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EXERCÍCIOS DE CRIANÇAS: BRINCADEIRAS, PRÁTICAS ESCOLARES E SABERES INFANTIS Este painel apresenta três pesquisas em educação que investigam as práticas escolares e institucionais com crianças, considerando estas e suas trajetórias infantis que se apresentam como um desafio à Educação e à Pedagogia, uma narrativa a ser ouvida socialmente e transcrita num exercício profundo de estudo e reflexão. O primeiro estudo resenha sobre os modos como meninos e meninas da Educação Infantil constroem seus discursos sobre relações de gênero. Através da observação direta em duas salas de pré- escola, identificou-se que as concepções das crianças sobre o gênero reafirmam padrões sexistas vigentes. A segunda pesquisa representa partes de uma investigação realizada entre 1999 e 2000, tendo como lócus uma escola e um bairro da cidade de Londrina (PR). Apoiada nos moldes de uma investigação etnográfica, através de uma perspectiva socioantropológica, a pesquisa encontrou como principais resultados: 1) os comportamentos considerados violentos e agressivos são apresentados pelas crianças como brincadeiras preferidas; 2) os medos inspirados nessas brincadeiras pela escola representam um interdito da corporeidade que não pode ser controlada; e 3) quando não se sabe interpretar um comportamento lúdico, corre-se o risco de banalizar o que seria um excelente ajutório ao trabalho do professor. A terceira pesquisa investigou os efeitos da brincadeira no contexto da classe hospitalar. De método etnográfico, no domínio interpretativo-compreensivo, foi utilizada observação participante para captação dos dados. Os participantes foram os escolares internados que frequentavam a brinquedoteca e a classe hospitalar. Os resultados indicaram que a criança estabelece sua peculiaridade na brincadeira, mesmo sendo atividade administrada de forma sistemática pelos adultos. Esse exercício tenso de viver as infâncias evidencia que as crianças profanam o conhecimento dos adultos na tentativa de afirmar-se, seja na conduta da violência simbolizada, seja na construção dos gêneros, seja mesmo num leito de hospital. Palavras-Chave: Brincadeira, Condutas de Risco, Práticas Escolares. XVIII ENDIPE Didática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira 11329 ISSN 2177-336X

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EXERCÍCIOS DE CRIANÇAS: BRINCADEIRAS, PRÁTICAS ESCOLARES E

SABERES INFANTIS

Este painel apresenta três pesquisas em educação que investigam as práticas escolares e

institucionais com crianças, considerando estas e suas trajetórias infantis que se

apresentam como um desafio à Educação e à Pedagogia, uma narrativa a ser ouvida

socialmente e transcrita num exercício profundo de estudo e reflexão. O primeiro estudo

resenha sobre os modos como meninos e meninas da Educação Infantil constroem seus

discursos sobre relações de gênero. Através da observação direta em duas salas de pré-

escola, identificou-se que as concepções das crianças sobre o gênero reafirmam padrões

sexistas vigentes. A segunda pesquisa representa partes de uma investigação realizada

entre 1999 e 2000, tendo como lócus uma escola e um bairro da cidade de Londrina

(PR). Apoiada nos moldes de uma investigação etnográfica, através de uma perspectiva

socioantropológica, a pesquisa encontrou como principais resultados: 1) os

comportamentos considerados violentos e agressivos são apresentados pelas crianças

como brincadeiras preferidas; 2) os medos inspirados nessas brincadeiras pela escola

representam um interdito da corporeidade que não pode ser controlada; e 3) quando não

se sabe interpretar um comportamento lúdico, corre-se o risco de banalizar o que seria

um excelente ajutório ao trabalho do professor. A terceira pesquisa investigou os efeitos

da brincadeira no contexto da classe hospitalar. De método etnográfico, no domínio

interpretativo-compreensivo, foi utilizada observação participante para captação dos

dados. Os participantes foram os escolares internados que frequentavam a

brinquedoteca e a classe hospitalar. Os resultados indicaram que a criança estabelece

sua peculiaridade na brincadeira, mesmo sendo atividade administrada de forma

sistemática pelos adultos. Esse exercício tenso de viver as infâncias evidencia que as

crianças profanam o conhecimento dos adultos na tentativa de afirmar-se, seja na

conduta da violência simbolizada, seja na construção dos gêneros, seja mesmo num

leito de hospital.

Palavras-Chave: Brincadeira, Condutas de Risco, Práticas Escolares.

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

11329ISSN 2177-336X

APRENDIZAGEM LÚDICA PARA ALÉM DO PAPEL

PEDAGÓGICO NA CLASSE HOSPITALAR

Marlene Gonçalves de Oliveira – UFMT

Resumo

Este estudo teve como objetivo apresentar os efeitos da brincadeira no contexto da

classe hospitalar. A referência teórica escolhida foi constituída por estudos que compõe

a Teoria do Brincar em várias áreas: da sociologia com BENJAMIN (1984) e

BROUGÈRE (2002); da educação com KISHIMOTO (2002; 2005) e da filosofia com

HUIZINGA (2005). O conceito de ludicidade foi o escolhido para retratar o efeito da

brincadeira, que em LUCKESI (2005) e FREUD (1996) se reforça pela ideia do ensaísta

alemão BENJAMIN (1984), e do canadense MCLUHAN (2007) que respalda sua

importância na formação de crianças e jovens. A inspiração do método recaiu na

etnografia, no domínio interpretativo-compreensivo, na qual foi utilizada observação

participante para captação dos dados que, processados numa contínua contextualização,

de forma interativa, derivou em relato descritivo do vivenciado. Os participantes foram

os escolares internados que frequentavam a brinquedoteca e, como parte integrante, a

classe hospitalar, um dos ambientes observados como forma de brincar no cotidiano

infantil. Os resultados indicaram que a criança estabelece sua peculiaridade na

brincadeira, mesmo sendo atividade administrada de forma sistemática pelos adultos,

como foi observado na classe hospitalar. O ambiente mostrou-se pouco propenso à

brincadeira, já que a preocupação da pedagoga em ministrar conteúdos, conduz certo

“rigor” análogo ao processo escolar. No entanto, de maneira astuciosamente infantil, a

criança, alcançou a brincadeira, o que ratificou o efeito do gênero “válvula de escape”,

uma vez que permitiu fugir da responsabilidade exigida pelo adulto, no caso a

professora, alcançando um certo grau de afrouxamento dos laços da responsabilidade do

estudar, todo esforço para volver a condição natural da infância ― o brincar. Disso

conclui-se que a criança elege as atividades lúdicas como forma de processar suas

experiências, sugerindo que a brincadeira no hospital constitui-se numa rotina

prazerosa, mesmo sendo atividade conduzida de forma sistemática pelos adultos.

Palavras-chave: Brinquedoteca. Ludicidade. Classe hospitalar.

Introdução

Este artigo faz parte da tese de doutoramento em educação sobre a brincadeira

no espaço hospitalar — o efeito terapêutico à criança enferma. Optou-se pelo recorte e

discussão da categoria “contextos e espaços do brincar: a classe hospitalar”. A classe

hospitalar encontra-se inserida no ambiente da brinquedoteca do hospital local do

estudo, isto oportunizou a ampliação da discussão sobre a ludicidade no ambiente

escolar especialmente no trabalho com o aluno hospitalizado, importante fato que

permite a continuidade do processo sócio educativo para a criança.

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

11330ISSN 2177-336X

Buscamos a teoria do brincar na perspectiva sociocultural para averiguar a

brincadeira num espaço inusitado, para ela. Como efeito trazemos a ludicidade, e foi em

Cipriano Luckesi (2005) e Sigmund Freud (1996) que encontramos os referenciais,

completando com Walter Benjamin (1984) e no educador Marshall Mcluhan (2007).

