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EDUCAÇÃO E RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS: APORTES PÓS-COLONIAIS
Neste painel, apresentamos os resultados de pesquisas que articulam educação e
relações étnico-raciais para negros e indígenas na educação básica tendo como aporte
teórico as abordagens pós-coloniais e a teoria do discurso. O primeiro trabalho analisa
os processos de articulação para a criação da Secretaria de Educação Continuada,
Alfabetização e Diversidade na estrutura do Ministério da Educação. São discutidos os
sentidos dos vocábulos diversidade, inclusão e diferença, seus significados e dimensões
políticas a partir da teoria do discurso de Laclau e Mouffe, bem como a produção de
sentidos para a elaboração de materiais e projetos para a formação de professores para
as relações étnico-raciais. Conclui pontuando que as demandas da diferença ampliam as
cadeias de equivalências entre universais que buscam preencher o significante
diversidade e o seu lugar nos currículos escolares, território disputado por vários
discursos pedagógicos, em que o conceito de diferença e nação são antagônicos. O
segundo texto discute a possibilidade de construção de uma didática intercultural
decolonial para as políticas públicas no campo da Educação Escolar Indígena. Para isso,
fundamenta-se na teoria do discurso e nos estudos pós-coloniais latino-americanos. O
último texto apresenta discussões acerca do projeto Arandu-Rape, cujo objetivo foi a
formação de professores na perspectiva da Lei 11645/08 na rede municipal de Niterói-
RJ. A discussão empreendida durante a formação procurou desconstruir sentidos
hegemônicos de currículo e de prática de ensino como espaços fixos de saber e de
produção do conhecimento. Teoricamente a experiência é analisada à luz das
abordagens pós-coloniais e da teoria do discurso.
Palavras-chave: Pós-Colonialidade. Relações Étnico-Raciais. Teoria do Discurso.
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
10975ISSN 2177-336X
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POR UM DIDÁTICA INTERCULTURAL DECOLONIAL: UMA ANÁLISE
SOBRE A EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA NO BRASIL
Paulo de Tássio Borges da Silva
Universidade do Estado do Rio de Janeiro- UERJ
Benedito G. Eugenio
Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia
“A descolonização que se propõe mudar a ordem do mundo é... Um
programa de desordem absoluta... Um processo histórico... feito por
homens novos, uma nova linguagem, uma nova humanidade”
(FANON, 2001, p. 30-31)
Resumo
A proposta está situada no campo da Educação Escolar Indígena, tendo a
interculturalidade como mote de discussão. As reflexões são oriundas de trabalhos
desenvolvidos enquanto docente no curso de Licenciatura Intercultural Indígena
Tupinikim Guarani da Universidade Federal do Espírito Santo – UFES, na disciplina
“conhecimento e interculturalidade”, em oficina ministrada na Licenciatura Intercultural
em Educação Escolar Indígena – LICEEI da Universidade do Estado da Bahia – UNEB
sobre “o ensino nas aldeias” e em assessoria às jornadas pedagógicas junto à Escola
Estadual Indígena Kijetxawê Zabelê, pertencente ao Povo Pataxó do Território Kaí-
Pequi. Como hipótese à pesquisa, se tem o esvaziamento da categoria interculturalidade
nas políticas públicas para a Educação Escolar Indígena no Brasil, defendendo a
construção de uma didática intercultural decolonial na Educação Escolar Indígena. O
texto tem como apoio teórico a teoria do discurso e os referenciais pós-coloniais,
objetivando contribuir em reflexões ao campo da Educação Escolar Indígena no Brasil
acerca da categoria interculturalidade e didática. Como resultados evidencia-se que a
categoria interculturalidade tem amalgamado para si uma série de significados,
tornando-se necessária uma reformulação da mesma, na construção de cidadanias e no
reconhecimento de espistemes diversas. Neste sentido, insataurar projetos educativos
que fomentem e potencializem didáticas interculturais de descolonização é o desafio
que se faz presente, tendo em vista que a interculturalidade oficiosa já está delineada em
redes que fragilizam e (re)colonizam identidades, epistemes, localidades, entre outros.
Tal empreendimento não será possível nos moldes de uma criticidade dos estudos
étnicos de retorno ao fundacional ou original, sendo necessário cada vez mais o
entendimento do cruzar a fronteira e se por a caminho, sem medo de misturar e
hibridizar-se.
Palavras-chave: Educação Escolar Indígena; Intertculturalidade; Didádica Decolonial.
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
10976ISSN 2177-336X
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Considerações Iniciais
Falar de interculturalidade talvez tenha se tornado clichê no discurso pedagógico
contemporâneo. Não falar de interculturalidade pode significar atitude não
politicamente correta, quando se trata de políticas educacionais para gupos indígenas,
quilombolas, ciganos e demais que se localizam dentro do guarda-chuva da categoria
comunidades tradicionais. É nesta discussão que lanço a hipótese de esvaziamento da
categoria interculturalidade nas políticas públicas para a Educação Escolar Indígena no
Brasil, e defendo a construção de uma didática intercultural decolonial na Educação
Escolar Indígena brasileira. Tais questões são oriundas de reflexões desenvolvidas
enquanto docente no curso de Licenciatura Intercultural Indígena Tupinikim Guarani da
Universidade Federal do Espírito Santo – UFES, na disciplina “conhecimento e
interculturalidade”, em oficina ministrada na Licenciatura Intercultural em Educação
Escolar Indígena – LICEEI da Universidade do Estado da Bahia – UNEB sobre “o
ensino nas aldeias” e em assessoria às jornadas pedagógicas junto à Escola Estadual
Indígena Kijetxawê Zabelê, pertencente ao Povo Pataxó do Território Kaí-Pequi. A
discussão tem como objetivo contribuir em reflexões ao campo da Educação Escolar
Indígena no Brasil acerca da categoria interculturalidade e didática.
Como referencial estarei dialogando a partir com a Teoria do Discurso e
referenciais pós-coloniais. Entre eles Laclau (1996) na discussão de significante vazio,
Rizvi (2015) com as reflexões sobre mobilidade, Wash (2008, 2009) no campo da
Interculturalidade crítica decolonial, e outros (as) teóricos (as) latinos que compartilham
o objeto de estudo da Educação Escolar Indígena.
A Interculturalidade na América Latina
Presenciamos na América Latina uma Educação Escolar Indígena que tem no
México décadas de implementação, lidando este com os problemas desta
institucionalização a partir do aparato estatal. O México foi o primeiro país da América
Latina a oficializar a interculturalidade em seus programas educativos para indígenas,
em parceria com a instituição missionária norte-americana Summer Institute of
Linguistics – SIL. Contudo, foi somente a partir da década de 1990 que a perspectiva de
trabalhos educativos interculturais com os indígenas mexicanos se desvencilhou do
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ideal de homogeneidade e civilização. As mudanças adviram pela reforma da
Constituição em 1992, incluindo no Artigo 4º a definição do país como multicultural e
plurilíngue, desencadeando em 1997 a substituição da política de Educação Bilíngue
Bicultural para Educação Intercultural Bilíngue, criando-se em 2001 a Coordenação
Geral de Educação Intercultural Bilíngue, ficando estabelecida a educação intercultural
para toda população mexicana, e a educação específica para os indígenas em todos os
níveis educativos (SCHMELKES, 2007).
No Chile, o Programa de Educação Intercultural Bilíngue foi criado em 1996
pelo Ministério da Educação, desenvolvendo paralelamente a política afirmativa de
concessão de bolsas a estudantes da educação básica, média e superior, a fim de
diminuir o abandono escolar e a repetência. O Chile reconhece oito etnias em seu
território (mapuche, aymara, rapa nui ou pasqüense, likan antay, quechua, colla,
kawashkar ou alacalufe e yamana ou yagán), havendo dificuldades na promoção da
Educação Intercultural Bilingue no país. Entre as dificultades estão: a carência de uma
política linguística, a não integralização das definições da Educação Intercultural
Bilíngue nos planos e programas de estudos oficiais, dificuldade no estabelecimento de
uma pedagogia intercultural bilingue, entre outros (CASTRO, 2007).
O documento do Ministério da Educação do Peru legisla em 1989 a Política de
Educação Bilíngue Intercultural do país, tendo um forte direcionamento para a questão
linguística. Em 1991 é promulgada a Política Nacional de Educação Intercultural e
Educação Bilíngue Intercultural, definindo a educação de todos os peruanos como
intercultural, sejam eles indígenas ou não (CASTILLO & MALLET, 1997). Fidel
Tubino (2005) tece críticas referentes à institucionalozação da interculturalidade no
Peru; para o autor, há uma interculturalidade normativa (formulada por filósofos e
educadores), “[...] que se expressa como discurso que pretende reger um dever ser, neste
caso, educativo oficial – dois modos de interculturalismo: o funcional e o crítico”
(CZARNY, 2012, p. 30). O interculturalismo oficial é o preenchimento discursivo dado
pelo estado em suas legislações, não havendo uma discussão das redes de poderes e das
desigualdades entre os povos, estando longe da interculturalidade demandada pelos
movimentos sociais a partir da década de 1970. Nesta discussão, o interculturalismo
oficial, “ao mesmo tempo, não leva em conta a injustiça distributiva, que é a outra cara
da injustiça cultural [substituindo], assim, o discurso da pobreza por aquele sobre
cultura” (CZARNY, 2012, p. 30). O interculturalismo crítico, ao contrário, se
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debruçaria às causas da injustiça cultural, criando dispositivos descolonizantes para
detê-los e superá-los, aproximando-se às demandas dos movimentos étnicos.
