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Palomar - Italo Calvino

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Palomar - Italo Calvino

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  • AS FRIAS DE PALOMAR

  • PALOMAR NA PRAIA

    Leitura de uma onda

    O mar est levemente encrespado e pequenas ondas quebram na praia arenosa. O

    senhor Palomar est de p na areia e observa uma onda. No que esteja absorto na

    contemplao das ondas. No est absorto, porque sabe bem o que faz: quer observar

    uma onda e a observa. No est contemplando, porque para a contemplao

    preciso um temperamento conforme, um estado de nimo conforme e um concurso de

    circunstncias externas conforme: e embora em princpio o senhor Palomar nada

    tenha contra a contemplao, nenhuma daquelas trs condies, todavia, se verifica

    para ele. Em suma, no so as ondas que ele pretende observar, mas uma simples

    onda e pronto: no intuito de evitar as sensaes vagas, ele predetermina para cada um

    de seus atos um objetivo limitado e preciso.

    O senhor Palomar v uma onda apontar na distncia, crescer, aproximar-se, mudar

    de forma e de cor, revolver-se sobre si mesma, quebrar-se, desfazer-se. A essa altura

    poderia convencer-se de ter levado a cabo a operao a que se havia proposto e ir-se

    embora. Contudo, isolar uma onda da que se lhe segue de imediato e que parece s

    vezes suplant-la ou acrescentar-se a ela e mesmo arrast-la algo muito difcil, assim

    como separ-la da onda que a precede e que parece empurr-la em direo praia,

    quando no d at mesmo a impresso de voltar-se contra ela como se quisesse fech-

    la. Se ento considerarmos cada onda no sentido de sua amplitude, paralelamente

    costa, ser difcil estabelecer at onde a frente que avana se estende contnua e onde

    se separa e se segmenta em ondas autnomas, distintas pela velocidade, a forma, a

    fora, a direo.

    Em suma, no se pode observar uma onda sem levar em conta os aspectos

    complexos que concorrem para form-la e aqueles tambm complexos a que essa d

    ensejo. Tais aspectos variam continuamente, decorrendo da que cada onda diferente

    de outra onda; mas da mesma maneira verdade que cada onda igual a outra onda,

    mesmo quando no imediatamente contgua ou sucessiva; enfim, so formas e

    sequncias que se repetem, ainda que distribudas de modo irregular no espao e no

    tempo. Como o que o senhor Palomar pretende fazer neste momento simplesmente

    ver uma onda, ou seja, colher todos os seus componentes simultneos sem descurar de

    nenhum, seu olhar se ir deter sobre o movimento da gua que bate na praia a fim de

    poder registrar os aspectos que a princpio no havia captado; to logo se d conta de

  • que as imagens se repetem, perceber que j viu tudo o que queria ver e poder ir-se

    embora.

    Homem nervoso que vive num mundo frentico e congestionado, o senhor Palomar

    tende a reduzir suas prprias relaes com o mundo externo e para defender-se da

    neurastenia geral procura manter tanto quanto pode suas sensaes sob controle.

    A crista da onda vindo para a frente ergue-se num determinado ponto mais do que

    nos outros e ali que comea a se preguear de branco. Se isto acontece a certa

    distncia da praia, a espuma tem tempo de revolver-se sobre si mesma e desaparecer

    de novo como que tragada e no mesmo momento tornar a invadir tudo, mas desta vez

    surgindo de baixo, como um tapete branco que soergue a fmbria para acolher a onda

    que chega. Porm, quando se espera que a onda role sobre o tapete, damo-nos conta

    de que j no existe mais a onda, mas apenas o tapete, e mesmo esse rapidamente

    desaparece, torna-se uma cintilao da areia alagada que se retira veloz, como se para

    cont-lo houvesse um expandir-se da areia seca e opaca avanando seu rebordo

    ondulado.

    Ao mesmo tempo precisa-se considerar as reentrncias da frente, em que a onda se

    divide em duas alas, uma que tende em direo praia da direita para a esquerda e

    outra da esquerda para a direita, e o ponto de partida ou de chegada dessa

    divergncia ou convergncia aquela ponta em negativo que segue o avanar das alas

    mas sempre se mantendo um pouco atrs e sujeita ao sobrepor-se alternado delas,

    para que no venha a ser alcanada por uma outra onda mais forte embora tambm

    esta com o mesmo problema de divergncia-convergncia, ou talvez por outra ainda

    mais forte que resolva o impasse rompendo o n.

    Tomando como modelo o desenho das ondas, a praia avana na gua pontas

    apenas esboadas que se prolongam em bancos de areia submersos, como as

    correntes os formam e desfazem a cada mar. Foi uma dessas lnguas baixas de areia

    que o senhor Palomar escolheu como ponto de observao, porque as ondas nelas

    batem obliquamente de uma parte e de outra, e ao cavalgarem por cima da superfcie

    semissubmersa vo encontrar-se com as que chegam da outra parte. Assim, para se

    compreender como uma onda feita necessrio ter-se em conta esse impulso em

    direes opostas que em certa medida se contrabalanam e em certa medida se

    somam, e produzem um quebrar geral de todos os impulsos e contraimpulsos no

    mesmo alagar de espuma.

    O senhor Palomar est procurando agora limitar seu campo de observao; se tem

    presente um quadrado de, digamos, dez metros de praia por dez metros de mar, pode

    levantar um inventrio de todos os movimentos de ondas que ali se repetem com

    frequncia variada dentro de um dado intervalo de tempo. A dificuldade est em fixar

    os limites desse quadrado, porque, por exemplo, se ele considera como o lado mais

    distante de si a linha em relevo de uma onda que avana, essa linha ao aproximar-se

    dele ir, erguendo-se, ocultar de sua vista tudo o que est atrs; e eis que o espao

    tomado para exame se destaca e ao mesmo tempo se comprime.

    Contudo, o senhor Palomar no perde o nimo e a cada momento acredita haver

  • conseguido observar tudo o que poderia ver de seu ponto de observao, mas sempre

    ocorre alguma coisa que no tinha levado em conta. Se no fosse pela impacincia de

    chegar a um resultado completo e definitivo de sua operao visiva, a observao das

    ondas seria para ele um exerccio muito repousante e poderia salv-lo da neurastenia,

    do infarto e da lcera gstrica. E talvez pudesse ser a chave para a padronizao da

    complexidade do mundo reduzindo-a ao mecanismo mais simples.

    Mas todas as tentativas de definir esse modelo devem levar em considerao uma

    onda que sobrevm em direo perpendicular ao quebra-mar e paralela costa,

    fazendo escorrer uma crista contnua e apenas aflorante. Os saltos das ondas que se

    desgrenham para a praia no perturbam o impulso uniforme dessa crista compacta

    que a corta em ngulo reto sem que se saiba para onde vai nem de onde vem. Pode

    ser um fio de vento do nascente que move a superfcie do mar em sentido transversal

    corrida profunda que vem das massas de gua do largo, mas essa onda que nasce do

    ar recolhe de passagem tambm os impulsos oblquos que nascem da gua e os desvia

    e os corrige em seu sentido levando-os consigo. Assim vai continuando a crescer e a

    tomar forma para que o encontro com as ondas contrrias no a amortea aos poucos

    at faz-la desaparecer, ou ento a tora at faz-la confundir-se numa das tantas

    dinastias de ondas oblquas, levada praia com as outras.

    Prestar ateno em um aspecto faz com que este salte para o primeiro plano,

    invadindo o quadro, como em certos desenhos diante dos quais basta fecharmos os

    olhos e ao reabri-los a perspectiva j mudou. Alm do mais nesse entrecruzar-se de

    cristas diversamente orientadas o desenho de conjunto se torna fragmentado em

    espaos quadrados que afloram e se desvanecem. Acresce que o refluxo de cada onda

    tambm possui uma fora que se ope s ondas supervenientes. E se concentrarmos a

    ateno nesses impulsos retroativos vai nos parecer que o verdadeiro movimento

    aquele que parte da praia em direo ao largo.

    Ser que o verdadeiro resultado a que o senhor Palomar est prestes a chegar o

    de fazer com que as ondas corram em sentido oposto, de recuar o tempo, de discernir

    a verdadeira substncia do mundo para alm dos hbitos sensoriais e mentais? No,

    ele chega at a experimentar um leve sentido de reviravolta, mas tudo. A obstinao

    que impulsiona as ondas em direo costa j ganhou a parada: de fato, elas

    aumentaram bastante. O vento estaria mudando? pena que a imagem que o senhor

    Palomar havia conseguido organizar com tanta mincia agora se desfigure, se

    fragmente e se perca. S conseguindo manter presentes todos os aspectos juntos, ele

    poderia iniciar a segunda fase da operao: estender esse conhecimento a todo o

    universo.

    Bastaria no perder a pacincia, coisa que no tarda a acontecer. O senhor Palomar

    afasta-se ao longo da praia, com os nervos tensos como havia chegado e ainda mais

    inseguro de tudo.

  • O seio nu

    O senhor Palomar caminha ao longo da praia solitria. Encontra raros banhistas.

    Uma jovem est estendida na areia tomando banho de sol com os seios mostra.

    Palomar, homem discreto, volve o olhar para o horizonte marinho. Sabe que, em tais

    circunstncias, a aproximao de um desconhecido leva no raro as mulheres a se

    cobrirem depressa, e isso no lhe parece bom: porque desagradvel para a banhista

    que tomava seu sol tranquila; porque o homem que passa se sente um elemento

    perturbador; porque o tabu da nudez fica implicitamente confirmado; e porque as

    convenes respeitadas pela metade propagam insegurana e incoerncia no

    comportamento em vez de liberdade e franqueza.

    Por isso que ele, mal v esboar-se ao longe o perfil brnzeo rosado de um torso

    feminino nu, apressa-se em assumir com a cabea uma postura tal que a trajetria de

    seu olhar permanea suspensa no vazio e garanta seu respeito civil pela fronteira

    invisvel que circunda as pessoas.

    Contudo, pensa, seguindo adiante e, mal o horizonte se desobstrui, readquirindo o

    livre movimento do bulbo ocular, eu, assim procedendo, ostento uma recusa em ver,

    ou seja, tambm acabo por reforar a conveno que torna ilcita a vista de um seio,

    ou melhor, instituo uma espcie de suti mental suspenso entre os meus olhos e

    aquele seio que, do deslumbramento surgido dos confins de meu campo visual,

    pareceu-me jovem e agradvel vista. Em suma, o meu no olhar pressupe que eu

    esteja pensando naquela nudez, que me preocupe com ela, e isto , no fundo, ainda

    uma atitude indiscreta e retrgrada.

    Voltando de seu passeio, Palomar passa de novo em frente banhista, e desta vez

    tem o olhar fixo diante de si, de modo que este aflore com uniformidade equnime a

    espuma das ondas que se retraem, os cascos dos barcos puxados para o seco, o lenol

    de espuma estendido sobre a areia, a lua transbordante de pele mais clara com o halo

    moreno do mamilo e o perfil da costa no embaciamento da distncia, acinzentada

    contra o cu.

    Muito bem, reflete, satisfeito consigo mesmo, prosseguindo o caminho, consegui

    fazer com que o seio fosse absorvido completamente na paisagem, e tambm que meu

    olhar no pesasse mais que o olhar de uma gaivota ou de um peixe.

