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Resvista - A Retorica Da Visão Na Poetica Clássica e a a Poética Trágica Sofocliana

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Em nome do Departamento de Estudos Portugueses e Estudos Românicos, querosaudar de modo muito amigo a colega Ana Paula Quintela e agradecer-lhe a dedicação, otrabalho, o empenhamento manifestado em mais de trinta anos de docência na FLUP.Desde a criação do curso de Filologia Românica em 1969, a Faculdade de Letras mudoumuito, como todos sabemos, vivendo hoje dias de incerteza, mas também de esperança, dadosos desafios que nos impõem a todos as reformas que se avizinham no Ensino Superior.Os estudos românicos e os estudos clássicos têm hoje, indiscutivelmente, um lugarde menor importância do que há três décadas, tanto na Universidade do Porto como nomundo em geral. Há novas ideias e novas formas de encarar as línguas, as literaturas e asculturas que não podem deixar indiferentes os docentes e investigadores universitários.Mas os grandes valores da cultura clássica continuam a constituir importantespontos de referência que moldam o nosso modo de pensar a vida, a criação estética,a democracia. Por isso, as Faculdades de Letras têm de continuar a ser um lugar deresistência a uma cultura do medíocre, do vulgar, que vemos progredir à nossa volta.E devem ser lugares onde a memória da humanidade, inscrita nos mitos e nas culturas,se mantenha actual, porque o presente é também feito de passado.Obrigada, Ana Paula, pelo exemplo de profissionalismo, de rigor, de qualidadeque sempre impôs ao seu trabalho.Muito obrigada a todos!

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  • As Artes de Prometeu

    Estudos em homenagem a

    Ana Paula QuintelaOrganizaoMarta VrzeasBelmiro Fernandes Pereira

    FACULDADE DE LETRAS DA UNIVERSIDADE DO PORTOPorto 2009

  • Ficha Tcnica

    Ttulo: As Artes de Prometeu: Estudos em Homenagem a Ana Paula Quintela

    Organizao: Belmiro Fernandes Pereira/ Marta Vrzeas

    Edio: Faculdade de Letras da Universidade do Porto

    Ano de edio: 2009

    Concepo Grfica: Maria Ado

    Composio e impresso: Sereer Solues Editoriais

    N. de exemplares: 150

    Deposito Legal: 288834/09

    ISBN: 978-972-8932-42-8

    ISSN: 1646-0820

    Os artigos publicados so inteiramente da responsabilidade dos seus autores

  • ndice GeralInterveno da Presidente do DEPER Ana Maria Brito . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7

    Interveno da Comisso Organizadora Marta Vrzeas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9

    As combinaes com as letras, memria de tudo, trabalho criador das Musas Maria Helena da Rocha Pereira. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11

    A potica da tragdia sofocliana Marta Vrzeas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17

    A retrica da viso na Potica Clssica Joana Matos Frias . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 25

    A exaltao da cidade da Antiguidade Idade Mdia Antnio Manuel Ribeiro Rebelo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 43

    Ainda Aquila em Cataldo Amrico da Costa Ramalho. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 65

    Cessou de alar Sisifo o grave canto: os supliciados dos infernos na Lrica de Cames Jorge Alves Osrio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 71

    Ins de Castro: da tragdia ao melodrama Nair Nazar Castro Soares. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 83

    Entre Proteu e Prometeu: lugar da arte retrica na pedagogia humanista Belmiro Fernandes Pereira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 105

    As artes de gramtica ex Clenardo para o ensino do Grego em Portugal Carlos Morais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 117

    Ntulas sobre as gramticas latinas de Amaro de Roboredo: Edies da mesma obra ou obras diferentes? Rogelio Ponce de Len Romeo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 135

    A presena da herana clssica na narrativa de viagem a Itlia Ftima Outeirinho . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 149

    O amigo do homem por amor dos deuses Celina Silva . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 159

    A figura de Prometeu em poetas portugueses contemporneos Jos Ribeiro Ferreira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 173

    O caminho desviado do comum dos homens Parmnides em Maria Gabriela Llansol Pedro Eiras. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 183

    O fascnio de um mito Ana Paula Quintela . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 193

  • Ana Maria Brito

    Interveno da Presidente do Departamento de Estudos Portugueses e Estudos Romnicos

    Exmo. Senhor Vice-ReitorExma. Senhora Presidente do Conselho DirectivoExmo. Senhor Presidente da Assembleia de RepresentantesExma. Senhora Presidente do Conselho CientficoExmo. Senhor Presidente do Conselho PedaggicoQuerida Ana Paula QuintelaCaros Colegas e amigos

    Em nome do Departamento de Estudos Portugueses e Estudos Romnicos, quero saudar de modo muito amigo a colega Ana Paula Quintela e agradecer-lhe a dedicao, o trabalho, o empenhamento manifestado em mais de trinta anos de docncia na FLUP.

    Desde a criao do curso de Filologia Romnica em 1969, a Faculdade de Letras mudou muito, como todos sabemos, vivendo hoje dias de incerteza, mas tambm de esperana, dados os desafios que nos impem a todos as reformas que se avizinham no Ensino Superior.

    Os estudos romnicos e os estudos clssicos tm hoje, indiscutivelmente, um lugar de menor importncia do que h trs dcadas, tanto na Universidade do Porto como no mundo em geral. H novas ideias e novas formas de encarar as lnguas, as literaturas e as culturas que no podem deixar indiferentes os docentes e investigadores universitrios.

    Mas os grandes valores da cultura clssica continuam a constituir importantes pontos de referncia que moldam o nosso modo de pensar a vida, a criao esttica, a democracia. Por isso, as Faculdades de Letras tm de continuar a ser um lugar de resistncia a uma cultura do medocre, do vulgar, que vemos progredir nossa volta. E devem ser lugares onde a memria da humanidade, inscrita nos mitos e nas culturas, se mantenha actual, porque o presente tambm feito de passado.

    Obrigada, Ana Paula, pelo exemplo de profissionalismo, de rigor, de qualidade que sempre imps ao seu trabalho.

    Muito obrigada a todos!

  • Marta Isabel de Oliveira Vrzeas

    Interveno da Comisso Organizadora

    Decidiu a Comisso Organizadora do Colquio com que hoje homenageamos a Dr. Ana Paula Quintela dar-lhe o nome As Artes de Prometeu. Foram duas as razes que nos levaram a essa escolha: a primeira, porque sabamos quanto esta figura mtica, smbolo da liberdade, do inconformismo e da resistncia ao poder desptico, grata homenageada; a segunda, porque o tema nos pareceu suficientemente aglutinador de reas de investigao diversificadas, abrindo assim as portas a todos aqueles que, no pertencendo rea dos Estudos Clssicos, manifestavam o desejo de se juntarem a esta homenagem. As artes referidas no tema do Colquio no so, obviamente, todas aquelas que Prometeu, na tragdia geralmente atribuda a squilo, afirma ter dado aos mortais, mas apenas as que esto contidas na referncia inveno das combinaes com as letras que o Tit se orgulha de ter realizado. So, portanto, as artes em sentido clssico, ciceroniano, as humanae artes, isto , a Poesia, a Retrica, a Gramtica, a Filosofia.

    Para a realizao deste Colquio contmos com o inestimvel apoio da Reitoria da Universidade do Porto, da Faculdade de Letras, e do Departamento de Estudos Portugueses e Estudos Romnicos a quem dirigimos sinceros agradecimentos.

    Um agradecimento especial nos merecem tambm os oradores que amavelmente se prontificaram a participar, de entre os quais nos permitimos destacar os Senhores Professores Doutores Maria Helena da Rocha Pereira e Amrico da Costa Ramalho da Universidade de Coimbra. Por ltimo, no queramos deixar de, em nome dos colegas de Estudos Clssicos, dirigir algumas palavras Ana Paula, palavras de reconhecimento e de gratido pelo excelente e alegre convvio que nos proporcionou ao longo de vrios anos, e pela forma generosa e amiga com que, por vezes sem o saber, nos orientou nos primeiros anos da nossa carreira de docentes nesta Faculdade. com muito apreo e admirao que lembramos a face verdadeiramente prometeica do seu magistrio na rea do Latim e da Cultura Clssica, que, nos tempos que correm, j um acto de resistncia.

    A todos os presentes o nosso obrigado.

  • Maria Helena da Rocha PereiraUniversidade de Coimbra

    As combinaes com as letras, memria de tudo, trabalho criador das Musas

    Partimos de dois versos da tragdia Prometeu Agrilhoado, como os classicistas presentes j reconheceram, pertencentes quelas duas longas tiradas em que o Tit enumera os benefcios que proporcionou humanidade.

    Este o mito do prtoj eretj, o primeiro inventor, que principia na descoberta do fogo e da parte para as diversas invenes com que presenteou os homens.

    Mostra-nos um Prometeu bem diferente do que conhecamos das duas epopeias conservadas de Hesodo. A ele sobretudo o embusteiro ou melhor, o trickster, para usar a palavra consagrada pelos historiadores da religio. Na Teogonia (521-616) o seu primeiro dolo situa-se no tempo da querela entre deuses e homens, que leva instaurao de sacrifcios. ento que o filho de Jpeto prepara um enorme boi, divide-o em duas partes e apresenta-o a Zeus, para que, em nome dos deuses, escolha a que lhes convier. Zeus prefere a que est coberta de gordura, mas que, na verdade, apenas encobre um monto de ossos, pelo que da em diante ser essa a parte das vtimas que os homens ho-de sacrificar s divindades. Hesodo tem o cuidado de acentuar que Zeus percebeu o engano, o que tem levado os melhores especialistas1 a supor que teria havido uma verso mais primitiva que punha em causa a omniscincia do deus.

    Da resulta que Zeus deixa de enviar o raio sobre os freixos, e de assim proporcionar aos mortais o uso do fogo. aqui que se insere o segundo expediente do Tit: roubar o fogo no recesso de uma cana, para o dar aos homens. A esta segunda infraco respondeu Zeus ordenando a Hefestos que criasse a primeira mulher.

    Os traos essenciais deste mito so retomados em Os Trabalhos e Dias (42-105), com mais nfase na colaborao de todos os deuses, que a enriquecem com os seus dons (de onde o nome de Pandora). um desses deuses, precisamente Hermes, aquele que tambm exemplo de criador de embustes (veja-se o Hino Homrico a

    1 Nomeadamente W. Burkert, Griechische Religion der archaischen und klassischen Epoche (Stuttgart, 1977), p. 104, ao dar como possvel a teoria de M.L.West na sua edio comentada da Teogonia (Oxford, 1966).

  • Maria Helena da rocHa Pereira

    ele dedicado), o que infunde no peito da nova criatura mentiras, palavras enganosas, corao ardiloso. As ciladas sucedem-se: Hermes encarregado de levar essa sedutora figura a Epimeteu, que a recebe como mulher, no obstante o seu irmo Prometeu t-lo advertido do perigo de aceitar presentes do deus supremo. A esse mal se junta um outro, que o de Pandora destapar a vasilha2 que continha todos os males, deixando-os escapar pelo mundo. Como todos sabem, fica dentro apenas a Esperana.

    Se demormos um pouco na referncia a este mito to conhecido, porque ele tem sido objecto de mltiplas interpretaes, desde as fantasias psicanalticas at s do ps-estruturalismo e s da actual ideologia.3 Uma das teorias que, essa sim, nos parece ser aplicvel neste caso a de Jung, a qual permite ver aqui um exemplo de um arqutipo que nos ajuda a explicar a razo de histrias semelhantes ocorrerem em mais do que um povo. E, se pode ser verosmil que a origem do mito grego esteja relacionada com o de Atraharsis, que figura na XI tabunha do poema babilnico de Enuma Elish (como sabem, Egiptomania do sc. XIX sucedeu a da Babiloniomania em voga), sempre difcil esclarecer qual o modo de transmisso.4

    Tambm foroso reconhecer que das verses gregas as de Hesodo e, sobretudo, a do Prometeu Agrilhoado que descendem as muitas obras literrias (em que se contam nomes to grandes como Goethe e Shelley), plsticas ou musicais (como a cantata de Carl Orff, no grego original, estreada em 1968).