No Equador, a política educativa intercultural foi uma das primeiras a se
consolidar após o México, tendo a Educação Intercultural Bilíngue um sistema paralelo
ao ensino regular. Neste país, Walsh (2008) vem sinalizando a necessidade de
compreender a interculturalidade nas diferentes vozes que a tem preenchido. Para tanto,
a mesma propõe a construção de uma interculturalidade crítica decolonial, na superação
do interculturalismo oficial.
Na Argentina, a Educação Intercultural Bilíngue está em fase de implantação,
havendo críticas da escola indígena como um microcosmo colonial diante da falta de
autonomia que os indígenas tem para com suas escolas. Em países como Colômbia,
Guatemala, Costa Rica e Panamá, a Educação Intercultural Bilíngue é gestada por
programas nacionais e regionais; são países onde a política ainda não está bem
consolidada, tendo dificultades com comunidades distantes, chegando a não atender
todos os indígenas. Em países como Argentina, Paraguai, Costa Rica e Panamá, só há
projetos voltados para algumas comunidades em particular. Bolívia e Nicarágua se
dispõem a atender todos que falam o idioma nativo, não conseguindo a Bolívia, por
falta de apoio (LÓPEZ & SICHRA, 2007).
Fazendo uma balanço acerca da Política Educativa Intercultural na América
Latina, López e Sichra (2007) acenam a necessidade de se retomar o sentido político
que nasceu a Educação Intercutural Bilíngue, em resposta às tentativas de
homogeneização das “políticas liberais de reconhecimento da multiculturalidade naquilo
que nos caracteriza como latino-americanos” (LÓPEZ & SICHRA, 2007, p. 116).
Contudo, acredito que o caminho não seja este de retorno a um possível fundacionismo
do significante. Talvez seja mais profícuo entender as redes discursivas que tem
normatizado o significante intercultural, e as possíveis rasuras que tem oxigenado o
mesmo.
A Interculturalidade no Brasil: o que tem sido feito?
Diante do breve balanço apresentado acima em outros países da América Látina,
o Brasil se encontra em processo de institucionalização, sendo considerado até então um
projeto promissor de diálogo com os povos indígenas. Os projetos de Educação
Intercutural Bilíngue para os indígenas brasileiros datam do início do século XIX, em
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parceria do Serviço de Proteção ao Índio – SPI e o Summer Institute of Linguistics –
SIL, estendendo a parceria com a Fundação Nacional do Índio – FUNAI, após a
extinção do SPI. No entanto, é somente com a Constituição Federal de 1988 que os
projetos educacionais de interculturalidade abandonam a perspectiva integracionista e
civilizante para com os Povos Indígenas, adontando um olhar voltado ao
enriquecimento linguístico e ao fortalecimento cultural.
O Brasil tem uma vasta legislação que garante aos povos indígenas o acesso à
Educação Escolar Indígena Específica, Diferenciada, Intercultural, Bilíngue e
Multilíngue, sendo a mais importante a Lei de Diretrizes e Bases da Educação – LDB
nº. 9.394/1996, que regulamenta a oferta da educação escolar indígena. Após a LDB nº.
9.394/1996, muitas foram as Resoluções e os Pareceres que tem procurado dialogar com
a Educação Escolar Indígena brasileira, isto se for possível falar em uma única
Educação Escolar Indígena no Brasil, tendo em vista a quantidade de etnias e línguas
faladas. Não obstante, vemos projetos ditos interculturais caminhando com horizontes
poucos palatáveis ao que se espera construir de uma Educação Escolar Indígena de
qualidade, que colabore com os projetos societários de cada povo.
A Educação Escolar Indígena brasileira tem sido gestada numa ideia de
territórios étnico-educacionais, a partir do Decreto nº. 6.861/2009, mas não consegue
avançar na demarcação dos territórios indígenas onde as práticas educativas e escolares
acontecem. A proposta desencadeou uma série de críticas dos povos indígenas, que
alegaram não ter sido consultados na construção desta proposta, estando às vezes
organizados em territórios que conflitam historicamente entre etnias ou não há
identificação. Em 17 fevereiro de 2016, a Comissão de Direitos Humanos – CDH e
Legislação Participativa aprovou o projeto PLS nº. 737/2015, que institui os Territórios
étnico-educacionais como forma facultativa de organização da Educação Escolar
Indígena.
Cabe-me aqui questionar essa noção de território que se acopla à política da
Educação Escolar Indígena sem maiores reflexões às demandas de demarcação
territorial que acontece em todas as regiões deste país. Parece-me mais interessante
pensar a educação com uma certa mobilidade, como propõe Fazal Rizvi (2005), tendo
em vista que tal ideia de território pode enclausurar experiências e partilhas. Nesta
perspectiva, falar de mobilidade é falar de movimento e fluxos que devem ser tratados
como centrais na compreensão dos processos que reconstituem as comunidades
indígenas e suas escolas. Isto requer pensar a Educação Escolar Indígena que é
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profundamente afetada pelas dinâmicas de deslocamentos de suas comunidades, sejam
eles por conflitos territoriais, intercâmbios ou redes interculturais complexas. Para tanto,
seria necessário um currículo posto como fronteira (LOPES & MACEDO, 2011), com
entre-lugares e porvires, currículos móveis que rejeitem essa suposição sedentarista
tradicional, inclinada em tratar como normal a estabilidade, o significado no lugar, e
como anormais as mobilidades e as distâncias, gerando, assim, um territorialismo
metodológico, que tem nos servido muito para enclausurar etnopráticas,
etnoaprendizagens, quando senão negar aos indígenas que porventura estão em
contextos urbanos, o acesso à saúde diferenciada, à educação diferenciada, e até mesmo
ao seu reconhecimento étnico. Vale ressaltar que não me oponho aqui à ideia de
demarcação dos territórios indígenas, tão necessária para o bem viver. É uma tentativa
de compreensão de como alguns significantes tem incidido em nossas vidas, e quais
discursos estão sendo negociados.
A interculturalidade teve e tem tido seu lugar nas pautas políticas com o discurso
de que seria um dispositivo de diálogo no empoderamento das minorias, onde estas no
domínio de seus códigos específicos e dos códigos ocidentais poderiam pleitear seus
espaços na sociedade e economia. Mas que empoderamento e que diálogo é este sem
autonomia? Que diálogo é este que tem como premissa que o outro se curve aos
conhecimentos que eu julgo importante? Que diálogo é este onde eu dou as cartas do
funcionamento? Como eu proponho um currículo diferenciado e específico e em
seguida eu aplico um exame em molde nacional para medir a qualidade desta escola?
Enquanto sua proposta tem servido para pensar a descolonização epistêmica, seu
discurso também tem sido utilizado pelo Estado e agências internacionais como
dispositivo disciplinar e colonizador das diferenças, não acarretando grandes mudanças
nas relações de poder e nas desigualdades. Há um feitich para com as escolas indígenas,
num cultivo intenso do exótico nos currículos escolares, esvaziando-se muitas vezes os
sentidos culturais de cada povo numa escolarização de má qualidade.
Penso que a interculturalidade em nossos contextos tem servido para tudo, sendo
um chavão utilizado para tratar das questões indígenas e de outras minorias. É neste
diálogo com Laclau (1996) que convido a pensá-la enquanto um significante vazio.
Significante vazio é para o autor um significante sem sentido, contudo, mesmo este
significante não tendo nenhum significado/sentido, não o impede de ser uma parte
constituinte na significação. Ele ocupa lugares na significação por ter foro privilegiado
no interior de um discurso. O significante vazio não possui qualquer sentido específico,
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é uma posição ocupada por algum elemento particular, neste caso a interculturalidade, e
por ocupar essa posição exerce um papel representacional de toda cadeia discursiva e
articulatória.
Tomando de empréstimo a ideia de Laclau (1996), o significante vazio é um
nome, um ponto nodal que retém a si o deslizamento constante do significado. O
significante vazio serve a uma lógica de hegemonia, cumprindo demandas com
preenchimentos vazios. Neste caso, a interculturalidade como um significante vazio não
vem sendo fixada discursivamente, tendo sido empregada em tantos discursos e textos
políticos, que preencher a interculturalidade com diferentes demandas de políticas para
indígenas tem sido a maneira de manter a hegemonia ou tornar um interculturalismo
oficial, como apontou Tubino (2005).
Recentemente, 16 de fevereiro de 2016, uma equipe do MEC/SECADI se reuniu
para discutir a Base Nacional Curricular Comum – BNCC para as escolas indígenas,
sendo que um pouco antes, a presidência veta o PL nº 5944/2013, que pretendia ampliar
o uso de línguas indígenas e processos diferenciados de avaliação escolar para além do
Ensino Fundamental. Diante dos empreendimentos recentes à Educação Escolar
Indígena, coloco-me a perguntar: Que comunidades indígenas foram consultadas e serão
consultadas sobre a BNCC? Que conhecimentos foram legítimos a estarem ali? Quais
os perigos de uma Base Nacional Curricular Comum para as escolas indígenas? A
Avaliação Nacional será contextualizada? A provinha Brasil será contextualizada? A
provinha ANA será contextualizada? O ENEM será contextualizado? O livros didáticos
que chegam para muitas escolas indígenas serão contextualizados?