    Mas ser realmente justo proceder assim?, reflete ainda, ou no passa de um

    achatamento da pessoa humana ao nvel das coisas consider-la um objeto, e o que

    pior, considerar objeto aquilo que na pessoa especfico do sexo feminino? No

  • estarei talvez perpetuando o velho hbito da supremacia masculina, endurecida com o

    passar dos anos numa insolncia consuetudinria?

    Volta e torna a voltar sobre seus passos. Ora, ao fazer com que seu olhar deslize

    sobre a praia com objetividade imparcial, procede de maneira que, mal o seio da moa

    penetre em seu campo de vista, perceba-se uma descontinuidade, um desvio, quase

    um sobressalto. O olhar avana at quase aflorar a pele estendida, retrai-se, como que

    avaliando com um leve estremecimento a consistncia diversa da viso e o valor

    especial que essa adquire, e por um momento permanece a meia altura, descrevendo

    uma curva que acompanha o relevo do seio a uma certa distncia, elusivamente mas

    tambm protetoramente, para depois retomar seu curso como se nada houvesse

    acontecido.

    Creio que assim minha posio se manifestar bem clara, pensa Palomar, sem

    mal-entendidos possveis. Mas esse sobrevoo do olhar no poderia afinal de contas ser

    compreendido como uma atitude de superioridade, uma supervalorizao daquilo que

    um seio e significa, um modo de mant-lo de certa maneira parte, margem ou

    entre parntesis? Eis que ento volto a relegar o seio penumbra em que o

    mantiveram durante sculos a pudiccia sexomanaca e a concupiscncia como

    pecado...

    Essa interpretao vai contra as melhores intenes de Palomar, que embora

    pertencendo a uma gerao madura, para a qual a nudez do peito feminino se

    associava ideia de uma intimidade amorosa, aceita de maneira favorvel essa

    mudana nos costumes, seja pelo que isso representa como reflexo de uma

    mentalidade mais aberta na sociedade, seja porque tal vista lhe resulte particularmente

    agradvel. esse encorajamento desinteressado que gostaria de exprimir em seu olhar.

    Faz meia-volta. Em passos decisivos avana mais uma vez em direo moa

    estendida ao sol. Agora o seu olhar, lambendo voluvelmente a paisagem, deter-se- no

    seio com especial cuidado, mas apressando-se em envolv-lo num impulso de

    benevolncia e gratido por tudo, pelo sol e o cu, pelos pinheiros recurvos e a duna

    e a areia e os escolhos e as nuvens e as algas, pelo cosmo que gira em torno daquelas

    cspides aureoladas.

    Isso deveria bastar para tranquilizar devidamente a banhista solitria e desobstruir o

    campo das ilaes desviadoras. Porm, mal ele volta a aproximar-se, eis que a moa se

    levanta de um salto, cobre-se, e esbaforida afasta-se com um aborrecido sacudir de

    ombros como se fugisse das insistncias molestas de um stiro.

    O peso morto de uma tradio de maus costumes impede-a de apreciar em seu

    justo mrito as intenes mais esclarecidas, conclui amargamente Palomar.

  • A espada do sol

    O reflexo no mar se forma quando o sol descamba: um brilho ofuscante se estende

    do horizonte at a costa, feito de uma infinidade de cintilaes que ondulam; entre

    uma cintilao e outra, o azul opaco do mar escurece a sua rede. As barcas brancas

    tornam-se negras contra a luz, perdem consistncia e extenso, como que consumidas

    por aquele pontilhado resplendente.

    a hora em que o senhor Palomar, homem tardio, pratica sua natao vespertina.

    Entra na gua, afasta-se da praia, e o reflexo do sol se torna uma espada cintilante na

    gua que do horizonte se prolonga at ele. O senhor Palomar nada na espada ou,

    melhor dizendo, a espada permanece sempre diante dele, retraindo-se a cada uma de

    suas braadas e jamais se deixando alcanar. Por todo o espao em que ele estende os

    braos, o mar adquire seu opaco tom vespertino, que se alonga at a praia atrs dele.

    Enquanto o sol desce para o ocaso, o reflexo branco incandescente se colore de

    ouro e de cobre. E seja onde for que o senhor Palomar se coloque, o vrtice daquele

    tringulo agudo e dourado ele; a espada o segue, indicando-o como um ponteiro de

    relgio que tivesse por eixo o sol.

    uma homenagem pessoal que o sol me presta, tentado a pensar o senhor

    Palomar, ou melhor, o eu egocntrico e megalmano que nele habita. Mas o eu

    depressivo e autopunitivo que coabita com o outro no mesmo contentor objeta:

    Todos os que tm olhos veem o reflexo que os segue; a iluso dos sentidos e da

    mente os mantm sempre prisioneiros. Um terceiro condmino intervm, um eu mais

    equnime: Quer dizer que, seja como for, fao parte dos indivduos que sentem e

    pensam, capazes de estabelecer uma relao com os raios solares, e de interpretar e

    avaliar as percepes e as iluses.

    Todo banhista que a esta hora nade em direo ao poente v a nesga de luz que se

    dirige para ele e que se extingue pouco alm do ponto a que sua braada o leva: cada

    um deles tem o seu reflexo, que s para ele tem aquela direo e se desloca com ele.

    De ambos os lados do reflexo, o azul da gua mais escuro. Ser esse o nico dado

    no ilusrio, comum a todos, a escurido?, indaga-se o senhor Palomar. Mas a espada

    se impe igualmente aos olhos de cada um deles, no h como fugir dela. O que

    temos em comum ser justo aquilo que dado a cada um como exclusivamente seu?

    As pranchas a vela deslizam na gua, cortando com abordagens oblquas o vento de

    terra que se ergue a esta hora. Figuras eretas mantm a retranca com braos esticados

    como arqueiros, contendo o ar que estaleja contra a tela. Quando atravessam o reflexo

  • eis que, em meio ao ouro que as envolve, as cores da vela se atenuam e como se o

    perfil dos corpos opacos entrasse na noite.

    Tudo isso acontece no no mar, nem no sol, pensa o nadador Palomar, mas

    dentro de minha cabea, nos circuitos entre os olhos e o crebro. Estou nadando em

    minha mente; apenas ali que existe esta espada de luz; e o que me atrai

    precisamente isto. Este o meu elemento, o nico que poderei de certa forma

    conhecer.

    Mas pensa tambm: No posso alcan-la, est sempre alm, no pode ser ao

    mesmo tempo algo dentro de mim e algo em que eu nado, se a vejo permaneo fora

    dela e ela permanece fora.

    Suas braadas comeam a ficar mais difceis e incertas: dir-se-ia que todo o seu

    raciocnio, em vez de aumentar-lhe o prazer de nadar no reflexo, o estivesse

    deprimindo, como que o fazendo sentir nisso um limite, ou uma culpa, ou uma

    condenao. E tambm uma responsabilidade a que no pode fugir: a espada existe s

    porque ele est ali; se ele fosse embora, se todos os banhistas voltassem para a praia,

    ou simplesmente virassem as costas ao sol, onde acabaria a espada? Do mundo que se

    desfaz, o que gostaria de salvar a coisa mais frgil: aquela ponte marinha entre seus

    olhos e o sol poente. O senhor Palomar j no tem vontade de nadar; est com frio.

    Contudo, continua: agora tem que ficar na gua para que o sol no desaparea.

    Ento pensa: Se vejo e penso e nado no reflexo, porque no outro extremo est o

    sol lanando seus raios. S conta a origem do que : algo que meu olhar no pode

    suster seno de forma atenuada como neste entardecer. Todo o resto reflexo entre

    reflexos, inclusive eu.

    Passa o fantasma de uma vela; a sombra do homem-rvore desliza entre as escamas

    luminosas. Sem o vento, essa geringona que funciona graas a uns ns de plstico,

    ossos e tendes humanos, escotas de nilon, no se manteria de p; o vento que faz

    dela uma embarcao que parece dotada de uma finalidade prpria e de um intuito;

    s o vento que sabe para onde vai a prancha e o surfista, pensa ele. Que alvio se

    conseguisse anular seu eu parcial e duvidoso na certeza de um princpio do qual tudo

    deriva! Um princpio nico e absoluto do qual tm origem os atos e as formas? Ou

    antes um certo nmero de princpios distintos, linhas de fora que se entrecruzam

    dando uma forma ao mundo tal como ele aparece, nico, instante por instante?

    ...o vento e tambm, est implcito, o mar, a massa de gua que sustenta os slidos

    que boiam e flutuam, como eu e a prancha, pensa o senhor Palomar bancando o

    morto.

    Seu olhar voltado para cima contempla agora as nuvens vagantes e as colinas

    nebulosas dos bosques. Seu eu tambm est ao revs nos elementos: o fogo celeste, o

    ar que corre, a gua que bera e a terra que sustenta. Seria isso a natureza? Mas nada

    do que v existe na natureza: o sol no se pe, o mar no tem aquela cor, as formas

    no so as que a luz projeta na retina. Com movimentos inaturais das articulaes ele

    flutua entre os espectros; lastros humanos em posies inaturais deslocando seu peso

    desfrutam no o vento mas a abstrao geomtrica de um ngulo entre o vento e a

  • inclinao de um maquinismo artificial, e assim resvalam na pele lisa do mar. A

    natureza no existe?

    O eu flutuante do senhor Palomar est imerso num mundo desincorporado,

    intersees de campos de foras, diagramas vetoriais, feixes de retas que convergem,

    divergem, se refrangem. Mas dentro dele permanece um ponto onde tudo existe de

    outro modo, como um n, um cogulo, um obstculo: a sensao de que est aqui mas

    poderia no estar, num mundo que poderia no ser mas .

    Uma onda intrusa turva o mar liso; um barco a motor irrompe e segue alm

    expandindo um cheiro de combustvel e soerguendo a barriga chata. O vu de reflexos

    untuosos e cambiantes do combustvel se desfaz flutuando dentro da gua; aquela

    consistncia material que desaparece no ofuscamento do sol no pode ser posta em

    dvida por esse trao da presena fsica do homem, que asperge sua esteira de perdas

    de combustvel, resduos no assimilveis, misturando e multiplicando a vida e a morte

    em torno de si.

    Este o meu hbitat, pensa Palomar, e no uma questo de aceit-lo ou exclu-

    lo, pois s neste meio posso existir. Mas e se a sorte da vida sobre a terra j tivesse

    sido traada? Se a corrida em direo morte se tornasse mais forte do que qualquer

    possibilidade de recuperao?

    A onda escorre, vagalho solitrio, at no alcanar mais a praia; e o que parecia

    ser apenas areia, cascalho, algas e minsculas conchas de crustceos, com a retirada

    da gua agora se revela um limbo de praia constelado de frascos, caroos,

    preservativos, peixes mortos, garrafas de plstico, sandlias rasgadas, seringas,

    manchas negras de leo.

    Arrastado tambm pela onda do barco a motor, envolvido pela mar de escrias, o

    senhor Palomar de sbito se sente detrito entre os detritos, cadver rolado sobre as

    praias-imundcies dos continentes-cemitrios. Se nenhum outro olhar, a no ser o olhar

    vidrado dos mortos, se abrisse sobre a superfcie do globo terrestre, a espada no

    tornaria mais a brilhar.