Esses foram os referenciais, que possibilitaram à compreensão dos efeitos deste

fenômeno. Para o método trouxemos a etnografia sob forma de inspiração, com sua

técnica da observação participante, o que possibilitou os diálogos espontâneos, maneira

singular de interagir com os participantes - as crianças internadas. A narrativa foi a

configuração que revelou como a brincadeira acontece no ambiente do hospital e aqui

apresentamos como ela acontece na classe hospitalar.

Brinquedoteca

Genericamente, é um espaço destinado a estimular crianças e jovens a

brincarem de forma livre, o que proporciona a prática de sua própria criatividade além

de valorizar as atividades lúdicas. Pela informação de Friedmann (1998), a ideia da

Brinquedoteca surgiu em Los Angeles no ano de 1934. À época, estava em alta a grande

depressão econômica dos Estados Unidos e, para solucionar o problema de roubos de

brinquedos por crianças de uma escola municipal, em certa loja de brinquedos, lançaram

mão dessa ação — um serviço de empréstimo de brinquedos, denominado de “Los

Angeles Toy Loam”, e continua sendo recurso comunitário utilizado até os dias atuais.

No Brasil em 1971, com a inauguração do Centro de Habilitação da

Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE), em São Paulo, foi realizada

uma exposição de brinquedos pedagógicos, direcionados aos pais de crianças

excepcionais e, aos profissionais e estudantes. Como essa exposição exitosa, a APAE

implantou em 1973 o Sistema de Rodízio de Brinquedos e Materiais Pedagógicos,

denominado de Ludoteca. Os brinquedos foram centralizados e sua utilização foi no

modelo de bibliotecas circulantes. Em 1984, criou-se a Associação Brasileira de

Brinquedotecas (ABB), responsável pelo crescimento da preocupação com o brinquedo

e com as brincadeiras por todo o Brasil (FRIEDMANN, 1998).

Kishimoto (1998) classifica em dois modelos padronizados de brinquedoteca:

A escolar e a hospitalar, sendo a Escolar – aquela que se encontra dentro da instituição

de ensino, que busca assegurar o desenvolvimento integral da criança, com vários

ambientes representativos, tais como: ambiente do faz de conta, do construtor, da leitura

etc., e a Hospitalar que não difere muito do modelo escolar, apresenta requisitos de

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

11331ISSN 2177-336X

interação e também prioriza o brincar da criança internada em unidades pediátricas de

hospitais.

Segundo Cunha (2007), a importância da brinquedoteca hospitalar para a

criança doente, se justifica pelas seguintes características: Traz momentos de alegria e

descontração através do brincar; Auxilia a preservar a saúde emocional das crianças;

Contribui para o desenvolvimento físico, psicológico e social das crianças; Os traumas

emocionais são amenizados. A autora ainda relata que a brinquedoteca é considerada

um espaço ideal para as crianças darem vazão aos seus sentimentos após um exaustivo e

inevitável tratamento (como, por exemplo, o oncológico) e é importante porque nesse

espaço há uma socialização de experiências ― uma partilha.

A classe hospitalar

A educação como direito de todos e dever do Estado e da família, deve ser

promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, tendo em vista o pleno

desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania antes mesmo de

sua qualificação para o mercado de trabalho. No caso da criança hospitalizada que

necessita estar afastada da escola por tempo limitado ou até ilimitado, tem o amparo por

outra base legislativa: a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB). Nela consta

ações para garantir o cumprimento da obrigatoriedade de ensino. Para tanto o poder

público deve criar formas alternativas de acesso aos diferentes níveis de ensino (art. 5º,

§ 5º), e garantir o processo de aprendizagem (art. 23). O Conselho Nacional de

Educação, por meio da Resolução nº 02, de 11/09/2001, deixa claro na sua definição

que os escolares que apresentam dificuldades de acompanhamento das atividades

curriculares por condições e limitações específicas de saúde (art.13, §1º e 20º), como é o

caso das crianças hospitalizadas, que devem receber tratamento

domiciliares/hospitalares (BRASIL, 2001). O Estado então como legislador busca ações

que venham cumprir a lei, cria atividades denominadas de Classe Hospitalar. Para que

isso seja possível o profissional da pedagogia passa a ministrar aulas no ambiente do

hospital. Observa-se que não só promove a continuidade do processo escolar, como

também proporciona ao ambiente hospitalar, completamente distinto da escola, um

momento em que revive a familiaridade da condição infantil, a escolarização, além de

compor com a interdisciplinaridade, movimento importante para a saúde e a educação.

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

11332ISSN 2177-336X

Os conceitos: brincar, brincadeira/jogos e divertimentos

Brincar refere-se à “ação que a criança desempenha quando concretiza as

regras de qualquer brincadeira” (KISHIMOTO, 2005, p. 21). Na teoria do brincar o

termo brincadeira, tem o mesmo sentido da palavra jogo, e a palavra brinquedo, compõe

nesse contexto como o objeto concreto da ação do brincar (BENJAMIN, 1984) e o seu

efeito denomina-se ludicidade. Partimos do pressuposto de que, perguntando a respeito

do efeito da brincadeira no hospital, poderíamos acessar os sentidos acerca da

brincadeira e, em decorrência, capturar aspectos da subjetividade na criança.

Para o sociólogo francês Gilles Brougère (2002), o brincar é uma dinâmica

essencial ao ser humano e um fenômeno complexo; é uma atividade dotada de

significado social, o que requer aprendizagem, no que ele defende seu aspecto cultural,

especificamente a cultura lúdica. Ele realça a importância do brincar para esta vertente

sem, contudo ignorar a ligação com o lado psicológico. Nesse aspecto sua crítica é

dirigida à psicologização do brincar, enfatizada pelo pensamento contemporâneo. A

alegação desse autor recai no fato de que isso faz do brincar uma instância do indivíduo

isolado das influências do mundo, ignorando a inserção do fenômeno no sistema social.

Para ele o brincar suporta funções sociais o que lhe confere razão de ser, em suas

palavras o jogo/brincar só existe dentro de um sistema de designação, de interpretação

das atividades humanas (BROUGÈRE, 2002).

Um ensaio que se aproxima os termos brincadeira/diversão poderia dar-se pelo

uso que Mcluhan (2007, p. 264) faz do jogo: um fato de extensão do homem social.

Para ele, o jogo “é um elemento contra irritantes ou meio de ajuste às pressões e tensões

das ações especializadas de qualquer grupo social; são extensões da resposta popular às

tensões do trabalho”. Não obstante não se pretende aqui, aplicar essa ideia a um

contexto mais amplo, quando se é possível empregá-la a um recorte específico: a

atividade de brincar enquanto jogo e brincadeira\divertimento num contexto hospitalar

― a brincadeira nesse espaço onde o corpo se encontra debilitado e a tensão advinda

dessa situação pode ser amenizada pela brincadeira/diversão.

Como anteriormente citado, a brincadeira é capaz de transformar a angustiante

parte da experiência em prazerosa delícia de viver. No estudo em questão, a brincadeira

no espaço hospitalar, conta com a diversão, pois a criança encontra-se na vazão de

buscar diferente condição da qual está vivenciando ― a doença e a brincadeira/diversão

leva o ser para o lado diferente dessa realidade enfadonha, para alcançar o estado de

deleite, mesmo que a realidade não se afaste.

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

11333ISSN 2177-336X

Na realidade concreta o brincar tem relação austera, densa, mas quando se

afasta dela torna-se leve o que permite o lúdico, o criativo, algo pouco denso (FREUD,

1973 apud BROUGÈRE, 2002). A brincadeira leva o ser a uma ideia imaginativa em

que o sentimento se mistura à vontade, um querer e poder ao mesmo tempo, o que

retrata um fenômeno de ideação. Em suma, o ato de brincar leva ao sítio da magia em

que consegue envolver o ser por inteiro e, efetiva o momento prazeroso. Isso nos leva a

inferir que o brincar, na sua essência, é algo mágico, ou seja, se encontra além da

compreensão que podemos obter através de constatações científicas, sociais ou

filosóficas.