Por uma Didática Intercultural Decolonial
Ao lado dos desafios listados acima, tenho refletido em nossas experiências
brasileiras a necessidade de se construir sistemas que dialoguem com as diferenças
indígenas, mas não esse diálogo baseado num significante vazio em que se opera com
um sistema rígido e colonizador, com técnicos pouco informados e sensíveis a
colaborar.
As escolas indígenas possuem colegiados escolares e comissões executivas, que
levariam a ter autonomia na gestão financeira das escolas, comprando inclusive de
pequenos agricultores nas comunidades, colaborando com a geração de renda
comunitária e a segurança alimentar e nutricional, o que não acontece em grande parte
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das escolas. Contudo, o que se presencia é que as necessidades das escolas de cada
comunidade não são atendidas, e nem mesmo o ensino diferenciado, intercultural,
bilíngue é respeitado e garantido, uma vez que se engessa a educação escolar indígena
nos mesmos sistemas de gestão e avaliação da educação não-indígena. Neste diálogo,
tenho que concordar com D‟Angelis (2006) quando o mesmo se levanta contra a
ditadura da escola, dizendo que o que temos conseguido são escolas mais ou menos
indianizadas, em alguns casos, mais indigenizadas do que indianizadas. O grande
desafio da interculturalidade pós discurso normativo oficial é entender em que
circunstâncias tem se dado e pautado o discurso da interculturalidade, o que se tem
normatizado como intercultural e a que ponto tem servido aos interesses dos povos
indígenas, e não tem sido uma mera retórica compulsória quando se fala de projetos
para comunidades indígenas.
Pensar a construção de uma didática intercultural decolonial pode ser um
caminho neste esgotamento da categoria interculturalidade. Experiências de reflexão
vem sendo construídas em diferentes espaços de formação de professores (as) indígenas
e em escolas indígenas. Não obstante, promover espaços de descolonialidades não é
uma tarefa fácil em meio a séculos de diferentes colonialidades (colonialidade
espistêmica, linguística, econômica, cosmogônica, entre outras).
Para ajudar neste diálogo, Walsh (2009) vem construindo o que chama de
Interculturalidade Crítica Decolonial, uma proposta de descolonização das
subalternidades, bem como de enfretamento das (re)colonizações advindas do
neoliberalismo.
[...] a interculturalidade crítica – como prática – desenha outro caminho
muito distinto do que traça a interculturalidade funcional. Mas tal caminho
não se limita às esferas políticas, sociais e culturais; também se cruza com as
do saber e do ser. Ou seja, se preocupa também com a exclusão, negação e
subalternização ontológica e espistêmico-cognitiva dos grupos e sujeitos
racializados; com as práticas – de desumanização e de subordinação de
conhecimentos – que privilegiam alguns sobre os outros, “naturalizando” a
diferença e ocultando as desigualdades que se estruturam e se mantêm no seu
interior (WALSH, 2009, p. 23).
Instaurar projetos educativos que fomentem e potencializem didáticas
interculturais de descolonização é o desafio que se faz presente, tendo em vista que a
interculturalidade oficiosa já está delineada em redes que fragilizam e (re)colonizam
identidades, epistemes, localidades, entre outros. Para Walsh (2009), a
interculturalidade crítica é um projeto que “[...] se constrói de mãos dadas com a
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decolonialidade, como ferramenta que ajude a visibilizar estes dispositivos de poder e
como estratégia que tenta construir relações – de saber, ser, poder e da própria vida –
radicalmente distintas” (WALSH, 2009, p. 23).
Por decolonialiade se entende os processos e agenciamentos construídos em
relações interculturais que criticam a legitimação da epistemologia eurocêntrica e seus
discursos coloniais. Trata-se de um projeto político e epistêmico de valorização dos
conhecimentos subalternizados, que contribui para relações de respeito às diferenças,
bem como para a superação das desigualdades sociais estabelecidas por questões de raça
e etnia.
Considerações (in)conclusas
A categoria interculturalidade tem amalgamado para si uma série de
significados, tornando-se necessária uma reformulação da mesma, na construção de
cidadanias e no reconhecimento de espistemes diversas. Nesta perspectiva, em tempos
de negociações e tentativas de centramento curricular, e vetos a projetos de
descolonização epistêmica, em particular no campo linguístico, torna-se imperiosa a
construção de dispositivos que produzam e potencializem espaços às diferenças, tirando
estas do nicho exótico e pasteurizado, cota do politicamente correto. Tal
empreendimento não será possível nos moldes de uma criticidade dos estudos étnicos de
retorno ao fundacional ou original, sendo necessário cada vez mais o entendimento do
cruzar a fronteira e se por a caminho, sem medo de misturar e hibridizar-se.
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CURRÍCULO INSCRITO NO CORPO XAVANTE: UMA
POSSIBILIDADE DE SIGNIFICAR CURRÍCULO E CONHECIMENTO
Maria Cristina Rezende de Campos
Fundação Municipal de Educação de Niterói
Cristiane Gonçalves de Souza
Fundação Municipal de Educação de Niterói
Resumo
Este estudo é um desdobramento de pesquisas que se deram no contexto da Lei n.
11.645/2008 e, portanto, da educação para as relações étnico-raciais, em um projeto de
formação docente na Fundação Municipal de Educação de Niterói. A partir de uma
proposta interdisciplinar, conjugando conceitos e pesquisa da antropologia e dos estudos
de currículo, apresentamos, a partir do projeto Arandu Rape, a possibilidade de
vivenciar a prática curricular de modos distintos de criação, além de reflexões sobre a
produção do conhecimento e o espaço da escola. Essa proposta vai além da reafirmação
de que existem conteúdos para serem inseridos no currículo ou na criação de novas
disciplinas que reconheçam a história e a culturas afro-brasileiras e indígenas.
Investimos na interlocução com os docentes da rede municipal e com alunos e
licenciandos, para a desconstrução de que existe um saber universal, identidades fixas,
buscando-se pensar as culturas como híbridas, negando-se o realismo e as perspectivas
fundacionais. Desta forma, em vários espaços-tempo, esta experiência teve como
objetivo articular e ampliar a discussão sobre cultura, ética, formação humana,
cidadania e sustentabilidade ambiental, na perspectiva da cosmovisão indígena.
Apostamos nas abordagens pós-coloniais e na teoria do discurso de Laclau e Mouffe
com o objetivo de desconstruir sentidos hegemônicos de currículo e da prática de ensino
como espaços fixos de saber e de produção de conhecimento. Defendemos neste estudo,
a concepção do currículo como espaço de fronteira cultural. Utilizamos uma pesquisa
etnográfica, em território Xavante, para ilustrar uma forma de produção de
conhecimento, em outra lógica de construção do saber. Afirmamos, assim, que a
desconstrução do currículo e da prática de ensino como espaços fixos de saber e de
produção de conhecimento pode ser um movimento potente para promover a circulação
da diferença.
Palavras-chave: Relações Étnico-Raciais. Povos Indígenas. Currículo.
Introdução
Este estudo apresenta uma discussão a partir de uma narrativa docente e de
pesquisa que caminha em direção a uma investigação didática, com objetivo de
desconstruir a lógica curricular e da prática de ensino como espaços fixos de saber e de
produção de conhecimento.
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Essa experiência se deu no contexto da Lei n. 11.645/2008 e, portanto, da
educação para as relações étnico-raciais. Realizando formações para os docentes da
Rede Pública Municipal de Niterói, RJ, se desdobrou muito mais em uma possibilidade
de vivenciar a prática curricular de modos distintos de criação que ela pode nos
proporcionar e nas reflexões sobre a produção do conhecimento, investigação didática e
o espaço da escola, do que na reafirmação, exclusivamente, de que existem conteúdos
para serem inseridos no currículo ou na criação de novas disciplinas, que reconheçam a
história e as culturas afro-brasileiras e indígenas.
O investimento maior na interlocução com os docentes da rede municipal é na
desconstrução de que existe um saber universal ou identidades fixas, buscando-se
pensar as culturas como híbridas; logo, negando o realismo e as perspectivas
fundacionais. Desta forma, em vários espaços-tempo, temos como objetivo articular e
ampliar a discussão sobre cultura, ética, formação humana, cidadania e sustentabilidade
ambiental, na perspectiva das comunidades tradicionais, especialmente, quilombolas e
indígenas.
Reconhecer a pluralidade de discursos, com uma atitude de disseminação de
possíveis e novos valores, nos faz acreditar em um modo de interpretar e repensar a
forma como o currículo opera em outras culturas, consideradas à parte da “sociedade
nacional”1, primordialmente focando o caráter marginal ocupado pelas comunidades
indígenas.