    Pensando bem, tal situao no nova: j durante milhes de sculos os raios de

    sol pousaram sobre a gua antes que existissem olhos capazes de recolh-los.

    O senhor Palomar nada embaixo da gua; emerge; eis a espada! Um dia um olho

    saiu do mar, e a espada, que j estava ali sua espera, pde finalmente ostentar toda

    a esbelteza de sua ponta aguda e seu fulgor cintilante. Tinham sido feitos um para o

    outro, a espada e o olho: e talvez no tenha sido o nascimento do olho que tenha feito

    nascer a espada, mas vice-versa, porque a espada no podia recusar um olho que a

    observasse de seu vrtice.

    O senhor Palomar pensa no mundo sem ele: aquele inexistente de antes de seu

    nascimento, e aquele bem mais escuro de depois de sua morte; procura imaginar o

    mundo antes dos olhos, de qualquer olho; e o mundo que amanh por uma catstrofe

    ou lenta corroso se torne cego. O que ocorreria (ocorre, ocorrer) naquele mundo?

    Pontual, um dardo de luz parte do sol, reflete-se no mar calmo, cintila no tremular da

    gua, e eis que a matria se torna receptiva luz, diferencia-se dos tecidos vivos, e de

  • repente um olho, uma multido de olhos floresce, ou refloresce...

    Agora todas as pranchas de surfe esto estiradas sobre a praia e at mesmo o

    ltimo banhista tiritante de nome Palomar sai da gua. Est convencido de que a

    espada existir mesmo sem ele: finalmente enxuga-se com uma toalha de banho e

    volta para casa.

  • PALOMAR NO JARDIM

    Os amores das tartarugas

    H duas tartarugas no ptio: macho e fmea. Slack! Slack! As carapaas se chocam

    uma contra a outra. a poca dos amores. O senhor Palomar, sem ser visto, espia.

    O macho aborda a fmea pelo lado, contornando o realce do degrau. A fmea

    parece resistir ao ataque, ou pelo menos lhe ope uma imobilidade um tanto inerte. O

    macho menorzinho e mais ativo; dir-se-ia mais jovem. Tenta insistentemente mont-

    la, mas o dorso da carapaa dela est descido e ele escorrega.

    Agora parece que conseguiu colocar-se na posio correta: arremete em golpes

    rtmicos, pausados; a cada investida emite um arquejo, quase um grito. A fmea est

    com as patas anteriores aplacadas contra o solo, o que a leva a erguer a parte traseira.

    O macho braceja com as patas dianteiras sobre a carapaa dela, esticando o pescoo

    para a frente, estendendo-se com a boca aberta. O problema dessas carapaas que

    no h onde agarrar-se, e alm do mais as patas no tm poder de apreenso.

    Agora ela se lhe esquiva, ele a persegue. No que ela seja mais veloz nem muito

    decidida a escapar: ele, para det-la, d pequenas mordidas numa das patas, sempre

    na mesma. Ela no se rebela. O macho, toda vez que ela para, tenta mont-la, mas ela

    d um pequeno passo para a frente e ele escorrega e bate com o membro no cho.

    um membro bastante longo, em formato de gancho, com o qual se diria que ele tenta

    alcan-la mesmo se a espessura das carapaas e a posio incmoda os separam.

    Assim no se pode dizer quantos desses avanos chegam a bom termo, quantos

    fracassam, quantos so apenas brincadeira, encenao.

    vero, o ptio est deserto, s h um jasmineiro verde num canto. A corte consiste

    em fazer vezes sem conta a volta ao canteirinho, com perseguies e fugas e

    entreveros no com as patas mas com as carapaas, que se entrechocam com um

    estalido surdo. Entre os troncos do jasmineiro que a fmea procura intrometer-se; cr

    ou quer fazer crer que faz isso para esconder-se; mas na verdade essa a

    maneira mais segura de ficar bloqueada pelo macho, imobilizada sem sada. possvel

    que agora ele tenha conseguido introduzir o membro como se deve; mas desta vez

    esto os dois paradinhos, em silncio.

    Quais so as sensaes de duas tartarugas que se acasalam, algo que a

    imaginao do senhor Palomar no consegue apreender. Ele as observa com fria

    ateno, como se se tratasse de duas mquinas: duas tartarugas eletrnicas

  • programadas para se acasalarem. Como ser o eros se em lugar da pele temos lminas

    de osso e escamas de chifre? Mas no ser talvez aquilo a que chamamos eros um

    programa de nossas mquinas corpreas, mais complexo porque a memria recolhe as

    mensagens de todas as clulas cutneas, de todas as molculas dos nossos tecidos e as

    multiplica combinando-as com os impulsos transmitidos pela vista e aqueles suscitados

    pela imaginao? A diferena est apenas no nmero de circuitos envolvidos: de

    nossos receptores partem milhares de fios, ligados ao computador dos sentimentos,

    dos condicionamentos, dos vnculos entre as pessoas... O eros um programa que se

    desenvolve nos emaranhados eletrnicos da mente, mas a mente tambm pele: pele

    tocada, vista, recordada. E as tartarugas, encerradas em seu estojo insensvel? A

    penria de estmulos sensoriais as obriga a uma vida mental concentrada, intensa,

    leva-as a um conhecimento interior cristalino... Talvez o eros das tartarugas siga leis

    espirituais absolutas, enquanto ns estamos prisioneiros de um mecanismo que no

    sabemos como funciona, sujeito a obstrues e a entraves, a se desencadear em

    automatismos sem controle...

    Ser que as tartarugas se entendem melhor que ns? Aps uns dez minutos de

    acasalamento, as duas carapaas se desprendem. Ela na frente, ele atrs, voltam a

    girar em redor do canteiro. Ora o macho permanece mais destacado, vez por outra

    gesticula com uma patada sobre a carapaa dela, sobe-lhe um pouco em cima, mas

    sem muita convico. Voltam para debaixo do jasmineiro. Ele lhe morde um pouco

    uma das patas, sempre no mesmo ponto.

  • O assovio do melro

    O senhor Palomar tem esta sorte: passa o vero num lugar onde cantam muitos

    pssaros. Enquanto se estende numa espreguiadeira e trabalha (na verdade tem

    ainda outra sorte: a de poder dizer que trabalha em locais e ambientes que se diriam

    do mais absoluto repouso; ou, melhor dizendo, est condenado a sentir-se obrigado a

    no deixar de trabalhar, mesmo quando repousa sob as rvores numa manh de

    vero), os pssaros invisveis entre os ramos despejam em torno dele um repertrio

    das mais variadas manifestaes sonoras, envolvem-no num espao acstico irregular

    e descontnuo, anfractuoso, mas no qual o equilbrio se estabelece entre os vrios

    sons, nenhum deles se elevando sobre os outros em intensidade ou frequncia, e todos

    soando num intrincado homogneo, mantido em conjunto no pela harmonia mas pela

    leveza e transparncia. De modo que na hora mais clida a multido feroz dos insetos

    no impe seu domnio absoluto sobre as vibraes do ar ocupando sistematicamente

    as dimenses do tempo e do espao com o martelar ensurdecedor e ininterrupto das

    cigarras.

    O canto dos pssaros ocupa uma parte varivel na ateno auditiva do senhor

    Palomar: ora ele se afasta como um componente do silncio de fundo, ora se

    concentra como que distinguindo-os trinado por trinado, reagrupando-os em

    categorias de complexidade crescente: chilreios puntiformes, trilados de duas notas,

    uma breve uma longa, trucilares curtos e vibrteis, chamarizes, cascatas de notas que

    vm em escala decrescente e se interrompem, caracis de modulaes que se curvam

    sobre si mesmas, e assim por diante at chegar aos gorjeios.

    O senhor Palomar no chega a uma classificao menos genrica: no daqueles

    que sabem, ouvindo um trinado, reconhecer a que pssaro pertence. Sente essa sua

    ignorncia como se fosse uma culpa. O novo saber que o gnero humano vem

    adquirindo no suplanta o saber que se propaga simplesmente pela transmisso direta

    e oral e uma vez perdido no se pode mais readquiri-lo e retransmiti-lo: nenhum livro

    pode ensinar aquilo que s se pode aprender na infncia ao se prestar ouvidos e

    olhos atentos ao canto e ao voo dos pssaros e se houver ali algum que saiba o

    nome deles. Ao culto da preciso nomenclatria e classificatria, Palomar havia

    preferido a perseguio contnua de uma preciso insegura para definir a modulao,

    a cambiante, o compsito: ou seja, o indefinvel. Agora faria ento a escolha oposta, e

    seguindo o fio dos pensamentos despertados pelo canto dos pssaros sua vida

    pareceu-lhe uma sequncia de ocasies falhadas.

  • Entre todos os cantos de pssaros destaca-se o assovio do melro, mais inconfundvel

    que qualquer outro. Os melros chegam j com a tarde avanada: so dois, decerto um

    casal, talvez o mesmo do ano passado, de todos os anos nesta mesma poca. Toda

    tarde, ao ouvir um assovio de chamamento, como algum que quisesse assinalar sua

    chegada, o senhor Palomar ergue a cabea para procurar em torno quem o chama:

    depois se recorda de que est na hora dos melros. No tarda a avist-los: caminham

    sobre o gramado como se sua verdadeira vocao fosse de bpedes terrestres e se

    divertissem em estabelecer uma analogia com o homem.

    O assovio dos melros tem isto de especial: idntico a um assovio humano, de

    qualquer um que no seja particularmente hbil em assoviar mas que esteja diante de

    um bom motivo para assoviar, uma vez ou outra ou apenas uma vez, sem intenes

    de continuar, e o faa com um tom decidido mas modesto e afvel, como que para

    assegurar-se da benevolncia de quem o escuta.

    Pouco depois o assovio repetido pelo mesmo melro ou pelo cnjuge mas

    sempre como se fosse a primeira vez que lhe viesse mente assoviar; se um dilogo,

    cada toque ocorre depois de uma longa reflexo. Mas, trata-se de um dilogo, ou cada

    melro canta para si e no para o outro? E, num caso ou noutro, trata-se de perguntas e

    respostas (ao outro ou a si mesmo) ou de confirmar algo que sempre a mesma coisa

    (a prpria presena, a atribuio espcie, ao sexo, ao territrio)? Talvez o valor

    daquela nica palavra esteja no fato de ser repetida por um outro bico assoviante, de

    no ser esquecida durante o intervalo de silncio.

    Ou, quem sabe, todo o dilogo consiste em dizer alto estou aqui, e a extenso das

    pausas acrescente frase o significado de um ainda, como se dissesse: ainda estou

    aqui, sou eu mesmo que aqui estou. E se estiver na pausa e no no assovio o

    significado da mensagem? Se for no silncio que os melros se falam? (O assovio seria

    neste caso um sinal de pontuao, uma frmula como dito, cmbio.) Um silncio, na

    aparncia igual a outro silncio, poderia exprimir cem intenes diversas; at mesmo

    um assovio; falar calando-se, ou assoviando, sempre possvel; o problema

    entender-se. Ou melhor, ningum pode entender ningum: cada melro acredita haver

    posto no assovio um significado fundamental para ele mas que s ele entende; o outro

    lhe contesta algo que no tem nenhuma relao com aquilo que ele disse; um

    dilogo de surdos, uma conversa sem p nem cabea.