Na obra de Freud (1996), na qual a realidade concreta se encontra antagônica

ao querer do sujeito, por ser árdua, assim a natureza da magia permite que se avance e

se ganhe a imaginação e deparar-se com a satisfação prazerosa. Podemos dizer que este

é o estado sápido no qual se encontra o brincar. É legitimo considerar o jogo uma

"totalidade", no moderno sentido da palavra, e é como totalidade que devemos procurar

avaliá-lo e compreendê-lo, o que também consideraremos em nosso estudo.

Na Antiguidade, observa-se que a brincadeira não era ligada exclusivamente à

infância, mas às pessoas em geral, isso sugere sua perpetuação pelo lado cultural, na

qual se identifica em alguns filósofos, como Platão e Aristóteles, que pensaram o

jogo/brincadeira como ferramenta para a educação, associando a ideia do saber ao

prazer como refere Friedmann (2006). Mas há também a ideia de que a recreação seria

um descanso do espírito, como vem sendo discutida na contemporaneidade por

educadores e pesquisadores, que ressaltam a importância do brincar acontecer de forma

espontânea, como diria Adriana Friedmann (2006) não devemos associar à ideia de

prêmio ou castigo. Isso traduz em ser o brincar um momento de relax no qual a mente

obedece aos estímulos do corpo de maneira prazerosa.

Ao trazer este tema para o espaço hospitalar, inspiramos em Mcluhan (2007, p.

266) no qual vê o humor como algo que faz revelar o ser por inteiro: “Costumamos

pensar no humor como um sinal de sanidade, por boa razão: na graça e na brincadeira

recuperamos a pessoa integral, já que só podemos utilizar uma pequena parcela de nosso

ser no mundo de trabalho ou na vida profissional”.

Concordamos com a ideia de que o brincar pode ser uma expressão livre do

sujeito brincador, tal qual Gomes (2001), Huizinga (2005), Mcluhan (2007) e Dantas

(2002). Mesmo no ser adulto a brincadeira retrata a liberdade e principalmente a

inteireza do verdadeiro ser, revela o prazer de viver. Para tanto os teoristas

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

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psicanalíticos como Freud (1996), refere que sob o instinto de autopreservação do ego,

o princípio do prazer é substituído pelo princípio da realidade e para tanto enfatiza

dizendo que a criança brinca para afastar-se da realidade que é menos prazerosa

(FREUD, 1996, p. 22-27).

Desta forma, reconhecemos a necessidade de alcançar outras áreas que,

interligadas, poderiam dar suporte ao estudo. Assim passamos ao próximo item ―

ludicidade ― utilizando outros autores que não apenas os sociólogos e educadores, mas

que também buscam elucidar o fenômeno que se origina na ação do brincar, pois como

Morin (2005), acatamos que a realidade antropossocial é multidimensional, contem

sempre, a dimensão individual e a dimensão social acoplada à dimensão biológica

(ibidem). Com esse argumento nos sentimos inspirados em aproximar de autores que

não os apenas já citados.

Sobre a ludicidade

O mecanismo da ludicidade ainda é um tanto incógnito, por mais remoto que

seja considerado esse fenômeno, equívocos são identificados, o que requer articulação

de pensamentos a fim de contribuir para seu esclarecimento, por isso buscamos além

dos já citados anteriormente, os que compõem o paradigma emergente, no caso da

socioantropologia educacional, encontrados no trabalho de Gomes (2001) ou do

paradigma do desenvolvimento individual, especial que é para a Psicologia Cognitiva,

além dos estudos psicanalíticos encetados por Freud (1996).

O século XXI vem assumindo a ludicidade como algo essencial ao viver. Vive-

se em tempos em que o divertimento, o lazer e o entretenimento apresentam-se como

condições muito solicitadas pela sociedade coletiva. Não só em culturas juvenis ou pela

sociedade de “turistas e vagabundos”, encontrados nos estudos de Bauman (1998).

Basta dar uma olha na indústria de entretenimentos que logo se encontra uma miríade de

possibilidades recreativas, tão bem divulgados pelo mantra da pós-modernidade,

chamada “qualidade de vida” Gomes (2008). Desta forma a dimensão lúdica necessita

ter lugar de destaque nos estudos e pesquisas, a fim de revelar seu real significado.

No processo evolutivo da humanidade o homem se revela como protagonista

da evolução e com características particulares que permitem se relacionar com as

demais criaturas. Essa classificação de estágio e entendimento sobre o próprio homem

sabe-se que é denominada de: Homo sapiens, Homo Faber, e o Homo Ludens, a

característica deste último é identificada pelo seu lado competitivo, interesseiro. O que

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

11335ISSN 2177-336X

transcorre nesta fase é o fato de que o jogo é intermediado por um fenômeno

identificado como ludicidade. Para a compreensão de Huizinga (2005) o fenômeno do

brincar faz a criança viajar pelo imaginário e pensar que realmente ela é alguma coisa

importante, além daquela apresentada como de fato, sem, porém perder o sentido da

“realidade habitual”. A criança fica literalmente transportada de prazer (ibidem),

embora o teórico da comunicação e educador Marshall Mcluhan (2007) esclarece um

pouco mais ao dizer o efeito que a brincadeira leva, afirmando não apagar os limites da

consciência. Muito além de uma realidade falsa, a representação ali é uma realização de

certa aparência que implica numa imaginação, no sentido original do termo (idem, p.

17), o que implica em dizer que se diverte na concepção exata.

Para a psicanálise de Freud (1996) a ludicidade permite o prazer pois foge da

realidade, que é não é prazerosa. No moderno sentido da palavra é legitimo considerar o

jogo, enquanto efeito no ser humano, uma “totalidade” (envolve o ser por inteiro

levando à ludicidade), e é como totalidade que devemos procurar compreendê-lo neste

estudo, como argumenta Mcluhan (2007). Esse autor, embora não faça referência a

ludicidade de maneira explicita, deixa registrado o efeito que o jogo/brincadeira é capaz

de fazer, levar a ludicidade, ao dizer que “os jogos são extensões de nosso eu particular”

(p. 275), capaz de extravasar sentimento intermediado por algo do exterior, mas para

isso deve encontrar liberto de qualquer estigma que o possa prendê-lo. Como no dizer

do educador Gomes (2001), o jogo se encontra ligado à fantasia, à criatividade e, desta

maneira, à liberdade.

Para tanto precisamos considerar que o jogo/brincadeira é externo e seu efeito é

interno e para tanto deve estar pleno sem restrição. A ludicidade seria então o resultado

dessa ação. E assim sendo, o jogo/brincadeira acontece quando o organismo está livre

para brincar, e sem compromisso com qualquer resultado ou com obediência a regras

pré-estabelecidas. Nesta esfera esse pensamento fica sim, compatível com a ludicidade,

corpo e mente em perfeito bem-estar, sem compromisso com estabelecimentos de regras

ou rigor de competição. Voltando-se ao nosso estudo, no espaço hospitalar há crianças

de corpos lesados, fadigados pela doença, mas os movimentos corporais por mais

desajustados que se encontram, ainda restam-lhe energia mental para saborear o brincar

na entrega total, como observamos e relataremos mais adiante. Ela intermedia

sentimento e exterioridade, como aponta Mcluhan (2007), mas para que isso aconteça

deve estar liberto (o ser) de qualquer estigma que o possa prendê-lo, como assinala o

educador Gomes (2001), a ludicidade retrata o efeito da brincadeira e esta encontra-se

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11336ISSN 2177-336X

ligada à fantasia, isto é, à magia, que nesse momento faz com que a realidade seja

afastada, alterando-se o estado de consciência, sem perder o contato com a coisa

concreta.