Overing (1994) enfatiza que tachamos o outro de obscuro e misterioso no seu
processo de pensamento, quando é mais provável que não compreendamos a relação
entre sua “simbolização” e seus parâmetros de conhecimento e explicação. Não existe
um fundamento de realidade ao qual podemos recorrer para avaliar as versões de
mundo.
As práticas simbólicas e os discursos embasados nas diferenças e suas fronteiras
enfatizam a inclusão do outro – a “outridade”. Cada pessoa de um grupo social verá
diferentes tonalidades e diferentes formas de um mesmo fenômeno, e sua sensibilidade
estética se manifesta com indicadores próprios. Para entendê-la, é necessário perceber
de que maneira o “corpo” de uma determinada sociedade é constituído. Compreender o
corpo exógeno pelo sistema que o outro apresenta. Essa percepção - que na
contemporaneidade caminha para o diálogo com as diferentes possibilidades, com as
diferentes formas de constituição e de apresentação do conhecimento - abre espaço para
os indígenas que buscam, no cenário atual, um reconhecimento.
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No Brasil, percebemos, no campo do pensamento curricular, a tendência
apontada por Pinar (2002) de que a maioria dos pensadores de currículo da teoria crítica
assimilou as discussões da cultura e suas conexões com o debate curricular. No entanto,
a centralidade do conhecimento está presente. Para o autor, o avanço dos estudos
culturais informa que a preocupação de muitos pesquisadores do campo do currículo,
ainda é responder: Qual é o conhecimento mais válido, o que ensinar?
Em 1970, a Nova Sociologia da Educação (NSE) surgiu como um movimento de
releitura da Sociologia da Educação inglesa, assumindo a sua definição como sociologia
do conhecimento ou do currículo. Tendo como principal teórico Michael Young,
defensor de um conhecimento poderoso que, distintamente do conhecimento dos
poderosos, é objeto do currículo em um projeto social emancipatório. No livro “O
Currículo do Futuro”, o autor traz a definição de currículo como:
saber socialmente organizado, onde o foco dos professores deve ser a seleção
e a organização dos conhecimentos. Educação e ensino estão vinculados: o
currículo do futuro deverá ser definido pelo tipo de necessidades de
aprendizado que prevemos que os jovens [...] terão. (YOUNG, 2000, p. 222).
Portanto, ao reconhecer o currículo como “coisa” e que este expressa valores e
saberes que legitimam identidades, caberia a nós, professores, nos posicionarmos, ou
ainda, um olhar atento àquilo que pretendemos compartilhar com os alunos, pois ao
selecionar os conteúdos, por exemplo, entramos no jogo do poder de decisão, de optar,
pelo conhecimento mais válido, decisão que envolve uma atitude moral, ética e política
(YOUNG, 1973).
Nesta perspectiva, o projeto de educação é um projeto de poder, onde um
conhecimento socialmente produzido - conhecimento externo ao sujeito - pode fazer
dele um cidadão plural, com habilidades para o mercado e crítico.
Macedo (2006) contrapõe-se a este discurso, sugerindo que as aproximações
entre a teoria crítica e as abordagens pós-estruturais, ainda que mencionem práticas de
significação, não consideram o conhecimento como tal e, portanto, são um obstáculo
para se entender a dinâmica do currículo como cultura; e dificulta a circulação da
diferença no interior do espaço-tempo da escola e do currículo.
Argumenta a supracitada autora que assumir este espaço-tempo como lugar de
confronto entre culturas, com lados definidos, e que devemos optar por um lado ou
outro, é improdutivo pra o debate. Para tal, opera com o conceito de fronteira e de
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negociação, desenvolvidos por Bhabha (1998), com o objetivo de conceitualizar o
currículo como um espaço-tempo de fronteira, onde tradições culturais diferentes
entram em contato e onde se pode viver de múltiplas formas.
Nos discursos curriculares presentes nas políticas, mas também no cotidiano das
escolas, é frequente a afirmação de que o saber dos alunos deve ser levado em
consideração. Podemos, ainda, dizer que outros saberes - como o das comunidades
tradicionais: caiçaras, quilombolas e indígenas - também são reconhecidos, mas a esfera
do conteúdo, da avaliação, na produção de livros didáticos, nas comunidades
disciplinares e nas diretrizes curriculares das disciplinas do ensino fundamental, estes
saberes são apresentados em uma dimensão alternativa; e, ao mesmo tempo, estes
mesmos saberes são tomados como o negativo do conhecimento acumulado. A esse
respeito, Macedo afirma que:
O projeto iluminista, ao mesmo tempo em que despreza os outros saberes,
afastando-os como o lugar do erro, torna-os próximos ao buscar colonizá-los.
O desejo do colonizador em relação ao colonizado - aquele que tem algo de
que o colonizador não dispõe - torna a colonização total uma empreitada
impossível (MACEDO, 2006, p. 293).
As categorias de diversidade, de pluralidade cultural e o conceito de
multiculturalismo são tensionados pela abordagem pós-colonial e implicam na revisão
de que há culturas para entrar em diálogo ou negociação. Os fluxos culturais refletem o
movimento em que a cultura se insere, portanto e, para autores como ArjunAppadurai,
“as culturas são meros estancamentos artificiais dos fluxos, uma espécie de fotografia
que paralisa e nomeia o que é puro movimento” (apud LOPES e MACEDO, 2011, p.
186).
Entendemos o currículo como prática discursiva instituinte de sentidos, que
entram em disputa nos diversos espaços: escola, secretarias de educação, documentos
curriculares, sindicatos, entre tantos outros, em que podemos enunciar sentidos de
educação.
Podemos considerar que o campo curricular, passando pelos enfoques
tradicionais, técnicos ou pela perspectiva crítica que assume o currículo enquanto texto
político, em um projeto de emancipação social, sempre vinculou seus projetos a um
projeto de formação humana, a um projeto de cidadania e de identidade, ou seja, um
projeto de sujeito.
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Defendemos, contudo, que é necessário desconstruir os sentidos de currículo
centrados em uma ideia de conhecimento e na ideia de formação de um sujeito acabado,
pronto. Argumentamos, com Lopes e Macedo (2011), que não se trata de negar a cultura
científica, mas ampliar o conceito de conhecimento e de ciência e perceber que em
outras culturas a própria terminologia se insere em outras lógicas.
...desconstruir não quer dizer negar, mas apenas explicitar que não há
nenhuma verdade que sustente as significações que tomamos como únicas.
Desconstruir a cultura científica como um dos sistemas referenciais do
currículo – e a própria ideia de sistemas referenciais que lhe é correlata – é,
portanto, apenas explicitar que sua definição como sistema de sentidos
somente foi possível pela intervenção do poder. Do poder em seu sentido
político e econômico, mas também simbólico (LOPES e MACEDO, 2011, p.
165).
Apostar em uma perspectiva desconstrutiva, ou seja, tensionar um discurso que
se pretende unitário, reinserir a diferença, e potencializar deslocamentos, no que diz
respeito à hegemonia do universal, a redução da educação ao simples reconhecimento,
radicalizando, e colocando sob suspeita a promessa de uma igualdade social e
econômica, é reconceptualizar o currículo como instituinte de sentidos, como ato
criativo, permitindo, desta forma, que a singularidade do sujeito emerja.
Arandu Rape: sentidos de conhecimento, um projeto de formação docente em
relações étnico-raciais.
Para os povos indígenas, a natureza é vista como o Outro. Ao contrário da
tradição científica ocidental, que fundamenta o ensino das ciências em nossas escolas,
em que a natureza é tratada como objeto, como um “isso” (GRÜN, 2003).
O casamento entre o céu e a terra, que compõem o ethos dos povos indígenas,
parte do princípio de que a natureza guarda sua outridade e que esta deve ser
reconhecida mediante uma relação em que a natureza é parte fundadora da constituição
dos seres e se constitui ela própria em um SER que atua na tribo, na aldeia e na
comunidade. Para Grün:
A natureza é o Outro que se dirige a nós. A voz do Outro sempre constitui o
campo da compreensão hermenêutica. A linguagem viva do diálogo é que
proporciona a compreensão do Outro. Em toda experiência hermenêutica
existe sempre um potencial para ser outro que repousa não só no consenso,
mas também no respeito pela diferença e pelo Outro. (...) Qualquer tentativa
de interpretar a natureza, a partir da vontade de dominá-la, não é considerada
uma interpretação, uma vez que para a interpretação ocorrer é necessário que
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o significado do Outro possa permanecer como auto-apresentação, pois ditar
o significado da natureza para predição e controle não é um ato de
compreensão (GRÜN, 2006, p. 179).
Questionamos os currículos que se desenvolvem com o pressuposto de afirmar
verdades inquestionáveis, pois partem do princípio de que o ato de ensinar é um ato que
ensina a conquista de certezas, com afirmações absolutas e universais. Não negamos, de
forma alguma, o rigor didático e metodológico, mas informamos, em nossas práticas e
reflexões, o reconhecimento de que os conhecimentos e sua produção são históricas e
portanto, intimamente relacionados com os contextos sociais em que são produzidos.
Nossas atividades afirmam um olhar sobre a escola, que insiste em dinamizar este
espaço que reconhecemos em constante transformação e reinvenção. Acreditamos na
atuação de docentes que transgridam a ordem de um conhecimento que se pretende
universal.