    Aqui temos de fazer um parntesis, porquanto certamente nesta altura j todos os ouvintes repararam que ainda no mencionmos vez nenhuma o nome do autor da famosa tragdia. que, se os Antigos nunca puseram em dvida, tanto quanto sabemos, que ela fosse de squilo,5 a questo levantou-se, em 1929, com Schmid, e reacendeu-se a partir de 1977, com Mark Griffith, The Authenticity of the Prometheus Bound, renovada em 1993 com a de R. Bees, Zur Datierung des Prometheus Desmothes, sem contar que o autor de uma das melhores edies crticas de squilo, M.L.West (1990) continua, desde o seu primeiro artigo sobre a matria, publicado onze anos antes, a negar-lhe a autenticidade, com base na mtrica, tcnica dramtica, vocabulrio, sintaxe, estilo.

    No vamos examinar a questo, que daria lugar a um curso inteiro, excepto num nico aspecto: saber se o drama em causa anterior ou posterior ao mito que Plato, no Protgoras, atribui ao sofista homnimo. A grande dificuldade reside, como escreveu

    2 A vasilha ou jarra de Pandora habitualmente designada como caixa ou boceta, devido ao facto de Erasmo a ter assim interpretado, certamente pensando na caixa que Psyche abre, apesar de prevenida, em Apuleio, Metamorfoses 6. 19-20 (segundo A.S.F. Gow in Essays and Studies Presented to W. Ridgeway (Cambridge, 1913), p. 99). M.L.West, que esclareceu esta questo na sua edio comentada do poema (Oxford, 1978), p. 168, remete para a obra de D. E. Panofsky, Pandoras Box, 21962.

    3 Pode ver-se uma anlise objectiva das vrias hipteses em Eric Csapo, Theories of Mythology (Oxford, 2005).

    4 Um caso especialmente evidente, pela negativa, o de uma lenda semelhante entre os ndios norte-americanos.

    5 Aristteles faz referncia ao Prometeu na Potica 1456a 2, mas sem dizer o nome do autor. O manuscrito mais antigo de squilo, o Mediceus, do sc. X-XI, menciona-o no catlogo das obras do dramaturgo.

  • As combinAes com As letrAs, memriA de tudo, trAbAlho criAdor dAs musAs

    E.R.Dodds6, em decidir com alguma certeza quanto de Protgoras e quanto de Plato. E continua: O passo reflecte seguramente no o que Protgoras de facto disse, mas o que Plato pensava que ele poderia ter dito numa determinada situao.7

    Em relao ao filsofo, acrescentaramos que a questo semelhante do discurso de Lsias no Fedro, acerca do qual ainda hoje se discute se mais um elemento a adicionar ao corpus do clebre orador tico ou uma pardia do seu modo de argumentar e do seu estilo.

    Ora, j em 1949, K. Reinhardt8, seguido por muitos outros, entendia que esta fala de Prometeu representa uma concepo pr-sofstica e marcadamente arcaica, uma vez que no h referncia ao modo de produzir alimentos (pastoreio e agricultura) e que certas invenes tcnicas atribudas ao Tit, como a roda do oleiro, nem sequer so mencionadas; ao passo que o mito que se l no Protgoras nos apresenta Prometeu a corrigir a falta de previdncia de seu irmo Epimeteu, por no equipar a raa humana, que os deuses haviam modelado, com as defesas necessrias sua sobrevivncia, tal como havia feito com os animais. assim que Prometeu decide furtar a Atena e a Hefestos as habilidades tcnicas dessas divindades, juntando-lhes o uso do fogo. Porm, estas solues ainda no so suficientes: isolados, os humanos no conseguiam defender-se dos ataques dos animais, e por isso resolvem reunir-se e fundar cidades. Zeus, que tudo observava, encarrega ento Hermes de lhes levar adj (respeito) e dkh (justia), sem os quais a vida social no pode ter estabilidade.9 Daqui o discurso transita para a demonstrao, que se propusera fazer, de a virtude (ret) ser susceptvel de se ensinar.

    Ora precisamente esta dvida se o mito do Protgoras reflecte a doutrina do Sofista um dos argumentos em que se fundamentam helenistas como M.L.West para negar a squilo a autoria do drama.10

    Deixando de lado esta questo, voltemos ao nosso ponto de partida: as duas longas falas em que Prometeu enumera os benefcios que proporcionou aos homens. A o deus apresentado, conforme j dissemos, como prtoj eretj, o heri cultural, e no como o trickster que encontrmos em Hesodo. Foi isto mesmo que salientou Winnington-Ingram, ao escrever que o poeta promoveu esta figura a partir do trickster do folclore at se tornar o fundador da civilizao, e do roubo do fogo at ser o inventor de todas as artes.11

    6 The Ancient Concept of Progress (Oxford, 1973), p. 9.7 Repare-se que, j em 1933, Paul Shorey, What Plato said (Chicago), p. 124, asseverara sem hesitar:

    O mito claramente uma composio de Plato e no de Protgoras; de outro modo Plato deveria a Protgoras a maior parte da sua prpria filosofia moral e poltica.

    8 Aischylos als Regisseur und Theologe (Berna, 1949), pp. 50-51.9 C.C.W.Taylor, Plato. Protagoras (Oxford, ver ed. 1991), p. 85, d como equivalente de adj

    conscincia. Acrescenta, no entanto, que a palavra tem conotaes de respeito por si mesmo, vergonha, modstia e respeito ou considerao pelos outros. D.J.Conacher, Aeschylus Prometheus Bound. A literary commentary (Toronto, 1980), p. 92, traduz por respeito mtuo. Sobre a complexidade deste conceito, vide Douglas L. Cairns, Aidos. The Psychology and Ethics of Honour and Shame in Ancient Greek Literature (Oxford, 1993). A discusso relativa a Protgoras figura nas pp. 354-360.

    10 Veja-se em especial o seu livro Studies in Aeschylus (Stuttgart, 1990), pp. 51-72.11 Studies in Aeschylus (Cambridge, 1983), p. 189.

  • Maria Helena da rocHa Pereira

    O Tit enumera, sucessivamente, os seus benefcios: a construo de habitaes, com tijolos e madeira; o conhecimento dos astros, para saber distinguir as estaes; o nmero; a escrita; a domesticao dos animais; a navegao; a arte de curar; a adivinhao e os sacrifcios aos deuses; a incinerao.

    precisamente no meio desta srie que se situa a inveno do alfabeto, logo a seguir do nmero, cpula do saber (v. 459).

    Esta superlativao do valor do nmero est de acordo com a afirmao de Eliano, Varia Historia IV, 17, de que Pitgoras dizia que a sabedoria mxima est no nmero (lege ti pntwn softatoj o riqmj). Agora que, depois da tese de Riedweg12, j se pode falar de novo do papel do filsofo de Samos nos primrdios da aritmtica, lembremos que esta aproximao frase de Eliano j foi feita h mais de um sculo por Sinkes e Wilson no seu comentrio13 ao drama, e que tambm a eles recordaram (e esta referncia s para os que aceitam a autenticidade do Prometeu) que Ccero afirmou nas Tusculanas 2. 9 que squilo professava o Pitagorismo.

    escrita consagrado o v. 460 (depois da cesura e estreitamente ligado inveno anterior pela partcula te) bem como o seguinte:

    grammtwn te sunqseij,

    mnmhn pntwn, mousomtor' rgnhn.

    .. e as combinaes com as letras, memria de tudo, trabalho criador das Musas.

    precisamente o v. 461, no obstante a existncia da varia lectio rgtin, que, alis, no afecta o sentido,14 o que consagra a funo desta forma do saber como uma ddiva das Musas. E aqui surge o composto mousometora, de que Liddell-Scott registam apenas esta ocorrncia, como epteto da Memria.

    A este propsito, Griffith remete para o fragmento B11 a 36 Diels-Kranz do Palamedes de Grgias, que tambm atribui s letras a funo de ajudar a memria (grmmat te mnmhj rganon) e recorda a funo de Mnemsine como me das Musas em passos bem conhecidos de Hesodo, Teogonia 52-53, da Elegia 13 West de Slon e do Teeteto 191d de Plato. Logo a seguir, faz este comentrio: Mnemsine me das Musas, como bastante natural em poetas orais, ao passo que, para um autor do sc. V, a escrita a fonte da memria.

    O comentrio que acabamos de citar data de 1983. Nos ltimos vinte anos, a questo tem-se posto, porm, de outra maneira, pelo que toca arte literria. Os trabalhos de J. Latacz, que tem acompanhado de perto as novas escavaes de Tria, dirigidas por Manfred Korfmann, e os de Barry B. Powell, que se tem dedicado especialmente questo das origens do alfabeto grego15, tm feito recuar cada vez mais a possvel data de composio dos Poemas Homricos. Este ltimo helenista resume assim o estado da

    12 Pythagoras (Mnchen, 2002)13 London, 1898.14 Tanto Wilamowitz como Murray, Page e West preferem a lio rgnhn, que figura em Estobeu

    II, 4. 2 e no Mediceus ante correctionem. Griffith, comm. ad loc., igualmente adopta esta forma, em vez de rgtin, por ser a lectio difficilior. Note-se que rgnhn tambm um ttulo de Atena.

    15 Vide J. Latacz, Troia und Homer. Der Weg zur Lsung eines alten Rtsels (Mnchen, 2001); Barry B. Powell, Homer and the Origins of the Greek Alphabet (Cambridge, 1991) e Homer (Oxford, 2004);

  • As combinAes com As letrAs, memriA de tudo, trAbAlho criAdor dAs musAs

    questo no seu livro mais recente, Homer (Oxford, 2004), p. 60: De acordo com uma explicao plausvel, Homero ditou os seus poemas a algum, em certa poca, talvez na ilha de Eubeia, no princpio do sc. VIII a.C. Por sua vez, Latacz16 defende a tese de que Homero conhecia bem, no s a arte da poesia oral, que assentava no ritmo do hexmetro, mas tambm a tcnica da escrita, que procura conciliar na sua obra.

    Desnecessrio ser acentuar que estas teorias no tm aceitao universal nenhuma teoria sobre a Questo Homrica a tem e outros grandes helenistas, como, por exemplo, M. L. West, continuam a sustentar que Hesodo anterior a Homero.17 Mas, de qualquer modo, a mais antiga inscrio grega at agora encontrada est estratigraficamente datada de c. 775 a.C. E uma das que se lhe seguem em antiguidade (curiosamente, ambas achadas na Pennsula Itlica) dever ser de c. 740 a.C. No caso desta ltima, trata-se de hexmetros que aludem ao heri da Ilada, Nestor. Tudo isto, segundo o j citado Barry Powell, ser prova da teoria deste helenista, segundo a qual o alfabeto grego teria sido criado para registar por escrito a epopeia.18

    Lembremos ainda que, quaisquer que sejam as reservas tradio conservada por Ccero e por Pausnias19, j no sc. VI a.C. circulavam verses dos poemas de Homero, que Pisstrato teria mandado juntar e que o dilogo Hiparco, do pseudo-Plato, atribua ao filho daquele tirano de Atenas a ordem de os rapsodos os recitarem todos nas Panateneias, um aps outro, tal como ainda hoje se faz.20

    Quanto s Musas, um facto bem diverso de salientar neste contexto. que a elas que o autor da Ilada invoca quando quer encetar uma daquelas longas enumeraes a que chamamos catlogos. A mais extensa e importante das quatro aquela por que se inicia a lista dos contingentes de guerreiros que tinham avanado para Tria, por isso mesmo conhecido como o Catlogo das Naus21:

    Dizei-me agora, Musas habitantes do Olimpo, pois vs sois deusas, estais presentes e tudo sabeis,ao passo que ns s ouvimos o que diz a fama, e nada vimos quais os chefes e soberanos dos Dnaos.

