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EDUCAÇÃO E RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS: APORTES PÓS-COLONIAIS Neste painel, apresentamos os resultados de pesquisas que articulam educação e relações étnico-raciais para negros e indígenas na educação básica tendo como aporte teórico as abordagens pós-coloniais e a teoria do discurso. O primeiro trabalho analisa os processos de articulação para a criação da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade na estrutura do Ministério da Educação. São discutidos os sentidos dos vocábulos diversidade, inclusão e diferença, seus significados e dimensões políticas a partir da teoria do discurso de Laclau e Mouffe, bem como a produção de sentidos para a elaboração de materiais e projetos para a formação de professores para as relações étnico-raciais. Conclui pontuando que as demandas da diferença ampliam as cadeias de equivalências entre universais que buscam preencher o significante diversidade e o seu lugar nos currículos escolares, território disputado por vários discursos pedagógicos, em que o conceito de diferença e nação são antagônicos. O segundo texto discute a possibilidade de construção de uma didática intercultural decolonial para as políticas públicas no campo da Educação Escolar Indígena. Para isso, fundamenta-se na teoria do discurso e nos estudos pós-coloniais latino-americanos. O último texto apresenta discussões acerca do projeto Arandu-Rape, cujo objetivo foi a formação de professores na perspectiva da Lei 11645/08 na rede municipal de Niterói- RJ. A discussão empreendida durante a formação procurou desconstruir sentidos hegemônicos de currículo e de prática de ensino como espaços fixos de saber e de produção do conhecimento. Teoricamente a experiência é analisada à luz das abordagens pós-coloniais e da teoria do discurso. Palavras-chave: Pós-Colonialidade. Relações Étnico-Raciais. Teoria do Discurso. XVIII ENDIPE Didática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira 10975 ISSN 2177-336X

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EDUCAÇÃO E RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS: APORTES PÓS-COLONIAIS

Neste painel, apresentamos os resultados de pesquisas que articulam educação e

relações étnico-raciais para negros e indígenas na educação básica tendo como aporte

teórico as abordagens pós-coloniais e a teoria do discurso. O primeiro trabalho analisa

os processos de articulação para a criação da Secretaria de Educação Continuada,

Alfabetização e Diversidade na estrutura do Ministério da Educação. São discutidos os

sentidos dos vocábulos diversidade, inclusão e diferença, seus significados e dimensões

políticas a partir da teoria do discurso de Laclau e Mouffe, bem como a produção de

sentidos para a elaboração de materiais e projetos para a formação de professores para

as relações étnico-raciais. Conclui pontuando que as demandas da diferença ampliam as

cadeias de equivalências entre universais que buscam preencher o significante

diversidade e o seu lugar nos currículos escolares, território disputado por vários

discursos pedagógicos, em que o conceito de diferença e nação são antagônicos. O

segundo texto discute a possibilidade de construção de uma didática intercultural

decolonial para as políticas públicas no campo da Educação Escolar Indígena. Para isso,

fundamenta-se na teoria do discurso e nos estudos pós-coloniais latino-americanos. O

último texto apresenta discussões acerca do projeto Arandu-Rape, cujo objetivo foi a

formação de professores na perspectiva da Lei 11645/08 na rede municipal de Niterói-

RJ. A discussão empreendida durante a formação procurou desconstruir sentidos

hegemônicos de currículo e de prática de ensino como espaços fixos de saber e de

produção do conhecimento. Teoricamente a experiência é analisada à luz das

abordagens pós-coloniais e da teoria do discurso.

Palavras-chave: Pós-Colonialidade. Relações Étnico-Raciais. Teoria do Discurso.

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POR UM DIDÁTICA INTERCULTURAL DECOLONIAL: UMA ANÁLISE

SOBRE A EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA NO BRASIL

Paulo de Tássio Borges da Silva

Universidade do Estado do Rio de Janeiro- UERJ

Benedito G. Eugenio

Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia

“A descolonização que se propõe mudar a ordem do mundo é... Um

programa de desordem absoluta... Um processo histórico... feito por

homens novos, uma nova linguagem, uma nova humanidade”

(FANON, 2001, p. 30-31)

Resumo

A proposta está situada no campo da Educação Escolar Indígena, tendo a

interculturalidade como mote de discussão. As reflexões são oriundas de trabalhos

desenvolvidos enquanto docente no curso de Licenciatura Intercultural Indígena

Tupinikim Guarani da Universidade Federal do Espírito Santo – UFES, na disciplina

“conhecimento e interculturalidade”, em oficina ministrada na Licenciatura Intercultural

em Educação Escolar Indígena – LICEEI da Universidade do Estado da Bahia – UNEB

sobre “o ensino nas aldeias” e em assessoria às jornadas pedagógicas junto à Escola

Estadual Indígena Kijetxawê Zabelê, pertencente ao Povo Pataxó do Território Kaí-

Pequi. Como hipótese à pesquisa, se tem o esvaziamento da categoria interculturalidade

nas políticas públicas para a Educação Escolar Indígena no Brasil, defendendo a

construção de uma didática intercultural decolonial na Educação Escolar Indígena. O

texto tem como apoio teórico a teoria do discurso e os referenciais pós-coloniais,

objetivando contribuir em reflexões ao campo da Educação Escolar Indígena no Brasil

acerca da categoria interculturalidade e didática. Como resultados evidencia-se que a

categoria interculturalidade tem amalgamado para si uma série de significados,

tornando-se necessária uma reformulação da mesma, na construção de cidadanias e no

reconhecimento de espistemes diversas. Neste sentido, insataurar projetos educativos

que fomentem e potencializem didáticas interculturais de descolonização é o desafio

que se faz presente, tendo em vista que a interculturalidade oficiosa já está delineada em

redes que fragilizam e (re)colonizam identidades, epistemes, localidades, entre outros.

Tal empreendimento não será possível nos moldes de uma criticidade dos estudos

étnicos de retorno ao fundacional ou original, sendo necessário cada vez mais o

entendimento do cruzar a fronteira e se por a caminho, sem medo de misturar e

hibridizar-se.

Palavras-chave: Educação Escolar Indígena; Intertculturalidade; Didádica Decolonial.

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Considerações Iniciais

Falar de interculturalidade talvez tenha se tornado clichê no discurso pedagógico

contemporâneo. Não falar de interculturalidade pode significar atitude não

politicamente correta, quando se trata de políticas educacionais para gupos indígenas,

quilombolas, ciganos e demais que se localizam dentro do guarda-chuva da categoria

comunidades tradicionais. É nesta discussão que lanço a hipótese de esvaziamento da

categoria interculturalidade nas políticas públicas para a Educação Escolar Indígena no

Brasil, e defendo a construção de uma didática intercultural decolonial na Educação

Escolar Indígena brasileira. Tais questões são oriundas de reflexões desenvolvidas

enquanto docente no curso de Licenciatura Intercultural Indígena Tupinikim Guarani da

Universidade Federal do Espírito Santo – UFES, na disciplina “conhecimento e

interculturalidade”, em oficina ministrada na Licenciatura Intercultural em Educação

Escolar Indígena – LICEEI da Universidade do Estado da Bahia – UNEB sobre “o

ensino nas aldeias” e em assessoria às jornadas pedagógicas junto à Escola Estadual

Indígena Kijetxawê Zabelê, pertencente ao Povo Pataxó do Território Kaí-Pequi. A

discussão tem como objetivo contribuir em reflexões ao campo da Educação Escolar

Indígena no Brasil acerca da categoria interculturalidade e didática.

Como referencial estarei dialogando a partir com a Teoria do Discurso e

referenciais pós-coloniais. Entre eles Laclau (1996) na discussão de significante vazio,

Rizvi (2015) com as reflexões sobre mobilidade, Wash (2008, 2009) no campo da

Interculturalidade crítica decolonial, e outros (as) teóricos (as) latinos que compartilham

o objeto de estudo da Educação Escolar Indígena.

A Interculturalidade na América Latina

Presenciamos na América Latina uma Educação Escolar Indígena que tem no

México décadas de implementação, lidando este com os problemas desta

institucionalização a partir do aparato estatal. O México foi o primeiro país da América

Latina a oficializar a interculturalidade em seus programas educativos para indígenas,

em parceria com a instituição missionária norte-americana Summer Institute of

Linguistics – SIL. Contudo, foi somente a partir da década de 1990 que a perspectiva de

trabalhos educativos interculturais com os indígenas mexicanos se desvencilhou do

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ideal de homogeneidade e civilização. As mudanças adviram pela reforma da

Constituição em 1992, incluindo no Artigo 4º a definição do país como multicultural e

plurilíngue, desencadeando em 1997 a substituição da política de Educação Bilíngue

Bicultural para Educação Intercultural Bilíngue, criando-se em 2001 a Coordenação

Geral de Educação Intercultural Bilíngue, ficando estabelecida a educação intercultural

para toda população mexicana, e a educação específica para os indígenas em todos os

níveis educativos (SCHMELKES, 2007).

No Chile, o Programa de Educação Intercultural Bilíngue foi criado em 1996

pelo Ministério da Educação, desenvolvendo paralelamente a política afirmativa de

concessão de bolsas a estudantes da educação básica, média e superior, a fim de

diminuir o abandono escolar e a repetência. O Chile reconhece oito etnias em seu

território (mapuche, aymara, rapa nui ou pasqüense, likan antay, quechua, colla,

kawashkar ou alacalufe e yamana ou yagán), havendo dificuldades na promoção da

Educação Intercultural Bilingue no país. Entre as dificultades estão: a carência de uma

política linguística, a não integralização das definições da Educação Intercultural

Bilíngue nos planos e programas de estudos oficiais, dificuldade no estabelecimento de

uma pedagogia intercultural bilingue, entre outros (CASTRO, 2007).