Muitos dirão que o personagem de Clarice Lispector, em a Legião Estrangeira
(1999) - Ofélia Maria dos Santos Aguiar com seu portanto-portanto-portanto - é o
exemplo de conhecimento a ser adquirido pelos alunos na escola e, por que não, o que o
currículo deve ter como objetivo, de oferecer respostas para um mundo ordenado em
verdade incontestáveis. Que o que realmente importa é que, assim como o universo
perfeito e harmônico da matemática, o mundo gira em torno de uma ordem que deve se
pretender universal, evitar e diluir as contradições. Portanto, cabe à escola legitimar e
reproduzir este conhecimento perfeito, buscar o consenso e apagar o que é múltiplo e
dissonante. No entanto, diante desta proposta, podemos resgatar a chama de uma vela e,
assim como Bachelard (1989), dizer aos defensores de uma ciência absoluta, autoritária
e fechada em si mesmo: “depende”2.
Depende, porque o desafio real que encontramos em nossa prática é afirmar o
espaço para as diversas expressões culturais e saberes no cotidiano escolar. Olhar com
sensibilidade para outras possibilidades de significar o currículo e a escola, nos leva à
reflexão para a ação que podemos desenvolver para legitimar o resgate de saberes
desqualificados no decorrer da história da educação e da instituição escolar e, além
disso, ousar a outras reflexões que nos levem a entender e reconhecer quem determina e
quais os valores que fundamentam nossos currículos e nosso posicionamento em sala de
aula. De que forma podemos desafiar a noção de conhecimento dominante e estabelecer
novas possibilidades de ciência?
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Sendo assim, para ilustrar uma forma de produção de conhecimento, em outra
lógica de construção do saber, apresentamos nesse estudo uma pesquisa etnográfica
realizada em território Xavante, que revela o corpus de um currículo que se inscreve no
corpo pintado, um acontecimento transmitido oralmente pelos “velhos” da aldeia.
Corpo pintado xavante: currículo inscrito no corpo
O corpo pintado xavante revela um mundo de imagens, cujo repertório
simbólico é a própria base da socialidade. Ao se apresentar extraordinariamente em
rituais e cerimônias, é o instrumento fundamental para a incorporação3dos elementos da
natureza, dos animais e dos espíritos, assim como das próprias categorias sociais
xavante. Todos os corpos, o humano inclusive, são concebidos como vestimentas ou
envoltórios (CASTRO, 2002). Essa investidura, essa vontade de diferenciação não se
resume apenas em decorá-lo, mas de construí-lo, contribuindo efetivamente para o
entrelaçamento entre a estética e as características dos domínios da sociedade, da
natureza e da sobrenatureza. O corpo não é apenas um suporte de um discurso
simbólico, ele também participa como elemento plástico. Suas qualidades formais
integram o sentido do conhecimento xavante. O símbolo não mais se explicita. Forma e
conteúdo, significado e significante se complementam nas forças espirituais que
desempenham um importante papel na sua cosmovisão: nas forças dos espíritos do bem,
que cultivam a vida, e nas do mal, que provocam doenças e mortes.
A pintura corporal é formada de grandes áreas nas cores vermelha do urucum,
negra do jenipapo e carvão e, em alguns casos específicos, na cor branca da argila. O
caráter pictórico é primordial entre os Xavante, mas, no entanto, aparecem também
alguns elementos gráficos que interagem com os pictóricos, como axadrezados, listras,
pontilhados, quadrados, retângulos, tracinhos e bolinhas. As cores pintadas em seu
corpo devem ser interpretadas a partir de códigos próprios. Cada informação cromática
se insere num sistema que estrutura um grupo semântico específico. O vermelho e o
preto, como elementos básicos na plástica corporal, definem um estilo dual: “é a
realização de uma arte visual de um povo que resume no jogo do vermelho e preto,
temas cruciais da vivência humana: a vida/procriação e a morte/agressividade”.
(MÜLLER, 1992, p.98). O Xavante Hiparidi diz que o vermelho representa a vaidade,
vitalidade e beleza, e o preto é a responsabilidade, status social adquirido ou a
conquistar perante a sociedade.
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O corpo é o sujeito do ser que combina com essas cores (...). Cada fase
significa se criança ou adolescente. A pintura não é só a arte, em cada pessoa
vai se modificando porque tem a ver com o sentimento da pessoa, a
personalidade da pessoa e com a espiritualidade. Como a pessoa está. Aí vai
ter uma área maior de preto ou vermelho, dependendo da pessoa (HIPARIDI,
2007).
Como usam as mãos e os dedos para se pintarem, a relação existente entre quem
pinta e é pintado termina por integrar a todos os demais sentidos que essa envolve.
Relação que é vivenciada através das mãos que tocam o corpo de diferentes modos e
que imprimem e selam no pintado sua afinidade e afetividade. Quando se pintam, a
parte da frente é realizada pelo próprio indivíduo (atualmente com a ajuda do espelho) e
a parte de trás, pelo pai, padrinho, madrinha, amigo ou amiga4, complementado a
relação entre aquele que pinta e aquele que é pintado. Sr. Adão, pajé da Aldeia
Abelhinha, salienta: “Na vida a gente não é autossuficiente. O outro sempre
complementa a gente”(ADÃO TOP‟TIRO, 2005).
O vermelho urucum se caracteriza, aos olhos Xavante, por sua grande beleza; e,
acima de tudo, fortalece as pessoas. Eles estabelecem, também, uma conexão explícita
entre o urucum (bö) e o sol (bödö).O sol, o urucum e o vermelho fazem parte de um
único complexo que, está associado a propriedades vitais, criativas, positivas, afirma
Maybury-Lewis (1984). A cor preta está associada à destruição, à ideia de fim. É o
elemento de oposição ao vermelho. Quando os indivíduos vão participar da abertura
inicial de uma fase ritualística, pintam-se de vermelho e no momento de encerramento,
todos usam uma pintura preta. Essa antítese se expressa, também, na classe de idade que
está para deixar a categoria de rapazes. “Nesse momento, os representantes da primeira
delas estão significativamente pintados de preto, o que simboliza o fim de sua condição
de guerreiros; o outro, de vermelho, o que simboliza sua passagem para a posição
deixada vaga por seus antecessores”(Ibid., p. 318).
A cor branca, entre os Xavante, significa ausência de cor. “O branco proveniente
de uma espécie de argila é utilizado em motivos que representam animais e espíritos”
(MÜLLER, 1979, p. 27). Giaccaria (2000, p. 39) relaciona a cor branca ao colar de
algodão que “é o peito branco do gavião, como está contado no mito da moça infiel que,
por castigo, foi jogada no fogo e se transformou em gavião. Como ela tinha o colar de
algodão, o peito do gavião ficou branco”. Os símbolos não são unívocos, “mas têm a
particularidade de basear mais no concreto e no vivencial com um raciocínio feito mais
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por meio de imagens do que de conceitos”. (Ibid., p. 40). O que tem valor não é tanto o
algodão, as peninhas do gavião, mas o branco, a brancura. “A essa cor estariam ligadas,
simbolicamente, a força, a saúde, a masculinidade e a fecundidade”(Ibid, p. 42).
Usar o corpo pintado é uma maneira de apreender e expressar uma forma que
encorpora seus anseios. A manutenção dessa forma de construção de corpo é
indispensável à realização de rituais, momento em que ocorre a mediação simbólica
entre o visível e o invisível, em que os corpos se espiritualizam/animalizam e os
espíritos/animais se corporificam (CASTRO, 2002).
Essa “forma que informa”, esse saber incorporado que faz a memória coletiva de
um grupo social constitui um “terriço” a partir do qual a cultura pode crescer
(MAFFESOLI, 1996). Forma e informa sua presença no mundo. A imagem comunica e
contribui para a continuidade da tradição. A tradição é o conhecimento xavante, é um
currículo vivo que se atualiza e se inscreve no corpo. O corpo é um corpus que se abriga
e que emana as relações experimentadas e vivenciadas nas distintas situações em que se
envolve, revelando aspectos de uma tradição viva e pulsante situada em fronteiras
dialógicas. Corpo que necessita se apresentar pintado para fazer circular a memória e a
cultura xavante.
As atividades pedagógicas que desenvolvemos, nos diversos espaços no
cotidiano da escola, foram um importante exercício para o diálogo entre os diferentes
grupos sociais e culturais e, ainda, para o reconhecimento dos sujeitos da escola, que
participam da constituição da mesma e que, neste processo, vão se constituindo em
agentes nas propostas curriculares.
O que o caminho já nos ensinou...
O grande desafio do nosso tempo consiste em aprender não só a conviver com as
diferenças, mas reconhecer que a produção de conhecimento ocorre de modos
diferenciados. Nesse sentido, afirmamos que uma educação sensível às diferenças deve
reconhecer que o currículo escolar e a formação docente devem ser constituídos
enquanto processos criativos e culturais, que podem ser acompanhados de múltiplos
debates no "chão da escola" e fora dela, dando voz às diferenças. Apostar na
originalidade que nasce justamente das apostas em práticas docentes e investigações
didáticas que podem fazer surgir novas formas de se pensar o conhecimento, a escola, o
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processo de aprendizagem e de significação do mundo, tem orientado o nosso trabalho
na perspectiva das relações étnico-raciais.