    Poderamos continuar indefinidamente com exemplos, colhidos atravs dos tempos, sobre a relao das filhas de Mnemsine com a inspirao do poeta. Agora apenas tentmos demonstrar que somos dos que entendem, ao contrrio de Griffith, que muito

    e ainda R. Janko, The Homeric Poems as Oral Dictated Texts, Classical Quarterly 48 (1998) 135-167, que aceita a data de c. 775-750 a.C. para a Ilada e uma pouco posterior para a Odisseia.

    16 Troia und Homer, p. 184.17 The East Face of Helicon (Oxford, 1997).18 Homer, pp. 31-33. Para Stephanie West, Prometheus Orientalized, Museum Helveticum 51

    (1994) 129-148, o elogio da escrita em associao com a poesia estaria j na abertura da epopeia de Gilgamesh. Porm outras tradues que consultmos, como a de E. A. Speiser in James B. Pritchard, ed., The Ancient Near East. An Anthology of Texts and Pictures (Princeton, 1958), a de N. K. Sundars, The Epic of Gilgamesh (Penguin Books, 1960) e a de J. Nunes Carreira, Literaturas da Mesopotmia (Lisboa, 2002), no comprovam esta interpretao, o que no surpreende, dada a incerteza da leitura de muitos textos, em cuneiforme.

    19 Respectivamente, De Oratore 3. 137 e Descrio da Grcia 7. 26. 13.20 Hiparco 228b.21 Ilada II. 484-487.

  • Maria Helena da rocHa Pereira

    antes do sc. V a.C. j a escrita era tida como a fonte da memria, se realmente, como as investigaes mais recentes e mais autorizadas parecem indicar, desde a primeira metade do sc. VIII a.C. ela tinha servido para consignar e estruturar, nas duas longas epopeias fundadoras, uma tradio oral em volta dos heris da Guerra de Tria, que atravessara toda a Idade Obscura, desde o colapso da civilizao micnica at ao que hoje se apelida de renascimento que marca o comeo da poca Arcaica.

    E com isto voltamos s artes de Prometeu, o heri cultural que tirara os homens da obscuridade em que viviam, no tempo em que olhavam sem ver, ouviam sem escutar, para os erguer ao domnio da natureza e posse da sabedoria. As artes e as tcnicas sucedem-se e, no meio delas, brilham com especial fulgor o nmero, cpula do saber e o trabalho criador das Musas. reconfortante, nestes tempos em que vivemos, este elogio do papel axial das Cincias e das Letras como esteio indestrutvel do progresso da Humanidade.

  • Marta VrzeasUniversidade do Porto

    A potica da tragdia sofocliana

    Quando Iscrates, no Panegrico, critica a facilidade com que os Atenienses se deixam comover pelas fices dos poetas, ao passo que se mostram insensveis perante as desgraas reais em que a Hlade se encontra, refere um dos efeitos que Aristteles dar como caracterstico da Tragdia leoj compaixo. A censura pressupe o reconhecimento da fora emocional da Poesia, uma ideia com fundas razes na tradio grega desde Homero, mas para cuja teorizao esttica muito contribuiu o surgimento e evoluo do teatro trgico no sc. V em Atenas. Era nele, provavelmente, que Iscrates pensava, ao dizer estas palavras, no s porque a poesia dramtica continuou a gozar de um enorme prestgio, dentro e fora de Atenas, ao longo do sc. IV, muitas vezes com a reposio de peas dos grandes trgicos entretanto desaparecidos; mas tambm porque, em termos de efeitos emocionais, a tragdia ganhava a palma aos outros gneros literrios.

    No sculo do seu florescimento, a especificidade desta nova forma de expresso potica, diferente da Narrativa e da Lrica que at ento haviam preenchido o espao daquilo a que os Gregos chamavam as artes das Musas (Mousik), veio abrir novas vias de reflexo polmica j antiga acerca do valor da Poesia enquanto discurso didctico no contexto da plis. Com o teatro tornava-se possvel, se no ultrapassar completamente, pelo menos questionar a validade da aplicao tica da dicotomia verdade / falsidade s apreciaes sobre a criao dos poetas que, desde Hesodo, se instituira como principal critrio para a aferio da melhor poesia. O teatro partia do pressuposto bvio e assumido de que a representao era isso mesmo representao, falsidade, portanto. Isso, porm, no significava qualquer demisso dos poetas relativamente ao seu ancestral papel pedaggico na plis. Nunca a Poesia deixou de afirmar o seu valor intrnseco, enquanto saber (sofa) formativo de um ideal de homem que, como muito bem demonstrou Werner Jaeger,1 foi sempre o objectivo ltimo da Paideia grega. A comdia As Rs de Aristfanes, do final do sc. V, um eloquente testemunho, ainda que caricatural, de que esse desgnio didctico, na perspectiva de dois dos maiores representantes do gnero trgico, squilo e Eurpides, continuava a ser sentido como a verdadeira misso do poeta. E os ataques de Plato Poesia na Repblica mais no

    1 JAEGER, W., Paideia (Berlin 2 1954). Trad. port. (So Paulo, 1986).

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    so do que a proposta de substituio desse anterior modelo pedaggico, assente na aprendizagem dos poetas, por um outro, em que a Filosofia deveria assumir-se como discurso dominante.

    Os fundamentos ticos usados por Plato na sua diatribe contra os poetas, evidenciam o seu alinhamento crtico com todos aqueles que, a comear pelos prprios artfices da poesia, atacaram os seus colegas de ofcio, acusando-os de mentirem (Hesodo, Slon). Assim se demarca daqueles outros que, por seu lado, vinham defendendo, ainda que de forma muito incipiente, a aplicao de juzos exclusivamente estticos crtica dos poetas. o caso do sofista Grgias, por exemplo,2 ou do autor annimo do tratado intitulado Dissoi Logoi,3 que insistem na necessidade de se excluir o critrio de verdade das apreciaes acerca da poesia em geral, e da tragdia em particular. , pois, a prpria pertinncia da utilizao do conceito de verdade como categoria esttica que comea a ser posta em causa, num processo que conduzir sua posterior substituio pelo conceito de probabilidade ou verosimilhana o eikos em Aristteles. A este processo reflexivo no foi alheia aquela disciplina que tambm o sc. V viu nascer e que alguns proeminentes Sofistas se encarregaram de aprofundar e difundir a retrica, ou, como os Gregos lhe preferiam chamar nesta poca, tcnh lgwn, a arte das palavras. De resto, no ocasional a semelhana dos argumentos usados por Plato para censurar ambas as artes a Poesia e a Retrica.

    Mas no apenas a falsidade dos poetas que mobiliza a voz crtica de Plato. No seu af racionalista,4 o filsofo ateniense ataca especificamente a poesia dramtica, aquela que toda de imitao (Rep. 394c), como ele prprio a define, com base nos perigos que representam, para a cidade, as emoes que ela tem o poder de suscitar.5 que, para Plato, as emoes estimulam a parte mais baixa da alma, destruindo a inteligncia dos ouvintes e impedindo-os de alcanarem a verdade (Rep. 595b). Deste modo atribui exclusivamente razo o estatuto de via para a Justia e para o Bem que deviam ser o objectivo de todos os que governam a cidade, nesta aceitando apenas, de acordo com tal ideia, composies poticas de inquestionvel utilidade social, isto , aquelas que veiculassem valores morais para os cidados.

    A crtica platnica, porm, no visa o modo de funcionamento dos modelos educativos da sociedade, isto , a ideia de que a educao na plis devia orientar-se de acordo com o princpio da emulao. Neste aspecto a sua uma proposta de continuidade, no sentido em que retoma a ancestral tradio de uma didctica assente

    2 Com efeito, segundo o testemunho de Plutarco (De glor. Ath. 5. 348 c) Grgias teria afirmado que, no teatro, quem engana mais justo do que quem no engana, e quem enganado mais sbio do que quem no . Quem engana mais justo porque fez o que havia prometido, e quem enganado mais sbio, porque no falta sensibilidade a quem se deixa levar pelo prazer das palavras.

    3 Diz o autor do tratado (3. 10): De facto, na tragdia como na pintura, quem quer que seja melhor a enganar, criando coisas semelhantes s verdadeiras, esse o mais excelente. E mais frente esclarece: Nas artes no h o justo e o injusto. E os poetas no compem os seus poemas com vista verdade, mas aos prazeres dos homens.

    4 o prprio que assim justifica a excluso da Poesia da cidade ideal, dizendo (Rep. 607b): Aqui est o que tnhamos a dizer, ao lembrarmos de novo a poesia, por, justificadamente, excluirmos da cidade uma arte desta espcie. Era a razo que a isso nos impelia. A traduo de Rocha Pereira, M.H., Plato. A Repblica, (Lisboa, 51987).

    5 Cf. Rep. 607a.

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    no paradigma como forma de induzir comportamentos. Da que, na sua perspectiva, o discurso filosfico seja melhor do que o potico ou o retrico, no apenas por dizer a verdade, mas tambm por indicar o caminho certo, mostrando exemplos a serem imitados pelos que os ouvem.

    Nada poderia, de facto, estar mais longe da tragdia, mesmo a de autores como squilo ou Sfocles. Aquilo que , segundo Hegel, a verdadeira essncia do modo dramtico a representao de conflitos por si s remetia para a pluralidade de pontos de vista e de respostas s grandes questes debatidas no Teatro, verdadeiro frum de discusso, ao lado da Assembleia ou mesmo dos Tribunais. Acresce ainda que a ausncia da voz autoritria de um narrador, mediando entre as personagens e os espectadores, dificultava o discernimento sobre a suposta lio que o espectculo trgico pretendesse mostrar. Com efeito, a tragdia grega inaugura, de forma mais ou menos consciente, e com diferentes graus de percepo por parte dos seus destinatrios, um outro tipo de pedagogia, a que poderemos chamar dialctica, ou talvez ainda com maior propriedade, dilemtica, dado que mais do que a procura de uma resposta, o que parece interessar aos dramaturgos levantar problemas, os quais se revelam, na maior parte dos casos, de difcil seno mesmo impossvel soluo. A natureza da tragdia, ou a forma que ela foi tomando s mos dos poetas trgicos, no se coadunava, portanto, com o dogmatismo moral dos seus detractores; e, alm disso, a prpria criao de significado dramtico dependia, em grande parte, das emoes suscitadas pelo espectculo. Da a rejeio platnica.

    Assim no entendeu, como sabemos, Aristteles, o grande responsvel pela viragem crtica que suspendeu o juzo censrio sobre a Poesia, fundamentado por consideraes de ordem tica e filosfica, e reabilitou as emoes, como factores positivos da experincia esttica, no apenas por proporcionarem o prazer e o deleite dos ouvintes, como Grgias muito antes j defendera (Enc. Hel. 9), mas sobretudo pelo seu papel no processo de conhecimento que essa mesma fruio esttica implica. De facto, na sua famosa definio de tragdia grande relevo dado s emoes, designadamente, ao terror e compaixo, que o Estagirita investe de um poder cognitivo.6

    A anlise da tragdia do sc. V, porm, e particularmente da tragdia sofocliana, permite-nos concluir que o papel das emoes no processo de conhecimento fora j alvo da reflexo dos prprios poetas. Assiste-se, com efeito, principalmente nas ltimas dcadas do sculo, a uma viragem da tragdia sobre si prpria, em relao directa com a crescente necessidade de se afirmar enquanto discurso com dignidade e valor para a plis.

    No que diz respeito a Sfocles so conhecidas as suas incurses por uma reflexo mais terica acerca da arte dramtica. Segundo a Suda, uma enciclopdia do sc. X, o autor ter chegado a escrever um livro sobre o Coro, infelizmente desconhecido para ns. Tambm a referncia de Aristteles (Potica 1460b 34) s suas afirmaes sobre o desenho das personagens, e as de Plutarco (Moralia 79b), segundo o qual o dramaturgo teria tecido algumas consideraes sobre a evoluo do seu estilo dramtico, constituem um sinal de que sua actividade como poeta trgico no era alheia a reflexo acerca da prpria arte que cultivava.