O documento do Ministério da Educação do Peru legisla em 1989 a Política de

Educação Bilíngue Intercultural do país, tendo um forte direcionamento para a questão

linguística. Em 1991 é promulgada a Política Nacional de Educação Intercultural e

Educação Bilíngue Intercultural, definindo a educação de todos os peruanos como

intercultural, sejam eles indígenas ou não (CASTILLO & MALLET, 1997). Fidel

Tubino (2005) tece críticas referentes à institucionalozação da interculturalidade no

Peru; para o autor, há uma interculturalidade normativa (formulada por filósofos e

educadores), “[...] que se expressa como discurso que pretende reger um dever ser, neste

caso, educativo oficial – dois modos de interculturalismo: o funcional e o crítico”

(CZARNY, 2012, p. 30). O interculturalismo oficial é o preenchimento discursivo dado

pelo estado em suas legislações, não havendo uma discussão das redes de poderes e das

desigualdades entre os povos, estando longe da interculturalidade demandada pelos

movimentos sociais a partir da década de 1970. Nesta discussão, o interculturalismo

oficial, “ao mesmo tempo, não leva em conta a injustiça distributiva, que é a outra cara

da injustiça cultural [substituindo], assim, o discurso da pobreza por aquele sobre

cultura” (CZARNY, 2012, p. 30). O interculturalismo crítico, ao contrário, se

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debruçaria às causas da injustiça cultural, criando dispositivos descolonizantes para

detê-los e superá-los, aproximando-se às demandas dos movimentos étnicos.

No Equador, a política educativa intercultural foi uma das primeiras a se

consolidar após o México, tendo a Educação Intercultural Bilíngue um sistema paralelo

ao ensino regular. Neste país, Walsh (2008) vem sinalizando a necessidade de

compreender a interculturalidade nas diferentes vozes que a tem preenchido. Para tanto,

a mesma propõe a construção de uma interculturalidade crítica decolonial, na superação

do interculturalismo oficial.

Na Argentina, a Educação Intercultural Bilíngue está em fase de implantação,

havendo críticas da escola indígena como um microcosmo colonial diante da falta de

autonomia que os indígenas tem para com suas escolas. Em países como Colômbia,

Guatemala, Costa Rica e Panamá, a Educação Intercultural Bilíngue é gestada por

programas nacionais e regionais; são países onde a política ainda não está bem

consolidada, tendo dificultades com comunidades distantes, chegando a não atender

todos os indígenas. Em países como Argentina, Paraguai, Costa Rica e Panamá, só há

projetos voltados para algumas comunidades em particular. Bolívia e Nicarágua se

dispõem a atender todos que falam o idioma nativo, não conseguindo a Bolívia, por

falta de apoio (LÓPEZ & SICHRA, 2007).

Fazendo uma balanço acerca da Política Educativa Intercultural na América

Latina, López e Sichra (2007) acenam a necessidade de se retomar o sentido político

que nasceu a Educação Intercutural Bilíngue, em resposta às tentativas de

homogeneização das “políticas liberais de reconhecimento da multiculturalidade naquilo

que nos caracteriza como latino-americanos” (LÓPEZ & SICHRA, 2007, p. 116).

Contudo, acredito que o caminho não seja este de retorno a um possível fundacionismo

do significante. Talvez seja mais profícuo entender as redes discursivas que tem

normatizado o significante intercultural, e as possíveis rasuras que tem oxigenado o

mesmo.

A Interculturalidade no Brasil: o que tem sido feito?

Diante do breve balanço apresentado acima em outros países da América Látina,

o Brasil se encontra em processo de institucionalização, sendo considerado até então um

projeto promissor de diálogo com os povos indígenas. Os projetos de Educação

Intercutural Bilíngue para os indígenas brasileiros datam do início do século XIX, em

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parceria do Serviço de Proteção ao Índio – SPI e o Summer Institute of Linguistics –

SIL, estendendo a parceria com a Fundação Nacional do Índio – FUNAI, após a

extinção do SPI. No entanto, é somente com a Constituição Federal de 1988 que os

projetos educacionais de interculturalidade abandonam a perspectiva integracionista e

civilizante para com os Povos Indígenas, adontando um olhar voltado ao

enriquecimento linguístico e ao fortalecimento cultural.

O Brasil tem uma vasta legislação que garante aos povos indígenas o acesso à

Educação Escolar Indígena Específica, Diferenciada, Intercultural, Bilíngue e

Multilíngue, sendo a mais importante a Lei de Diretrizes e Bases da Educação – LDB

nº. 9.394/1996, que regulamenta a oferta da educação escolar indígena. Após a LDB nº.

9.394/1996, muitas foram as Resoluções e os Pareceres que tem procurado dialogar com

a Educação Escolar Indígena brasileira, isto se for possível falar em uma única

Educação Escolar Indígena no Brasil, tendo em vista a quantidade de etnias e línguas

faladas. Não obstante, vemos projetos ditos interculturais caminhando com horizontes

poucos palatáveis ao que se espera construir de uma Educação Escolar Indígena de

qualidade, que colabore com os projetos societários de cada povo.

A Educação Escolar Indígena brasileira tem sido gestada numa ideia de

territórios étnico-educacionais, a partir do Decreto nº. 6.861/2009, mas não consegue

avançar na demarcação dos territórios indígenas onde as práticas educativas e escolares

acontecem. A proposta desencadeou uma série de críticas dos povos indígenas, que

alegaram não ter sido consultados na construção desta proposta, estando às vezes

organizados em territórios que conflitam historicamente entre etnias ou não há

identificação. Em 17 fevereiro de 2016, a Comissão de Direitos Humanos – CDH e

Legislação Participativa aprovou o projeto PLS nº. 737/2015, que institui os Territórios

étnico-educacionais como forma facultativa de organização da Educação Escolar

Indígena.

Cabe-me aqui questionar essa noção de território que se acopla à política da

Educação Escolar Indígena sem maiores reflexões às demandas de demarcação

territorial que acontece em todas as regiões deste país. Parece-me mais interessante

pensar a educação com uma certa mobilidade, como propõe Fazal Rizvi (2005), tendo

em vista que tal ideia de território pode enclausurar experiências e partilhas. Nesta

perspectiva, falar de mobilidade é falar de movimento e fluxos que devem ser tratados

como centrais na compreensão dos processos que reconstituem as comunidades

indígenas e suas escolas. Isto requer pensar a Educação Escolar Indígena que é

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profundamente afetada pelas dinâmicas de deslocamentos de suas comunidades, sejam

eles por conflitos territoriais, intercâmbios ou redes interculturais complexas. Para tanto,

seria necessário um currículo posto como fronteira (LOPES & MACEDO, 2011), com

entre-lugares e porvires, currículos móveis que rejeitem essa suposição sedentarista

tradicional, inclinada em tratar como normal a estabilidade, o significado no lugar, e

como anormais as mobilidades e as distâncias, gerando, assim, um territorialismo

metodológico, que tem nos servido muito para enclausurar etnopráticas,

etnoaprendizagens, quando senão negar aos indígenas que porventura estão em

contextos urbanos, o acesso à saúde diferenciada, à educação diferenciada, e até mesmo

ao seu reconhecimento étnico. Vale ressaltar que não me oponho aqui à ideia de

demarcação dos territórios indígenas, tão necessária para o bem viver. É uma tentativa

de compreensão de como alguns significantes tem incidido em nossas vidas, e quais

discursos estão sendo negociados.

A interculturalidade teve e tem tido seu lugar nas pautas políticas com o discurso

de que seria um dispositivo de diálogo no empoderamento das minorias, onde estas no

domínio de seus códigos específicos e dos códigos ocidentais poderiam pleitear seus

espaços na sociedade e economia. Mas que empoderamento e que diálogo é este sem

autonomia? Que diálogo é este que tem como premissa que o outro se curve aos

conhecimentos que eu julgo importante? Que diálogo é este onde eu dou as cartas do

funcionamento? Como eu proponho um currículo diferenciado e específico e em

seguida eu aplico um exame em molde nacional para medir a qualidade desta escola?

Enquanto sua proposta tem servido para pensar a descolonização epistêmica, seu

discurso também tem sido utilizado pelo Estado e agências internacionais como

dispositivo disciplinar e colonizador das diferenças, não acarretando grandes mudanças

nas relações de poder e nas desigualdades. Há um feitich para com as escolas indígenas,

num cultivo intenso do exótico nos currículos escolares, esvaziando-se muitas vezes os

sentidos culturais de cada povo numa escolarização de má qualidade.

Penso que a interculturalidade em nossos contextos tem servido para tudo, sendo

um chavão utilizado para tratar das questões indígenas e de outras minorias. É neste

diálogo com Laclau (1996) que convido a pensá-la enquanto um significante vazio.

Significante vazio é para o autor um significante sem sentido, contudo, mesmo este

significante não tendo nenhum significado/sentido, não o impede de ser uma parte

constituinte na significação. Ele ocupa lugares na significação por ter foro privilegiado

no interior de um discurso. O significante vazio não possui qualquer sentido específico,

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é uma posição ocupada por algum elemento particular, neste caso a interculturalidade, e

por ocupar essa posição exerce um papel representacional de toda cadeia discursiva e

articulatória.