Defendemos que potencializar o sentido de criatividade e de relação com a
produção de conhecimento e os diversos saberes que circulam - no meio acadêmico, nas
escolas e no mundo - pode ser um caminho para o surgimento de outras possibilidades
para professores e alunos vivenciarem no “chão da escola”. Justamente, por isso, no ano
de 2015, convidamos professores indígenas e quilombolas para também realizarem
formações com os professores da Fundação Municipal de Educação de Niterói.
Consideramos esta experiência fundamental porque ela promove uma aproximação e
possibilidade de interlocução entre lógicas diferentes de produção de conhecimento.
Não podemos prever o que as traduções e ressignificações destas propostas em
cada sala de aula promoverão. A nossa torcida é de que, cada vez mais, professores e
alunos reconheçam que este espaço é dinâmico, em constante transformação e
reinvenção que transgridam a ordem de um conhecimento que se pretende universal.
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__________________________
1 Termo utilizado na antropologia para definir a sociedade civil e destacar o caráter marginal
ocupado pelas comunidades indígenas.
2 O prof. José Américo Pessanha (1993), em sua palestra: Filosofia e modernidade: racionalidade e
ética, relacionou a discussão em pauta com o personagem de Clarice Lispector - Ofélia Maria dos
Santos Aguiar, que inspirou a redação destas considerações finais.
3 Viveiros de Castro cria o neologismo encorporar para explicitar certas disposições específicas –
esquemas de percepção e ação – em que a forma corporal humana é apreendida pelo
perspectivismo ameríndio (CASTRO, 2002, p.374).
4 São os que fazem parte da mesma classe de idade.
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RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS NA POLÍTICADE FORMAÇÃO DE
PROFESSORES DA SECADI NO GOVERNO LULA (2003-2010)
Cristiane Gonçalves de Souza
Universidade do Estado do Rio de Janeiro- UERJ
Resumo
Nesta comunicação proponho apresentar análises de pesquisa dos processos de
articulação para a criação da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e
Diversidade do Ministério da Educação (Secadi) e a produção de sentidos de diferença e
cidadania, presentes na elaboração das publicações e projetos para a formação docente,
no período do governo Lula (2003-2010).A criação da Secadise deu após amplo debate,
com destaque para as lideranças indígenas e o movimento negro. Seria uma secretaria
de inclusão educacional que, para atingir este objetivo, deveria orientar suas ações para
a complexa sociodiversidade presente no Brasil. Portanto, educar para a diversidade
também era um eixo para a qualidade da educação. Os termos diversidade, inclusão e
diferença foram usados na tentativa de alcançar a totalidade de objetivos e demandas
que os movimentos sociais exigiam e que a secretaria teria que buscar atender. Contudo,
estes três termos tem significados e dimensões políticas que no debate ganharam
contornos universais e, por vezes, contraditórios, nos movimentos sociais. O
entendimento do que é inclusão, diversidade e diferença nem sempre são entendidos em
uma mesma perspectiva.Este processo de investigação sustenta-se nos aportes pós-
estruturais e na teoria do discurso de Laclau e Mouffe,e argumenta que as demandas da
diferença ampliam as cadeias de equivalências entre universais que buscam preencher o
significante diversidade e o seu lugar nos currículos escolares, território disputado por
vários discursos pedagógicos, em que o conceito de diferença e nação são antagônicos.
A hipótese inicial da pesquisa é de que alguns grupos constituídos para o
desenvolvimento destas políticas disputaram a produção de sentidos para a elaboração
de materiais e projetos para a formação de professores, em um processo de articulação
que promoveu um sentido hegemônico, ainda que contingente e provisório, para
formular uma política de formação para a educação das relações étnico-raciais.
Palavras-chaves: Relações étnico-raciais; Formação de professores; Currículo.
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Considerações iniciais
Este estudo tem como objetivo analisar os processos de articulação na
formação da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade do
Ministério da Educação (Secadi)1 e a produção de sentidos de diferença e de cidadania,
presentes na elaboração das publicações e projetos para a formação docente, no período
do governo de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010).
Esse trabalho, sustentado na teoria do discurso de Ernesto Laclau e de
Chantal Mouffe (2004) sublinha que as demandas da diferençaaumentam as cadeias de
equivalências entre universais que buscam preencher o significante diversidade e o seu
lugar nos currículos escolares, onde inúmeros discursos pedagógicos trazem um
antagonismo entre os conceitos de diferença e de nação:
O conceito de nação, por mais que se defina como plural, não pode incluir a
todos porque depende, para se estabilizar, da construção de um Outro. Dessa
forma, educar para a cidadania é falar em nome de uma totalidade
impossível, de um universal que, como todo universal, constitui-se com base
em exclusões (MACEDO, 2009, p. 104).
A análise se desenvolve no sentido de entender as articulações que
promoveram o sentido hegemônico para um projeto de educação para a diversidade.
Para tal, foram analisadas as atas de reuniões e plenárias convocadas para a discussão
das diretrizes para a educação das relações étnico-raciais, realizando-se entrevistas com
membros das comissões instituídas para a elaboração dos projetos e materiais para a
formação continuada dos professores.
As reflexões apresentadas neste estudo estão articuladas com as discussões
desenvolvidas no grupo de pesquisa: "Políticas de Currículo e Formação de
Professores, coordenado pela Profa. Rosanne Evangelista Dias, no PROPED/UERJ.
Marcos institucionais para as relações étnico-raciais
A Secadi tem, como marco institucional para o tema das relações étnico-raciais,a
implementação das Leis n. 10.639/2003 e n. 11.645/2008. Algumas perguntas que
inauguraram esta pesquisa se colocam no eixo da abordagem pós-estrutural e da teoria
do discurso: quais sentidos de diferença podemos identificar nos documentos oficiais e
orientações da Secadipara a formação docente? Quais articulações marcaram a disputa
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pelos processos de significação para uma educação das relações étnico-raciais? Como se
deram as lutas discursivas de representação do que é ser negro, índio ou quilombola, por
exemplo? Como podemos entender a centralidade da questão racial e do movimento
negro, na legislação, nos projetos de formação continuada e nas diretrizes curriculares
para as relações étnico-raciais? Nos materiais para a formação de professores, quais os
sujeitos diretamente envolvidos na opção teórica e metodológica?
Os enunciados de interculturalidade, diversidade e pluralidade cultural, ainda
que presentes nos documentos oficiais e materiais didáticos, não tem explicados os
sentidos destas categorias; portanto, vale destacar a importância de analisar os sentidos
e os usos que eles ganham nas políticas educacionais.
Na Europa, o conceito de interculturalidade ganhou espaço nos debates sobre
educação já na década de 1970, quando a diversidade étnica e cultural tornou-se fonte
de preocupação em países como Espanha, França e Itália, que incorporaram os
conceitos de interculturalidade e diversidade em seus projetos de educação voltados aos
imigrantes e a outras minorias presentes em seus territórios nacionais, como os ciganos.
No Brasil, no governo do então presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-
2003) foi criado o Grupo de Trabalho Interministerial para Valorização da População
Negra. Também foram elaborados os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), um
projeto desenvolvido pelo Ministério da Educação (MEC) durante os anos de 1995 e
1996 e que culminou com a sua aprovação pelo Conselho Nacional de Educação (CNE).
A Pluralidade Cultural, na qual as questões da diversidade foram contempladas, ainda
dentro de uma perspectiva universalista de educação (GOMES, 2009).
A 3ª Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a
Xenofobia e Formas Correlatas de Intolerância, promovida pela Organização das
Nações Unidas (ONU) de 31 de agosto a 08 de setembro de 2001, em Durban, África do
Sul, promoveu a mobilização e a produção de políticas de ações afirmativas,
compromisso assumido internacionalmente pelo Estado Brasileiro.
No governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (2003), o compromisso
assumido em Durban se desdobrou em políticas mais concretas. Destacou-se a criação
da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), em 2003.
No Ministério da Educação foi criada a Secadi, em 2004.
Cabe ressaltar que esta pesquisa não entende as políticas públicas como
verticalizadas em uma perspectiva estadocêntrica, mas como processo de articulação de
vários sujeitos dentro de estruturas de poder, como aponta Dias (2015):
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Na constituição de um projeto hegemônico, as diferenças entre
sujeitos e suas demandas não se apagam, daí não se tratar da formação de
uma igualdade. As particularidades são mantidas podendo vir a se associar a
outros grupos em busca de um projeto mais amplo, em outras cadeias de
equivalências, capazes de atender a demandas diversas (Laclau, 2006). As
aglutinações de diferentes demandas nos processos de prática articulatória
tendem a formular um discurso comum, porém, provisório e contingente, no
qual há fixação parcial dos sentidos possíveis da significação (DIAS, 2015,
p.1).
A criação da Secadi se deu após amplo debate, que perdurou por alguns meses,
onde várias lideranças dos movimentos sociais, com destaque para os indígenas e o
movimento negro, quando houve alterações na estrutura organizacional do Ministério da
Educação. Dentre elas, a criação de uma secretaria que tivesse como prioridade o
atendimento a parcelas da população em desvantagem educacional. Seria uma secretaria
de inclusão educacional que, para atingir este objetivo, deveria orientar suas ações para
a complexa sociodiversidade presente no Brasil. Portanto, educar para a diversidade
também era um eixo para a qualidade da educação.