    6 Sobre o estatuto cognitivo das emoes na Potica de Aristteles, vide HALLIWELL, Aristotles Poetics (London, 21998), pp. 168-201.

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    Mas so, sem dvida, as peas que o revelam como homem de teatro, sempre atento s especificidades de uma arte em que a palavra potica tambm espectculo, destinada no apenas a ser ouvida como histria que se conta ou sentimentos e ideias que se transmitem, mas tambm a ser vista, e vista como meio da interaco de personagens. justamente a interposio do sentido da viso no processo de recepo de uma poesia assumida agora como fingimento de aces, que confere s histrias mticas trabalhadas pelos dramaturgos uma nova fora de actuao sobre os prprios receptores. Com o teatro a antiga ideia de que a autpsia, ou o testemunho presencial, constituam a garantia de verdadeiro conhecimento que surge transfigurada pela afirmao das qualidades cognitivas de uma viso de outro tipo a do teatro. esse ver teatral, distanciado e, no caso de Sfocles, potenciado pela ironia dramtica caracterstica do seu estilo trgico, que produz as emoes necessrias ao entendimento do que h de universal na aco particular a que se assiste. , portanto, tambm de uma viso hermenutica que se trata. Disto parecem falar algumas das suas peas, ao encenarem os efeitos da compaixo resultante da observao do sofrimento alheio.

    A bem da verdade nem Sfocles estava a ser completamente original. Tambm neste aspecto particular Homero seria, com toda a certeza, a fonte de inspirao.7 Alis, eram justamente os aspectos emocionais da poesia homrica que Plato tinha em mente, ao afirmar que o vate fora o primeiro dos tragedigrafos (Rep. 607a). Ora tambm nos seus Poemas se verifica o poder persuasivo da compaixo e a sua fora pragmtica. O caso paradigmtico o ltimo canto da Ilada, onde a clera insacivel de Aquiles se esvai perante a viso do velho Pramo que sua tenda se atrevera a ir para, ajoelhando-se aos ps do inimigo, e beijando-lhe as mos terrveis, assassinas, lhe pedir a restituio do cadver de seu filho Heitor, morto s mos do Pelida. Aquiles compadece-se, lembrando o seu prprio pai, e imaginando o seu sofrimento pelo filho que no tornaria a ver. E esse sentimento provoca no heri uma breve reflexo sobre a condio dos mortais, expostos por igual vontade incompreensvel dos deuses que, a seu bel-prazer, a uns do a felicidade e a outros a desgraa. So estas reflexes, induzidas pela compaixo, que o levam a pr de lado a clera, a ver no rei de Tria no o inimigo mas apenas o homem, e a ceder aos seus rogos, propondo mesmo uma trgua de alguns dias para que se realizem os funerais de Heitor.

    Um outro passo da Ilada ainda mais sintomtico, pois nele, curiosamente, a prpria divindade, a maior parte das vezes caprichosa e insensvel, que se amerceia pasme-se! dos cavalos imortais de Aquiles. E o mais espantoso que at o prprio pai dos deuses induzido pela compaixo a reflectir sobre a condio dos mseros mortais, como se tal atitude reflexiva, to estranha na boca de um deus, fosse a consequncia necessria da experincia daquele sentimento.

    Os cavalos choravam a morte de Ptroclo que os levara para a batalha. Zeus, ao ver as lgrimas escorrendo dos olhos dos corcis outrora oferecidos a Peleu, sente compaixo (lhse v. 441) e profere palavras comoventes acerca da raa dos homens (426-428; 437-447).

    7 Sobre a influncia de Homero sobre os trgicos vide RUTHERFORD, R.B., Tragic Form and Feeling in the Iliad, in CAIRNS, D.L.(ed.), Oxford Readings in Homers Iliad (New York, 2001), pp. 260-293).

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    So estes precisamente os ingredientes da encenao do eleos trgico em Sfocles. O tratamento dramtico da compaixo, que atravessa quase todas as peas conhecidas deste autor, induz uma reflexo sobre a fora movente desse sentimento. De uma maneira geral aquela emoo suscitada pela observao da mudana da fortuna das personagens, de um estado de felicidade para um de infelicidade, sem que qualquer falta moral o justifique. Estamos, portanto, no universo que inspirou a Potica.

    Em Sfocles a capacidade de sentir compaixo um dos traos distintivos da nobreza de carcter de algumas personagens. O exemplo mais claro Teseu, o mtico rei de Atenas que, em dipo em Colono, a ltima pea do autor, encarna a figura do governante ideal que ajuda dipo na ltima etapa da sua vida. A sua primeira interveno na pea no deixa dvidas sobre o que est na base do funcionamento harmonioso da cidade e do bom sucesso do seu governo: a sabedoria do homem que, na figura do outro, capaz de reconhecer a sua prpria, percebendo, nessa imagem especular, o vnculo essencial que liga todos os homens num mesmo e incerto destino. Esta profunda sabedoria decorre, como afirma a personagem, da compaixo que o conhecimento prvio da histria da vida de dipo nele suscita, bem como o espectculo de sofrimento com que o filho de Laio se apresenta aos olhos de todos: cego, vestido como um mendigo, e evidenciando as marcas da sua mais-que-humana dor. A prontido com que o soberano de Atenas acolhe, sem condies, o suplicante contrasta com o preconceito do Coro que em dipo no capaz de ver mais do que o parricida incestuoso. A viso de Teseu, pelo contrrio, no se detm na superfcie, e a compaixo leva-o a perscrutar o essencial, conseguindo descortinar, para alm da aparncia, a natureza excepcional deste homem, cujo destino se ergue como paradigma da precariedade de tudo quanto humano.

    Nesta mesma tragdia a qualidade daquele sentimento posta em relevo, pela negativa, na figura de Creonte, o representante do poder em Tebas, que, indiferente imagem dolorosa do indefeso dipo, chega ameaa da fora, ao ver goradas as tentativas de convencer o velho cego a aceitar as suas perversas intenes. Tal como Ulisses no drama Filoctetes, Creonte acumula com todos os outros traos negativos de carcter, essa absoluta incapacidade de se comover. Por isso as lies de vida que pretende impor aos outros se mostram inconsistentes e falham na persuaso.

    Se em Filoctetes, pea de 409 a.C., Ulisses representa o poltico sem escrpulos, completamente indiferente dor alheia, Neoptlemo, o jovem filho de Aquiles, que ilustra, na pea, as potencialidades pedaggicas da compaixo.

    Numa tragdia repleta de ecos das discusses contemporneas sobre modelos educativos significativo o papel dado a este sentimento, cuja fora movente potencia a aprendizagem e transforma o agir humano, orientando-o no sentido da solidariedade e da justia. o que acontece com Neoptlemo, justamente, personagem que passa por um processo de evoluo psicolgica, confrontado com a escolha entre dois modos de vida: o do oportunista Ulisses, e o do nobre e injustiado Filoctetes. De incio dominado pela retrica enganadora do primeiro, e pela sua prpria nsia de alcanar uma glria igual de Aquiles, aceita agir contra a sua prpria natureza, e enganar o filho de Poiante. Mas depois de conviver com ele, acompanhando o seu desmesurado sofrimento, a compaixo que o leva a recuar e a rejeitar completamente o magistrio de Ulisses no prlogo da pea. A viso da dor de Filoctetes, traioeiramente abandonado pelos

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    seus companheiros numa ilha deserta, incomodados pelas sucessivas crises que uma terrvel chaga no p lhe provocavam, faz despoletar as emoes que, aps um longo perodo de diviso interior, o ho-de conduzir a repor a justia e a verdade. Ulisses, homem experimentado, conhece bem os perigos envolvidos neste contacto prximo de Neoptlemo com Filoctetes e muito significativo que, ao perceber no jovem os sinais da perturbao e da vergonha, o proba de olhar para o heri. Diz o Cefalnio:

    Tu, vem da. No olhes para ele, pese embora ao teu carcter generoso, no vs estragar a nossa sorte.

    Em Traqunias, que dramatiza os acontecimentos que levam morte do heri Hracles, o quadro das cativas de guerra que suscita a comiserao e, de alguma maneira, tambm o terror de Dejanira, sua esposa, que assim reage:

    Apoderou-se de mim uma forte compaixo, amigas, ao ver estas infelizes, perdidas em terra estranha, sem casa, sem famlia; elas que antes eram livres certamente, e agora levam uma vida de escravas. Zeus afugentador dos males, que eu jamais te veja avanar assim contra os meus filhos ou, se o fizeres, que eu j no esteja viva! Assim eu me angustio ao ver estas mulheres!

    A cena est marcada por uma profunda ironia, visvel na forma como o dramaturgo prolonga este momento dramtico em que a protagonista, movida pela compaixo, insiste em saber a identidade de uma das jovens cativas que, mais tarde, ser identificada como ole, o objecto da paixo avassaladora do seu prprio marido. Aquilo que desperta este seu sentimento a aparncia nobre da donzela e a dignidade com que suporta o terrvel destino de escravido a que est votada:

    que, ao v-la, dela me apiedo mais do que das outras, pois, em tamanha desgraa, a nica que sabe dominar-se.

    Compassivamente reage Dejanira ao obstinado silncio da jovem perante as suas sucessivas perguntas. E, mesmo depois de tomar conhecimento da sua verdadeira identidade, a mesma atitude que mantm, afirmando no ter qualquer inteno maligna, e mostrando perceber o destino deplorvel da sua rival:

    Eu senti forte compaixo ao v-la, j que a beleza foi a runa da sua vida e, sem o querer, levou a sua ptria misria e escravido.

    O prprio arauto, at a hesitante em revelar toda a verdade, resolve-se a faz-lo, ao ver a atitude da rainha:

    Pois, querida senhora, porque que te reconheo como mortal que entende o que dos mortais prprio e no uma insensvel, dir-te-ei toda a verdade sem nada te ocultar.

    Na tragdia Electra a narrativa da falsa morte de Orestes, contada por um falso Mensageiro, que despoleta a compaixo de Clitemnestra, surpreendendo o prprio Pedagogo, encarregado de a transmitir. A cena muito curiosa, porquanto exemplifica a fora poderosa da fico, e particularmente da fico dramtica. Com efeito, a histria que o pseudo-mensageiro conta para enganar Clitemnestra no s construda com base no relato de um conhecido episdio da Ilada, como ainda encenada pelas prprias personagens Orestes e o Pedagogo para ser representada perante a rainha.

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    A sua inesperada reaco surpreende at o prprio Pedagogo na sua qualidade de actor a desempenhar o papel de Estrangeiro vindo da Fcida para transmitir uma mensagem. De facto, ele no reconhece na resposta compassiva de Clitemnestra a deixa esperada, isto , o regozijo pela morte do filho. Pelo contrrio, a pequena pea por ele representada suscita na rainha um sentimento de tristeza e de compaixo que lhe lembram a sua condio de me, e a impossibilidade de odiar o seu filho, apesar das circunstncias (766-768, 770-771):

    Zeus, que dizer destas notcias, que so venturosas, ou terrveis, embora tragam proveito? triste que eu salve a vida com a desgraa dos meus. (...) Coisa estranha ser me: mesmo que a faam sofrer muito, no capaz de odiar aqueles que tenha dado luz.

    , portanto, o poder emocional da prpria iluso potico-dramtica que aqui surge representado, numa cena de inegvel alcance meta-teatral.