Tomando de empréstimo a ideia de Laclau (1996), o significante vazio é um

nome, um ponto nodal que retém a si o deslizamento constante do significado. O

significante vazio serve a uma lógica de hegemonia, cumprindo demandas com

preenchimentos vazios. Neste caso, a interculturalidade como um significante vazio não

vem sendo fixada discursivamente, tendo sido empregada em tantos discursos e textos

políticos, que preencher a interculturalidade com diferentes demandas de políticas para

indígenas tem sido a maneira de manter a hegemonia ou tornar um interculturalismo

oficial, como apontou Tubino (2005).

Recentemente, 16 de fevereiro de 2016, uma equipe do MEC/SECADI se reuniu

para discutir a Base Nacional Curricular Comum – BNCC para as escolas indígenas,

sendo que um pouco antes, a presidência veta o PL nº 5944/2013, que pretendia ampliar

o uso de línguas indígenas e processos diferenciados de avaliação escolar para além do

Ensino Fundamental. Diante dos empreendimentos recentes à Educação Escolar

Indígena, coloco-me a perguntar: Que comunidades indígenas foram consultadas e serão

consultadas sobre a BNCC? Que conhecimentos foram legítimos a estarem ali? Quais

os perigos de uma Base Nacional Curricular Comum para as escolas indígenas? A

Avaliação Nacional será contextualizada? A provinha Brasil será contextualizada? A

provinha ANA será contextualizada? O ENEM será contextualizado? O livros didáticos

que chegam para muitas escolas indígenas serão contextualizados?

Por uma Didática Intercultural Decolonial

Ao lado dos desafios listados acima, tenho refletido em nossas experiências

brasileiras a necessidade de se construir sistemas que dialoguem com as diferenças

indígenas, mas não esse diálogo baseado num significante vazio em que se opera com

um sistema rígido e colonizador, com técnicos pouco informados e sensíveis a

colaborar.

As escolas indígenas possuem colegiados escolares e comissões executivas, que

levariam a ter autonomia na gestão financeira das escolas, comprando inclusive de

pequenos agricultores nas comunidades, colaborando com a geração de renda

comunitária e a segurança alimentar e nutricional, o que não acontece em grande parte

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das escolas. Contudo, o que se presencia é que as necessidades das escolas de cada

comunidade não são atendidas, e nem mesmo o ensino diferenciado, intercultural,

bilíngue é respeitado e garantido, uma vez que se engessa a educação escolar indígena

nos mesmos sistemas de gestão e avaliação da educação não-indígena. Neste diálogo,

tenho que concordar com D‟Angelis (2006) quando o mesmo se levanta contra a

ditadura da escola, dizendo que o que temos conseguido são escolas mais ou menos

indianizadas, em alguns casos, mais indigenizadas do que indianizadas. O grande

desafio da interculturalidade pós discurso normativo oficial é entender em que

circunstâncias tem se dado e pautado o discurso da interculturalidade, o que se tem

normatizado como intercultural e a que ponto tem servido aos interesses dos povos

indígenas, e não tem sido uma mera retórica compulsória quando se fala de projetos

para comunidades indígenas.

Pensar a construção de uma didática intercultural decolonial pode ser um

caminho neste esgotamento da categoria interculturalidade. Experiências de reflexão

vem sendo construídas em diferentes espaços de formação de professores (as) indígenas

e em escolas indígenas. Não obstante, promover espaços de descolonialidades não é

uma tarefa fácil em meio a séculos de diferentes colonialidades (colonialidade

espistêmica, linguística, econômica, cosmogônica, entre outras).

Para ajudar neste diálogo, Walsh (2009) vem construindo o que chama de

Interculturalidade Crítica Decolonial, uma proposta de descolonização das

subalternidades, bem como de enfretamento das (re)colonizações advindas do

neoliberalismo.

[...] a interculturalidade crítica – como prática – desenha outro caminho

muito distinto do que traça a interculturalidade funcional. Mas tal caminho

não se limita às esferas políticas, sociais e culturais; também se cruza com as

do saber e do ser. Ou seja, se preocupa também com a exclusão, negação e

subalternização ontológica e espistêmico-cognitiva dos grupos e sujeitos

racializados; com as práticas – de desumanização e de subordinação de

conhecimentos – que privilegiam alguns sobre os outros, “naturalizando” a

diferença e ocultando as desigualdades que se estruturam e se mantêm no seu

interior (WALSH, 2009, p. 23).

Instaurar projetos educativos que fomentem e potencializem didáticas

interculturais de descolonização é o desafio que se faz presente, tendo em vista que a

interculturalidade oficiosa já está delineada em redes que fragilizam e (re)colonizam

identidades, epistemes, localidades, entre outros. Para Walsh (2009), a

interculturalidade crítica é um projeto que “[...] se constrói de mãos dadas com a

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decolonialidade, como ferramenta que ajude a visibilizar estes dispositivos de poder e

como estratégia que tenta construir relações – de saber, ser, poder e da própria vida –

radicalmente distintas” (WALSH, 2009, p. 23).

Por decolonialiade se entende os processos e agenciamentos construídos em

relações interculturais que criticam a legitimação da epistemologia eurocêntrica e seus

discursos coloniais. Trata-se de um projeto político e epistêmico de valorização dos

conhecimentos subalternizados, que contribui para relações de respeito às diferenças,

bem como para a superação das desigualdades sociais estabelecidas por questões de raça

e etnia.

Considerações (in)conclusas

A categoria interculturalidade tem amalgamado para si uma série de

significados, tornando-se necessária uma reformulação da mesma, na construção de

cidadanias e no reconhecimento de espistemes diversas. Nesta perspectiva, em tempos

de negociações e tentativas de centramento curricular, e vetos a projetos de

descolonização epistêmica, em particular no campo linguístico, torna-se imperiosa a

construção de dispositivos que produzam e potencializem espaços às diferenças, tirando

estas do nicho exótico e pasteurizado, cota do politicamente correto. Tal

empreendimento não será possível nos moldes de uma criticidade dos estudos étnicos de

retorno ao fundacional ou original, sendo necessário cada vez mais o entendimento do

cruzar a fronteira e se por a caminho, sem medo de misturar e hibridizar-se.

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CURRÍCULO INSCRITO NO CORPO XAVANTE: UMA

POSSIBILIDADE DE SIGNIFICAR CURRÍCULO E CONHECIMENTO

Maria Cristina Rezende de Campos

Fundação Municipal de Educação de Niterói

Cristiane Gonçalves de Souza

Fundação Municipal de Educação de Niterói

Resumo

Este estudo é um desdobramento de pesquisas que se deram no contexto da Lei n.

11.645/2008 e, portanto, da educação para as relações étnico-raciais, em um projeto de

formação docente na Fundação Municipal de Educação de Niterói. A partir de uma

proposta interdisciplinar, conjugando conceitos e pesquisa da antropologia e dos estudos

de currículo, apresentamos, a partir do projeto Arandu Rape, a possibilidade de

vivenciar a prática curricular de modos distintos de criação, além de reflexões sobre a

produção do conhecimento e o espaço da escola. Essa proposta vai além da reafirmação

de que existem conteúdos para serem inseridos no currículo ou na criação de novas

disciplinas que reconheçam a história e a culturas afro-brasileiras e indígenas.

Investimos na interlocução com os docentes da rede municipal e com alunos e

licenciandos, para a desconstrução de que existe um saber universal, identidades fixas,

buscando-se pensar as culturas como híbridas, negando-se o realismo e as perspectivas

fundacionais. Desta forma, em vários espaços-tempo, esta experiência teve como

objetivo articular e ampliar a discussão sobre cultura, ética, formação humana,

cidadania e sustentabilidade ambiental, na perspectiva da cosmovisão indígena.

Apostamos nas abordagens pós-coloniais e na teoria do discurso de Laclau e Mouffe

com o objetivo de desconstruir sentidos hegemônicos de currículo e da prática de ensino

como espaços fixos de saber e de produção de conhecimento. Defendemos neste estudo,

a concepção do currículo como espaço de fronteira cultural. Utilizamos uma pesquisa

etnográfica, em território Xavante, para ilustrar uma forma de produção de

conhecimento, em outra lógica de construção do saber. Afirmamos, assim, que a

desconstrução do currículo e da prática de ensino como espaços fixos de saber e de

produção de conhecimento pode ser um movimento potente para promover a circulação

da diferença.

Palavras-chave: Relações Étnico-Raciais. Povos Indígenas. Currículo.

Introdução

Este estudo apresenta uma discussão a partir de uma narrativa docente e de

pesquisa que caminha em direção a uma investigação didática, com objetivo de

desconstruir a lógica curricular e da prática de ensino como espaços fixos de saber e de

produção de conhecimento.

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

10987ISSN 2177-336X

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Essa experiência se deu no contexto da Lei n. 11.645/2008 e, portanto, da

educação para as relações étnico-raciais. Realizando formações para os docentes da

Rede Pública Municipal de Niterói, RJ, se desdobrou muito mais em uma possibilidade

de vivenciar a prática curricular de modos distintos de criação que ela pode nos

proporcionar e nas reflexões sobre a produção do conhecimento, investigação didática e

o espaço da escola, do que na reafirmação, exclusivamente, de que existem conteúdos

para serem inseridos no currículo ou na criação de novas disciplinas, que reconheçam a

história e as culturas afro-brasileiras e indígenas.