Metodologia:

Para entender o cotidiano da criança hospitalizada, focando nas atividades do

brincar na classe hospitalar supomos ser preciso vivenciar de forma plena esse espaço, a

fim de compreender o que se passa nesse ambiente e como os seus respectivos atores

sociais dão significado ao objeto da pesquisa, de modo reflexivo e com certo

distanciamento, questionando seus alicerces, o convencional e o invisível. Desta forma,

a pesquisa qualitativa, de cunho etnográfico, permite que o pesquisador seja flexível

com o ambiente e os participantes que o cerca, podendo modificar técnicas de coletas de

dados, questões da pesquisa, fundamentos teóricos e a metodologia no decorrer do

trabalho.

No contexto escolhido, qual seja o Hospital Universitário Júlio Muller (HUJM)

da cidade de Cuiabá, mais especificamente na brinquedoteca da ala infantil, o perscrutar

na forma científica foi a nossa premissa principal. Assim a proposta a ser pesquisada foi

apresentada a todos da equipe de trabalho da pediatria que frequentam o espaço de

brincar. A integração na rotina das crianças, para através da observação poder revelar o

brincar no espaço hospitalar, foi logo implantada. Concomitante a esta fase de

integração, os participantes do estudo eram identificados conforme os critérios

adotados: ter idade entre 6 a 13 anos e frequentar o espaço a brinquedoteca e

concomitantemente a classe hospitalar. Junto a acompanhante e responsável pela

criança o objetivo do estudo era apresentado mediante a leitura do Termo de

Consentimento Livre e Esclarecido, respeitando os princípios éticos da pesquisa.

Nos meses de março e abril/2013 e maio a agosto/2014, deu-se as observações

no ambiente supra citado. Para esta atividade envolveu-se a observação de 3 (três)

grupos de 6 (seis) crianças totalizando inicialmente 18 (dezoito) crianças. Porém deste

total, 14 (quatorze) crianças validaram como participantes da pesquisa. Durante as

observações foram realizados as entrevistas em forma de diálogos, chamadas aqui de

“entrevistas dialogadas”. Para esta ação da coleta, elaborou-se um instrumento ―

formulário para a coleta de dados ― com perguntas norteadoras para a entrevista

mencionada e a cada dia de observação e de acordo com a interação, formulava uma

questão do instrumento. Essa organização acontecia momentos antes do dia da

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

11337ISSN 2177-336X

observação, ou seja, após a releitura das anotações do dia anterior, na qual detectava a

questão que não havia sido trabalhada com aquele grupo da observação, e buscava

àquela que necessitava ser indagada, isso foi estratégico a fim de buscar a resposta na

forma natural da criança, inclusive nas aulas na classe hospitalar. Houve participação

das atividades de jogos pedagógicos do tipo Dama ou Banco Imobiliário, conduzidos

pelas pedagogas e pelas estagiárias da psicologia. Durante esta fase da pesquisa, de

observações, foi utilizado procedimento de registro como notas de campo (descritiva).

Para apresentação dos dados utilizamos o termo episódio, a forma de organização dos

achados.

Para a análise dos dados envolveu-se o trabalho com sua organização, sua

divisão em unidades manipuláveis, síntese, procura de padrões, achado dos aspectos

importantes e do que deve ser aprendido e “isso permitiu decidir o que vai ser

transmitido aos outros” (BOGDAN & BIKLEN 1994, p. 205). O que implica em dizer

que a abordagem qualitativa possibilitou analisar os dados de forma indutiva, na

proporção em que os dados foram se agrupando e se inter-relacionando, direcionando a

compreensão do fenômeno. Assim, a obtenção dos dados descritivos, pelo uso de

palavras, da presença do investigador no ambiente e com os participantes que estão

envolvidos na pesquisa, de acordo com a visão dos participantes, possibilitando ao

pesquisador interpretá-los. O diálogo foi buscado para dirigir a pergunta formulada no

questionário, ao mesmo tempo em que se vivenciava as ações do brincar junto aos

participantes da pesquisa.

Resultados e discussão - A classe hospitalar do HUJM ― a ludicidade alcançada

para além da pedagogia

Episódio V ― É hora do recreio, tia!

Na aula da classe hospitalar, a pedagoga ministra o conteúdo para quatro

crianças. De repente ouço um arrastar de cadeira, quebrando o silêncio dado

pela tarefa do gênero cópia de texto sobre história do Brasil. É (M.H. – 12

Anos) a se levantar e dizer: “― Com licença professora vou ao banheiro.

(M.H. – 12 Anos) fala de maneira branda. Na volta, mal se senta e fala à

professora que já terminou a tarefa atribuída. A professora certifica e vê que

não terminou. Falta a outra página para ser copiada. É que isso aqui tá chato!

(M.H. – 12 Anos)! Ele responde ― Vamos, só falta dois parágrafos, (Insiste

a professora). Antes mesmo de terminar seus dois parágrafos lá vem ele

novamente: acho que chegou o lanche, posso ir ver? Pela resposta afirmativa

ele sai da sala, chega esbaforido e alegre. …chegou turma! ... é hora do

recreio tia! ... (M.H. – 12 Anos). E acaba a aula.

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

11338ISSN 2177-336X

No contexto das brincadeiras desenvolvidas neste local, observam-se

movimentos de brincadeiras do tipo espontâneas; aquela que traz ideia de recreação,

considerada como um bálsamo para alívio de insatisfação. Isso traduz em ser o brincar

um momento de relax na qual a mente obedece aos estímulos do corpo de maneira

prazerosa para se alcançar a satisfação e atingir a ludicidade, pois é esse o objetivo da

ludicidade segundo Freud (1973) permitir um distanciamento da realidade que é pouco

prazerosa, emergindo aí um princípio de prazer que muitas vezes não condiz com o

princípio da realidade, e vai mais além ao comparar com a arte que não se limita a uma

simples relação com o real, (FREUD, 1973, apud BROUGÈRE, 2002, p. 19). Ao trazer

este tema para o espaço hospitalar, inspiramos em MCLUHAN (2007, p. 266) no qual

vê o humor como algo que faz revelar o ser por inteiro para ele nós costumamos pensar

no humor como um sinal de sanidade, e isto por boa razão, pois é na graça e na

brincadeira que recuperamos a pessoa integral, já que só podemos utilizar uma pequena

parcela de nosso ser no mundo de trabalho ou na vida profissional.

Episódio VI ― A Barganha: brincar no computador

[…] (A.G. – 09 anos), reclama, faz cara de pouco gosto e no final, depois de

uma promessa da pedagoga (liberar a Escola de Informática, ou seja, a

Internet), decide ir à classe hospitalar. A atividade é dirigida diretamente pela

pedagoga. Leitura e interpretação de texto. A menina reclama, demonstra

mesmo não estar interessada nesta atividade, olha o relógio todo o tempo,

buscando o término para ir ao computador. Como demora, ela pede para ir ao

banheiro, e lá fica por tempo superior ao necessário. Retorna e quer o lanche.

Sai novamente para certificar-se se chegou. A pedagoga insiste na tarefa e ela

conclui a contragosto. Pergunto o que ela mais gosta de fazer no hospital e

ela é enfática: brincar no computador.

Aqui também (A.G. – 9 anos), dá pouca importância ao conteúdo escolar. O

brincar é por ela retratado como descanso do espírito, e é como vem sendo discutida na

contemporaneidade por educadores e pesquisadores ao ressaltarem a importância do

brincar acontecer de forma espontânea, como no pensar de Adriana FRIEDMANN

(2006), para essa autora não devemos associar à ideia de prêmio ou castigo, isto porque

o brincar pode ser considerado um momento de relax na qual a mente obedece aos

estímulos do corpo de maneira prazerosa, o que requer sensibilidade por parte de

qualquer profissional que lida com crianças, no caso em questão a pedagoga. O

educador Cleomar Gomes (2001), também defende o jogo/brincadeira como forma

criatividade por se encontrar ligado à fantasia, desta maneira, à liberdade, e para tanto

condiciona ambiente propiciador para qualquer aprendizagem.