    J no final da pea assistimos, de novo, compaixo como resultado da observao de um quadro cnico cujo pathos, assente numa falsa suposio, acaba por obrigar a personagem-espectador, Orestes, a lembrar-se da irm, at a esquecida e ausente dos seus planos. Trata-se do momento em que Electra, sob o olhar daquele que pensa ser apenas um estrangeiro, chora a morte do irmo, agarrada urna das suas supostas cinzas. a observao desta cena pattica que leva Orestes, pela compaixo, a revelar-se, e a pr fim ao desespero de Electra. O dilogo entre ambos est perpassado por esse sentimento que s a viso daquela cena quase teatral, dada a iluso que lhe subjaz, foi capaz de suscitar no filho de Agammnon e nele induzir finalmente o to esperado gesto de afecto para com a irm.

    Deixei para o fim precisamente aquela que se supe ser a mais antiga pea de Sfocles que chegou at ns: jax. Nela o autor pe em cena os ltimos momentos deste heri cantado por Homero na Ilada, agora convertido em inimigo feroz dos Aqueus por fora da injustia contra ele cometida por ocasio da atribuio das armas de Aquiles. Para impedir a desgraa do exrcito aqueu, a deusa Atena travara a vingana de jax, enlouquecendo-o temporariamente,8 e levando-o a trucidar os animais do exrcito com a iluso de matar os chefes responsveis pela entrega das armas a Ulisses. A tragdia explora as consequncias desta exposio ao ridculo no heri sado da insnia em que a deusa o mergulhara.

    Mas o prlogo do drama que agora nos interessa, prlogo que contm aquilo que talvez seja o primeiro momento de teatro-dentro-do teatro na dramaturgia ocidental.

    Ulisses entra em cena, procurando cautelosamente jax e surpreendido pela voz da filha de Zeus que o manda assistir em silncio a uma pequena representao cujos actores so ela prpria e jax, que vem ao chamado da deusa, ainda sob o efeito da mania e por ela impedido de ver o seu rival. O heri vangloria-se, perante Atena, a quem conta, ufano, os terrveis castigos que infligiu aos seus inimigos, e sobretudo a Ulisses, o pior de todos.

    A observao desta pea em miniatura, marcada que est por uma profunda ironia, cumpre os objectivos didcticos de Atena que expressamente, no v. 66, se propusera

    8 Sobre este assunto, vide FIALHO, M.C., A pedagogia pela loucura no jax, in Humanitas 47, 1996, pp.97-113.

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    mostrar (dexw) a Ulisses o espectculo da loucura de jax9 de modo a que ele o contasse a todos os Argivos. De resto significativa a pergunta que dirige ao Cefalnio, logo que jax abandona a cena:

    Vs, Ulisses, quo grande a fora dos deuses? Que homem se poderia encontrar mais prudente do que este, ou mais oportuno na aco?

    A resposta da personagem inequvoca quanto lio que aprendeu e quanto quilo que a ela conduziu:

    Eu no conheo nenhum; mas sinto compaixo deste infeliz, embora seja um inimigo, porque ao v-lo possudo por tal funesta cegueira, no o vejo mais a ele do que a mim mesmo; e vejo que ns nada mais somos nesta vida do que fantasmas ou uma sombra v.

    A aprendizagem de Ulisses, potenciada pela emoo que a observao da desventura de jax proporcionou, traduz-se na sabedoria com que a personagem extrai, da aco particular a que assistiu, o seu significado essencial e universal. Tal como o Coro de Rei dipo vislumbra, no destino do filho de Laio, o seu carcter paradigmtico, tambm aqui, mas agora depois do espectculo, a lio extravasa o mbito do individual e volve-se em reflexo sobre a prpria condio humana, assistindo-se, assim, a esse movimento tpico dos efeitos do eleos trgico que em outras peas se repetem, como vimos. No caso de Ulisses a pedagogia tanto mais eficaz quanto ela resulta numa verdadeira transformao da personagem que, no final da pea, ter um papel decisivo na defesa e reabilitao do heri desrespeitado pelos chefes do exrcito aqueu. Trata-se portanto da exemplificao do melhor mtodo pedaggico aquele que leva mudana de atitude, para o bem, evidentemente.

    Em todos estes exemplos que acabei de apresentar a prpria linguagem usada pelas personagens para a enunciao dos resultados da sua experincia que revela a importncia do ver compassivo como forma de conhecimento. Com efeito, de acordo com uma ideia enraizada na lngua grega, as dramatis personae utilizam verbos metafricos do campo semntico da viso, como rw ou xoida, para afirmarem o novo saber adquirido. Tal saber, por fora do seu carcter visual, isto , da sua evidncia, parece quase irrefutvel, precisamente porque integrado e como que absorvido pela via das emoes e no alcanado apenas por elaborao mental.

    Em suma, se uma das mais importantes lies da tragdia de squilo era a da aprendizagem pelo sofrimento, enunciada pelo Coro de Agammnon, em Sfocles, apesar da validade daquele princpio, podemos dizer que a experincia de ver e sofrer com o outro que constitui a aprendizagem verdadeira.

    Do que fica exposto ser fcil tirar uma concluso imediata: as peas de Sfocles parecem pressupor um trabalho de reflexo, por parte do dramaturgo, sobre a especificidade do gnero dramtico que cultivou, e sobre o papel que as emoes tm no processo comunicativo e esttico em que a tragdia participa. Nesse sentido, podemos dizer que elas contm, pelo menos de forma implcita, uma espcie de potica, sendo at muito provvel que tenham servido de fonte de inspirao para Aristteles, cuja admirao pela dramaturgia sofocliana bem visvel em vrios passos da sua Arte Potica.

    9 O adjectivo perifan visvel que a deusa usa para qualificar a doena do heri aponta justamente para a sua visibilidade, para a sua exposio.

  • Joana Matos FriasUniversidade do Porto

    A Retrica da Viso na Potica Clssica

    Orfeu, o primeiro poeta, no resistiu tentao de olhar para trs. Queria ver a sua amada Eur dice, mesmo sabendo que nesse olhar residia a morte dela. Diz-se que assim a matou, quebrando o pacto do Inferno, embora a amas se mais do que aos prprios olhos. Em vo tentou Orfeu segurar a som bra de Eurdice. Da sua lira, sabe-se que foi lanada aos cus e estilhaada em estrelas, feita constelao para das alturas iluminar a noite dos poetas. E Orfeu, o do olhar assassino, depois de assas sinado, reencontrou Eurdice nas profundezas. Conta Ovdio que agora pas seiam juntos na Eternidade: por vezes ele segue-a, mas, outras vezes, vai ele fren te e olha de novo para trs, agora sem perigo, para a sua Eurdice que j no volta a morrer.

    A belssima Psique no resistiu, por sua vez, tentao de ver Eros, seu marido. Quis a Alma contemplar o Amor, mesmo sabendo que nesse olhar ilu mina do estaria a nica razo da sua perda. E assim se queimou o Amor no excesso da luz com que Psique o quis ver, fugindo para no regressar, con forme ameaara. Mas Psique, a do olhar cpido, quis o Amor tornar imor tal, e hoje uma borboleta que de quando em vez se entretm nas asas de Eros.

    Narciso, o primeiro vaidoso, no resistiu tentao, depois de ver o seu pr prio reflexo. Tirsias, o cego voyeur que no via seno o futuro, previu que Nar ciso viveria se nunca olhasse para si prprio. Mas, ao matar a sede, Narciso olhou -se. E, enamorado da forma e da face que viu, matada a sede, morreu de amor, afogado na ondulao do seu prprio rosto. De Narciso, o do olhar suici da, se conta que resta agora uma flor flutuando sobre os traos da imagem que dese jou.

    Medusa, a mais conhecida das Grgonas, no resistiu ao reflexo do pr prio olhar. Nem as mos de bronze nem as asas de oiro a defenderam da de vo luo do fogo imobilizador do seu olhar. Perseu f-la perder a cabea, e pa re ce que Atena, no querendo desperdiar o poder de tal olhar viperino, or na mentou o seu escudo com a cabea do monstro, para que, ao verem-na, os seus inimigos se trans for mas sem em pedra. Perseu, esse, foi pai de Gorg fone, que viria a ser av dos Dioscu ros Castor e Plux. Reza a histria que os Dios curos foram vencidos pela clareza da viso extraordinria do seu pri mo Linceu, o do olhar de lince. Porque Linceu, ir mo de Idas, o mais for te e corajoso dos homens, possua a melhor viso de toda a Gr cia, a ponto de conseguir ver debaixo da terra, como se pode ler no incipit dos Argo nau tas.

  • Joana Matos Frias

    Mas foi Argos, o primeiro vigia, quem a mitologia agraciou com uma infini da de de olhos, o que lhe permitia dormir com alguns deles e manter-se acordado com os ou tros. S a morte pela mo de Hermes conseguiu fechar os cem olhos do Pa np tico. Ainda assim, conta-se que Hera, a quem Argos servia quando ficou sem olhos, quis imorta liz-lo em sinal de gratido. E por isso que os olhos de Ar gos ainda hoje atra ves sam o espao e o tempo, incrustados nas penas de um pavo.

    Na alvorada da cultura ocidental, eis apenas alguns traos da complexa nar ra ti va do olhar, forjada por uma civilizao que descobriu na fecun dida de mito l gi ca a super fcie visvel de uma epistemologia da viso, para a converter no prprio eixo da sua relao com o mundo, o saber e a arte, como observou Hegel tantos sculos mais tarde: a arte faz de cada figura sua um Argos com mil olhos para que a alma e a espiritualidade apaream em todos os pontos da fenome na lidade1. Orfeu, Psique, Narciso, Me du sa, Linceu e Argos e porque no dipo? compem um leque de figuras simblicas unificadas pela cons cincia de que ver um acto perigoso, conforme salientaria Jean Staro binski nas primeiras observaes de LOeil Vivant2. E fazem-no, protagonizando vrios episdios de uma his t ria de ero tis mo e de morte, de luz e de sombra, de pra zer sensual e de con tem plao intelectual, em que o Olhar, como prprio dos heris, sobre vive na Eternidade, onde habitam os que da lei da morte se vo liber tando3. O que simples mente notvel no pensamento grego, matriz de todas as culturas visuais que se lhe seguiram, que a defesa da superio ri da de da viso sobre os outros sentidos foi alicerce de duas episte mo lo gias diame tral mente opos tas, a do Sensvel e a do Inteligvel, protago niza das, res pec tiva men te, por Aris t teles e por Plato, que dariam luz as duas grandes linhas do pensamento ocidental, com corolrio no debate que oporia, sculos mais tarde, em piris tas e carte sianos. Como sugeriu Martin Jay, se os judeus podiam comear a sua orao mais importante com um Ouve, Israel, a verdade que os filsofos gregos podiam exigir um V, Grcia4. Isto porque, no entender do inte lec tualista Plato como no do sensualista Aristteles, a viso domina a ordem do Sensvel e o vaso comunicante com a ordem do Inteligvel. Os dois filsofos so os grandes respon s veis por uma mun dividncia ocular cedo revisitada pelos esticos que determinou a prpria iden ti dade do pensamento grego em todos os seus cam pos, gerando uma cons telao semntica que, em domnios aparente men te to dis tintos como os da Fsica, da Dialctica, da Potica e da Retrica, nive lou o co nhe cimento sob a gide da viso e do olhar. Aqui re side a raiz da differentia specifica das duas gran des civi li za es da Antiguidade, j que em Roma seria o paladar a ven cer em to do

    1 Hegel, Esttica, Lisboa, Guimares Editores, 1993, p. 94.2 Jean Starobinski, LOeil Vivant: Essai, Paris, Gallimard, 1961, p. 14.3 Para uma reflexo sobre o papel nevrlgico do olhar e da viso na mitologia grega, cf. Jean-Pierre

    Vernant, La Mort dans les Yeux: Figures de lAutre en Grce Ancienne, Paris, Hachet te, 1985, e M. Milner, On Est Pri de Fermer les Yeux: Le Regard Interdit, Paris, Gallimard, 1991.