O investimento maior na interlocução com os docentes da rede municipal é na

desconstrução de que existe um saber universal ou identidades fixas, buscando-se

pensar as culturas como híbridas; logo, negando o realismo e as perspectivas

fundacionais. Desta forma, em vários espaços-tempo, temos como objetivo articular e

ampliar a discussão sobre cultura, ética, formação humana, cidadania e sustentabilidade

ambiental, na perspectiva das comunidades tradicionais, especialmente, quilombolas e

indígenas.

Reconhecer a pluralidade de discursos, com uma atitude de disseminação de

possíveis e novos valores, nos faz acreditar em um modo de interpretar e repensar a

forma como o currículo opera em outras culturas, consideradas à parte da “sociedade

nacional”1, primordialmente focando o caráter marginal ocupado pelas comunidades

indígenas.

Overing (1994) enfatiza que tachamos o outro de obscuro e misterioso no seu

processo de pensamento, quando é mais provável que não compreendamos a relação

entre sua “simbolização” e seus parâmetros de conhecimento e explicação. Não existe

um fundamento de realidade ao qual podemos recorrer para avaliar as versões de

mundo.

As práticas simbólicas e os discursos embasados nas diferenças e suas fronteiras

enfatizam a inclusão do outro – a “outridade”. Cada pessoa de um grupo social verá

diferentes tonalidades e diferentes formas de um mesmo fenômeno, e sua sensibilidade

estética se manifesta com indicadores próprios. Para entendê-la, é necessário perceber

de que maneira o “corpo” de uma determinada sociedade é constituído. Compreender o

corpo exógeno pelo sistema que o outro apresenta. Essa percepção - que na

contemporaneidade caminha para o diálogo com as diferentes possibilidades, com as

diferentes formas de constituição e de apresentação do conhecimento - abre espaço para

os indígenas que buscam, no cenário atual, um reconhecimento.

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

10988ISSN 2177-336X

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No Brasil, percebemos, no campo do pensamento curricular, a tendência

apontada por Pinar (2002) de que a maioria dos pensadores de currículo da teoria crítica

assimilou as discussões da cultura e suas conexões com o debate curricular. No entanto,

a centralidade do conhecimento está presente. Para o autor, o avanço dos estudos

culturais informa que a preocupação de muitos pesquisadores do campo do currículo,

ainda é responder: Qual é o conhecimento mais válido, o que ensinar?

Em 1970, a Nova Sociologia da Educação (NSE) surgiu como um movimento de

releitura da Sociologia da Educação inglesa, assumindo a sua definição como sociologia

do conhecimento ou do currículo. Tendo como principal teórico Michael Young,

defensor de um conhecimento poderoso que, distintamente do conhecimento dos

poderosos, é objeto do currículo em um projeto social emancipatório. No livro “O

Currículo do Futuro”, o autor traz a definição de currículo como:

saber socialmente organizado, onde o foco dos professores deve ser a seleção

e a organização dos conhecimentos. Educação e ensino estão vinculados: o

currículo do futuro deverá ser definido pelo tipo de necessidades de

aprendizado que prevemos que os jovens [...] terão. (YOUNG, 2000, p. 222).

Portanto, ao reconhecer o currículo como “coisa” e que este expressa valores e

saberes que legitimam identidades, caberia a nós, professores, nos posicionarmos, ou

ainda, um olhar atento àquilo que pretendemos compartilhar com os alunos, pois ao

selecionar os conteúdos, por exemplo, entramos no jogo do poder de decisão, de optar,

pelo conhecimento mais válido, decisão que envolve uma atitude moral, ética e política

(YOUNG, 1973).

Nesta perspectiva, o projeto de educação é um projeto de poder, onde um

conhecimento socialmente produzido - conhecimento externo ao sujeito - pode fazer

dele um cidadão plural, com habilidades para o mercado e crítico.

Macedo (2006) contrapõe-se a este discurso, sugerindo que as aproximações

entre a teoria crítica e as abordagens pós-estruturais, ainda que mencionem práticas de

significação, não consideram o conhecimento como tal e, portanto, são um obstáculo

para se entender a dinâmica do currículo como cultura; e dificulta a circulação da

diferença no interior do espaço-tempo da escola e do currículo.

Argumenta a supracitada autora que assumir este espaço-tempo como lugar de

confronto entre culturas, com lados definidos, e que devemos optar por um lado ou

outro, é improdutivo pra o debate. Para tal, opera com o conceito de fronteira e de

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negociação, desenvolvidos por Bhabha (1998), com o objetivo de conceitualizar o

currículo como um espaço-tempo de fronteira, onde tradições culturais diferentes

entram em contato e onde se pode viver de múltiplas formas.

Nos discursos curriculares presentes nas políticas, mas também no cotidiano das

escolas, é frequente a afirmação de que o saber dos alunos deve ser levado em

consideração. Podemos, ainda, dizer que outros saberes - como o das comunidades

tradicionais: caiçaras, quilombolas e indígenas - também são reconhecidos, mas a esfera

do conteúdo, da avaliação, na produção de livros didáticos, nas comunidades

disciplinares e nas diretrizes curriculares das disciplinas do ensino fundamental, estes

saberes são apresentados em uma dimensão alternativa; e, ao mesmo tempo, estes

mesmos saberes são tomados como o negativo do conhecimento acumulado. A esse

respeito, Macedo afirma que:

O projeto iluminista, ao mesmo tempo em que despreza os outros saberes,

afastando-os como o lugar do erro, torna-os próximos ao buscar colonizá-los.

O desejo do colonizador em relação ao colonizado - aquele que tem algo de

que o colonizador não dispõe - torna a colonização total uma empreitada

impossível (MACEDO, 2006, p. 293).

As categorias de diversidade, de pluralidade cultural e o conceito de

multiculturalismo são tensionados pela abordagem pós-colonial e implicam na revisão

de que há culturas para entrar em diálogo ou negociação. Os fluxos culturais refletem o

movimento em que a cultura se insere, portanto e, para autores como ArjunAppadurai,

“as culturas são meros estancamentos artificiais dos fluxos, uma espécie de fotografia

que paralisa e nomeia o que é puro movimento” (apud LOPES e MACEDO, 2011, p.

186).

Entendemos o currículo como prática discursiva instituinte de sentidos, que

entram em disputa nos diversos espaços: escola, secretarias de educação, documentos

curriculares, sindicatos, entre tantos outros, em que podemos enunciar sentidos de

educação.

Podemos considerar que o campo curricular, passando pelos enfoques

tradicionais, técnicos ou pela perspectiva crítica que assume o currículo enquanto texto

político, em um projeto de emancipação social, sempre vinculou seus projetos a um

projeto de formação humana, a um projeto de cidadania e de identidade, ou seja, um

projeto de sujeito.

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Defendemos, contudo, que é necessário desconstruir os sentidos de currículo

centrados em uma ideia de conhecimento e na ideia de formação de um sujeito acabado,

pronto. Argumentamos, com Lopes e Macedo (2011), que não se trata de negar a cultura

científica, mas ampliar o conceito de conhecimento e de ciência e perceber que em

outras culturas a própria terminologia se insere em outras lógicas.

...desconstruir não quer dizer negar, mas apenas explicitar que não há

nenhuma verdade que sustente as significações que tomamos como únicas.

Desconstruir a cultura científica como um dos sistemas referenciais do

currículo – e a própria ideia de sistemas referenciais que lhe é correlata – é,

portanto, apenas explicitar que sua definição como sistema de sentidos

somente foi possível pela intervenção do poder. Do poder em seu sentido

político e econômico, mas também simbólico (LOPES e MACEDO, 2011, p.

165).

Apostar em uma perspectiva desconstrutiva, ou seja, tensionar um discurso que

se pretende unitário, reinserir a diferença, e potencializar deslocamentos, no que diz

respeito à hegemonia do universal, a redução da educação ao simples reconhecimento,

radicalizando, e colocando sob suspeita a promessa de uma igualdade social e

econômica, é reconceptualizar o currículo como instituinte de sentidos, como ato

criativo, permitindo, desta forma, que a singularidade do sujeito emerja.

Arandu Rape: sentidos de conhecimento, um projeto de formação docente em

relações étnico-raciais.

Para os povos indígenas, a natureza é vista como o Outro. Ao contrário da

tradição científica ocidental, que fundamenta o ensino das ciências em nossas escolas,

em que a natureza é tratada como objeto, como um “isso” (GRÜN, 2003).

O casamento entre o céu e a terra, que compõem o ethos dos povos indígenas,

parte do princípio de que a natureza guarda sua outridade e que esta deve ser

reconhecida mediante uma relação em que a natureza é parte fundadora da constituição

dos seres e se constitui ela própria em um SER que atua na tribo, na aldeia e na

comunidade. Para Grün:

A natureza é o Outro que se dirige a nós. A voz do Outro sempre constitui o

campo da compreensão hermenêutica. A linguagem viva do diálogo é que

proporciona a compreensão do Outro. Em toda experiência hermenêutica

existe sempre um potencial para ser outro que repousa não só no consenso,

mas também no respeito pela diferença e pelo Outro. (...) Qualquer tentativa

de interpretar a natureza, a partir da vontade de dominá-la, não é considerada

uma interpretação, uma vez que para a interpretação ocorrer é necessário que

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

10991ISSN 2177-336X

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o significado do Outro possa permanecer como auto-apresentação, pois ditar

o significado da natureza para predição e controle não é um ato de

compreensão (GRÜN, 2006, p. 179).