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

11339ISSN 2177-336X

Considerações Finais:

Com o objetivo de apresentar os efeitos da brincadeira no ambiente da

brinquedoteca, mais especificamente na classe hospitalar, observamos que

essencialmente encontra-se pouco propenso à brincadeira. A preocupação da pedagoga

em ministrar conteúdos, leva-a utilizar as atividades de maneira “arbitraria”, com certo

“rigor” semelhante ao processo escolar. No entanto, astuciosamente a criança, alcança a

brincadeira, o que evidencia o efeito do gênero “válvula de escape”, pois permitiu fugir

da responsabilidade exigida pelo adulto, no caso a professora, e de certo grau de

afrouxamento dos laços da responsabilidade do estudar, isso para obter a condição

natural da infância ― o brincar e com ele alcançar a ludicidade. Disso infere-se que a

ludicidade para a criança vem em primeiro lugar, mesmo sendo atividade conduzida de

forma sistemática pelos adultos.

A brincadeira no hospital constitui rotina prazerosa típica do significado da

teoria do brincar. Nesta pesquisa pode-se constatar que a brincadeira acontece

independente de indução ou manejo das ações por parte dos adultos (pedagogas e

psicólogas). A ludicidade foi a ação alcançada pelas crianças que buscam a brincadeira

na sua forma livre, individual e sem propósitos educacional ou instrucional. Os

profissionais que atuam no espaço da brinquedoteca buscam levar à criança seu objeto

de trabalho ― educacional, por parte da pedagoga e análise comportamental por parte

da psicóloga —, contudo a criança é capaz de ludibriar qualquer condução e adentrar na

brincadeira alcançando a leveza da ludicidade. Também percebemos que os

profissionais, não alcançam essa ludicidade, e que por isso talvez não conduza de forma

integrada sua ação profissional junto a criança.

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XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

11341ISSN 2177-336X

TECENDO AS TRAMAS DAS IDENTIDADES DE GÊNERO: SABERES DAS

CRIANÇAS E PRÁTICAS ESCOLARES

Renata Aparecida Carbone Mizusaki- UFMT

Resumo

A criança enquanto categoria social de análise tem sido sujeito de investigação de

diferentes áreas do conhecimento. Entrecruzada com outras facetas analíticas, a criança

e toda a potência extensiva de sua ação enveredam a compreensão do ser infantil e dos

projetos que a sociedade lhes apresenta. A educação, enquanto uma dessas áreas, no

entanto, tenta, ao mapear a criança, seus fazeres, suas peculiaridades, melhor

compreendê-la para fazer com que suas práticas educativas tenham cada vez maior

alcance, e, seus dispositivos cada vez mais eficácia e controle. Controlar o corpo, os

movimentos os saberes, tem sido o mote formal do educar. Nesse sentido, este estudo

teve por objetivo compreender, como meninos e meninas da Educação Infantil

expressam suas crenças, concepções e ideias acerca dos papéis e funções sociais de

gênero em situações cotidianas institucionais. Assim, através de observações diretas em

salas da Educação Infantil, foi possível compreender que meninos e meninas

expressaram suas concepções sobre o ser masculino e ser feminino de modo a reafirmar

padrões sociais vigentes, naturalizando o poder e o comando como sendo condutas

típicas masculinas, enquanto que as meninas apresentaram comportamentos de

passividade e obediência; comportamentos estes expressos principalmente durante as

brincadeiras e na hora do parquinho. Esse exercício tenso, de experienciar uma

temporalidade que atravessa cronologias e linearidades, profanado pelas práticas

infantis, evidencia que a escola pode ser um outro lugar de crianças e de infâncias. As

trajetórias escolares podem ter outros contornos, outros maravilhamentos. Ao serem

compreendidas junto com as crianças, as práticas escolares podem acenar para outras

linguagens, outras possibilidades de ser, de diferentes modos, pode acenar para outros

discursos.

Palavras-chave: Relações de gênero. Educação Infantil. Práticas Escolares.

Introdução

As concepções sobre as crianças nem sempre foram as mesmas em diferentes

épocas e contextos culturais. Siqueira (2011), afirma que, em diferentes momentos, as

sociedades construíram crenças e ideias que nortearam a construção de projetos e

políticas para as crianças em função das expectativas econômicas, sociais, religiosas

entre outras, traduzindo com isso a expectativa futura em relação aos novos cidadãos.

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

11342ISSN 2177-336X

Esses discursos e projetos têm bases históricas profundas. Kohan (2005)

apresenta a preocupação com a criança, na Antiguidade, nos discursos de Platão, que

apesar de não ter se dedicado ao estudo das crianças, sempre esteve preocupado com o

governo da pólis e, portanto com o tipo do cidadão que a gerenciaria. Ter um

governante justo, bom, que mantivesse uma pólis harmônica sempre foi o mote de

Platão, por isso, a necessidade de se pensar a boa formação moral, desde a infância, do

futuro governante. Segundo Kohan, é possível identificar no discurso platônico ideias

que reforçam a assertiva da infância e da criança no sentido de uma negatividade, de

uma ausência, desqualificação, já que, para este pensador, a criança não tem experiência

e conhecimentos dignos de um adulto; não tem uma essência que a marque; vive uma

transitoriedade sem forma, que pode ser moldada aos objetivos de um adulto. Portanto,

seu interesse se reverte naquilo que ela pode vir a ser, num adulto que pode governar a

pólis de uma forma justa, harmônica. Para isso, um adulto justo, qualificado, experiente

a deve modelar. Estas ideias de Platão acerca da infância e das crianças ainda nos

sondam, nos sombreiam. Elas ainda estão latentes nas práticas escolares, nas redes

discursivas e no imaginário social. Estas reminiscências nos afetam, nos tocam.

A partir de Ariès (2011), pôde-se afirmar outras diferentes noções ou

sentimentos em relação à criança e sua infância, que variaram desde sua compreensão

como adulto em miniatura, na Idade Média, à ideia moderna da criança como um ser

com características peculiares e descolada do adulto, iniciadas no século XVII e

efetivadas no século XVIII; expressando assim diferentes formas de relacionamento

entre aquilo que a sociedade produz em determinado momento e a vivência

experimentada dessa produção pelas crianças em seu tempo histórico e social.

Rizzini (2011) descreve, em nossa cultura, a passagem de um modelo de criança,

também escrito por Ariès (2011), como sendo um “pequeno animalzinho”, miniatura do

adulto, sem razão, ao nascente sentimento moderno de infância e de criança, por volta

do século XVII, cuja preocupação passa a ser o controle deste pequeno ser para sua

futura vida adulta, para seu exercício cidadão. Mas é na marcante passagem do século

XIX para o século XX, durante um rigoroso processo de revolução das mentalidades,

que o olhar social sobre a criança, e particularmente a criança pobre, tem um forte apelo

social e pedagógico. Conforme Kuhlmann Jr, (2001), o Estado representado por um

tríplice aparato, judicial, médico e assistencial, delimita estratégias de uma assepsia

social, eugenista, no sentido de moralização da nação, combatendo os vícios, a

criminalidade. A criança pobre, representada ora como um ser em perigo, isto é, em vias

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

11343ISSN 2177-336X

de se tornar um marginal, ora vista como um ser perigoso, uma ameaça social, torna-se

uma permanente fonte de risco à ordem nacional. A educação para o trabalho e para a

conformidade de seu lugar e papel social se torna, junto com as redes jurídicas e

assistenciais, um imperativo.