    4 Martin Jay, The noblest of the senses: vision from Plato to Descartes, in Downcast Eyes: The Denigration of Vision in Twentieth-century French Thought, Berkeley, University of California Press, 1994, p. 33. Jay faz notar ainda que em nenhum lugar foi o visual to dominante como naquela notvel inveno grega chamada filosofia (idem, p. 24).

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    o l xico da teoria do conhecimento, originando aquela reverberao do sabor do sa ber que Roland Barthes to sugestivamente viria a abordar na sua Li o5.

    Regressemos a Narciso, o do olhar suicida. Encontremo-lo imvel, fasci nado pela sua prpria imagem a ponto de morrer dela, tal como o evoca Louis Marin6. O seu re fle xo antropofgico no transmite apenas a narrativa do desejo de um olhar: trata-se da mais refinada expresso mitolgica de um enredo esttico imemorial, que traa a narrativa do impulso primitivo da arte para a projeco especular do mundo. Com efeito, na longa histria de duelos que a histria da arte em geral, e a da literatura em particular, persiste uma contnua expectativa de reflexo fiel do mundo, mas nunca to fiel que o texto se transforme no prprio mundo, de vorando-o. Barthes resumiu esta aporia em breves palavras: o real no representvel, e por os homens quererem continuamente repre sen t-lo com pala vras que existe uma histria da literatura7. Por isso, o mesmo Plato que nA Re p bli ca anatemiza a imitao artstica, considerando-a im per feita, jamais consegue resolver esta tenso entre a semelhana e a dissemelhana mim ti cas, a ponto de, no Crtilo, realar com pertinncia que uma imitao demasiado per feita s pode produzir um duplo do modelo, nunca a sua imagem. Plato sa be, melhor do que ningum, que a essncia e o valor da imagem assentam na habilidade para trair o seu modelo, sem deixar de o atrair8.

    Seno, vejamos. Depois de Scrates ter esta be le cido, no captulo X dA Repblica, que existem trs artes relativamente a cada objecto a de o utilizar, a de o con fec cio nar e a de o imitar desmerecendo a terceira, o Estrangeiro dO Sofista desen vol ve uma extensa dilucidao da natureza e do valor das artes do ar t fice e do artista, distinguindo, dentro dos limites da prpria imi ta o, a mimesis ics tica da mimesis fantstica, com a consequente bipartio entre artes icsticas e artes fantsticas, para destacar o valor ontolgico do cone sobre o fantasma. Como observou Laurent Lavaud, o que passa a estar em causa no j uma hierarquizao dos nveis ou graus do real, mas o prprio discernimento das tcnicas de produo:

    o estrangeiro: [] vamos dividir o mais depressa possvel a arte de fazer as imagens [edwlopoihtikn tcnhn] []. Seguindo o mtodo de diviso que em pre gmos antes, penso agora perceber duas formas da arte de imitar [mimhtikj] []. Vejo primeiro uma, que a arte de copiar [ekastikn tcnhn]. A melhor cpia a que reproduz o original nas suas pro pores []. Os artistas no se inquietam com a ver dade e no reproduzem de forma alguma nas suas figuras as propores reais, mas aquelas que parecero belas []. E, na arte de imitar, a parte que persegue a seme lhana, no deveremos chamar -lhe, como o dissemos j, a arte de copiar [ekastikn]? [] e o que parece, por que o vemos de

    5 Cf. Paul Lafargue, Le Dterminisme conomique de Karl Marx: Recherches sur lOrigine et lEvolution des Ides de Justice, du Bien, de lme et de Dieu, Paris, Marcel Giard, 1928, pp. 54-55, sobre a origem das ideias abstractas. Depois de contrapor o grego idea e o lati no sapientia, e de arrolar todos os lexemas pertencentes a um e a outro campo, Lafargue afirma cla ramente que, na sua perspectiva, esta diferena sobre as fontes sensoriais das ideias caracteriza os dois povos (idem, p. 55).

    6 Louis Marin, Mimsis et Description, in Aavv, Word & Image: Proceedings of the First International Conference on Word & Image, Londres, Janeiro-Maro de 1988, p. 25 (repr. in Louis Marin, De la Reprsentation, Paris, Gallimard, 1994, pp. 251-266).

    7 Roland Barthes, Lio, op. cit., p. 22. 8 Plato, Crtilo, Lisboa, Instituto Piaget, 2001, p. 113.

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    uma po si o desfavorvel, asseme lhar-se ao belo, mas que, se virmos exactamente essas gran des figuras, no se asse melha mesmo nada ao ori gi nal a que se pretende assemelhar, por que nome o chama remos? No lhe da re mos, porque parece assemelhar-se, mas no se assemelha realmente, o no me de simulacro [fntasma]? [] E no est a uma parte conside rvel da pin tura e da arte de imitar em geral? [] Mas, a arte que produz um simula cro em lugar de uma imagem, no seria muito justo chamar-lhe a arte do simu-la cro? [] Eis ento as duas espcies de fabricao de imagens de que eu falava, a arte da cpia e a arte do simulacro [edwlopoihtikj, ekastikn ka fantastikn].9

    O primeiro ponto digno de nota nesta passagem, para o que particular men te nos in te ressa, situa-se aqum da prpria diviso das artes, j que ambos os grupos representam, no entender do Estrangeiro-Plato, seces de um conjunto mais lato, designado to-s como arte de fazer imagens, uma arte que no fundo corresponde prpria arte de imi tar, como se pode concluir do trecho citado, mas tambm de uma significativa passagem dA Repblica, onde Scrates declara que, se andarmos com um espelho repre sen taremos da mesma forma que os imita dores10. Para Scrates, em suma, a imitao no difcil [] e variada e rpida de executar, muito rpida mesmo, se quiseres pegar num espelho e andar com ele por todo o lado, pois em breve criars o sol e os astros no cu, em breve a terra, em breve a ti mesmo e aos demais seres animados, os utenslios, as plantas11. De onde se pode depreender que, antes de qual quer distino entre cpias e iluses, toda a Imita o , por definio, Ima gem, e obedece por conseguinte a um cdigo de matriz visual, o que perfei ta mente coerente com o lugar superior atri bu do por Plato viso no sistema sensorial, como de resto assinalaram v rios crticos, com destaque para Murray Krieger, que v mesmo no fil so fo o fundador de uma es t tica pictorialista12. Ao enfatizar o carcter visual da iluso mimtica, ou antes, ao vincular o prprio trabalho mimtico, no seu conjunto, esfera da visualidade o que reforado pela escolha do termo fantasia, que, como lem braro Aristteles e Crisipo, tem a sua raiz na luz13 Plato uni fica as artes sob a gide da criao de imagens, num gesto a que a poesia no po de, nem suposto, esca par. Um pouco antes da passagem acima transcrita, com efei to, o Es tran geiro havia j alu dido s imagens faladas (edwla legmena), numa progres so es pe cu lativa

    9 Plato, Le Sophiste, in Oeuvres Com pl tes, Paris, Garnier, vol. V, pp. 63-67; sublinhados meus. Cf. Laurent Lavaud, LImage, Paris, Flammarion, 1999, p. 55.

    10 A Repblica, Lisboa, Fundao Calouste Gulbenkian, 1993, p. 458. 11 Ibidem, p. 454.12 Na abertura do seu decisivo ensaio sobre a ekphrasis, Murray Krieger observa, a este propsito,

    que Plato absorveu questes literrias em questes pertencentes s artes visuais, com um -vontade s incrementado pelo lugar especial que atribua ao sentido da viso e s imagens mentais do sentido interior (Ekphrasis: The Illusion of the Natural Sign, Baltimore / Londres, The Johns Hopkins University Press, 1992, p. 32).

    13 Aris t teles recorda que o vocbulo fantasa acolhe o seu nome da luz, pois sem luz im pos svel ver (De lme, Paris, Les Belles Lettres, 1980, pp. 78-79). A etimologia e o conceito sero explo rados pelos esticos na sua influente teoria da repre sen ta o. Crisipo quem recupera a etimologia pro posta por Aristteles: O nome phantasia, ou seja representao, vem da luz, quer dizer phos. Tal como, de facto, a luz se revela a si mesma e s coisas que circun da, assim a representao tambm se revela a si mesma e ao que a produziu (in Roberto Radice, Stoici An ti chi: Tutti i Frammenti Raccolti da Hans von Arnim, Milo, Rus coni, 1999, pp. 318-321).

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    que o conduzir, em ltima instncia, a de fi nir o Sofista como faze dor de ima gens (edwlopoin)14, tal como Scra tes, nA Re pblica, se refere pleo nas ticamente criao po tica com os termos edwla legmena, decidindo diri gir-se a Ho mero, para lhe per-gun tar se se consi de rava um fazedor de imagens, a quem defi ni mos como um imita dor [edwlon dhmiourgj, n d mimhtn rismeqa]15.

    No sistema pla t nico, a mimesis manifestao visvel da Ideia ou da sua Imagem, con soan te seja cone ou fantasma. Quer um, quer o outro, reme tem, pela prpria denominao, para o sema nuclear da visi bi li da de: a arte icstica constri a reproduo visvel da Ideia, a arte fan ts ti ca d a ver essa reproduo como Apario. Em ambos os casos, trata-se daquilo que a lngua fran ce sa descreveria como uma mise en visibilit. S que o valor da pri meira mede-se pe la sua semelhana com o Ser, e a segunda tem o Ser do seu Apa recer, o que sig ni fica que o grande defeito do fantasma consiste na sua auto no mia ontolgica: ao passo que o cone cumpre plenamente a sua funo, ao exibir em simultneo a seme lhana e a dissemelhana em relao ao que imita, isto , a frac tura entre o Sensvel e o Inteligvel, o fantasma pretende substituir-se ao seu mo delo, at o ocultar, numa espcie de eclipse, quer dizer, num trompe loeil que tor na indis cer n veis o Sensvel e o In te ligvel16. Como assinalou La vaud, para Pla to, ironicamente, a ima gem defi ciente a ver dadeira imagem, a nica que pode

    14 Op. cit., p. 62.15 Plato, A Repblica, op. cit., pp. 472 e 459. No mesmo texto, um pouco mais frente, Scra tes

    volta a mencionar o criador de fantasmas, o imitador [edlou poihtj mimhtj] (idem, p. 464). Esta qualificao vir a ter o seu prolon ga mento poetolgico mais produtivo no trata do Do Sublime, de Pseudo-Longino, que chega a utilizar o termo edwlon para se referir a uma ima gem num verso (Du Sublime, Paris, Les Belles Lettres, 1965, p. 12). No entender de Murray Krieger, Plato une as vrias artes que tm em comum o poder de fazer imagens: a poesia cria assim imagens mim ticas para os olhos da mente, tal como a pintura o faz para os olhos do corpo, em concordncia com uma consistente teoria das imagens mentais. Krieger frisa que Plato s pode usar esta teoria toman do de emprstimo uma palavra como imagem, que pode ser aplicada s artes visuais no seu sentido literal, e aplicando-a poesia como uma metfora desconhecida ou uma analogia vazia, de forma a elidir as diferenas entre o verbal e o visual. Krieger sugere mesmo que a razo que sub jaz aos lapsos na teoria da mimesis de Plato [] est no facto de eles representarem a sua ten ta tiva de encontrar um lugar para a poesia den tro das categorias espaciais e visuais da arte em geral, por causa da sua espe cial preocupao com o sentido da viso externa e interna e, portanto, do seu de sejo de incluir a poesia entre as artes a serem condenadas. E conclui: com esta ana lo gia, ele abriu caminho para a tradio pictorialista, que usa as artes visuais como modelo para o fun cionamento do poema (op. cit., pp. 71, 75-76). Ainda assim, Plato chega a distinguir as duas artes, no prprio texto dA Repblica, definindo a pintura como a arte que se dirige aos olhos, e a poesia, como a que se dirige aos ouvidos (op. cit., p. 468).