Questionamos os currículos que se desenvolvem com o pressuposto de afirmar

verdades inquestionáveis, pois partem do princípio de que o ato de ensinar é um ato que

ensina a conquista de certezas, com afirmações absolutas e universais. Não negamos, de

forma alguma, o rigor didático e metodológico, mas informamos, em nossas práticas e

reflexões, o reconhecimento de que os conhecimentos e sua produção são históricas e

portanto, intimamente relacionados com os contextos sociais em que são produzidos.

Nossas atividades afirmam um olhar sobre a escola, que insiste em dinamizar este

espaço que reconhecemos em constante transformação e reinvenção. Acreditamos na

atuação de docentes que transgridam a ordem de um conhecimento que se pretende

universal.

Muitos dirão que o personagem de Clarice Lispector, em a Legião Estrangeira

(1999) - Ofélia Maria dos Santos Aguiar com seu portanto-portanto-portanto - é o

exemplo de conhecimento a ser adquirido pelos alunos na escola e, por que não, o que o

currículo deve ter como objetivo, de oferecer respostas para um mundo ordenado em

verdade incontestáveis. Que o que realmente importa é que, assim como o universo

perfeito e harmônico da matemática, o mundo gira em torno de uma ordem que deve se

pretender universal, evitar e diluir as contradições. Portanto, cabe à escola legitimar e

reproduzir este conhecimento perfeito, buscar o consenso e apagar o que é múltiplo e

dissonante. No entanto, diante desta proposta, podemos resgatar a chama de uma vela e,

assim como Bachelard (1989), dizer aos defensores de uma ciência absoluta, autoritária

e fechada em si mesmo: “depende”2.

Depende, porque o desafio real que encontramos em nossa prática é afirmar o

espaço para as diversas expressões culturais e saberes no cotidiano escolar. Olhar com

sensibilidade para outras possibilidades de significar o currículo e a escola, nos leva à

reflexão para a ação que podemos desenvolver para legitimar o resgate de saberes

desqualificados no decorrer da história da educação e da instituição escolar e, além

disso, ousar a outras reflexões que nos levem a entender e reconhecer quem determina e

quais os valores que fundamentam nossos currículos e nosso posicionamento em sala de

aula. De que forma podemos desafiar a noção de conhecimento dominante e estabelecer

novas possibilidades de ciência?

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

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Sendo assim, para ilustrar uma forma de produção de conhecimento, em outra

lógica de construção do saber, apresentamos nesse estudo uma pesquisa etnográfica

realizada em território Xavante, que revela o corpus de um currículo que se inscreve no

corpo pintado, um acontecimento transmitido oralmente pelos “velhos” da aldeia.

Corpo pintado xavante: currículo inscrito no corpo

O corpo pintado xavante revela um mundo de imagens, cujo repertório

simbólico é a própria base da socialidade. Ao se apresentar extraordinariamente em

rituais e cerimônias, é o instrumento fundamental para a incorporação3dos elementos da

natureza, dos animais e dos espíritos, assim como das próprias categorias sociais

xavante. Todos os corpos, o humano inclusive, são concebidos como vestimentas ou

envoltórios (CASTRO, 2002). Essa investidura, essa vontade de diferenciação não se

resume apenas em decorá-lo, mas de construí-lo, contribuindo efetivamente para o

entrelaçamento entre a estética e as características dos domínios da sociedade, da

natureza e da sobrenatureza. O corpo não é apenas um suporte de um discurso

simbólico, ele também participa como elemento plástico. Suas qualidades formais

integram o sentido do conhecimento xavante. O símbolo não mais se explicita. Forma e

conteúdo, significado e significante se complementam nas forças espirituais que

desempenham um importante papel na sua cosmovisão: nas forças dos espíritos do bem,

que cultivam a vida, e nas do mal, que provocam doenças e mortes.

A pintura corporal é formada de grandes áreas nas cores vermelha do urucum,

negra do jenipapo e carvão e, em alguns casos específicos, na cor branca da argila. O

caráter pictórico é primordial entre os Xavante, mas, no entanto, aparecem também

alguns elementos gráficos que interagem com os pictóricos, como axadrezados, listras,

pontilhados, quadrados, retângulos, tracinhos e bolinhas. As cores pintadas em seu

corpo devem ser interpretadas a partir de códigos próprios. Cada informação cromática

se insere num sistema que estrutura um grupo semântico específico. O vermelho e o

preto, como elementos básicos na plástica corporal, definem um estilo dual: “é a

realização de uma arte visual de um povo que resume no jogo do vermelho e preto,

temas cruciais da vivência humana: a vida/procriação e a morte/agressividade”.

(MÜLLER, 1992, p.98). O Xavante Hiparidi diz que o vermelho representa a vaidade,

vitalidade e beleza, e o preto é a responsabilidade, status social adquirido ou a

conquistar perante a sociedade.

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

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O corpo é o sujeito do ser que combina com essas cores (...). Cada fase

significa se criança ou adolescente. A pintura não é só a arte, em cada pessoa

vai se modificando porque tem a ver com o sentimento da pessoa, a

personalidade da pessoa e com a espiritualidade. Como a pessoa está. Aí vai

ter uma área maior de preto ou vermelho, dependendo da pessoa (HIPARIDI,

2007).

Como usam as mãos e os dedos para se pintarem, a relação existente entre quem

pinta e é pintado termina por integrar a todos os demais sentidos que essa envolve.

Relação que é vivenciada através das mãos que tocam o corpo de diferentes modos e

que imprimem e selam no pintado sua afinidade e afetividade. Quando se pintam, a

parte da frente é realizada pelo próprio indivíduo (atualmente com a ajuda do espelho) e

a parte de trás, pelo pai, padrinho, madrinha, amigo ou amiga4, complementado a

relação entre aquele que pinta e aquele que é pintado. Sr. Adão, pajé da Aldeia

Abelhinha, salienta: “Na vida a gente não é autossuficiente. O outro sempre

complementa a gente”(ADÃO TOP‟TIRO, 2005).

O vermelho urucum se caracteriza, aos olhos Xavante, por sua grande beleza; e,

acima de tudo, fortalece as pessoas. Eles estabelecem, também, uma conexão explícita

entre o urucum (bö) e o sol (bödö).O sol, o urucum e o vermelho fazem parte de um

único complexo que, está associado a propriedades vitais, criativas, positivas, afirma

Maybury-Lewis (1984). A cor preta está associada à destruição, à ideia de fim. É o

elemento de oposição ao vermelho. Quando os indivíduos vão participar da abertura

inicial de uma fase ritualística, pintam-se de vermelho e no momento de encerramento,

todos usam uma pintura preta. Essa antítese se expressa, também, na classe de idade que

está para deixar a categoria de rapazes. “Nesse momento, os representantes da primeira

delas estão significativamente pintados de preto, o que simboliza o fim de sua condição

de guerreiros; o outro, de vermelho, o que simboliza sua passagem para a posição

deixada vaga por seus antecessores”(Ibid., p. 318).

A cor branca, entre os Xavante, significa ausência de cor. “O branco proveniente

de uma espécie de argila é utilizado em motivos que representam animais e espíritos”

(MÜLLER, 1979, p. 27). Giaccaria (2000, p. 39) relaciona a cor branca ao colar de

algodão que “é o peito branco do gavião, como está contado no mito da moça infiel que,

por castigo, foi jogada no fogo e se transformou em gavião. Como ela tinha o colar de

algodão, o peito do gavião ficou branco”. Os símbolos não são unívocos, “mas têm a

particularidade de basear mais no concreto e no vivencial com um raciocínio feito mais

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

10994ISSN 2177-336X

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por meio de imagens do que de conceitos”. (Ibid., p. 40). O que tem valor não é tanto o

algodão, as peninhas do gavião, mas o branco, a brancura. “A essa cor estariam ligadas,

simbolicamente, a força, a saúde, a masculinidade e a fecundidade”(Ibid, p. 42).

Usar o corpo pintado é uma maneira de apreender e expressar uma forma que

encorpora seus anseios. A manutenção dessa forma de construção de corpo é

indispensável à realização de rituais, momento em que ocorre a mediação simbólica

entre o visível e o invisível, em que os corpos se espiritualizam/animalizam e os

espíritos/animais se corporificam (CASTRO, 2002).

Essa “forma que informa”, esse saber incorporado que faz a memória coletiva de

um grupo social constitui um “terriço” a partir do qual a cultura pode crescer

(MAFFESOLI, 1996). Forma e informa sua presença no mundo. A imagem comunica e

contribui para a continuidade da tradição. A tradição é o conhecimento xavante, é um

currículo vivo que se atualiza e se inscreve no corpo. O corpo é um corpus que se abriga

e que emana as relações experimentadas e vivenciadas nas distintas situações em que se

envolve, revelando aspectos de uma tradição viva e pulsante situada em fronteiras

dialógicas. Corpo que necessita se apresentar pintado para fazer circular a memória e a

cultura xavante.

As atividades pedagógicas que desenvolvemos, nos diversos espaços no

cotidiano da escola, foram um importante exercício para o diálogo entre os diferentes

grupos sociais e culturais e, ainda, para o reconhecimento dos sujeitos da escola, que

participam da constituição da mesma e que, neste processo, vão se constituindo em

agentes nas propostas curriculares.

O que o caminho já nos ensinou...