Diversidade, inclusão e diferença: lutas pelo processo de significação.
Os termos diversidade, inclusão e diferença foram usados na tentativa de
alcançar a totalidade de objetivos e demandas que os movimentos sociais exigiam e que
a secretaria teria a partir de sua criação, buscar atender. Contudo, estes três termos tem
significados e dimensões políticas que, no debate, ganham contornos universais e, por
vezes, contraditórios. Nos movimentos sociais, o entendimento do que é inclusão,
diversidade e diferença nem sempre são entendidos em uma mesma perspectiva.
Neste ponto, Macedo (2009), contribui para o debate, ao analisar de que forma a
articulação hegemônica em torno do significante qualidade da educação, reduzem a
circulação da diferença, ainda que, as políticas curriculares apresentem uma ampliação
na representação dos movimentos sociais. Importante ressaltar que a autora percebe o
risco de generalizar, reconhecendo que cada instância de formulação e articulação das
demandas dos movimentos sociais, tem as suas especificidades:
Os movimentos que buscam tornar possível a articulação entre igualdade e
diferença têm dinâmicas políticas próprias e não podem ser analisados em
termos genéricos. Cada um envolve aproximações e afastamentos
contingentes entre posições diversas, decisões na esfera de luta política que
precisam ser analisadas em suas especificidades(MACEDO, 2014, p. 86).
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Macedo (2009) enfatiza que, apesar do destaque que a pluralidade cultural
ganhou nos documentos curriculares nos anos de 1990,a defesa de conteúdos de cunho
universal que cumpririam o objetivo de socializar valores e saberes, e garantiriam a
igualdade de oportunidades a toda a população, ganhou ressonância em vários contextos
do debate.
Nessa esfera também se insere a criação da Secretaria de Educação Básica. Era
necessário que as secretarias e respectivas coordenações fossem organizadas e que
fossem definidas suas responsabilidades. Um intenso debate e negociações tiveram
início com a participação de movimentos sociais e outros órgãos do MEC (PALADINO
e ALMEIDA, 2012). Ao fim deste processo, foi construída outra identidade para a
nova secretaria; o conceito de inclusão foi abandonado – satisfazendo, assim, algumas
lideranças indígenas que entendiam que a proposta da Secretaria de Educação Básica de
inclusão representava integração – e assumiu-se a proposta mais complexa de atentar
para a diversidade, em suas múltiplas dimensões. ASecadi se firmava como secretaria
do MEC para a promoção de políticas de educação para a diversidade.
De acordo com o documento publicado por esse Ministério, em novembro de
2008, o qual apresentou contribuições para a implementação da Lei n. 10.693/2003, três
concepções de diversidade presentes na política do ministério foram identificadas.
A primeira teve como fundamento o binômio inclusão/exclusão. Nesta concepção,
“a questão étnico-racial se dilui, e a diversidade não resulta em revisão das concepções,
modelos e referências das políticas educacionais” (BRASIL, 2008, pág. 23). Ao
promover a incorporação dos excluídos a um modelo instituído, ela desconsiderou suas
identidades específicas, observando apenas a perspectiva socioeconômica.
Como assinala Pontes (2009):
políticas curriculares para obrigatoriedade de inclusão de conteúdos de
história e cultura de grupos subalternizados se inscrevem como políticas não
somente de enunciação de demandas por valorização, reconhecimento e
reparação, mas como políticas de disputa pela autoridade parcial e
contingente sobre sua própria história e cultura (PONTES, 2009, p.13).
As ações afirmativas marcam a segunda concepção de diversidade presente nas
políticas do MEC, tendo o ProUni, Programa Universidade para Todos seu mais efetivo
exemplo de política implementada.
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A terceira abordagem, que mais se aproxima da que é apresentada neste artigo, é
a que reconhece a diversidade como “políticas da diferença”, que aposta na demanda
pelo igual reconhecimento do direito das diversas culturas a se expressarem e atuarem
na esfera pública.
Conforme relatório do grupo de trabalho interministerial instituído pela
Seppirem maio de 2008, que enviou ao MEC as considerações relativas às políticas até
então adotadas para implementação da Lei n. 10.693/2003, a terceira abordagem ainda
não havia recebido a devida atenção na agenda de discussão do MEC.
Portanto, ao analisar documentos produzidos em reuniões e plenárias, assim
como os documentos oficiais, podemos entender algumas dimensões das lutas no
interior do MEC, onde representantes de vários segmentos dos movimentos sociais,
agências governamentais e transnacionais, mobilizaram discursos pela conquista da
hegemonia que, refletidos nos materiais para formação docente e em documentos
oficiais, fixaram sentidos de diversidade e orientaram, assim, a produção de materiais e
a formulação de políticas para a formação docente.
A Secadi, foi uma secretaria responsável pela implementação das políticas
públicas educacionais para a diversidade, onde ganhou destaque a implementação das
Leis n. 10.693/2003 e n. 11.645/2008.
Na década de 1990, os documentos curriculares e as políticas educacionais
voltadas para a diversidade foram ampliados e ganharam destaque na produção
acadêmica. Os movimentos sociais e as demandas identitárias, que haviam adquirido
maior visibilidade na década anterior, disputaram os sentidos de identidade e
representação que ganharam caráter hegemônico nos documentos curriculares,não
obstante alguns grupos tenham se ressentido do não atendimento e visibilidade às suas
demandas.
Articulação, hegemonia e posições de "sujeito"
Conforme ressaltado, esta pesquisa apresenta críticas ao modelo estrutural para
lidar com a diferença (LACLAU, 1996) e propõe conceber:
... a diferença e a cultura a partir da perspectiva pós-estrutural e a diferença
entre como uma limitação da noção de diferença constituída no jogo político.
Isso implica uma mudança radical nas relações entre cultura e currículo e o
abandono da noção de identidade pré-constituída que tem estado na base das
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políticas de formação e dos discursos de diversidade/diferença/pluralidade
cultural (MACEDO, 2014, p. 89).
Portanto, defendo que o conceito de diversidade presente nos enunciados das
políticas públicas, assim como o discurso do universal, silenciama diferença como tal,
ou seja, o diverso é outra manifestação do mesmo. Por isso, a importância de análises e
de pesquisas acadêmicas que tensionem a abordagem da diversidade e desconstruam, na
perspectiva pós-estrutural, os universalismos, sejam os que apostam na
diversidade/diferença entre, sejam os que defendem a cultura universal.
Laclau (1996) defende que o modelo estrutural, ao fixar posições específicas de
sujeito, limita a noção de diferença. Argumenta que o abandono da ideia de identidades
pré-constituídas é um caminho mais enriquecedor para a desconstrução de discursos
hegemônicos. Macedo (2014) aponta que a ampliação do poder de significar pode ser o
resultado da desconstrução de sentidos hegemônicos de representação:
A luta por políticas de currículo que façam face à diferença é, portanto, uma
luta pela desconstrução dos universalismos, sejam os que defendem uma
cultura universal, sejam os que apostam na diversidade e tornam a diferença
diferença entre2(Burbules). Esta tarefa desconstrutiva implica perceber que a
cultura não é um mero objeto epistemológico, mas o espaço mesmo de
significação e representação, em que a diferença é enunciada e sempre adiada
(Bhabha, 2003). Nessa perspectiva, a cultura como objeto epistemológico é
apenas uma redução de seus sentidos com o intuito de inviabilizar a
circulação da diferença como tal. Na acepção de Appadurai (2001), a cultura
como objeto epistemológico é o estancamento do fluxo que caracteriza o
cultural por meio da nomeação que lhe confere uma identidade (MACEDO,
2014, p. 92).
Reconhecendo que a hegemonia é resultado de uma disputa entre atores
inseridos em um coletivo que, por meio de cadeias equivalenciais, articulam a formação
de múltiplas identidades diferenciais- que esvaziadas de significados particulares,
formarão o que Laclau nomeia como significante vazio -; hegemonia então, é o
preenchimento de um vazio no significante, fazendo um ponto nodal na cadeia de
significação. Portanto, “a hegemonia é um tipo de relação política e uma lógica social,
não um lugar na topografia social. Por isso mesmo, hegemonia é sempre instável,
ambígua e plural – podem ser múltiplos os processos hegemônicos” (LACLAU, 1996).
Em 10/3/2004, foi aprovado o parecer CNE/CP 003/2004, onde foram estabelecidas
legalmente as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN). No próprio texto, no início de
sua redação, fica claro que a participação do Movimento Negro é relevante, ainda que
sejam mencionadas prerrogativas legais para o objetivo de um projeto de educação
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nacional que garanta “igual direito às histórias e culturas que compõem a nação
brasileira” (CNE/CP 003/2004, p. 497). A ideia de uma identidade nacional já fica
explícita enquanto um projeto de educação e, portanto, para a formação de educadores.
Educar para a diversidade, faz parte de um projeto identitário, que é a nação. Defendo
que o próprio argumento de nação guarda em si uma universalidade que o aporte teórico
que fundamenta esta pesquisa busca tensionar. As articulações universalistas, que
ganham maior expressão, se desdobram em silenciar as demandas da diferença.