Somente por volta do final do século XX, transcrito um profundo período de

transformações políticas, econômicas e sociais, é que a criança passa a ser reconhecida

como sujeito de direitos, capaz de fazer parte da cultura e ao mesmo tempo, de

transformá-la a partir de sua singularidade, pela Constituição Federal de 1988 e pelas

legislações e documentos dela decorrentes.

Siqueira (2011) ressalta que essa complexidade em torno do que é a infância,

contribui para a formação de projetos e políticas públicas que orientam os fazeres de

professores(as) e margeiam a construção de experiências históricas e temporais inscritas

em uma cultura, em um povo, produzidas num contexto determinado social, política e

economicamente. O autor encontra respaldo nas palavras de Sarmento:

Por ser histórica e social, essa concepção não pode prescindir das

análises que geram os processos de exclusão da infância no contexto

da vida material, processos marcados pela contradição de diferentes

projetos. Assim, “conhecer as crianças impõe, por suposto, conhecer a

infância. Isto vale por dizer que os itinerários individuais, privados e

singulares de cada criança só fazem completo sentido se

perspectivados à luz das condições das condições estruturais que

constrangem e condicionam cada existência humana” (SARMENTO,

2004, p. 16 apud SIQUEIRA, 2011, p. 45).

Mais recentemente, a criança percebida numa perspectiva positiva, que lhe

credita a capacidade de criar cultura, de produzir questionamentos, que deixa suas

marcas em uma cultura ao mesmo tempo em que por ela é marcada, tem espaço entre

pesquisadores que, amparados em diferentes áreas que têm a criança, numa perspectiva

holística, como estudo e como estatuto de análise, como a Sociologia da Infância, a

Antropologia, a Psicologia entre outras. Essa potência criadora de vida, renascedora,

que rompe com o tempo cronológico, instalando-se num tempo real, potente, dilacerante

é encontrada em outros autores (Kohan 2008, Abramowicz, Levcovitz e Rodrigues

2009; Siqueira 2011).

O camelo é o espírito que carrega, sem qualquer resistência, os

pesados valores da tradição cultural que, com sua pretensão de se

constituir na totalidade dos valores, colocam em evidência sua a

mais absoluta falta de liberdade do camelo, preso ao dever, renuncia

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

11344ISSN 2177-336X

a sua liberdade, respeita a tradição e até desfruta do peso que

carrega, na medida em que os pesos mais formidáveis colocam mais

à prova sua fortaleza; porém na solidão do deserto, o espírito se

transforma em leão; adquire uma primeira forma de liberdade que

surge da rebelião do “eu quero” perante o “tu deves”: esta é a

liberdade da crítica, já que ao dizer não resiste os valores impostos;

mas o leão ainda não é dono de uma liberdade afirmativa e não

consegue criar novos valores, o que só é possível na terceira e

suprema transformação: a criança (KOHAN, 2008).

Além dessas importantes mudanças conceituais e políticas, percebe-se o advento

das camadas populares aos bancos escolares. Outros saberes, outros corpos.

Às escolas públicas vão chegando outros alunos. O que trazem de

diferente? Outras vidas e outros corpos. Mais precarizados, mais

vulneráveis do que os corpos das crianças e adolescentes que tiveram

o privilégio, por décadas de acesso à escola. Conviver com outras

vidas mais vulneráveis é a experiência que mais desafiante para nossa

reflexão pedagógica. Se a infância desafia a pedagogia desde suas

origens, a experiência de vivê-la com tanta precariedade traz desafios

ao repensar-se da pedagogia e da docência. (ARROYO, 2012, p.25)

Se essas crianças passam a ocupar um lugar que antes lhes era estranho e que

junto consigo trazem seus corpos marcados pela dureza da vida que levam, trazem

também, conforme Arroyo, uma autodidática construída a partir de suas vivências.

Assim questiona-se: Como a escola opera com estas “antipedagogias” (Arroyo, 2012)?

Ainda, a partir desse autor, podemos pensar: Como a escola pensa os corpos? As

vivências dos corpos? Que identidades estes corpos trazem? Que identidades a escola

apresenta? Que gêneros estes corpos traduzem?

Entre tantas questões, a Educação Infantil, diferentemente de suas origens de

cunho assistencialista (Kuhlmann Jr., 2001), tem contemporaneamente, a função de

cuidar, educar e socializar as crianças que, ao trazerem seus corpos vulneráveis,

precários, colocam em cena novos desafios e tensionamentos.

Reconhecer a legitimidade de creches e pré-escolas como instituições

educativas e a educação infantil enquanto etapa inicial da educação

básica implica o reconhecimento dessas instituições como espaços

com funções próprias e específicas, e não meramente como espaços

para suprirem carências ou “preparatórios” para as etapas de educação

subsequentes. Ao pensarmos na elaboração dos conteúdos curriculares

na educação infantil, tão ou mais importante que buscarmos respostas

sobre o que ensinar é o questionamento sobre como esses conteúdos e

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

11345ISSN 2177-336X

conhecimentos contribuirão no desenvolvimento e na vida das

crianças. Esse fato requer a discussão da dimensão pedagógica e

política das propostas pedagógicas das instituições de educação

infantil. (ANDRADE, 2010, p.118)

A criança, enquanto agente social, produtora de cultura, de saberes, fruto de uma

cultura, de uma economia, de uma política, em desenvolvimento biopsicossocial

(Siqueira, 2011), vive essa experiência de atravessamento, de desterritorialização, de

cindir outras fronteiras, outros seres. Renasce. Educa. Ensina. Invade. Cruza. Desalinha.

Inventa outras ordens, outra possibilidades, outras metamorfoses, outras identidades.

Enquanto espaço/tempo/lugar de construção de conhecimentos sobre o mundo e

sobre si, a Educação Infantil, é uma importante instituição que pode contribuir, através

de suas práticas pedagógicas, de sua dimensão curricular e de seus mecanismos e

discursos para o questionamento de estereótipos, apresentando possibilidades e

experiências. Experiência no sentido proposto por Larrosa (2002), daquilo que nos toca,

que nos aproxima e nos mobiliza ao novo, ao estranho, ao inesperado, aquilo que nos

permite buscar outras concepções sobre a identidade pessoal das crianças,

especialmente sobre as identidades de gênero.

Essas identidades, essas crianças, chegam muitas vezes à escola como um corpo

estranho, como um corpus de conhecimento que encarna a desestabilização dos valores,

das culturas. Um corpo estrangeiro que não fala a linguagem escolar. Outras linguagens,

outros sentidos, outras normas.

Acolher outras histórias à uma tradição escolar e permitir que um diálogo entre

as crianças, as infâncias e a pedagogia se estabeleça, talvez ainda seja um desafio.

Educar para a diversidade, com o estrangeiro, nos remete a repensar a escola e suas

funções. E, as relações de gênero, entre outras categorias de análise, provocam estas

funções.

O termo gênero, diferentemente do que aparece nos discursos cotidianos, tem

uma diferença em relação à dicotomia biológica homem ou mulher. Isto é, o gênero

supera a visão biologista que distingue homens e mulheres, sexualmente, e situa a

questão em dimensões mais amplas e complexas. Assim, gênero pode ser definido

como: “(...) é um elemento constitutivo das relações sociais fundadas sobre as

diferenças percebidas entre os sexos, e o gênero é um primeiro modo de dar significado

às relações de poder” (SCOTT, 1990, p. 14). O gênero abrange um conjunto de

expressões e significados que se apoiam culturalmente e que se articulam às relações de

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

11346ISSN 2177-336X

poder que situam e colocam o masculino e o feminino em diferentes linguagens e

lugares sociais.

Para Auad (2003) as relações de gênero compreendidas como as expectativas,

padrões e formas de gerenciamento, que engendrados socialmente para que as diferentes

identidades sejam corroboradas por uma imagem esperada culturalmente. Essas relações

foram se construindo historicamente, ao longo dos tempos, ancoradas nas relações

patriarcais, ainda entre nós presentes, seja nas atividades cotidianas, nos discursos, nas

opiniões, conceitos, nos jogos, mas brincadeiras, enfim no nossa cultura. E, a escola não

escapa a esses construtos.