O grande desafio do nosso tempo consiste em aprender não só a conviver com as

diferenças, mas reconhecer que a produção de conhecimento ocorre de modos

diferenciados. Nesse sentido, afirmamos que uma educação sensível às diferenças deve

reconhecer que o currículo escolar e a formação docente devem ser constituídos

enquanto processos criativos e culturais, que podem ser acompanhados de múltiplos

debates no "chão da escola" e fora dela, dando voz às diferenças. Apostar na

originalidade que nasce justamente das apostas em práticas docentes e investigações

didáticas que podem fazer surgir novas formas de se pensar o conhecimento, a escola, o

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

10995ISSN 2177-336X

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processo de aprendizagem e de significação do mundo, tem orientado o nosso trabalho

na perspectiva das relações étnico-raciais.

Defendemos que potencializar o sentido de criatividade e de relação com a

produção de conhecimento e os diversos saberes que circulam - no meio acadêmico, nas

escolas e no mundo - pode ser um caminho para o surgimento de outras possibilidades

para professores e alunos vivenciarem no “chão da escola”. Justamente, por isso, no ano

de 2015, convidamos professores indígenas e quilombolas para também realizarem

formações com os professores da Fundação Municipal de Educação de Niterói.

Consideramos esta experiência fundamental porque ela promove uma aproximação e

possibilidade de interlocução entre lógicas diferentes de produção de conhecimento.

Não podemos prever o que as traduções e ressignificações destas propostas em

cada sala de aula promoverão. A nossa torcida é de que, cada vez mais, professores e

alunos reconheçam que este espaço é dinâmico, em constante transformação e

reinvenção que transgridam a ordem de um conhecimento que se pretende universal.

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__________________________

1 Termo utilizado na antropologia para definir a sociedade civil e destacar o caráter marginal

ocupado pelas comunidades indígenas.

2 O prof. José Américo Pessanha (1993), em sua palestra: Filosofia e modernidade: racionalidade e

ética, relacionou a discussão em pauta com o personagem de Clarice Lispector - Ofélia Maria dos

Santos Aguiar, que inspirou a redação destas considerações finais.

3 Viveiros de Castro cria o neologismo encorporar para explicitar certas disposições específicas –

esquemas de percepção e ação – em que a forma corporal humana é apreendida pelo

perspectivismo ameríndio (CASTRO, 2002, p.374).

4 São os que fazem parte da mesma classe de idade.

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10997ISSN 2177-336X

24

RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS NA POLÍTICADE FORMAÇÃO DE

PROFESSORES DA SECADI NO GOVERNO LULA (2003-2010)

Cristiane Gonçalves de Souza

Universidade do Estado do Rio de Janeiro- UERJ

Resumo

Nesta comunicação proponho apresentar análises de pesquisa dos processos de

articulação para a criação da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e

Diversidade do Ministério da Educação (Secadi) e a produção de sentidos de diferença e

cidadania, presentes na elaboração das publicações e projetos para a formação docente,

no período do governo Lula (2003-2010).A criação da Secadise deu após amplo debate,

com destaque para as lideranças indígenas e o movimento negro. Seria uma secretaria

de inclusão educacional que, para atingir este objetivo, deveria orientar suas ações para

a complexa sociodiversidade presente no Brasil. Portanto, educar para a diversidade

também era um eixo para a qualidade da educação. Os termos diversidade, inclusão e

diferença foram usados na tentativa de alcançar a totalidade de objetivos e demandas

que os movimentos sociais exigiam e que a secretaria teria que buscar atender. Contudo,

estes três termos tem significados e dimensões políticas que no debate ganharam

contornos universais e, por vezes, contraditórios, nos movimentos sociais. O

entendimento do que é inclusão, diversidade e diferença nem sempre são entendidos em

uma mesma perspectiva.Este processo de investigação sustenta-se nos aportes pós-

estruturais e na teoria do discurso de Laclau e Mouffe,e argumenta que as demandas da

diferença ampliam as cadeias de equivalências entre universais que buscam preencher o

significante diversidade e o seu lugar nos currículos escolares, território disputado por

vários discursos pedagógicos, em que o conceito de diferença e nação são antagônicos.

A hipótese inicial da pesquisa é de que alguns grupos constituídos para o

desenvolvimento destas políticas disputaram a produção de sentidos para a elaboração

de materiais e projetos para a formação de professores, em um processo de articulação

que promoveu um sentido hegemônico, ainda que contingente e provisório, para

formular uma política de formação para a educação das relações étnico-raciais.

Palavras-chaves: Relações étnico-raciais; Formação de professores; Currículo.

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10998ISSN 2177-336X

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Considerações iniciais

Este estudo tem como objetivo analisar os processos de articulação na

formação da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade do

Ministério da Educação (Secadi)1 e a produção de sentidos de diferença e de cidadania,

presentes na elaboração das publicações e projetos para a formação docente, no período

do governo de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010).

Esse trabalho, sustentado na teoria do discurso de Ernesto Laclau e de

Chantal Mouffe (2004) sublinha que as demandas da diferençaaumentam as cadeias de

equivalências entre universais que buscam preencher o significante diversidade e o seu

lugar nos currículos escolares, onde inúmeros discursos pedagógicos trazem um

antagonismo entre os conceitos de diferença e de nação:

O conceito de nação, por mais que se defina como plural, não pode incluir a

todos porque depende, para se estabilizar, da construção de um Outro. Dessa

forma, educar para a cidadania é falar em nome de uma totalidade

impossível, de um universal que, como todo universal, constitui-se com base

em exclusões (MACEDO, 2009, p. 104).

A análise se desenvolve no sentido de entender as articulações que

promoveram o sentido hegemônico para um projeto de educação para a diversidade.

Para tal, foram analisadas as atas de reuniões e plenárias convocadas para a discussão

das diretrizes para a educação das relações étnico-raciais, realizando-se entrevistas com

membros das comissões instituídas para a elaboração dos projetos e materiais para a

formação continuada dos professores.

As reflexões apresentadas neste estudo estão articuladas com as discussões

desenvolvidas no grupo de pesquisa: "Políticas de Currículo e Formação de

Professores, coordenado pela Profa. Rosanne Evangelista Dias, no PROPED/UERJ.

Marcos institucionais para as relações étnico-raciais

A Secadi tem, como marco institucional para o tema das relações étnico-raciais,a

implementação das Leis n. 10.639/2003 e n. 11.645/2008. Algumas perguntas que

inauguraram esta pesquisa se colocam no eixo da abordagem pós-estrutural e da teoria

do discurso: quais sentidos de diferença podemos identificar nos documentos oficiais e

orientações da Secadipara a formação docente? Quais articulações marcaram a disputa

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

10999ISSN 2177-336X

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pelos processos de significação para uma educação das relações étnico-raciais? Como se

deram as lutas discursivas de representação do que é ser negro, índio ou quilombola, por

exemplo? Como podemos entender a centralidade da questão racial e do movimento

negro, na legislação, nos projetos de formação continuada e nas diretrizes curriculares

para as relações étnico-raciais? Nos materiais para a formação de professores, quais os

sujeitos diretamente envolvidos na opção teórica e metodológica?

Os enunciados de interculturalidade, diversidade e pluralidade cultural, ainda

que presentes nos documentos oficiais e materiais didáticos, não tem explicados os

sentidos destas categorias; portanto, vale destacar a importância de analisar os sentidos

e os usos que eles ganham nas políticas educacionais.

Na Europa, o conceito de interculturalidade ganhou espaço nos debates sobre

educação já na década de 1970, quando a diversidade étnica e cultural tornou-se fonte

de preocupação em países como Espanha, França e Itália, que incorporaram os

conceitos de interculturalidade e diversidade em seus projetos de educação voltados aos

imigrantes e a outras minorias presentes em seus territórios nacionais, como os ciganos.

No Brasil, no governo do então presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-

2003) foi criado o Grupo de Trabalho Interministerial para Valorização da População

Negra. Também foram elaborados os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), um

projeto desenvolvido pelo Ministério da Educação (MEC) durante os anos de 1995 e

1996 e que culminou com a sua aprovação pelo Conselho Nacional de Educação (CNE).

A Pluralidade Cultural, na qual as questões da diversidade foram contempladas, ainda

dentro de uma perspectiva universalista de educação (GOMES, 2009).

A 3ª Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a

Xenofobia e Formas Correlatas de Intolerância, promovida pela Organização das

Nações Unidas (ONU) de 31 de agosto a 08 de setembro de 2001, em Durban, África do

Sul, promoveu a mobilização e a produção de políticas de ações afirmativas,

compromisso assumido internacionalmente pelo Estado Brasileiro.

No governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (2003), o compromisso

assumido em Durban se desdobrou em políticas mais concretas. Destacou-se a criação

da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), em 2003.

No Ministério da Educação foi criada a Secadi, em 2004.

Cabe ressaltar que esta pesquisa não entende as políticas públicas como

verticalizadas em uma perspectiva estadocêntrica, mas como processo de articulação de

vários sujeitos dentro de estruturas de poder, como aponta Dias (2015):

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

11000ISSN 2177-336X

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Na constituição de um projeto hegemônico, as diferenças entre

sujeitos e suas demandas não se apagam, daí não se tratar da formação de

uma igualdade. As particularidades são mantidas podendo vir a se associar a

outros grupos em busca de um projeto mais amplo, em outras cadeias de

equivalências, capazes de atender a demandas diversas (Laclau, 2006). As

aglutinações de diferentes demandas nos processos de prática articulatória

tendem a formular um discurso comum, porém, provisório e contingente, no

qual há fixação parcial dos sentidos possíveis da significação (DIAS, 2015,

p.1).

