imprensa brasileira contri-bui um pouco para isso, considerandoque muitas pessoas têm os jornais, revis-tas e a própria televisão como única ou,pelo menos, principal fonte de informa-ção sobre o país?

Caldeirar Imprensa não ter memória éregra. Ela é assim no mundo inteiro. Háuma lei da imprensa porque ela é diária.

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O rádio é ao vivo, o que é ainda pior. Nojornal, o mundo zera todos os dias evocê tem que encher todas as páginas,todos os dias. A boa realização do jornalde ontem não garante a boa realizaçãodo jornal de hoje. Mas, dai a você nãoter memória histórica é uma distânciamuito grande. No fundo, acho que nos-so raciocínio histórico é o mesmo daimprensa, o que só poderia ser corrigi-do com aula ou estudo de história.

RAE Light: Quem está lendo Mauâ,empresário do Império?

Caldeira: Tenho tido surpresas extraor-dinárias. Achava que o livro iria bem,mas não tanto a ponto de, em um mês,ficar em primeiro lugar, entre os maisvendidos do país. Como está vendendomuito, além do que se poderia prever,acho que tenho, entre meus leitores, detudo um pouco, o que é bom. Uma dasgrandes vantagens no jornalismo, alémde se escrever todo dia, é que se apren-de a redigir para os outros. Por isso,qualquer pessoa pode entender meu li-vro, mesmo quem não entende nada deeconomia ou de história do Brasil. Istoé uma coisa sobre a qual tenho a cons-ciência de ter feito. Não há pressupostono livro que não seja explicado. Alémdisso, acho que é agradável de ler; fizuma história gostosa. Acho que todo li-vro deveria ser assim, independente-mente de ser especializado. Um livroimpossível de se entender, de qualquerárea que seja, é basicamente mal escri-to. Uma publicação técnica bem escrita,seja sobre filosofia ou. física, como deumEinstein por exemplo, qualquer pes-soa entende.

BAR Light: Qual a faceta de Mauá que,na sua opinião, ficou mais evidente nolivro?

Caldeira: Acho que ficou uma coisaglobal. Uma pessoa é sempre alguémem seus muitos aspectos. Procurei nãoreduzir o Mauá a um dos aspectos desua vida. Tentei fazer um mosaico de

todas as dimensões: a vida familiar, otempo dele, os negócios, postura admi-nistrativa, disputas políticas. Tem detudo porque ele esteve no meio de tudoisso. Acho que meu trabalho é um co-meço para a compreensão da figura deMauá. Gostaria que ele abrisse espaçopara outras pessoas continuarem o es-tudo. Se fosse fora, a bibliografia deMauá teria mais de uma centena de li-vros. É um personagem que tem portepara ser estudado por um inglês ou umamericano, corno o é, aliás. Nos últi-mos anos, os principais estudos sobreMauá são do exterior: Inglaterra, Ca-nadá e Estados Unidos. É urna figuramuito rica mesmo. É muito raro vocêficar três ou quatro anos convivendoexclusivamente com um personagem e,ao final desse período, concluir queainda há muito por fazer. Normalmen-te o assunto se esgota, a figura começaaté a cansar. Ainda estou muito longede me cansar.

RAE Light: Há outro Mauá nos proje-tos de Caldeira?

Caldeira: Não. Vai ser difícil acharoutro Mauá na história do Brasil. Mashá outros personagens. Imagine umabiografia do Raposo Tavares, um ban-deirante que ficava três ou quatro anosviajando por aí., .•

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