Se a função da escola é apresentar o mundo, suas tradições e valores aos novos

que a ele chega, traduzir suas linguagens e os elementos que a constitui (Almeida,

2013), a função do(a) professor(a) é de fundamental importância no sentido de provocar

que as crianças falem o mundo com suas próprias palavras, com seu linguajar, com seu

vocabulário.

Moyles (2010) dimensiona a importância da relação adulto-criança na Educação

Infantil a partir da vivência de experiências alicerçadas na diversidade e na proposição

de discursos alternativos que alarguem a visão das crianças, seus sentimentos e valores

em relação ao outro, de modo que a coletividade saia dessa relação com ganhos,

aprendizagens e valores que poderão levar para a vida. Essa dimensão das práticas

escolares constituir-se-á de modo fundante na forma como a criança se percebe e se vê

no espaço e no tempo da Educação Infantil, compreendendo a si mesma e aos outros

que compõem aquela dinâmica; sua auto percepção, sua autoimagem e autoestima.

Proporcionar elementos, mecanismos e instrumentos sociais e culturais para que a

criança vá construindo e tensionando o processo constitutivo das identidades, e em

especial as identidades de gênero, é uma conduta primordial na educação das crianças.

Isso porque a construção da identidade é um processo que se inicia justamente na

infância.

Para alguns estudiosos (Duveen 2000; Moyles 2010), a escola, através de

tecnologias, dispositivos pedagógicos, disciplinadores e formativos diversos, contribui

decisivamente na formação dos processos identitários da criança, quando se apresenta

como importante instância de socialização, visto que a construção das identidades se

inicia, primariamente, pela internalização de padrões, condutas, sentidos que a criança

percebe na relação com os outros, a partir da qual a criança se espelha. À medida que a

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

11347ISSN 2177-336X

criança adquire elementos que a possibilite tensionar esses padrões, novas referências e

identificações podem surgir.

Inicialmente a criança figura como objeto para representações de

gênero que outros sustentam, e é apenas gradualmente que ela

começa a internalizar essas representações. Ao assim o fazer, a

criança também chega a identificar sua posição própria dentro de um

mundo estruturado por estas representações. Representações de

gênero fornecem uma referência importante através da qual a criança

adquire uma identidade que lhe permite situar-se no mundo social

(DUVEEN, 2000, p. 266).

A interpretação do outro sobre o comportamento infantil é balizador de suas

ações, de seus posicionamentos, no entanto, a criança não age passivamente ao olhar

alheio. É em razão disso, que Moyles (2010) afirma que a criança é preciso considerar o

papel desempenhado pelas crianças nesse processo de coprodução de conhecimento,

cultura e de identidades.

Saber ouvir as crianças, dialogar com questões de gênero de forma aberta e

apresentar discursos e práticas alternativas, escutar atentamente as razões, os motivos

pelos quais as crianças apresentam comportamentos e constroem suas representações

sobre gênero é, para Moyles (2010), um caminho promissor para que o respeito seja

instituído em relações que superem preconceitos e estereótipos que cristalizam e

bipolarizam homens e mulheres, que binarizam os gêneros e os indivíduos. Desconstruir

modelos rígidos e hegemônicos de gênero demanda o questionamento de símbolos,

padrões, valores, bem como a forma como são apresentados às crianças, tanto em

termos de discursos quanto de práticas. Vivenciar as identidades de forma transitória,

múltipla e saudável perpassa pela liberdade de posicionar-se diante do mundo, com suas

palavras, com seu corpo, com seus saberes. É parte da Educação Infantil, de suas

práticas, de seus conhecimentos que a criança construa sua consciência de si, seu

desenvolvimento moral, sua identidade amparada em uma cultura que desterritorializa

as fronteiras do sexismo, que apresenta alternativas à desestabilidade do mundo, que

permita outras linguagens, outros corpos, outros sentidos.

Procedimentos Metodológicos

(...) a pesquisa científica ou acadêmica não pode mais ficar restrita a

uma concepção, que é uma concepção, no fundo, dogmática, que se

apoia unicamente sobre uma concepção simplificada de pesquisa. Ou

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

11348ISSN 2177-336X

seja, algo que seria, mais uma vez, muito sistemático, muito

conceitual. Ao contrário, a pesquisa deve estar na escuta da vida

social. Quando eu digo pesquisa, me refiro às ciências humanas e

sociais e não, de modo geral, às ciências exatas. Nas nossas

disciplinas, acho que se deve ter uma atitude que esteja de acordo com

a vida. Somente se ela está de acordo com a vida social ela é

realmente uma pesquisa. Senão, ela se torna dogmática.

(MAFFESOLI, 2011, p. 522)

A pesquisa, tal como a propõe Maffesoli, é um atividade de escuta social, é uma

constatação da realidade que permite nos mover junto com a vida, com os fenômenos e

pessoas. Aquilo que nos aproxima, que nos toca.

Na tentativa de aproximação do universo das crianças, e da produção de outros

conhecimentos junto com elas, este estudo teve por objetivo compreender como

meninos e meninas da Educação Infantil, constroem suas crenças, noções e ideias sobre

relações de gênero a partir de vivências escolares.

Para atingir esse intento foram observadas crianças de pré-escolas (Pré I e II), no

período vespertino, de uma escola particular do município de Vilhena (RO), durante

toda a rotina escolar. Todas as interações, falas, brincadeiras entre as crianças foram

registradas e, posteriormente toda a descrição foi analisada de modo que os discursos

infantis sobre as relações de gênero puderam ser compreendidos a partir do contexto e

do tempo em que se produziram. A pesquisa foi autorizada pelo Comitê de Ética na

pesquisa, de modo que todos os procedimentos adotados foram realizados sem qualquer

constrangimento ou prejuízo para os investigados(as).

Resultados e Discussão

Por meio dessas observações diretas junto às crianças em sua rotina escolar, foi

possível perceber durante as interações sociais das crianças, a presença do discurso de

gênero, bem como da vivenciação de papéis e funções que emergem dessas relações

socioculturais.

As crianças observadas demonstraram ter padrões de referência de gênero no

sentido convencional hegemônico que coloca o padrão masculino em evidência nas

relações sociais, através de relações assimétricas de poder em relação ao padrão

feminino. Mais fortemente durante as brincadeiras e na “hora do parquinho”, as crianças

revelaram comportamentos que tenderam a reproduzir o que socialmente foi, através da

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

11349ISSN 2177-336X

história, sendo convencionado como norma, isto é, relações patriarcais de poder e de

dominação masculina, conforme evidenciado no relato a seguir.

As crianças estão no parquinho brincando. Um grupo de meninos ocupa o brinquedo

principal do parquinho. Trata-se de um escorregador que tem acoplado a si uma

espécie de navio. Os meninos imaginam que são piratas e que têm um capitão. O

‘capitão’ fala: “Piratas não gostam de mulheres. Mulheres são nossas inimigas”. As

meninas tentam, sem sucesso, ocupar o timão do ‘navio’, cujo posto é assumido o

tempo todo pelos ‘piratas’. (Pré-escola I, vespertino).

Verificou-se, também, que os meninos se associaram a personagens e a super

heróis. Um exemplo disso foi durante uma brincadeira no parque em que um menino,

num grande grupo de meninos, diz “Eu sou o Volverine. O Volverine imortal”.

No outro pólo, as meninas comumente brincavam de casinha e de papai e

mamãe, reforçando a crença cultural de que meninas devem cuidar dos outros. Como se

pode melhor compreender no relato seguinte:

As crianças brincam nas mesas com massinhas. Um grupo de três meninas brincam

com as massinhas, sentadas no chão. Colocam as bolsas à sua volta como se fosse um

forte. Agora são quatro meninas; uma fala que vai brincar de massinha. Outra grita de

dentro do forte “tem que entrar na casinha para brincar”. Um menino invade a

casinha. As meninas falam para ele sair: “Xô, xô”. Uma menina diz: “Deixa ele ficar”.