A criação da Secadi se deu após amplo debate, que perdurou por alguns meses,

onde várias lideranças dos movimentos sociais, com destaque para os indígenas e o

movimento negro, quando houve alterações na estrutura organizacional do Ministério da

Educação. Dentre elas, a criação de uma secretaria que tivesse como prioridade o

atendimento a parcelas da população em desvantagem educacional. Seria uma secretaria

de inclusão educacional que, para atingir este objetivo, deveria orientar suas ações para

a complexa sociodiversidade presente no Brasil. Portanto, educar para a diversidade

também era um eixo para a qualidade da educação.

Diversidade, inclusão e diferença: lutas pelo processo de significação.

Os termos diversidade, inclusão e diferença foram usados na tentativa de

alcançar a totalidade de objetivos e demandas que os movimentos sociais exigiam e que

a secretaria teria a partir de sua criação, buscar atender. Contudo, estes três termos tem

significados e dimensões políticas que, no debate, ganham contornos universais e, por

vezes, contraditórios. Nos movimentos sociais, o entendimento do que é inclusão,

diversidade e diferença nem sempre são entendidos em uma mesma perspectiva.

Neste ponto, Macedo (2009), contribui para o debate, ao analisar de que forma a

articulação hegemônica em torno do significante qualidade da educação, reduzem a

circulação da diferença, ainda que, as políticas curriculares apresentem uma ampliação

na representação dos movimentos sociais. Importante ressaltar que a autora percebe o

risco de generalizar, reconhecendo que cada instância de formulação e articulação das

demandas dos movimentos sociais, tem as suas especificidades:

Os movimentos que buscam tornar possível a articulação entre igualdade e

diferença têm dinâmicas políticas próprias e não podem ser analisados em

termos genéricos. Cada um envolve aproximações e afastamentos

contingentes entre posições diversas, decisões na esfera de luta política que

precisam ser analisadas em suas especificidades(MACEDO, 2014, p. 86).

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

11001ISSN 2177-336X

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Macedo (2009) enfatiza que, apesar do destaque que a pluralidade cultural

ganhou nos documentos curriculares nos anos de 1990,a defesa de conteúdos de cunho

universal que cumpririam o objetivo de socializar valores e saberes, e garantiriam a

igualdade de oportunidades a toda a população, ganhou ressonância em vários contextos

do debate.

Nessa esfera também se insere a criação da Secretaria de Educação Básica. Era

necessário que as secretarias e respectivas coordenações fossem organizadas e que

fossem definidas suas responsabilidades. Um intenso debate e negociações tiveram

início com a participação de movimentos sociais e outros órgãos do MEC (PALADINO

e ALMEIDA, 2012). Ao fim deste processo, foi construída outra identidade para a

nova secretaria; o conceito de inclusão foi abandonado – satisfazendo, assim, algumas

lideranças indígenas que entendiam que a proposta da Secretaria de Educação Básica de

inclusão representava integração – e assumiu-se a proposta mais complexa de atentar

para a diversidade, em suas múltiplas dimensões. ASecadi se firmava como secretaria

do MEC para a promoção de políticas de educação para a diversidade.

De acordo com o documento publicado por esse Ministério, em novembro de

2008, o qual apresentou contribuições para a implementação da Lei n. 10.693/2003, três

concepções de diversidade presentes na política do ministério foram identificadas.

A primeira teve como fundamento o binômio inclusão/exclusão. Nesta concepção,

“a questão étnico-racial se dilui, e a diversidade não resulta em revisão das concepções,

modelos e referências das políticas educacionais” (BRASIL, 2008, pág. 23). Ao

promover a incorporação dos excluídos a um modelo instituído, ela desconsiderou suas

identidades específicas, observando apenas a perspectiva socioeconômica.

Como assinala Pontes (2009):

políticas curriculares para obrigatoriedade de inclusão de conteúdos de

história e cultura de grupos subalternizados se inscrevem como políticas não

somente de enunciação de demandas por valorização, reconhecimento e

reparação, mas como políticas de disputa pela autoridade parcial e

contingente sobre sua própria história e cultura (PONTES, 2009, p.13).

As ações afirmativas marcam a segunda concepção de diversidade presente nas

políticas do MEC, tendo o ProUni, Programa Universidade para Todos seu mais efetivo

exemplo de política implementada.

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

11002ISSN 2177-336X

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A terceira abordagem, que mais se aproxima da que é apresentada neste artigo, é

a que reconhece a diversidade como “políticas da diferença”, que aposta na demanda

pelo igual reconhecimento do direito das diversas culturas a se expressarem e atuarem

na esfera pública.

Conforme relatório do grupo de trabalho interministerial instituído pela

Seppirem maio de 2008, que enviou ao MEC as considerações relativas às políticas até

então adotadas para implementação da Lei n. 10.693/2003, a terceira abordagem ainda

não havia recebido a devida atenção na agenda de discussão do MEC.

Portanto, ao analisar documentos produzidos em reuniões e plenárias, assim

como os documentos oficiais, podemos entender algumas dimensões das lutas no

interior do MEC, onde representantes de vários segmentos dos movimentos sociais,

agências governamentais e transnacionais, mobilizaram discursos pela conquista da

hegemonia que, refletidos nos materiais para formação docente e em documentos

oficiais, fixaram sentidos de diversidade e orientaram, assim, a produção de materiais e

a formulação de políticas para a formação docente.

A Secadi, foi uma secretaria responsável pela implementação das políticas

públicas educacionais para a diversidade, onde ganhou destaque a implementação das

Leis n. 10.693/2003 e n. 11.645/2008.

Na década de 1990, os documentos curriculares e as políticas educacionais

voltadas para a diversidade foram ampliados e ganharam destaque na produção

acadêmica. Os movimentos sociais e as demandas identitárias, que haviam adquirido

maior visibilidade na década anterior, disputaram os sentidos de identidade e

representação que ganharam caráter hegemônico nos documentos curriculares,não

obstante alguns grupos tenham se ressentido do não atendimento e visibilidade às suas

demandas.

Articulação, hegemonia e posições de "sujeito"

Conforme ressaltado, esta pesquisa apresenta críticas ao modelo estrutural para

lidar com a diferença (LACLAU, 1996) e propõe conceber:

... a diferença e a cultura a partir da perspectiva pós-estrutural e a diferença

entre como uma limitação da noção de diferença constituída no jogo político.

Isso implica uma mudança radical nas relações entre cultura e currículo e o

abandono da noção de identidade pré-constituída que tem estado na base das

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

11003ISSN 2177-336X

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políticas de formação e dos discursos de diversidade/diferença/pluralidade

cultural (MACEDO, 2014, p. 89).

Portanto, defendo que o conceito de diversidade presente nos enunciados das

políticas públicas, assim como o discurso do universal, silenciama diferença como tal,

ou seja, o diverso é outra manifestação do mesmo. Por isso, a importância de análises e

de pesquisas acadêmicas que tensionem a abordagem da diversidade e desconstruam, na

perspectiva pós-estrutural, os universalismos, sejam os que apostam na

diversidade/diferença entre, sejam os que defendem a cultura universal.

Laclau (1996) defende que o modelo estrutural, ao fixar posições específicas de

sujeito, limita a noção de diferença. Argumenta que o abandono da ideia de identidades

pré-constituídas é um caminho mais enriquecedor para a desconstrução de discursos

hegemônicos. Macedo (2014) aponta que a ampliação do poder de significar pode ser o

resultado da desconstrução de sentidos hegemônicos de representação:

A luta por políticas de currículo que façam face à diferença é, portanto, uma

luta pela desconstrução dos universalismos, sejam os que defendem uma

cultura universal, sejam os que apostam na diversidade e tornam a diferença

diferença entre2(Burbules). Esta tarefa desconstrutiva implica perceber que a

cultura não é um mero objeto epistemológico, mas o espaço mesmo de

significação e representação, em que a diferença é enunciada e sempre adiada

(Bhabha, 2003). Nessa perspectiva, a cultura como objeto epistemológico é

apenas uma redução de seus sentidos com o intuito de inviabilizar a

circulação da diferença como tal. Na acepção de Appadurai (2001), a cultura

como objeto epistemológico é o estancamento do fluxo que caracteriza o

cultural por meio da nomeação que lhe confere uma identidade (MACEDO,

2014, p. 92).

Reconhecendo que a hegemonia é resultado de uma disputa entre atores

inseridos em um coletivo que, por meio de cadeias equivalenciais, articulam a formação

de múltiplas identidades diferenciais- que esvaziadas de significados particulares,

formarão o que Laclau nomeia como significante vazio -; hegemonia então, é o

preenchimento de um vazio no significante, fazendo um ponto nodal na cadeia de

significação. Portanto, “a hegemonia é um tipo de relação política e uma lógica social,

não um lugar na topografia social. Por isso mesmo, hegemonia é sempre instável,

ambígua e plural – podem ser múltiplos os processos hegemônicos” (LACLAU, 1996).

Em 10/3/2004, foi aprovado o parecer CNE/CP 003/2004, onde foram estabelecidas

legalmente as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN). No próprio texto, no início de

sua redação, fica claro que a participação do Movimento Negro é relevante, ainda que

sejam mencionadas prerrogativas legais para o objetivo de um projeto de educação

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

11004ISSN 2177-336X

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nacional que garanta “igual direito às histórias e culturas que compõem a nação

brasileira” (CNE/CP 003/2004, p. 497). A ideia de uma identidade nacional já fica

explícita enquanto um projeto de educação e, portanto, para a formação de educadores.