    16 As duas revisi ta es mais importantes deste par no discurso da crtica de arte sero protagonizadas, no sculo XVI, por Jacopo Mazzoni e por Gregorio Comanini. Em 1587, Mazzoni divulga o tratado Della Difesa della Comedia di Dante, onde comea por isolar o dolo como objecto das artes imitativas, para em seguida desenvolver uma longa e apro fun dada reviso crtica do par platnico, a ponto de distinguir, dentro do mbito da prpria poesia, Imi tao Dramtica Fantstica de Imitao Dramtica Icstica, e Imitao Narrativa Fants tica de Poesia Narrativa Icstica. Comanini, por seu turno, no dilogo Il Figino, de 1591, leva a cabo, no juzo de Claudio Scarpati, a primeira traduo das propostas de Mazzoni do ter reno potico para o domnio iconogrfico (cf. Jacopo Mazzoni, Della Difesa della Comedia di Dante distinta in sette libri Nella quale si rispondi alle oppositioni fatte al discorso di M. Iacopo Mazzoni, e si tratta piena mente dellArte Poetica, e di molte altre cose pertenenti alla Filosofia, & alle belle lettere, Cese na, Severo Verdoni, 1688, pp. 12 e ss., e Gregorio Comanini, Il Figino, Overo del Fine della Pittura, in Paola Barocchi, Scritti dArte del Cinquecento, Milo, Riccardo Ricciardi Editore, 1973, vol. I, pp. 187-189 e pp. 388 e ss.; cf. Claudio Scarpati, Icastico e Fan tas tico: Iacopo Mazzo ni fra

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    ser integrada numa teoria do conhe ci men to17. a au to nomia das uvas de Zeuxis que Plato reprova, por se apre sen tar como flutuao inde ter mi nada entre os dois mundos da forma e da imagem, e por isso que Plato ape lida a arte imitativa assim concebida de men tira sem nobreza, um ep teto que, no seu discurso, ainda se tor na mais pertinente se tivermos em conta que a men tira , para o filsofo, uma imi tao do que a alma expe ri men ta e uma ima gem que surge pos terior mente18. Segue-se que aquele que pratica a arte fants tica s pode ser um char la to (ghj), em tudo idn tico a esse farma cutico que, no sentido origin rio tambm ex plo ra do por Plato, lana mo de ve ne no sos sor ti l gios para pro du zir o seu fei tio letal: o imitador, o so fista e o far ma cu tico (mimhtj, sofistj) passam assim a com por o trio fan ts tico dos viga ris tas19. O passo mais importante no estabelecimento da vocao ima gtica da poe sia , como se pode verificar, o prprio Plato quem o d: aos vin dou ros s foi ne ces srio inver ter a hierar quia correlativa do par das artes mim ticas em fun o do seu es pecfico valor esttico, sobrepondo o papel essencial da auto no mia do objecto cria do sua servi do perante um modelo extrnseco. Foi uma per muta en ce tada por Aristteles e esta bi li zada pela teoria da repre sen ta o dos esticos, onde a fantasia passa a designar toda a ac ti vi dade representa tiva, induzindo por fim concluso inevitvel de que, na s mu la qui nhentista de Jacopo Mazzoni, o ver da dei ro e perfeito Poeta aquele que toma a imi ta o fan ts tica, pois a imitao fan ts tica a mais perfeita imitao, que con vm Poe sia20.

    Aristteles, ao postular a equivalncia da mimesis e da poiesis, da imi tao e da cons tru o, atribuindo o papel principal ao verosmil nessa cons tru o, res gata a arte da sua escravatura perante o real, e f-lo ab rin do ca minhos que teriam uma fortuna crtica de grandes consequncias na histria da po tica ocidental. A produo mimtica, segundo Aristteles, porque assenta num fun damento selectivo, tem o poder de gerar no s produtos inte gral mente aut nomos, como tambm, e sobretudo, produtos estetica mente supe riores ao pr prio real. Invertido o sistema platnico, a relao do modelo com a cpia passa assim a ser ascendente. A arte em geral, e a poesia em particular, convertem-se de facto, como evi den ciou Giovanni Lombardo, no eikon do

    Tasso e Marino, in Dire la Verit al Principe: Ricerche sulla Lette ra tura del Rinas ci mento, Milo, Vita e Pensiero, 1987, p. 261).

    17 Op. cit., p. 28.18 A Repblica, op. cit., pp. 88 e 97; sublinhados meus. Cf. Ernst Cassirer, Eidos et Eidolon: Le

    Problme du Beau et de lArt dans les Dialogues de Platon, in crits sur lArt, Paris, Les ditions du Cerf, 1995, p. 45.

    19 Cf. Jacques Derrida, La Pharmacie de Platon, in La Dissmination, Paris, Seuil, 1972. Na sua defesa de Dante, Mazzoni no deixa de relembrar a afinidade entre o poeta e o sofista, agora anunciada em tom encomistico: ainda merece o Poeta o nome de Sofista: mas merece-o muito mais por ser fazedor de dolos, e por representar todas as coisas com imagens (op. cit., p. 46).

    20 Jacopo Mazzoni, op. cit., pp. 562 e 569. No discurso estico, o lexema fantasa sinnimo de re pre sen tao, reser van do-se o correlativo fantastikn para designar a ima ginao pro priamente dita. O produto da repre sen ta o o fantastn, o da imaginao o fntasma (cf. Jean Brun, op. cit., p. 38, e Frdrique Ilde fon se, vidence Sensible et Discours dans le Stoicisme, in Aavv, Dire Lvidence: Phi lo so phie et Rhtorique Antiques, Paris, LHar mat tan, 1997, pp. 115-116 e 123). O prprio Mazzoni re to ma esta distino, definindo a fantasia como impresso, e o fantasma, como espectro (op. cit., pp. 211-214).

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    eikos, isto , na imagem do ima ginvel21, e graas a este movimento que o poeta pode ser denominado ekonopoij, fazedor de imagens, como o efectivamente numa pas sagem da Po t ica22. Aliado lei do verosmil, o princpio selectivo ento o prin ci pal mo tor de uma concepo da mimesis que a apresenta j no como o acto de pro du zir uma cpia passiva de um modelo natural longe do espelho de Pla to mas como acto produtivo de compor um objecto autnomo e belo, Ima gem da Ideia que no existe seno na mente do artista, como quando Zeuxis, tendo que pintar o nu de Helena, preparou o seu quadro observando todas as ra parigas da cidade de Crotona nuas no porque fossem todas belas mas porque no era natural que fossem feias sob todos os aspectos, como conta Dionsio. O que em cada uma havia digno de ser pintado, reuniu-o ele na figurao de um s cor po, e assim, a partir da seleco de vrias partes, a arte realizou uma forma nica, per feita e bela23. Plato o vencido, pois no conceito aris totlico de imitao o artista pode, e deve, exe cu tar a Ideia. A partir de Aristteles, portanto, a imitao fico, mas tambm, pela primeira vez e quase dois milnios antes de Leonardo, cosa mentale, ou, melhor ainda, disegno interno24.

    O que realmente importa, ainda nos termos de Aristteles, pr dian te dos olhos aquilo que representa uma aco25. Ora, se no esquecermos que, para Aristteles, o poeta poe ta pela imi ta o e imi ta aces, facilmente perce bere mos que, na teoria aris to t lica da imitao po tica, imitar , por defi nio, pr diante dos olhos. De onde se con clui que, quan do Aris tteles lana mo da frmula pr mmtwn poiei~ n para

    21 Giovanni Lombardo, A Esttica da Antiguidade Clssica, Lisboa, Estampa, 2003, p. 117. Lombardo acentua ainda que, para Aristteles, a ligao entre o eikon e o eikos, entre a ima gem e o imaginvel, longe de conduzir a resultados falazes, torna-se a garantia do valor filos fico da mimesis (idem, ibidem).

    22 La Potique, Paris, Seuil, 1980, p. 129. 23 Cf. Dionsio de Halicarnasso, Tratado da Imitao, Lisboa, INIC / Centro de Estudos Cls sicos da

    Universidade de Lisboa, 1986, p. 52. Noutro passo, Dionsio rees cre ve a histria de Zeu xis, para rematar: Homero [], ao descrever Agam m non, diz: Nos olhos e na cabea ele seme lhante a Zeus que lana o raio, / Na cintura a Ares, no peito a Pos don (idem, pp. 66-67; cf. ainda a nar ra tiva de Ccero, em De lInvention, Paris, Les Belles Lettres, 1994, pp. 142-144; para um inventrio do apro veitamento tra tadstico da lenda de Zeuxis, cf. Michael Baxandall, Giotto and the Orators: Humanist Obser vers of Paint ing in Italy and the Discovery of Pictorial Com po si tion 1350-1450, Oxford, Claren don Press, 1971, pp. 34 e ss.). Rensselaer W. Lee entende que Giovan Pietro Bellori, ao pronunciar em 1664 na Academia de San Luca em Roma o dis cur so LIdea del Pittore, dello Scultore e dellArchitetto, erigiu definitivamente a Potica de Aristteles j con sa gra da na teoria literria em documento tambm capital para a teoria da pintura, tendo redefinido a Ideia que um artista deve imitar [] como a imagem de uma na tu re za es colhida e embelezada que o pintor forma na sua ima gina o segundo o m to do em p ri co de Zeuxis (Ut Pictura Poesis: Humanisme & Thorie de la Peinture, Paris, Macula, 1991, pp. 31-32).

    24 Roselyne Dupont-Roc e Jean Lallot recordam que esta obser va o lembra as con sideraes do captulo 4 (49b) sobre os dois prazeres prazer de inteleco sus citado pelo reconhecimento das formas (morphas) nas imagens (eikonas), e pra zer mais ime dia to sus citado, entre outras coisas, pela cor (khroia), relevando, nos dois casos, uma ntida con ver gn cia na valorizao do elemento for mal, estrutural, da obra representativa em detrimento dos dados sensveis ime dia tos (La Potique, op. cit., pp. 206-207). Uma prepon de rncia intelectual que, significativamente, veio a estar na base da preferncia de Descartes pela gra vura e pelo desenho face pintura, pois, entre a linha e a cor, o filsofo privilegia a linha, jus tamente porque permite repre sentar a ideia e traar formas e contornos pre cisos.

    25 Retrica, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1998, p. 200.

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    de fi nir o escopo do dis curso eloquente, no mea da men te mediante o uso da me t fora, f-lo para indicar o cam po espe cfico da representao, como se tor na evi dente na pas sagem citada da Ret rica: chamo pr diante dos olhos aquilo que repre senta uma aco [Lgw d pr mmtwn tata poien, sa nergonta shmanei oon tn gaqn]26. Eis mais um da que les casos de fora lingus tica que Cassirer as si nalou a propsito de Pla to27, pois neste enun cia do aristotlico est bem exposta a dobra que vai da nrgeia nrgeia , j que esta no sobre vi ve sem aquela. Como demonstrou Murray Krieger, ao ins tituir tal cone xo, Aristteles contra balana as implica es visuais e espa ciais da enar geia com o seu prprio inte resse temporal no muito dife ren te termo ener geia, que carac te riza a fora que conduz o enredo28. Con tu do, acres cen te-se, mais rele van te ainda o fac to de Aristteles fundar uma no va iden ti dade e uma nova definio: mi me sis enar geia, como de resto ser dito por Mazzoni ao evocar a retrica de Her m genes, na sua De fesa de Dan te: Enar gia, ou aquela evidncia a que Hermgenes quer chamar Imi tao Po ti ca29. Esta a enargeia dos poetas.