A defesa de uma educação de qualidade supera o esforço das políticas de acesso
e de permanência. As políticas curriculares para a diversidade ganham sentido, também,
para a educação do cidadão, formar cidadãosplurais; é um projeto de nação, mas, ao
contrário do que se almeja, não operamos com a possibilidade de um sujeito acabado,
que após a sua escolarização terá acesso a uma igualdade impossível: este sujeito terá o
lugar contingente, onde ele sujeito, no decorrer da ação política, promoverá articulações
que criam sentidos novos, ou seja, a diferença em si. Libertar os sujeitos do conceito de
diferença entre, é assumir que a diferença não é uma diferença entre iguais, mas o que
Burbules (2003) nomeia de diferença contra. Como explica Macedo (2014):
Ainda que eu prefira usar apenas o termo diferença, a diferença contra remete
a uma discussão necessária, pois redefine a tarefa político-teórica em favor da
diferença. Se a cultura é différence, é enunciação (criativa), como a 'diferença
entre' se tornou, por séculos, praticamente sinônimo de diferença? Como tem
sido possível tornar invisível o caráter produtivo da diferença, cristalizando o
diferente de tal forma que ele parece concreto? Por que as cristalizações
assumem esta ou aquela forma e não outra qualquer? Por que algumas
diferenças produzem efeitos reais/efeitos de verdade, constroem identidades
com as quais nos acostumamos a lidar cotidianamente? A própria formulação
de tais perguntas implica aceitar que há relações de poder que direcionam os
sistemas de significação, fixam posições de sujeito e favorecem hierarquias e
assimetrias (MACEDO, p. 93, 2014).
Pensar o Movimento Negro e outras representações de grupos minoritários, à luz
da teoria do discurso, nos convida a recusar qualquer essencialização das posições de
sujeito dentro dos movimentos sociais, considerando que, apesar de não negar a
existência da estrutura, ela não determina posições sociais; estas são firmadas no
processo de articulação entre os sujeitos que buscam representação em um discurso
hegemônico. Como argumenta Macedo (2009):
Todo sujeito procura por um significante que possa expressá-lo dentro da
ordem simbólica, num ato de significação que nunca será totalmente possível.
O sujeito busca por intermédio de atos de significação preencher uma falta
constitutiva; ele entra na relação antagônica com a esperança de que,
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aniquilando o adversário, possa estabelecer a identidade plena que lhe é
negada. Portanto, é o sujeito que tenta resolver a crise da estrutura deslocada
por sua identificação com um dos projetos disponíveis no espaço indecidível
dessa estrutura. Assim, não é a estrutura que define as posições de sujeito,
mas o sujeito que, ao decidir por uma posição de sujeito, articula a estrutura
(MACEDO, 2009, p. 91).
Dessa forma, operar com o conceito de nação, no contexto de um projeto de
educar para a diversidade, exige que não apenas as demandas do movimento negro
sejam atendidas, ainda que esta pesquisa aponte para a hipótese de que houve uma
ascendência deste movimento nos processos de articulação no início das políticas
implementadas pela Secadi, mas que levou à necessidade de ampliar as demandas para
se garantir a hegemonia na luta pelo reconhecimento da diferença.
Neste ponto, gostaria de citar o movimento recente de fortalecimento das
lideranças indígenas no interior da Secadie o desdobramento com a criação dos novos
Núcleos de Estudos Afro-brasileiros e indígenas (Neabis). Levanto esta questão porque
é um dos temas centraisdesta pesquisa, em que percebo uma nova articulação do
movimento negro que, para manter o financiamento dos projetos voltados para a
formação docente, por exemplo, precisam incluir a temática indígena de forma mais
efetiva. Um dos sentidos de qualidade da educação presentes nos documentos
curriculares está diretamente relacionado a um projeto de formação cidadã, a um projeto
de nação. Interessante apontar que o conceito de nação e o de identidades nacionais,
previamente estabelecidos, estão sendo discutidos e relativizados. Entretanto, o conceito
de nação é muito forte e, quando se pensa em uma política pública de educação, o
discurso para a construção de um país para todos é muito presente e sedutor. Quem
poderia negar a tolerância, a igualdade de oportunidades para todos, a presença da
história de grupos marginalizados dos currículos, em um processo de educação que lute
pela igualdade?
Considerações finais
Educar para a diversidade apresenta múltiplos sentidos para a formação docente, e
não é incomum professores apresentarem, em seus discursos, um sentido de diversidade
que se aproxima mais da inclusão e do reconhecimento de uma dívida histórica com
grupos marginalizados e ainda outros, que percebem ainda este tema em uma
perspectiva da solidariedade. Não podemos negar o papel histórico de sujeitos de
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experiência e luta no movimento negro, indígena, LGBT, camponeses, entre tantos que
podemos apontar, que tiveram papel relevante no avanço das discussões em direitos
humanos e pela igualdade racial.
No entanto, este estudo vai na direção de entender como o fechamento, ainda
que provisório, de um discurso hegemônico privilegiando a diversidade, colocou à
margem desse debate curricular, na formação da Secadi, a argumentação acerca da
diferença. Defende que, ao fixar conteúdos para contemplar a História da cultura afro-
brasileira e indígena, as DCNs para a Educação das Relações Étnico-Raciaisconsolida
ainda que de forma provisória; uma dimensão universal do conhecimento, onde
determinados tópicos referentes a estas culturas devem estar presentes em nossos
currículos.
A lógica que venho defendendo nesta trajetória de pesquisa é a de que os
processos de elaboração de materiais didáticos e formatos de formação continuada,
guardam alguma fixação de sentido de representação: de raça, gênero, direitos e
conhecimento. Portanto, são sempre espaços de disputa pela hegemonia nos processos
discursivos que vão constituir a política para o desenvolvimento e fomento de
publicações e projetos de formação continuada. Defender uma educação que valorize as
diferenças, é argumentar com base na teoria do discurso de Laclau e Mouffe (2004), que
discursos antagônicos em disputa no interior de lógicas discursivas - no terreno das
relações de poder - vão se estabelecendo, e promovem deslocamentos que tornam
impossíveis as possibilidades de totalizações e de fixação identitárias.
Essa política curricular de inclusão de conteúdos de histórias e culturas dos
negros e dos povos indígenas se inscreve, ambivalentemente, no „mito das
três raças‟, para fixa-lo pela repetição continuísta de um passado comum e
pela ruptura da tradição por histórias dos grupos subalternizados no processo
de (re)construção da cultura nacional brasileira. O esforço de marcar „muitos
como um‟ para identificações totalizadas do povo, da nação, do negro, do
índio, do imigrante europeu pela expressão de experiências coletivas unitárias
é interrompido pela presença perturbadora da diferença cultural, do
inexplicável, do hibridismo. Reduzir a diferença cultural em sistemas
classificatórios homogeneizadores e estereotipados é uma tentativa de tornar
consensual o que é conflituoso, de fixar como certo o que é contencioso, de
negar histórias heterogêneas de grupos em disputas por uma harmonia
imaginada (PONTES, 2009, p. 15).
Nesta perspectiva, defendo uma política da diferença e não da diversidade
cultural, onde os ideais de harmonia e tolerância, buscam garantir uma igualdade que
considero impossível. Argumento, com Mouffe (2005) que, ao optar por uma política
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da diferença, reconheço nos processos de articulação elementos consensuais e
provisórios. Defendo uma teoria curricular, em uma perspectiva desconstrutiva, ou seja,
de se tensionar um discurso que se pretende unitário, reinserir a diferença e
potencializar deslocamentos, no que diz respeito à hegemonia do universal e à redução
da educação ao simples reconhecimento, radicalizando e colocando sob suspeita a
promessa de uma igualdade social e econômica.
Aposto no currículo como instituinte de sentidos, como ato criativo, onde o
sentido de uma educação para as relações étnico-raciais deve ser inserido,
ressignificando seu lugar no currículo como um espaço-tempo de fronteira cultural; e
onde haja a desconstrução de que existe um saber universal ou identidades fixas. E,
assim, buscando-se pensar as culturas como híbridas e, por conseguinte, negando o
realismo e as perspectivas fundacionais. Desta forma, em vários espaços-tempo,
entendo ser mais enriquecedor articular e ampliar a discussão sobre cultura, ética,
formação humana, cidadania e sustentabilidade ambiental, na perspectiva das
comunidades tradicionais, especialmente, quilombolas e povos indígenas, assim como
discutir a questão racial e da discriminação, assumindo que também este espaço é uma
arena de luta discursiva pelo poder de significar e demarcar fronteiras.
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__________________
1Em 2011, com a extinção de dois departamentos no MEC: a Secretaria de Educação a Distância (SEED)
e a Secretaria de Educação Especial (SEESP). Os programas da educação inclusiva foram incorporados à
Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (Secadi), anteriormente a
seção se chamava Secad e não abarcava a inclusão.
2Uma diferença que pressupõe o partilhamento de traços comuns entre aquilo que será diferenciado.
Trata-se de uma perspectiva em que se percebe facilmente o caráter essencial em que se sustenta a
distinção. (Macedo, 2014, p. 87).
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