    Mas sero os dilogos humanos diferentes em algo? A senhora Palomar tambm est

    no jardim, regando as plantas. E diz: L esto eles, enunciao pleonstica

    (subentende-se que o marido j esteja olhando para os melros) ou de outra forma (se

    ele no os houvesse visto) incompreensvel, mas mesmo assim destinada a estabelecer

    a prpria prioridade na observao dos melros (porque efetivamente fora ela a

    primeira a descobri-los e apontar seus hbitos ao marido) e a sublinhar a infalibilidade

    de seu aparecimento, j tantas vezes registrado por ela.

    Psiu, diz o senhor Palomar, aparentemente para impedir que a mulher os espante

    falando em voz alta (recomendao intil porque os melros marido e mulher j esto

    habituados com a sua presena e com as vozes dos senhores Palomar marido e

  • mulher), mas na realidade para contestar a vantagem da mulher demonstrando uma

    solicitude para com os melros muito maior que a dela.

    Ento a senhora Palomar diz: Reguei-o ontem e j est seco, referindo-se terra

    do canteiro que est regando, comunicao em si suprflua, mas destinada a

    demonstrar, enquanto ela continua falando e mudando de assunto, uma confidncia

    para com os melros muito maior e mais desenvolta que a do marido. Todavia, com

    essas sondagens o senhor Palomar obtm um quadro geral de tranquilidade, e graas

    mulher, porque se ela lhe confirma que no h no momento nada de mais grave com

    que se preocupar, ele pode manter-se absorto em seu trabalho (ou pseudotrabalho ou

    hipertrabalho). Deixa passar um minuto e tambm ele lana uma mensagem

    tranquilizadora, para informar a mulher de que seu trabalho (ou subtrabalho ou

    ultratrabalho) avana como de hbito: com esse intuito, ele emite uma srie de

    bufados e resmungos ...por engano... apesar de que... do princpio... sim, uma ova...

    , enunciaes que juntas transmitem igualmente a mensagem estou muito

    ocupado, no caso de a ltima interveno da mulher encerrar tambm uma

    reprovao larvar do tipo: voc podia pensar tambm em me ajudar a regar a horta.

    O pressuposto dessas trocas verbais a ideia de que um entendimento perfeito

    entre cnjuges lhes permite compreenderem-se sem a necessidade de estarem ali

    especificando tudo tim-tim por tim-tim; mas este princpio posto em prtica de

    maneira muito diversa pelos dois: a senhora Palomar se exprime por meio de frases

    completas mas quase sempre alusivas ou sibilinas, para pr prova a agilidade de

    associaes mentais do marido e a sintonia dos pensamentos dele com os dela (coisa

    que nem sempre funciona); o senhor Palomar ao contrrio deixa que das brumas de

    seu monlogo interior elevem-se esparsos sons articulados, confiando que deles

    resulte, se no a evidncia de um sentido completo, pelo menos o claro-escuro de um

    estado de nimo.

    A senhora Palomar por outro lado se recusa a receber esses balbucios como um

    discurso, e para sublinhar sua no participao diz em voz baixa: Psiu...! Vai espant-

    los..., devolvendo ao marido a imposio de silncio que ele se achava no direito de

    impor-lhe e reconfirmando seu prprio primado relativamente ateno aos melros.

    Tendo marcado esse seu ponto de vantagem, a senhora Palomar se afasta. Os

    melros ficam ciscando no gramado e certamente considerando o dilogo entre os

    cnjuges Palomar como o equivalente de seus prprios assovios. Dava no mesmo se

    nos limitssemos a assoviar, pensa ele. Aqui se abre uma perspectiva de pensamento

    muito promissora ao senhor Palomar, para quem a discrepncia entre o

    comportamento humano e o resto do universo sempre foi uma fonte de angstia. O

    assovio igual do homem e do melro algo que lhe parece uma ponte atirada sobre o

    abismo.

    Se o homem investisse no assovio tudo o que normalmente atribui palavra, e se o

    melro modulasse no assovio todo o no dito de sua condio de ser natural, eis que

    estaria assim realizado o primeiro passo para preencher a separao entre... entre o

    que e o qu? Natureza e cultura? Silncio e palavra? O senhor Palomar espera sempre

  • que o silncio contenha algo alm daquilo que a linguagem pode expressar. Mas e se

    a linguagem fosse na verdade o ponto de chegada a que tende tudo o que existe? Ou

    se tudo o que existe fosse linguagem, j desde o princpio dos tempos? Neste ponto o

    senhor Palomar tomado pela angstia.

    Depois de ter ouvido com ateno o assovio do melro, tenta repeti-lo, to fielmente

    quanto possvel. Segue-se um silncio perplexo, como se sua mensagem requeresse

    um exame atento; depois, um assovio igual ecoa, e o senhor Palomar no sabe se

    uma resposta a ele ou a prova de que seu assovio de tal forma diferente que os

    melros nem se perturbaram com ele e retomaram o dilogo entre si como se nada

    tivesse acontecido.

    Continuam a assoviar e a interrogar-se perplexos, ele e os melros.

  • O gramado infinito

    Em volta da casa do senhor Palomar existe um gramado. No se trata do lugar onde

    normalmente deveria haver um gramado: portanto o gramado um objeto artificial,

    composto de objetos naturais, ou seja, de grama. O gramado tem por finalidade

    representar a natureza, e essa representao acaba por substituir a natureza prpria

    do lugar por uma natureza em si natural mas artificial em relao ao lugar. Em suma:

    custa; o gramado requer labutas sem termo: para seme-lo, reg-lo, adub-lo,

    desinfet-lo, apar-lo.

    O gramado se compe de relva, mato e trevo. Esta a mistura em partes iguais que

    foi espalhada sobre o terreno no momento da semeadura. A relva, an e rastejante,

    logo se imps: seu tapete de folhinhas curvas e fofas alastrou-se, agradvel aos ps e

    vista. Mas a espessura do gramado determinada pelas lanas afiadas do joio, quando

    no so muito ralas e quando no se deixa que cresam muito sem dar-lhes uma

    aparadela. O trevo surge irregularmente, aqui um tufozinho, ali nada, l na frente um

    monto; cresce vioso at afrouxar-se, pois a hlice da folha pesa em cima do raminho

    tenro e o arqueia. O cortador de grama procede com um tremido ensurdecedor

    tonsura; um suave odor de feno fresco inebria o ar; a grama nivelada reencontra a sua

    infncia hspida; mas a mordida das lminas revela descontinuidade, clareiras peladas

    aqui e acol, manchas amareladas.

    Um gramado, para fazer boa figura, deve ser uma extenso verde uniforme:

    resultado inatural que naturalmente conseguem os prados produzidos pela natureza.

    Aqui, observando-se ponto por ponto, descobre-se aonde o esguicho giratrio de regar

    no chega, e onde ao contrrio a gua incide em jatos contnuos e apodrece as razes,

    e como as ervas daninhas se aproveitam dessa irrigao inadequada.

    O senhor Palomar est arrancando as ervas, de ccoras no gramado. Um dente-de-

    leo adere-se ao terreno com um embasamento de folhas denteadas fixamente

    sobrepostas; se puxamos o caule, ele nos fica entre as mos enquanto as razes

    permanecem enterradas no solo. necessrio, com um movimento ondulante da mo,

    apossar-se de toda a planta e desenredar com delicadeza as barbelas da terra, s vezes

    arrancando junto torres inteiros e minguados fios de grama meio sufocados pelo

    vizinho invasor. Depois deve-se atirar o intruso num lugar onde no possa refazer as

    razes nem espalhar as sementes. Quando se comea por erradicar uma gramnea,

    logo se v apontar outra, e mais outra, e outra mais. Em suma, aquela fmbria de

    tapete herboso que s parecia requerer uns poucos retoques revela-se uma selva

  • incontrolvel.

    S restam ervas? Pior ainda: as ervas ms se misturam com tanta densidade s boas

    que no se pode simplesmente meter-lhes a mo e arranc-las. Parece que um acordo

    cmplice se estabeleceu entre as ervas de semeadura e as do mato, um levantamento

    das barreiras impostas pela disparidade de nascimento, uma tolerncia resignada para

    a degradao. Algumas ervas espontneas, em si ou por si, no tm de fato uma

    aparncia malfica ou insidiosa. Por que no admiti-las no nmero daquelas que

    pertencem ao gramado com pleno direito, integrando-as na comunidade das

    cultivadas? este o raciocnio que leva a deixar-se de lado o gramado ingls e voltar-

    se para o gramado rstico, abandonado a si mesmo. Mais cedo ou mais tarde

    teremos que decidir dessa escolha, pensa o senhor Palomar, mas lhe parece no se

    tratar de fato de uma questo de honra. Uma chicria, uma borragem surgem em seu

    campo visual. Ele as arranca.

    Certamente, arrancar uma erva daninha aqui e outra ali no resolve nada. Seria

    necessrio proceder da seguinte forma, pensa ele, tomar um quadrado do gramado,

    de um metro por um metro, e extirp-lo at da mais nfima presena que no seja

    grama, joio ou trevo. Depois passar a outro quadrado. Ou melhor, no; ficar naquele

    quadrado de amostragem. Contar quantos fios de erva existem, verificar de que

    espcies so, qual sua densidade e como se distribuem. Com base nesse clculo se

    chegar a um conhecimento estatstico do gramado, estabilidade que...

    Mas contar os fios de erva intil, jamais se chegar a saber quantos so. Um

    gramado no possui limites; h uma extremidade em que a grama deixa de crescer,

    mas mesmo assim alguns fios apontam aqui e ali, depois uma gleba verde densa,

    depois uma faixa mais rala: fazem parte ainda do gramado ou no? Mais alm a

    vegetao rala invade o gramado: no se pode dizer o que gramado e o que moita.

    Mas mesmo ali onde s h erva, no se sabe nunca em que ponto se deve parar de

    contar: entre uma plantinha e outra h sempre um rebento folicular que mal aflora da

    terra e cujas razes so um pelo branco que quase no se v; um minuto antes

    poderamos deix-lo de lado mas logo teramos que contar tambm ele. J aqueles

    dois fios que havia pouco pareciam apenas um tanto amarelados, eis que agora esto

    totalmente emurchecidos, e teramos de exclu-los da contagem. Alm disso, existem as

    fraes de fios de erva, truncados pela metade, ou rentes ao solo, ou lacerados ao

    longo das nervuras, as folhinhas que perderam um lbulo... Os decimais somados no

    formam um nmero inteiro, resta uma diminuta devastao herbcea, em parte ainda

    vivente, em parte j podre, alimento de outras plantas, hmus...

    O gramado um conjunto de ervas, fica assim colocado o problema, que inclui

    um subconjunto de ervas cultivadas e um subconjunto de ervas espontneas ditas

    daninhas; uma interseo dos dois subconjuntos constituda pelas ervas nascidas

    espontaneamente mas que pertencem a espcies cultivadas e portanto indistinguveis

    dessas. Os dois subconjuntos por sua vez incluem as vrias espcies, cada uma das

    quais um subconjunto ou, melhor dizendo, um conjunto que inclui o subconjunto de

    seus prprios componentes que pertencem, no entanto, ao gramado, e o subconjunto

  • dos exteriores ao gramado. Sopra o vento, voam as sementes e os polens, as relaes

    entre os conjuntos se transtornam...