    A definio mais repetida e mais sucinta da enargeia, j na nossa era, atribuda ao reto ricista Ano nymus Seguerianus, que a descreve como um discurso que coloca peran te os olhos o que se mostra [sti d nrgeia lgoj p' yin gwn t dhlomenon]30. Mas a grande importncia da identidade proposta por Aristteles vai ainda mais lon ge, j que a expresso pr diante dos olhos, com que define a mimesis a par tir da enargeia, exactamente a mesma que utiliza para aludir especificidade do dis cur so eloquente, dessa linguagem condimentada que atravs dos hedus me noi logoi d sabor poesia, com a Metfora no governo31. O que significa que, em ltima instncia, mi mesis

    26 Idem, ibidem. Sandrine Dubel sublinhou que o lema aristotlico designa simulta nea men te o mecanismo mental e o efeito de texto (Ekphrasis et Enargeia: La Description Antique com me Par cours, in Aavv, Dire lvi den ce: Philosophie et Rhtorique Antiques, op. cit., p. 254).

    27 Em 1923, Cassirer dilu ci dou o valor do vnculo entre fi gu ra sensvel e figura ideal no sis te ma pla t ni co, sobrelevando a extrema fora lingustica do filsofo, por ter con se guido, com uma nica variao, uma ligeira colorao de expresso, fixar uma dife rena de significao que no tem nele par em preciso e em preg nn cia, j que a teoria das Ideias de Plato to regida pela sepa rao en tre Ideia [eidos] e apario [eiddon] como pelo pensamento da sua liga o (Eidos et Eidolon: Le Problme du Beau et de lArt dans les Dialogues de Platon, art. cit., pp. 30-31 e 35). Cassirer sublinha que eidos e eiddon so dois termos com a mesma raiz lingustica, que se desenvolvem a par tir de uma significao fundamental do ver, do dei~ n e que no entanto encerram, segundo Pla to, no sentido especfico que ele lhes d, duas qualidades opostas da viso. Num caso, con ti nua, ver tem o carcter passivo da sensao sensvel, que ape nas procura recolher em si e repro du zir um objecto sensvel exterior no outro, torna-se livre contemplao, com vista apreenso de uma figura objectiva, mas que no pode ela prpria realizar-se seno como acto intelectual de configurao (idem, p. 31).

    28 Murray Krieger, op. cit., p. 76. Krieger acrescenta ainda que, apesar da nfase de Aris t te les na energeia, h mesmo uma explcita, ainda que momentnea, invocao da enargeia na Po ti ca, observando que, no captulo XVII, Aristteles usa as pa lavras de cdigo conven cio nais as so cia das enargeia para invocar esta obriga o mimtica, e com o apelo usual ao visual (idem, p. 77).

    29 Ja copo Mazzoni, op. cit., pp. 985-986.30 In Barbara Cassin, Procdures Sophistiques pour Construire lvidence, in Aavv, Dire lvi dence:

    Philosophie et Rhtorique Antiques, op. cit., p. 20. Cf. Mervin R. Dilts e George A. Ken nedy, Two Greek Rhetorical Treatises from the Roman Empire: Intro duc tion, Text, and Trans la tion of the Arts of Rhetoric Attributed to Anonymous Seguerianus and to Apsines of Gadara, Leiden, Brill, 1997.

    31 fulcral ter em conta que, pelo menos desde Aristteles, a linguagem figurativa e o re gi me retrico foram concebidos como a manifestao sensvel da linguagem, num per curso que se foi com primindo

  • A retricA dA Viso nA poticA clssicA

    logos em regime esttico, o que legitima, por um lado, a sua autonomia, e, por outro, a especificidade das suas imagens, pois atravs das figuras a poesia oferece ao poeta, como vir a assinalar Lessing em 1766, a possibilidade de produzir vrias categorias de quadros interditos ao artista, porque a expresso potica pitoresca sem ser obrigatoriamente pictu r vel32.

    O alcance retrico e poetolgico da enargeia, ou da evidentia, foi de uma importncia capital: em primeiro lugar, porque a enargeia resgatou o objecto esttico da sua escravatura perante o real, ajudando a redefinir a prpria essncia da mimesis; em segundo lugar, porque propiciou o culto intenso e extenso de uma constelao de figuras de retrica e gneros correlatos, que conferiram ao dis curso retrico e potico a ca pa cidade de dar a ver atravs da palavra, numa nar rativa que, no resumo de Murray Krieger, vai do epigrama ekphrasis e da ekphrasis ao em blema33; finalmente, porque esteve na base da associao milenar da pintura e da poesia, des de as smulas de Horcio e de Simnides, passando, de forma exaustiva, por todos os importantes tratados renascentistas, at ser vtima do golpe infli gi do por Lessing, na segunda metade do sculo XVIII.

    Na enargeia, mesmo a viso como fico que passa a estar em causa, e o acto de colocar perante os olhos passa a ser o acto de construir o visvel dando a ilu so da presena. O poder desta enargeia est justamente na fora da presena fic tiva que s existe em estado de palavra. S assim se entende que a enargeia possa ser, em ltima instncia, uma qualidade que d a ver o invisvel, como acontece nos poemas ho m ricos, em que o adjectivo corres pon dente, nargj, se aplica manifes ta o dos deuses, memria e antecipao, ao sonho e apario, numa confluncia bvia com a phantasia, entendida j no sentido de imaginao, tal como Longino e Quin-

    at aos olhos da eloquncia de Quintiliano, com a res tri o pro gressiva do sensvel para o visvel. Aristteles referia-se, na Potica (Lisboa, Im pren sa Nacional-Casa da Moeda, 1992, p. 110), linguagem orna men tada, utili zan do os termos hedusmenoi logoi, que, como assi na laram Roselyne Dupont-Roc e Jean Lallot na edi o crtica do tratado, deveriam ser tra duzidos por linguagem con di men ta da. Os au to res es cla re cem que a palavra que traduzem por relev o par ticpio perfeito passivo do verbo heduno, cau sa tivo derivado de hedus, agra d vel; quer dizer, heduno significaria tornar agra dvel. Mas, pros se guem, acontece que o substan ti vo de rivado hedusma, que se l mais frente, tam bm apli cado msica, designa normalmente (Arist fa nes, Plato, Xenofonte) um condimen to des ti na do a temperar um prato e, no plural, especiarias, o que explica que, no Livro III da Retrica, Aris t te les, criticando o estilo de Alcidamante, sobrecarregado de eptetos, jogue com as palavras di zen do que Alci da mante utiliza os eptetos no como tem pero hedusma , mas como alimento edesma (Retrica, op. cit., p. 183). A metfora do tempero, con cluem Dupont-Roc e Lallot, im plica clara mente uma teo ria da linguagem potica como com posta por dois ele men tos bem distintos: um material de base, a linguagem nua, sem acres centos nem or na mentos, que preenche a funo denotativa e ele mentos relaciona dos, suple men ta res, cuja funo, orientada para o prazer (hedone, da famlia de hedus, he dus ma), pro pria-mente esttica (Potique, op. cit., pp. 193-194). Com Quintiliano, esta cons te la o sensorial associada linguagem em regime retrico v o seu campo semntico signi fica ti va men te circunscrito ao mbito visual, j que, para o retoricista latino, as figuras so os pontos lumi no sos do discurso e, mais ainda, os olhos da elo qun cia (Institution Oratoire, Paris, Les Belles Lettres, 1980, vol. V, p. 103).

    32 Lessing, Laocoon ou des Frontires de la Peinture et de la Posie, Paris, Hermann, 1964, pp. 105-106.

    33 Op. cit., p. 15.

  • Joana Matos Frias

    ti lia no a equacio nam34. A verdade que, antes de Luciano, e muito antes de Petrarca, j Ccero di zia de Homero que o que ns temos dele, no poesia, pintura, e que o gran de talento do primeiro dos poetas cegos residia justamente em fazer-nos ver aqui lo que ele prprio no via35, alinhando-se numa tradio que atribua aos ver sos de Homero o mrito de serem fonte de inspirao para os prprios pintores, co mo conta um co nhe cido epigrama da Antologia Grega a propsito de Fdias, a que Alberti vir a fazer aluso36. No que sobreviveu do tratado Do Sublime, Longino dedica um pargrafo a esta pro ble m tica, definindo as imagens [fantasai] como figuraes mentais [edwlopoiaj], e especificando que o termo fantasa est reservado sobre tudo para os casos em que, por um efeito do en tusiasmo e da paixo, pareces ver o que dizes e colo ca-lo sob os olhos do ou vin te37. O termo phan ta sia, no pensa mento grego, comeara por desig nar simples mente a prpria faculdade da re pre sen ta o, o que a situava sob a gide especfica da mimesis38. Alm de emparelhar a fan ta sia e o estranhamento, Longino situa definitivamente a enargeia para l do mbito da descrio sensvel que lhe era mais canonicamente exigida, o que ainda reforado pela sua invocao de Eurpides, quando declara, a propsito das Frias, criaturas mticas sem existncia real,

    34 Barbara Cassin (art. cit., pp. 16-17) isola alguns versos de Homero, onde nargei~ j e os ter mos correlatos so utiliza dos em contextos que denotam a fora da pre sen a do in vi svel, a manei ra como o invisvel se torna visvel, a visibilidade do invi s vel, des de o passo da Ilada onde se l que a vista de um deus difcil de suportar [calepo d qeo fanesqai nargei~ j] (Ila da, XX, v. 131), passando por alguns versos da Odisseia, em que o que est em causa so sempre apa ri es dos deuses (Odisseia, III, v. 420, e VII, vv. 199-201), at ao sonho de Penlope, quando Tel maco vai embarcar, em que ela re con fortada por um fantasma: Assim dizen do, desa pa re ceu o fantasma pela fechadura / da porta e misturou-se com o sopro do vento. Acor dou / do sono a filha de Icrio: sentia o co ra o reconfortado: / ao seu encontro no negrume da noi te viera uma clara viso [nargj neiron] (Odisseia, trad. Frederico Loureno, Lisboa, Coto via, 2003, p. 90). No seu en saio especificamente consagrado phantasia e enargeia, Alessandra Manieri co me a por assinalar que as primeiras ocorrncias do segundo termo o correlacionam estrei ta men te com o primeiro, sendo a enargeia uma qualidade caracterizante da phantasia (LImmagine Poe tica nella Teo ria degli Antichi: Phantasia ed Enargeia, Pisa / Roma, Instituti Editoriali e Poligrafici Inter na zio nali, 1998, pp. 105 e ss.).

    35 Ccero, Tusculanes, Paris, Les Belles Lettres, 1970, vol. II, p. 161. Sculos mais tarde, Nietzsche atribui, ironicamente, incomparvel nitidez da sua viso a razo da incomparvel clareza das descries de Homero (A Origem da Tragdia, Lisboa, Guimares Editores, 1994, op. cit., p. 81).

    36 Numa passagem exaustivamente repetida por tratadistas como Ludo vi co Dolce, Petrarca diz que Homero foi o primeiro pintor das memrias antigas (in Paola Barocchi, Scritti dArte del Cinquecento, Milo, Riccardo Ricciardi Editore, 1973, vol. I, p. 293). Na leitura de Rensselaer Lee, Dolce radicaliza a concepo comum, ao declarar que os poetas, que mesmo todos os escritores, so pintores; que a poesia, a histria, em suma, tudo o que um homem cultivado sus cep t vel de escrever pintura (Rensselaer W. Lee, op. cit., p. 8). Mas Dolce modaliza a sua teoria, nu ma passagem em que atribui ao poeta o poder de pintar o que inacessvel ao olhar do pintor: O Pintor tem que imitar por meio das linhas e das cores [] tudo aquilo que se mostra aos olhos: e o Poeta, por meio das palavras, vai imitando, no s o que se mostra aos olhos, mas ainda o que se re presenta no intelecto. Nisto so diferentes, mas semelhantes em tantas outras coisas, que se po dem dizer quase irmos (Ludovico Dolce, Dialogo della Pittura intitolato lAretino, in Paola Barocchi, op. cit., p. 290).

    37 Longino, Du Sublime, op. cit., p. 24.38 Como esta, a phantasia apenas aquilo que faz ver, de tal forma que Quin tilano vir a propor a

    sua traduo para o correspondente latino visiones ou visa animi, associao que reforada pela prpria etimologia bfida do termo,