Educar para a diversidade, faz parte de um projeto identitário, que é a nação. Defendo

que o próprio argumento de nação guarda em si uma universalidade que o aporte teórico

que fundamenta esta pesquisa busca tensionar. As articulações universalistas, que

ganham maior expressão, se desdobram em silenciar as demandas da diferença.

A defesa de uma educação de qualidade supera o esforço das políticas de acesso

e de permanência. As políticas curriculares para a diversidade ganham sentido, também,

para a educação do cidadão, formar cidadãosplurais; é um projeto de nação, mas, ao

contrário do que se almeja, não operamos com a possibilidade de um sujeito acabado,

que após a sua escolarização terá acesso a uma igualdade impossível: este sujeito terá o

lugar contingente, onde ele sujeito, no decorrer da ação política, promoverá articulações

que criam sentidos novos, ou seja, a diferença em si. Libertar os sujeitos do conceito de

diferença entre, é assumir que a diferença não é uma diferença entre iguais, mas o que

Burbules (2003) nomeia de diferença contra. Como explica Macedo (2014):

Ainda que eu prefira usar apenas o termo diferença, a diferença contra remete

a uma discussão necessária, pois redefine a tarefa político-teórica em favor da

diferença. Se a cultura é différence, é enunciação (criativa), como a 'diferença

entre' se tornou, por séculos, praticamente sinônimo de diferença? Como tem

sido possível tornar invisível o caráter produtivo da diferença, cristalizando o

diferente de tal forma que ele parece concreto? Por que as cristalizações

assumem esta ou aquela forma e não outra qualquer? Por que algumas

diferenças produzem efeitos reais/efeitos de verdade, constroem identidades

com as quais nos acostumamos a lidar cotidianamente? A própria formulação

de tais perguntas implica aceitar que há relações de poder que direcionam os

sistemas de significação, fixam posições de sujeito e favorecem hierarquias e

assimetrias (MACEDO, p. 93, 2014).

Pensar o Movimento Negro e outras representações de grupos minoritários, à luz

da teoria do discurso, nos convida a recusar qualquer essencialização das posições de

sujeito dentro dos movimentos sociais, considerando que, apesar de não negar a

existência da estrutura, ela não determina posições sociais; estas são firmadas no

processo de articulação entre os sujeitos que buscam representação em um discurso

hegemônico. Como argumenta Macedo (2009):

Todo sujeito procura por um significante que possa expressá-lo dentro da

ordem simbólica, num ato de significação que nunca será totalmente possível.

O sujeito busca por intermédio de atos de significação preencher uma falta

constitutiva; ele entra na relação antagônica com a esperança de que,

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

11005ISSN 2177-336X

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aniquilando o adversário, possa estabelecer a identidade plena que lhe é

negada. Portanto, é o sujeito que tenta resolver a crise da estrutura deslocada

por sua identificação com um dos projetos disponíveis no espaço indecidível

dessa estrutura. Assim, não é a estrutura que define as posições de sujeito,

mas o sujeito que, ao decidir por uma posição de sujeito, articula a estrutura

(MACEDO, 2009, p. 91).

Dessa forma, operar com o conceito de nação, no contexto de um projeto de

educar para a diversidade, exige que não apenas as demandas do movimento negro

sejam atendidas, ainda que esta pesquisa aponte para a hipótese de que houve uma

ascendência deste movimento nos processos de articulação no início das políticas

implementadas pela Secadi, mas que levou à necessidade de ampliar as demandas para

se garantir a hegemonia na luta pelo reconhecimento da diferença.

Neste ponto, gostaria de citar o movimento recente de fortalecimento das

lideranças indígenas no interior da Secadie o desdobramento com a criação dos novos

Núcleos de Estudos Afro-brasileiros e indígenas (Neabis). Levanto esta questão porque

é um dos temas centraisdesta pesquisa, em que percebo uma nova articulação do

movimento negro que, para manter o financiamento dos projetos voltados para a

formação docente, por exemplo, precisam incluir a temática indígena de forma mais

efetiva. Um dos sentidos de qualidade da educação presentes nos documentos

curriculares está diretamente relacionado a um projeto de formação cidadã, a um projeto

de nação. Interessante apontar que o conceito de nação e o de identidades nacionais,

previamente estabelecidos, estão sendo discutidos e relativizados. Entretanto, o conceito

de nação é muito forte e, quando se pensa em uma política pública de educação, o

discurso para a construção de um país para todos é muito presente e sedutor. Quem

poderia negar a tolerância, a igualdade de oportunidades para todos, a presença da

história de grupos marginalizados dos currículos, em um processo de educação que lute

pela igualdade?

Considerações finais

Educar para a diversidade apresenta múltiplos sentidos para a formação docente, e

não é incomum professores apresentarem, em seus discursos, um sentido de diversidade

que se aproxima mais da inclusão e do reconhecimento de uma dívida histórica com

grupos marginalizados e ainda outros, que percebem ainda este tema em uma

perspectiva da solidariedade. Não podemos negar o papel histórico de sujeitos de

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

11006ISSN 2177-336X

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experiência e luta no movimento negro, indígena, LGBT, camponeses, entre tantos que

podemos apontar, que tiveram papel relevante no avanço das discussões em direitos

humanos e pela igualdade racial.

No entanto, este estudo vai na direção de entender como o fechamento, ainda

que provisório, de um discurso hegemônico privilegiando a diversidade, colocou à

margem desse debate curricular, na formação da Secadi, a argumentação acerca da

diferença. Defende que, ao fixar conteúdos para contemplar a História da cultura afro-

brasileira e indígena, as DCNs para a Educação das Relações Étnico-Raciaisconsolida

ainda que de forma provisória; uma dimensão universal do conhecimento, onde

determinados tópicos referentes a estas culturas devem estar presentes em nossos

currículos.

A lógica que venho defendendo nesta trajetória de pesquisa é a de que os

processos de elaboração de materiais didáticos e formatos de formação continuada,

guardam alguma fixação de sentido de representação: de raça, gênero, direitos e

conhecimento. Portanto, são sempre espaços de disputa pela hegemonia nos processos

discursivos que vão constituir a política para o desenvolvimento e fomento de

publicações e projetos de formação continuada. Defender uma educação que valorize as

diferenças, é argumentar com base na teoria do discurso de Laclau e Mouffe (2004), que

discursos antagônicos em disputa no interior de lógicas discursivas - no terreno das

relações de poder - vão se estabelecendo, e promovem deslocamentos que tornam

impossíveis as possibilidades de totalizações e de fixação identitárias.

Essa política curricular de inclusão de conteúdos de histórias e culturas dos

negros e dos povos indígenas se inscreve, ambivalentemente, no „mito das

três raças‟, para fixa-lo pela repetição continuísta de um passado comum e

pela ruptura da tradição por histórias dos grupos subalternizados no processo

de (re)construção da cultura nacional brasileira. O esforço de marcar „muitos

como um‟ para identificações totalizadas do povo, da nação, do negro, do

índio, do imigrante europeu pela expressão de experiências coletivas unitárias

é interrompido pela presença perturbadora da diferença cultural, do

inexplicável, do hibridismo. Reduzir a diferença cultural em sistemas

classificatórios homogeneizadores e estereotipados é uma tentativa de tornar

consensual o que é conflituoso, de fixar como certo o que é contencioso, de

negar histórias heterogêneas de grupos em disputas por uma harmonia

imaginada (PONTES, 2009, p. 15).

Nesta perspectiva, defendo uma política da diferença e não da diversidade

cultural, onde os ideais de harmonia e tolerância, buscam garantir uma igualdade que

considero impossível. Argumento, com Mouffe (2005) que, ao optar por uma política

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

11007ISSN 2177-336X

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da diferença, reconheço nos processos de articulação elementos consensuais e

provisórios. Defendo uma teoria curricular, em uma perspectiva desconstrutiva, ou seja,

de se tensionar um discurso que se pretende unitário, reinserir a diferença e

potencializar deslocamentos, no que diz respeito à hegemonia do universal e à redução

da educação ao simples reconhecimento, radicalizando e colocando sob suspeita a

promessa de uma igualdade social e econômica.

Aposto no currículo como instituinte de sentidos, como ato criativo, onde o

sentido de uma educação para as relações étnico-raciais deve ser inserido,

ressignificando seu lugar no currículo como um espaço-tempo de fronteira cultural; e

onde haja a desconstrução de que existe um saber universal ou identidades fixas. E,

assim, buscando-se pensar as culturas como híbridas e, por conseguinte, negando o

realismo e as perspectivas fundacionais. Desta forma, em vários espaços-tempo,

entendo ser mais enriquecedor articular e ampliar a discussão sobre cultura, ética,

formação humana, cidadania e sustentabilidade ambiental, na perspectiva das

comunidades tradicionais, especialmente, quilombolas e povos indígenas, assim como

discutir a questão racial e da discriminação, assumindo que também este espaço é uma

arena de luta discursiva pelo poder de significar e demarcar fronteiras.

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__________________

1Em 2011, com a extinção de dois departamentos no MEC: a Secretaria de Educação a Distância (SEED)

e a Secretaria de Educação Especial (SEESP). Os programas da educação inclusiva foram incorporados à

Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (Secadi), anteriormente a

seção se chamava Secad e não abarcava a inclusão.

2Uma diferença que pressupõe o partilhamento de traços comuns entre aquilo que será diferenciado.

Trata-se de uma perspectiva em que se percebe facilmente o caráter essencial em que se sustenta a

distinção. (Macedo, 2014, p. 87).

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