    Palomar j passou para outro curso de pensamentos: ser o gramado aquilo que

    vemos ou vemos antes uma erva e mais outra e mais outra...? Aquilo que designamos

    como ver o gramado apenas o efeito de nossos sentidos aproximativos e

    grosseiros; um conjunto existe somente quando formado por elementos distintos. No

    se trata de cont-los, o nmero no importa; o que importa fixar com um nico

    golpe de vista as plantinhas individuais uma por uma, em suas particularidades e

    diferenas. E no apenas v-las: pens-las. Em vez de pensar o gramado, pensar

    naquela haste com duas folhas de trevo, naquela folha lanceolada um tanto curva,

    naquele corimbo delicado...

    Palomar distraiu-se, no arranca mais as ervas, no pensa mais no gramado: pensa

    no universo. Est tentando aplicar ao universo tudo o que pensou a respeito do

    gramado. O universo como cosmo regular e ordenado ou como proliferao catica. O

    universo, talvez finito mas inumervel, instvel em seus limites, que abre dentro de si

    outros universos. O universo, conjunto de corpos celestes, nebulosas, poeira de

    estrelas, campos de fora, intersees de campos, conjuntos de conjuntos...

  • PALOMAR CONTEMPLA O CU

    Lua do entardecer

    Ningum observa a lua do entardecer, e no entanto nesse momento que o nosso

    interesse por ela seria mais necessrio, j que sua existncia encontra-se ainda em

    estado de expectativa. uma sombra esbranquiada que aflora do azul intenso do

    cu, carregado ainda de luz solar; quem nos assegura que ainda desta vez ir adquirir

    forma e luminosidade? Parece to frgil e plida e sutil; s numa parte comea a

    adquirir um contorno ntido como um arco de foice, enquanto todo o resto permanece

    ainda embebido no azul-celeste. como uma hstia transparente, ou uma pastilha

    meio dissolvida; s que o crculo branco no est se desfazendo mas se condensando,

    aglomerando a custo as manchas e sombras cinzentas azuladas que no se sabe se

    pertencem geografia lunar ou so babas do cu que ainda empapam o satlite

    poroso como se fosse uma espuma.

    Nesta fase o cu ainda algo de muito compacto e concreto, e no se pode estar

    seguro de que seja de sua superfcie tesa e ininterrupta que se esteja destacando

    aquela forma redonda e alvacenta, de consistncia apenas um pouco mais slida que

    as nuvens, ou se, ao contrrio, se trata de uma corroso do tecido de fundo, um

    desmalhe da cpula, uma brecha que se abre sobre o nada que lhe fica por trs. A

    incerteza acentuada pela irregularidade da figura que de uma parte est adquirindo

    relevo (onde mais lhe chegam os raios do sol poente) e de outra se demora numa

    espcie de penumbra. E como os limites entre as duas zonas no so ntidos, o efeito

    que disso resulta no o de um slido visto em perspectiva mas antes o de uma

    daquelas figurinhas de lua dos calendrios, em que o perfil branco se destaca dentro

    de um crculo escuro. A isto nada haveria certamente que se objetar, se se tratasse de

    uma lua crescente e no de uma lua toda ou quase cheia. Tal como esta na verdade

    est se revelando, tanto assim que seu contraste com o cu se torna cada vez mais

    forte e sua circunferncia vai adquirindo um desenho mais ntido, apenas com alguns

    achatamentos na borda do nascente.

    necessrio dizer que o azul do cu foi passando sucessivamente do pervinca para

    o violeta (os raios do sol se tornaram rubros), depois para o acinzentado e para o

    pardo, sem que a brancura da lua deixasse de receber sempre um empuxo cada vez

    mais decidido para que despontasse e em seu interior a parte mais luminosa fosse

    adquirindo extenso at cobrir o disco por completo. como se as fases que ela

  • atravessa durante o ms houvessem repercutido no interior dessa lua cheia ou

    plenilnio, nas horas entre o surgir e o pr-se, com a diferena de que a forma

    redonda permanece mais ou menos toda vista. No meio do crculo as manchas

    continuam, e at mesmo seus claros-escuros se tornam mais contrastantes em relao

    luminosidade do resto; mas agora no h dvida de que a lua que os leva consigo

    como mculas ou equimoses, e j no podemos imagin-los transparncias do fundo

    de cena celestial, rasges no manto de um fantasma de lua sem corpo.

    Antes, o que permanece ainda incerto se este ganho de evidncia e (digamo-lo) de

    esplendor se deve ao lento retraimento do cu que quanto mais se afasta mais se

    aprofunda na obscuridade, ou se ao contrrio a lua que est vindo na frente

    recolhendo a luz inicial dispersa em torno e dela privando o cu porque a concentra

    inteira na boca redonda de seu funil.

    E sobretudo essas mutaes no devem nos fazer esquecer que entrementes o

    satlite caminhou deslocando-se no cu em direo ao poente e para cima. A lua o

    mais mutvel dos corpos do universo visvel, e o mais regular em seus estranhos

    hbitos: jamais falta aos encontros e podemos sempre esper-la de passagem, mas se

    a deixamos num ponto vamos encontr-la em outro, e se lembramos de sua face

    voltada de uma certa maneira, eis que iremos encontr-la mudada, um pouco ou

    muito. Contudo, seguindo-a passo a passo, no nos damos conta de que

    imperceptivelmente ela vai fugindo de ns. S as nuvens intervm para criar a iluso

    de uma corrida e de uma metamorfose rpida, ou melhor, para dar uma vistosa

    evidncia daquilo que de outra forma escaparia ao nosso olhar.

    A nuvem corre, de acinzentada se torna leitosa e lcida, o cu em frente se fez

    negro, noite, as estrelas se acendem, a lua um grande espelho ofuscante que voa.

    Quem reconheceria nela aquela de algumas horas antes? Agora um lago de

    resplandecncia que esguicha raios ao redor e do qual transborda na escurido um

    halo de prata fria, inundando de luz branca as estradas dos notmbulos.

    No h dvida de que uma esplndida noite de plenilnio de inverno se inicia.

    Neste ponto, assegurando-se de que a lua no tem necessidade dele, o senhor Palomar

    regressa a casa.

  • O olho e os planetas

    O senhor Palomar, tendo sabido que este ano durante todo o ms de abril os trs

    planetas externos visveis a olho nu (mesmo por ele, que mope e astigmtico)

    estaro em oposio, portanto visveis por toda a noite, apressa-se em subir ao

    terrao.

    O cu est claro devido lua cheia. Marte, embora vizinho do grande espelho lunar

    inundado de luz branca, pe-se frente imperioso com seu fulgor obstinado, com seu

    amarelo concentrado e denso, diverso de todos os outros amarelos do firmamento, a

    tal ponto que acabamos por concordar em cham-lo vermelho, e nos momentos

    inspirados por v-lo realmente vermelho.

    Descendo com o olhar, seguindo em direo ao nascente um arco imaginrio que

    deveria conjugar Rgulo com Espiga (mas Espiga quase no se v), encontra-se

    Saturno bem distinguvel, de luz branca e frgida, e ainda mais embaixo Jpiter, no

    momento de seu esplendor mximo, de um amarelo vigoroso que tende para o verde.

    As estrelas em torno esto todas ofuscadas, com exceo de Arcturo, que brilha com

    ar de desafio um pouco mais ao alto em direo ao Oriente.

    Para aproveitar ainda mais a tripla oposio planetria, indispensvel munir-se de

    um telescpio. O senhor Palomar, talvez porque tenha o mesmo nome de um

    observatrio famoso, goza de certa amizade entre os astrnomos, e foi-lhe permitido

    aproximar o nariz da ocular de um telescpio de quinze centmetros, ou seja, bastante

    insignificante para a pesquisa cientfica, mas, se comparado aos seus culos, j

    encerrando uma grande diferena.

    Por exemplo, Marte visto ao telescpio se revela um planeta mais perplexo do que

    se afigura quando observado a olho nu: parece que tem muitas coisas para comunicar

    mas s consegue pr em foco uma pequena parte delas, como num discurso

    tartamudeante e tossiquento. Um halo escarlate estende-se em torno da orla; pode-se

    procurar concentr-lo regulando o parafuso, para fazer ressaltar a crostazinha de gelo

    do polo inferior; manchas afloram e desaparecem na superfcie como nuvens ou

    rasges entre as nuvens; uma se estabiliza na forma e na posio da Austrlia, e o

    senhor Palomar se convence de que quanto mais distinta vir essa Austrlia mais a

    objetiva estar em foco, mas ao mesmo tempo se d conta de que est perdendo

    outras sombras de coisas que lhe parecia ver ou se sentia predisposto a ver.

    Em suma parece-lhe que se Marte aquele planeta sobre o qual desde Schiaparelli

    andaram falando tanta coisa, provocando alternncias de iluses e desiluses, isso se

  • deve dificuldade de estabelecer um relacionamento com ele, como com uma pessoa

    de carter difcil. (A menos que a dificuldade de carter no seja inteiramente da parte

    do senhor Palomar: em vo ele procura fugir subjetividade refugiando-se entre os

    corpos celestes.)

    Totalmente diversa a relao que ele estabelece com Saturno, o planeta que mais

    emoes d a quem o observa ao telescpio: ei-lo superntido, branqussimo, exatos os

    contornos da esfera e do anel; uma leve pautao de paralelos zebra a esfera; uma

    circunferncia mais escura separa a borda do anel; este telescpio quase no capta

    outros detalhes e acentua a abstrao geomtrica do objeto; a sensao de uma

    lonjura extrema em vez de atenuar-se ressalta mais que a olho nu.

    O fato de que no cu esteja girando um objeto to diverso dos demais, uma forma

    que conjuga o mximo de estranheza com o mximo de simplicidade e de regularidade

    e de harmonia, alegra a vida e o pensamento.

    Se o pudessem ter visto como agora o vejo, pensa o senhor Palomar, os antigos

    iriam crer que estavam erguendo o olhar para o cu das ideias de Plato, ou o espao

    imaterial dos postulados de Euclides; em vez disso, esta imagem, quem sabe por meio

    de que desvio, chega a mim que temo seja bela demais para ser verdadeira,

    demasiado grata ao meu universo imaginrio para pertencer ao mundo real. Mas

    talvez seja exatamente esta desconfiana em relao aos nossos sentidos que nos

    impede de nos sentirmos vontade no universo. Talvez a primeira regra que devo

    estabelecer seja a seguinte: ater-me quilo que vejo.

    Agora lhe parece que o anel oscila levemente, ou o planeta dentro do anel, e que

    um e outro giram sobre si mesmos; na realidade, a cabea do senhor Palomar que

    gira, obrigado que est a torcer o pescoo para ajustar a vista ocular do telescpio;

    mas procura no desmentir para si mesmo esta iluso que coincide com sua

    expectativa bem como com a verdade natural.

    Saturno de fato assim. Aps a expedio do Voyager 2 o senhor Palomar ps-se a

    acompanhar tudo o que foi escrito a respeito dos anis: que so feitos de partculas

    microscpicas; que so feitos de escolhos de gelo separados por abismos; que as

    divises entre os anis so sulcos nos quais giram os satlites varrendo a matria e

    condensando-a nos lados, como ces de pastor que correm em redor do rebanho para

    mant-lo compacto; acompanhou a descoberta dos anis entrelaados que depois se

    revelaram crculos simples muito mais estreitos; e a descoberta de estrias opacas

    dispostas como raios de uma roda, depois identificadas como nuvens de gelo. Mas as

    novas notcias no desmentiam essa figura essencial, no diversa da que Gian

    Domenico Cassini viu primeiro em 1676 ao descobrir a diviso entre os anis que traz

    seu nome.

    natural que, para a ocasio, uma pessoa diligente como o senhor Palomar tenha

    consultado enciclopdias e manuais. Agora Saturno, objeto sempre novo, se apresenta

    ao seu olhar renovando a maravilha da primeira descoberta e o faz lamentar que

    Galileu com seu culo de alcance fora de foco s houvesse chegado a ter dele uma

    ideia confusa, de corpo trplice ou de esfera com duas ansas, e quando j estava

  • prximo de compreender como era a sua forma a vista lhe fugiu e tudo se precipitou

    na escurido.

    Fixar muito demoradamente um corpo luminoso cansa a vista; o senhor Palomar

    fecha os olhos; passa a Jpiter.

    Em sua mole majestosa mas no grave, Jpiter ostenta duas estrias equatoriais como

    um xale guarnecido de recamos entrelaados, de um verde celestial. Efeitos de

    tempestades atmosfricas pavorosas traduzem-se num desenho ordenado e calmo, de

    elaborada compostura. Mas o verdadeiro disfarce desse planeta luxuoso so os seus

    satlites cintilantes, agora visveis os quatro ao longo de uma linha oblqua, como um

    cetro de joias esplendentes.

    Descobertos por Galileu e por ele nomeados Medicea sidera, astros dos Medici,

    rebatizados pouco depois com nomes ovidianos Io, Europa, Ganimedes, Calisto

    por um astrnomo holands, os pequenos planetas de Jpiter parecem irradiar um

    ltimo fulgor do Renascimento neoplatnico, como se ignorassem que a ordem

    impassvel das esferas celestes se desfez, exatamente por obra de seu descobridor.

    Um sonho de classicismo envolve Jpiter; fixando-o ao telescpio o senhor Palomar

    fica sempre na expectativa de uma transfigurao olmpica. Mas no consegue manter

    a imagem ntida: necessita fechar por um momento as plpebras, deixar que a pupila

    ofuscada reencontre a percepo precisa dos contornos, das cores, das sombras, mas

    tambm deixar que a imaginao se livre dos embaciamentos que no lhe pertencem,

    renuncie a ostentar uma sabedoria livresca.

    Se justo que a imaginao venha em socorro da debilidade visual, deve ser

    instantnea e direta como o olhar que acende. Qual era a primeira semelhana que

    lhe viera mente e que havia descartado por incngrua? Tinha visto o planeta ondular

    com os satlites em fila como bolinhas de ar que se levantam das brnquias de um

    gordo peixe dos abismos, luminescente e estriado...

    * * *

    Na noite seguinte, o senhor Palomar volta para o seu terrao a fim de ver os

    planetas a olho nu: a grande diferena que agora obrigado a levar em conta as

    propores entre o planeta, o resto do firmamento esparso no espao escuro por

    todos os lados e ele que olha, coisa que no ocorre se a relao entre o objeto

    separado planeta posto em foco pela lente e ele sujeito, num ilusrio face a face. Ao

    mesmo tempo ele recorda de cada planeta a imagem detalhada vista na noite anterior

    e procura inseri-la naquela mancha minscula de luz que perfura o cu. Assim espera

    haver se apropriado de fato do planeta, ou pelo menos do quanto de um planeta

    pode entrar em um olho.

  • A contemplao das estrelas

    Quando faz uma bela noite estrelada, o senhor Palomar diz: Devo ir olhar as

    estrelas. Diz assim mesmo: devo, porque odeia os desperdcios e acha que no seria

    justo desperdiar toda aquela quantidade de estrelas que esto sua disposio. Diz

    devo tambm porque no tem muita prtica de como se observam as estrelas, e este

    simples ato lhe custa sempre um certo esforo.

    A primeira dificuldade a de encontrar um lugar de onde a sua vista possa se

    espalhar por toda a cpula do cu sem obstculos e sem a interferncia da iluminao

    eltrica: por exemplo, uma praia solitria numa costa muito baixa.

    Outra condio necessria trazer consigo uma carta astronmica, sem a qual no

    se saberia o que se est olhando; mas reiteradas vezes ele se esquece de como

    proceder para orientar-se por ela e gasta pelo menos meia hora estudando-a. Para

    poder decifrar o mapa no escuro necessrio trazer consigo tambm uma lanterna de

    bolso. Os confrontos frequentes entre o cu e o mapa obrigam-no a acender e a

    apagar a lanterna, e nessas passagens da luz para a escurido fica momentaneamente

    cego e precisa a cada vez readaptar a vista.

    Se o senhor Palomar fizesse uso de um telescpio as coisas seriam ainda mais

    complicadas sob certos aspectos e simplificadas sob outros; mas, por ora, a

    experincia do cu que lhe interessa a olho nu, como os antigos navegadores e os

    pastores errantes. Olho nu, para ele que mope, significa de culos; e como precisa

    tirar os culos para ler o mapa, as operaes se complicam com esse erguer e baixar

    dos culos na fronte, e comportam a espera de alguns segundos para que seu

    cristalino se reajuste ao foco das verdadeiras estrelas ou das que esto impressas. Na

    carta os nomes das estrelas esto grafados em negrito sobre um fundo azul e

    necessrio encostar a lanterna acesa bem junto da folha para discerni-los. Quando

    erguemos o olhar para o cu, este aparece negro, salpicado de vagos clares; somente

    aos poucos que as estrelas se fixam e se dispem em desenhos precisos, e quanto

    mais olhamos mais as vemos aflorar.

    Acrescente-se que os mapas celestes que ele precisa consultar so dois, e mesmo

    quatro: um muito sinttico do cu naquele ms, que apresenta separadamente o

    hemisfrio sul e o hemisfrio norte; e outro, de todo o firmamento, muito mais

    detalhado, que mostra numa longa faixa as constelaes de todo o ano na parte

    mediana do cu em torno ao horizonte, enquanto as da calota em torno estrela polar

    esto compreendidas num mapa circular anexo. Em suma, localizar uma estrela

  • implica a comparao de vrios mapas com a abbada celeste, com todos os atos

    relativos: tirar e pr os culos, acender e apagar a lanterna, dobrar e desdobrar o

    mapa grande, perder e reencontrar os pontos de referncia.

    Desde a ltima vez em que o senhor Palomar observou as estrelas j se passaram

    semanas ou meses; o cu mudou inteiramente; a Ursa Maior (estamos em agosto) se

    distendeu quase at deitar-se sobre a copa das rvores a noroeste; Arcturo desce a

    pique sobre o perfil da colina arrastando todo o aquilo de Boote; exatamente a oeste

    est Vega, alta e solitria; se Vega aquela, essa outra sobre o mar Altair, e l no

    alto Deneb, que manda um raio frio do znite.

    Na noite de hoje o cu parece muito mais povoado do que qualquer mapa; as

    configuraes esquemticas na realidade se apresentam mais complicadas e menos

    ntidas; cada cacho de estrelas poderia conter aquele tringulo ou aquela linha

    quebrada que ele est procurando; e cada vez que volta a contemplar uma

    constelao ela lhe parece um tanto diversa.

    Para reconhecer uma constelao, a prova decisiva ver como responde quando a

    chamamos. Mais convincente que a coincidncia das distncias e configuraes com

    aquilo que est assinalado nos mapas, a resposta que o ponto luminoso d ao nome

    pelo qual chamado, a presteza em identificar-se com aquele som tornando-se uma

    coisa s. Os nomes das estrelas para ns, rfos de toda mitologia, parecem

    incongruentes e arbitrrios; contudo, jamais poderemos consider-los intercambiveis.

    Quando o nome que o senhor Palomar encontrou o verdadeiro, logo se apercebe

    disso, pois este d estrela uma necessidade e uma evidncia que ela no tinha antes;

    se ao contrrio um nome equivocado, a estrela o perde depois de poucos segundos,

    como se ele lhe rolasse das costas, e no se sabe mais onde estava ou o que era.

    Aps vrias tentativas o senhor Palomar decide que a Cabeleira de Berenice

    (constelao que ele adora) este ou aquele enxame luminoso do lado de Ofico: mas

    no torna a sentir a palpitao experimentada outras vezes ao reconhecer aquele

    objeto to suntuoso e apesar disso to leve. S em seguida se apercebe de que se no

    a encontra porque a Cabeleira de Berenice desta estao no est visvel.

    Numa larga parte o cu atravessado por estrias e manchas claras; a Via Lctea

    toma em agosto uma consistncia densa e parece extravasar de seu halo; o claro e o

    escuro esto assim mesclados para impedir o efeito perspectivo de um abismo negro

    sob cuja lonjura vazia campeiam, bem em relevo, as estrelas; tudo permanece no

    mesmo plano: cintilaes e nuvens argnteas e trevas.

    esta a geometria exata dos espaos siderais a que tantas vezes o senhor Palomar

    sentiu necessidade de recorrer para desprender-se da Terra, lugar de complicaes

    suprfluas e de aproximaes confusas? Encontrando-se efetivamente em presena do

    cu estrelado, parece que tudo lhe foge. At mesmo ao que se acreditava mais

    sensvel, pequenez de nosso mundo em relao s distncias incomensurveis, no

    reage diretamente. O firmamento algo que est l em cima mas do qual no se pode

    extrair nenhuma ideia de dimenses ou de distncia.

    Se os corpos luminosos esto prenhes de incerteza, s resta confiar na escurido,

  • nas regies desertas do cu. Que pode ser mais estvel do que o nada? Contudo, no

    se pode, nem mesmo do nada, estar cem por cento seguro. Palomar, onde v uma

    clareira no firmamento, uma brecha oca e negra, l fixa o olhar como que se

    projetando nela; e eis que tambm ali no meio toma forma um grozinho claro

    qualquer ou uma pequenina mancha ou sarda; mas ele no chega a estar seguro se

    elas esto naquele lugar de fato ou apenas tem a impresso de v-las. Talvez seja um

    claro como aqueles que se veem rodar mantendo-se os olhos fechados (o cu escuro

    sulcado de fosfenas como o reverso das plpebras); talvez seja um reflexo de seus

    culos; mas poderia ser tambm uma estrela desconhecida que emerge das

    profundezas mais remotas.

    Esta observao das estrelas transmite um saber instvel e contraditrio, pensa

    Palomar, inteiramente o contrrio do que dela sabiam extrair os antigos. Ser porque

    seu relacionamento com o cu intermitente e perturbado, em vez de ser um hbito

    sereno? Se ele se obrigasse a contemplar as constelaes noite aps noite e ano aps

    ano, seguindo-lhes os cursos e percursos ao longo das curvas binrias da abbada

    obscura, talvez chegasse por fim a conquistar tambm ele a noo de um tempo

    contnuo e imutvel, separado do tempo transitrio e fragmentrio dos acontecimentos

    terrestres. Mas bastaria atentar s revolues celestes para marcar nele essa imagem?

    ou no ocorreria sobretudo uma revoluo interior, que ele pode supor apenas em

    teoria, sem conseguir imaginar os efeitos sensveis sobre suas emoes e os ritmos da

    mente?

    Do conhecimento mtico dos astros capta apenas alguns vislumbres estanques; do

    conhecimento cientfico, os ecos divulgados pelos jornais; desconfia daquilo que sabe;

    o que ignora mantm seu nimo suspenso. Assoberbado, inseguro, se enerva com os

    mapas celestes como com os horrios das ferrovias compulsados procura de uma

    conexo.

    Eis uma flecha esplendente que sulca o cu. Um meteoro? Estas so as noites nas

    quais o riscar das estrelas cadentes mais frequente. Contudo, poderia muito bem ser

    um avio de passageiros iluminado. A vista do senhor Palomar se mantm vigilante,

    disponvel, desprendida de qualquer certeza.

    J est h meia hora na praia escura, sentado numa espreguiadeira, contorcendo-se

    para sul e para norte, a pouco e pouco acendendo a lanterna e aproximando do nariz

    o mapa que traz esparramado sobre os joelhos; depois, com o pescoo erguido,

    recomea a explorao a partir da estrela polar.

    Sombras silenciosas esto se movendo na areia; um casal de namorados se destaca

    de uma duna, um pescador noturno, um guarda alfandegrio, um barqueiro. O senhor

    Palomar ouve um sussurro. Olha em redor: a poucos passos dele formou-se uma

    pequena multido que est observando seus movimentos como as convulses de um

    demente.

  • PALOMAR NA CIDADE

  • PALOMAR NO TERRAO

    Do terrao

    X! x! O senhor Palomar corre para o terrao a fim de espantar os pombos que

    esto comendo as folhas da gaznia, crivando de bicadas as plantas carnudas,

    agarrando-se com as patas cascata de campnulas, lambiscando as amoras,

    perfurando uma por uma as folhinhas da salsa plantada num caixote junto cozinha,

    escavando e esgaravatando os vasos derrubando a terra e deixando as razes mostra,

    como se o nico objetivo de seu voo fosse a devastao. s pombas cujo voo outrora

    alegrava as praas sucedeu-se uma prognie degenerada, indecorosa e infecta, nem

    domstica nem selvagem mas integrada nas instituies pblicas, e como tal

    inextinguvel. H tempos o cu da cidade de Roma caiu no poder das

    superpopulaes desses lumpempenugentos, que tornam a vida difcil para qualquer

    outra espcie de pssaros em torno e oprimem o reino outrora livre e variado do

    espao com suas montonas e despenadas librs cinza-chumbo.

    Comprimida entre as hordas subterrneas dos ratos e o voo pesado dos pombos, a

    antiga cidade se deixa corroer por baixo e por cima sem opor maior resistncia do que

    a que opunha em outros tempos s invases dos brbaros, como se nisso

    reconhecesse no o assalto dos inimigos externos mas os impulsos mais obscuros e

    congnitos da prpria essncia interior.

    A cidade tem, contudo, uma outra alma uma entre tantas , que vive do acordo

    entre as velhas pedras e a vegetao sempre nova, no dividir os favores do sol.

    Secundando esta boa disposio ambiental ou genius loci, o terrao da famlia

    Palomar, ilha secreta sobre os telhados, sonha concentrar sob sua prgola o luxuriar

    dos jardins da Babilnia.

    A viosidade do terrao responde ao desejo de cada membro da famlia, mas

    enquanto a senhora Palomar considera natural dedicar s plantas a ateno que deve

    s coisas simples, escolhidas e feitas de propsito para uma identificao interior e

    assim destinadas a compor um conjunto de mltiplas variaes, uma coleo

    emblemtica, essa dimenso de seu esprito difere da dos demais membros da famlia:

    da filha porque a juventude no pode nem deve fixar-se sobre o aqui mas apenas

    sobre o mais alm; do marido porque este s chegou a libertar-se tarde demais das

    impacincias juvenis e a compreender (s em teoria) que a nica salvao est em se

    dedicar s coisas que esto aqui.

  • As preocupaes do cultivador, para quem o que conta uma determinada planta,

    um determinado espao de terreno exposto ao sol de tais horas a tais horas, aquela

    determinada enfermidade das folhas que se pode combater mediante determinado

    tratamento, so estranhas mente modelada segundo os procedimentos da indstria,

    ou seja, levada a decidir sobre atitudes genricas e sobre prottipos. Quando Palomar

    se deu conta do quo aproximativos e votados ao erro eram os critrios do mundo no

    qual acreditava encontrar preciso e norma universal, voltou aos poucos a estabelecer

    um relacionamento com o mundo limitando-o s observaes das formas visveis; mas

    jamais ele era como fora feito: sua adeso s coisas permanecia intermitente e

    transitria como a das pessoas que parecem sempre propensas a pensar uma outra

    coisa mas essa outra coisa no existe. Com a prosperidade do terrao ele contribui

    correndo vez por outra para espantar os pombos, X! x!, despertando em si o

    sentimento atvico da defesa do territrio.

    Se no terrao pousam outros pssaros que no os pombos, o senhor Palomar em

    vez de ca-los lhes d as boas-vindas, faz vista grossa a eventuais estragos

    provocados por seus bicos, considerando-os mensageiros de divindades amigas. Mas

    essas aparies so raras: uma patrulha de corvos s vezes se aproxima pontilhando o

    cu de manchas negras e propagando (at a linguagem dos deuses muda com os

    sculos) um sentido de vida e de alegria. Tambm algum melro, gentil e arguto; certa

    vez um pintarroxo; e os passarinhos no seu papel costumeiro de passantes annimos.

    Outras presenas de plumgeros sobre a cidade se deixam avistar mais ao longe: as

    esquadrilhas dos migradores, no outono; e as acrobacias, de vero, das andorinhas e

    colibris. Vez por outra gavies brancos, remando no ar com suas longas asas, se

    arremessam sobre o mar enxuto das telhas, talvez perdidos remontando desde a foz s

    margens do rio, talvez entregues a um rito nupcial, e seu grito marinho silva entre os

    rumores citadinos.

    O terrao est disposto em dois nveis: um mirante ou belvedere sobranceia a

    confuso de tetos pelos quais o senhor Palomar perpassa um olhar de pssaro.

    Procura pensar o mundo como visto pelos volteis; diferena dele os pssaros tm

    o vazio que se abre sob eles, mas talvez nunca olhem para baixo, veem apenas dos

    lados, equilibrando-se obliquamente nas asas, e seu olhar, como o dele, para onde

    quer que se dirija s encontra tetos mais altos ou mais baixos, construes mais ou

    menos elevadas mas to cerradas que no lhes permitem descer mais que isto. Que l

    embaixo, encaixadas, existam ruas e praas, que o verdadeiro solo seja aquele no nvel

    do solo, ele o sabe com base em outras experincias; por agora, com o que v daqui

    de cima, no poderia suspeit-lo.

    A verdadeira forma da cidade est neste sobe e desce de tetos, telhas velhas e

    novas, arqueadas ou planas, chamins estreitas ou corpulentas, latadas de cnulas e

    varandas de eternit ondulado, gradis, balaustradas, pequenas pilastras amparando

    vasos, reservatrios de gua metlicos, guas-furtadas, claraboias de vidro, e sobre

    tudo isto se ergue a mastreao das antenas televisivas, retas ou tortas, esmaltadas ou

    enferrujadas, em modelos de geraes sucessivas, variadamente ramificadas em chifres

  • ou esgrimas, mas todas magras como esqueletos e inquietantes como totens.

    Separados por golfos de vazios irregulares e retalhados, defrontam-se terraos

    proletrios com varais de secar roupa e tomateiros plantados em baldes de zinco;

    terraos residenciais com espaldares de trepadeiras em trelias de madeira, mveis de

    jardim em ferro batido pintados de branco, toldos enrolveis; campanrios com as

    torres campanrias campanantes; frontes de prdios pblicos de frente e de perfil;

    ticos e sobreticos, acrscimos abusivos e impunveis; andaimes de tubos metlicos

    de construes em curso ou que ficaram pelo meio; janeles com reposteiros e

    basculantes de banheiros; muros ocres e muros azuis; muros cor de mofo dos quais

    crespos cspedes de ervas deixam tombar seu folhame pndulo; colunas de

    elevadores; torres com bfores e trfores; zimbrios de igrejas com madonas; esttuas

    de cavalos e quadrigas; manses decadentes transformadas em tugrios, tugrios

    reestruturados em garonnires; e cpulas que se arredondam no cu em todas as

    direes e a todas as distncias como que confirmando a essncia feminina, junonal da

    cidade: cpulas brancas e rseas ou violceas conforme a hora e a luz, estriadas de

    nervuras, terminadas em lanternas encimadas por altas cpulas menores.

    Nada disto pode ser observado por quem move seus ps ou suas rodas sobre o

    pavimento da cidade. E, inversamente, daqui de baixo tem-se a impresso de que a

    verdadeira crosta terrestre esta, desigual mas compacta, mesmo quando sulcada de

    fraturas no se sabe de que profundidade, gretas ou poos ou crateras, cujas bordas

    em perspectiva aparecem agregadas como as escamas de uma pinha, e no nos ocorre

    ao menos perguntar o que escondem em seu fundo, porque a vista j tanta e to rica

    e variada na superfcie que basta e quase chega a saturar a mente de informaes e de

    significados.

    Assim pensam os pssaros, pelo menos assim pensa o senhor Palomar imaginando-

    se pssaro. S depois de haver conhecido a superfcie das coisas, conclui, que se

    pode proceder busca daquilo que est embaixo. Mas a superfcie das coisas

    inexaurvel.

  • A barriga do camaleo

    L est o camaleo no terrao, como acontece em todos os veres. Um ponto de

    observao excepcional permite ao senhor Palomar v-lo no de dorso, como sempre

    estamos habituados a ver os lagartos, camalees e lagartixas, mas de barriga. Na sala

    de estar da casa de Palomar h uma pequena janela-vitrine que d para o terrao; nos

    patamares dessa vitrine est alinhada uma coleo de vasos art nouveau; noite uma

    lampadazinha de setenta e cinco watts ilumina os objetos; uma planta de plumbago do

    muro do terrao faz pendular seus ramos celestes sobre o vidro externo; toda noite,

    logo ao acender-se a luz, o camaleo que mora sob as folhas embaixo desse muro se

    coloca sobre o vidro, no ponto onde a lampadazinha esplende, e ali permanece

    imvel como uma lagartixa ao sol. Os insetos voam, tambm atrados pela luz; o rptil,

    quando um inseto lhe passa ao alcance, engole-o.

    O senhor Palomar e a senhora Palomar toda noite acabam deslocando as poltronas

    de frente da televiso para junto da vitrine; do interior da sala contemplam a barriga

    esbranquiada do rptil sobre o fundo escuro. A escolha entre a televiso e o rptil

    no ocorre sem incertezas; os dois espetculos tm cada um deles informaes para

    dar que o outro no transmite: a televiso se move pelos continentes recolhendo

    impulsos luminosos que descrevem a face visvel das coisas; o camaleo ao contrrio

    representa a concentrao imvel e o aspecto oculto, o contrrio daquilo que se

    mostra vista.

    A coisa mais extraordinria so as patas, verdadeiras mos de dedos moles, s

    falanges, que premidas contra o vidro a ele se aderem com suas ventosas minsculas:

    os cinco dedos se alargam como ptalas dessas florzinhas dos desenhos infantis, e

    quando uma das patas se move, recolhem-se como uma flor que se fecha, para tornar

    depois a se distender e a se comprimir contra o vidro, fazendo aparecer estrias

    miudssimas, como as que se veem nas impresses digitais. Ao mesmo tempo delicadas

    e fortes, essas mos parecem conter uma inteligncia potencial, que lhes permite, mal

    se libertem da funo de se manter ali aderidas superfcie vertical, readquirir os

    dotes das mos humanas, as quais segundo dizem se tornaram hbeis a partir do

    momento em que no tiveram mais de se manter agarradas aos ramos ou aderidas ao

    solo.

    As patas contradas parecem, muito mais que joelhos, mais que cotovelos, molejos

    destinados a soerguer o corpo. A cauda adere-se ao vidro apenas por uma estria

    central, de onde se originam os anis que a enfeixam de um lado e de outro, dela

  • fazendo um instrumento robusto e bem protegido; na maior parte do tempo, pousada

    indolente e preguiosa, parece no ter outra habilidade ou ambio que no seja a de

    sustentculo subsidirio (nada a ver com a agilidade caligrfica da cauda das

    lagartixas), mas no momento oportuno demonstra reagir bem, ser bem articulada e at

    mesmo expressiva.

    Da cabea so visveis a ampla goela vibrante, e dos lados os olhos saltados e sem

    plpebras. A goela uma superfcie de saco frouxo que se estende da ponta do

    queixo dura e toda feita de escamas como a de um jacar ao ventre branco que ali nas

    partes em que se comprime contra o vidro apresenta tambm ele um mosqueado

    granuloso, talvez adesivo.

    Quando um mosquitinho passa prximo boca do camaleo, a lngua dispara e

    engole, fulmnea e dctil e aderente, isenta de forma e capaz de assumir qualquer

    forma. Contudo, Palomar nunca est seguro se j a viu ou no; o que certamente v,

    agora, o inseto dentro do papo do rptil: o ventre contrado contra o vidro

    iluminado se torna transparente como se estivesse exposto aos raios X; pode-se

    acompanhar a sombra da presa em seu trajeto atravs das vsceras que a absorvem.

    Se toda matria fosse transparente, o solo que nos sustm, o invlucro que enfaixa

    os nossos corpos, tudo apareceria no como um adejar de vus impalpveis mas como

    um inferno de ingestes e de trituramentos. Talvez neste exato momento um deus dos

    infernos situados no centro da terra, com seu olhar que atravessa o granito, esteja nos

    olhando l de baixo, seguindo o ciclo da vida e da morte, as vtimas dilaceradas que se

    desfazem nos ventres dos devoradores, at que por sua vez um outro ventre tambm

    o engula.

    O camaleo permanece imvel por horas; com uma chicotada da lngua deglute ora

    uma mosca ora um mosquitinho; todavia, parece no registrar outros insetos, idnticos

    aos primeiros, que tambm lhe passam incautos a poucos centmetros da boca. Ser a

    pupila vertical de seus olhos divaricados dos lados da cabea que no os avista? Ou h

    motivos de escolha e de recusa que no conhecemos? Ou quem sabe aja motivado

    pelo acaso ou por capricho?

    A segmentao dos anis das patas e da cauda, o mosqueado das diminutas lminas

    granulosas da cabea e do ventre emprestam ao camaleo uma aparncia de engenho

    mecnico; uma mquina elaboradssima, estudada nos mais microscpicos detalhes, a

    ponto de se poder indagar se uma tal perfeio no ser esbanjada em funo das

    operaes limitadas que executa. Ou talvez seja este o seu segredo: satisfeito em ser,

    reduz a sua ao ao mnimo? Ser esta a sua lio, o oposto da moral que em sua

    juventude o senhor Palomar queria que fosse a sua: procurar sempre fazer algo alm

    de seus prprios recursos?

    Eis que lhe tomba ao alcance uma mariposinha noturna transviada. Finge que no a

    v? No, agarra tambm essa. A lngua se transforma numa rede para mariposas e a

    arrasta para dentro da boca. Come-a toda? Cospe-a? Estraalha-a? No, a mariposa est

    na goela: palpita, esfrangalhada mas ainda viva, no tocada pela ofensiva dos dentes

    mastigadores, eis que supera as angstias das fauces, uma sombra que inicia a

  • viagem lenta e acidentada descendo por um esfago intumescido.

    O camaleo, saindo de sua impassibilidade, boqueja, agita o papo convulso,

    balanceia entre as pernas e a cauda, contorce o ventre submetido a dura prova. J ter

    o bastante para esta noite? Ir-se- embora? Era este o ltimo desejo que esperava

    satisfazer? Era esta a prova nos limites do possvel com que desejava defrontar-se?

    No, l est ele. Talvez tenha adormecido. Como o sono de quem no tem plpebras

    nos olhos?

    Nem mesmo o senhor Palomar consegue sair dali. Continua a observ-lo. No h

    trgua com que se possa contar. Mesmo voltando a ligar a televiso no consegue

    mais que estender a contemplao dos massacres. A mariposa, frgil Eurdice,

    aprofunda-se lentamente no seu Hades. Eis que um mosquitinho voa, prestes a pousar

    no vidro. E a lngua do camaleo se atira.

  • A invaso dos estorninhos

    H uma coisa extraordinria para se ver em Roma neste fim de outono: o cu

    apinhado de pssaros. O terrao do senhor Palomar um belo posto de observao,

    de onde o olhar paira sobre os telhados num amplo crculo do horizonte. Sobre esses

    pssaros, sabe apenas o que ouviu dizer por a: so estorninhos que se renem em

    centenas de milhares, provenientes do Norte da Europa, esperando o momento de

    partirem todos juntos para as costas da frica. noite dormem nas rvores da cidade,

    e quem estaciona o carro s margens do Tibre pela manh estar obrigado a lav-lo

    de cima a baixo.

    Aonde vo durante o dia, que funo esta parada prolongada na cidade

    desempenha na estratgia das migraes, o que significam para eles essas imensas

    congregaes vespertinas, esses carrossis areos como numa grande manobra ou

    num desfile, o senhor Palomar no chegou ainda a compreender. As explicaes que

    do para isso so todas um tanto duvidosas, condicionadas a hipteses, oscilantes

    entre vrias alternativas; e natural que seja assim, tratando-se de vozes que passam

    de boca em boca, mas tem-se a impresso de que mesmo a cincia, que poderia

    confirm-las ou desmenti-las, permanece incerta, aproximativa. Estando as coisas neste

    p, o senhor Palomar decidiu limitar-se a observar, a fixar nos mnimos detalhes o

    pouco que consegue ver, agarrando-se s ideias imediatas que lhe so sugeridas pelo

    que v.

    No ar violceo do crepsculo v aflorar numa parte do cu uma poeira

    microscpica, uma nuvem de asas que voam. Percebe que so milhares e milhares: a

    cpula do cu por elas invadida. Aquilo que at ento lhe parecera uma imensido

    serena e oca agora se revela inteiramente percorrida por presenas levssimas e

    ligeiras.

    Viso tranquilizadora, a passagem das aves migratrias associada em nossa

    memria ancestral ao harmnico suceder das estaes; mas o senhor Palomar ao

    contrrio sente nisso um sinal de apreenso. Ser porque esse apinhar-se do cu nos

    recorda que o equilbrio da natureza se perdeu? Ou porque o nosso senso de

    insegurana projeta em tudo ameaas de catstrofes?

    Quando pensamos nos pssaros migratrios imaginamos logo uma formao de voo

    ordenada e compacta, que sulca o cu numa longa fileira ou falange em ngulo agudo,

    quase uma forma de pssaro composta de inumerveis pssaros. Essa imagem no

    vale para os estorninhos, pelo menos para esses estorninhos outonais dos cus de

  • Roma: trata-se de uma multido area que parece sempre pronta a rarefazer-se ou

    dispersar-se, como gros de polvilho em suspenso num lquido, e em vez disso se

    condensa continuamente como se de um conduto invisvel o jorro de partculas

    turbilhonantes continuasse, sem nunca chegar, no entanto, a saturar a soluo.

    A nuvem se dilata, negrejante de asas que se desenham mais ntidas no cu, sinal de

    que esto se aproximando. No interior do bando o senhor Palomar j distingue uma

    perspectiva, devido ao fato de j ver alguns volteis muito prximos em cima de sua

    cabea, outros ao longe, outros mais distantes ainda, e continua a descobrir outros

    cada vez mais minsculos e puntiformes, por quilmetros e quilmetros, poderamos

    dizer, atribuindo s distncias entre um e outro uma medida quase igual. Mas essa

    iluso de regularidade traioeira, porque nada mais difcil de avaliar que a

    densidade de distribuio dos volteis em voo: onde a compacidade do bando parece

    estar escurecendo o cu eis que entre um pengero e outro se escancaram voragens de

    vazio.

    Se se detm alguns minutos observando a disposio dos pssaros relativamente

    uns aos outros, o senhor Palomar se sente preso numa trama cuja continuidade se

    estende uniforme e sem lacunas, como se ele prprio tambm fizesse parte desse

    corpo em movimento composto de centenas e centenas de corpos separados mas cujo

    conjunto constitui um objeto unitrio, como uma nuvem ou uma coluna de fumo ou

    um repuxo, algo que embora seja fluido em substncia adquire solidez na forma. Mas

    basta que se ponha a seguir com o olhar um nico pssaro para que a dissociao dos

    elementos se imponha e eis que a corrente em que se sentia transportado, a rede em

    que se sentia suspenso se dissolvem e o efeito o de uma vertigem que o toma pela

    boca do estmago.

    Isto acontece, por exemplo, quando o senhor Palomar, depois de se haver

    persuadido de que os estorninhos em conjunto esto voando em sua direo, volta o

    olhar para um pssaro que na verdade est se distanciando, e desse para um outro

    pssaro que se afasta mas em direo diversa, e em breve percebe que todos os

    volteis que lhe pareciam estar se aproximando na verdade esto fugindo em todas as

    direes, como se ele se encontrasse no centro de uma exploso. Mas basta-lhe voltar

    os olhos para uma outra zona do cu e ei-los que se concentram alm, num vrtice

    cada vez mais denso e compacto, assim como um m oculto sob um papel atrai a

    limalha de ferro compondo desenhos que se tornam ora mais escuros ora mais claros e

    por fim se desfazem e deixam sobre a folha branca um salpicado de fragmentos

    dispersos.

    Finalmente uma forma emerge do confuso bater de asas, avana, adensa-se: uma

    forma circular, como uma esfera, uma bola, o balo das histrias em quadrinhos de

    algum que esteja pensando num cu repleto de pssaros, uma avalanche de asas que

    rodopia no ar e envolve todos os pssaros que voam em torno. Essa esfera constitui

    um territrio especial no espao uniforme, um vo