Outra fala: “ele vai ser o cachorro”. O menino começa a latir; uma menina briga:

“Queta cachorro”. Continuam brincando entre elas. Percebendo que “sobrou” no

grupo, o menino sai e ficam só as meninas. Uma deita no chão e coloca a cabeça no

colo da outra que faz carinho em sua cabeça. Agora muda para o colo de outra menina

e fala: “Agora você é a mamãe”. Outra menina organiza a brincadeira: “A (...) é a

mamãe e nós somos as filhinhas”. O menino que brincava como se fosse o cachorro

voltou. Uma das meninas diz para a outra: “Vai cuidar do cachorro”. (Pré-escola I,

vespertino)

Em outro momento, percebe-se outra situação em que as relações de gênero

aparecem bastante contrastadas.

Depois do lanche as crianças brincam com as massinhas. Depois de brincarem, a

professora avisa que as crianças terão cinco minutinhos livres até a próxima atividade.

Rapidamente, e sem nenhuma intervenção externa, as crianças formam dois grupos no

centro da sala, um de meninos e um de meninas. O grupo de meninos, exercitando a

força física, começam a fazer polichinelos. As meninas dançam levemente, como

bailarinas. (Pré-escola II, vespertino).

Essas situações relatadas revelam que o cotidiano escolar, por meio de sua rotina

pedagógica marca profundamente a construção das identidades das crianças, inclusive

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

11350ISSN 2177-336X

no que se refere às identidades de gênero e isso não passa desapercebido nos discursos

das próprias crianças entre si.

Nesses processos constitutivos das relações sociais e de identidades de gênero,

torna-se imprescindível uma intervenção docente orientada para a diversidade,

superando assim estereótipos, preconceitos e papéis fixos, que limitam a fluidez e a

multiplicidade de variáveis que esses papéis e identidades demandam, fazendo da

experiência institucional e da experiência da infância nesses espaços uma vivência

reveladora, transformadora, nova.

O brincar apresentou-se como um lugar/tempo/espaço fundamental para que as

relações e representações de gênero pudessem ser percebidas pelas crianças. Essas

ideias passam pelo corpo, pelas brincadeiras e pelos discursos num processo

metamorfoseante.

Para Kishimoto, o brincar e o corpo são o trajeto, o movimento para que a

cultura se instale, se apresente, se represente.

Não se pode pensar em desenvolvimento integral da criança sem

incorporar o corpo. A educação infantil esqueceu que o corpo é o

primeiro brinquedo. Não só na perspectiva de jogo de exercício, mas

de representação de brincadeiras pelo movimento. Rodar como pião,

cantando parlendas e músicas que falam sobre a alegria de rodopiar,

expressa o prazer anunciado por Caillois (1967), no ato da vertigem.

Unir a representação pelo gesto à da palavra cantada e recriada é ser

criança, é deixar que o corpo se una ao lúdico e expresse os códigos

da cultura em que a criança vive. (KISHIMOTO, 2001, p.9-10).

Constituir-se como ser vivente no mundo passa pelo atravessamento e pela

restauração da palavra, do verbo, mas também do corpo. Corpo que brinca, que fala, que

pensa, sente. Corpo potência, corpo criança, corpo saberes, corpo gêneros, corpo

educação.

A representação e a ocupação do espaço e do tempo também foram estratégias e

dispositivos importantes usados pelas crianças para a imposição do poder, do comando e

da concepção de dominação. Resultados semelhantes foram encontrados em outras

pesquisas (Altmann 1999, Viana e Finco 2009) quando relatam que os meninos têm

mais oportunidades de acesso a lugares e postos de dominação na escola, mais que as

meninas.

Os(as) profissionais da Educação Infantil precisam atentar em suas práticas

pedagógicas para as relações de gênero e para o oferecimento de um espaço/tempo/lugar

que permita a criança ser, viver e experimentar outras possibilidades. Que elas possam

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11351ISSN 2177-336X

estabelecer outros discursos, outros pensamentos, que se desenformem, “que tragam

algo novo para um mundo velho” (Almeida, 2013), que desalinhem, que renasçam para

outros lugares no mesmo mundo.

Considerações Finais

Ao se pensar a criança enquanto sujeito social, historicamente construído,

inserido numa sociedade que reconhece a importância da infância e da criança,

enquanto produtora de cultura, com peculiaridades e com direitos, inexoravelmente,

deve-se pensar a função da escola de Educação Infantil em suas três dimensões, ou seja,

o educar, o cuidar e o socializar, garantindo não só o acesso a creches e pré-escolas, mas

sua permanência em um local com estruturas física, pedagógica, profissional com o

compromisso de atender a diversidade, questionando/tensionando/desconstruindo toda e

qualquer forma e estrutura de poder que subjulgue, inferiorize e descaracterize a criança

e as possibilidades de viver plenamente sua infância.

Construir outros projetos, outras políticas, discursos e práticas, necessariamente

passa pela pesquisa, pela escuta e pela construção de saberes junto com as crianças, num

exercício tenso e dinâmico de experimentar-se, de perceber-se juntamente com outras

categorias sociais de análise, “como parte de um universo do qual todos fazemos parte e

pelo qual devemos nos responsabilizar” (Almeida, 2013), não pelo o que ele pode vir a

ser mas pelo que ele já é.

Compreender as infâncias e as crianças nos convida a decifrar as marcas de seus

saberes, de suas narrativas. Descolonização do pensamento, das crianças e das infâncias.

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11353ISSN 2177-336X

DE BRINCADEIRAS DE ESCOLA ― UM RELATO ETNOGRÁFICO SOBRE SUAS

CONDUTAS DE RISCOS

Cleomar Ferreira Gomes – UFMT

Resumo

Este texto representa partes de uma investigação realizada entre 1999 e 2000, tendo como

lócus uma escola e um bairro da cidade de Londrina, no Estado do Paraná, para a

caracterização da etologia lúdica de crianças dentro e fora da sala de aula, dentro e fora da

escola. Do corpus analisado, considerou-se a fala dos adultos ― os professores ― sobre os

comportamentos ditos violentos e agressivos das crianças e, delas próprias quando se referem

às brincadeiras que os adultos consideram agressivas. Apoiado nos moldes de uma

investigação etnográfica, através de uma perspectiva socioantropológica, a pesquisa procurou

compreender as aulas de sala em sua dinâmica e modulações, de modo que oferecesse

subsídios para prospecções que se pretendam educativas e por conseguinte, formativas. Com

o arrimo teórico de Le Breton (1996, 2009) sobre “condutas de riscos”; de Caillois (1990),

com as “rubricas lúdicas” e de Lorenz com a noção natural de “agressão”, no confronto dos

dados depoimentais com aqueles da escuta e da observação de crianças, foi possível chegar a

alguns resultados. Os mais relevantes foram: 1) os comportamentos considerados violentos e

agressivos são apresentados pelas crianças como brincadeiras preferidas; 2) os medos

inspirados nessas brincadeiras pela escola representam um interdito da corporeidade que não

pode ser controlada; e 3) quando não se sabe interpretar um comportamento lúdico, corre-se o

risco de banalizar o que seria um ajutório ao trabalho do professor. Os dados revelam ainda

que as pedagogias escolares que resistem a essa linguagem corporal tomam-na como um

estorvo que a todo custo tentam silenciar.

Palavras-chave: Brincadeiras violentas. Condutas de Risco. Ludicidade.

Introdução

As palavras brinquedo e brincadeira, na maioria dos autores, desenham um traço

semântico em que se encontram no ato de brincar. O primeiro brinquedo da criança é o

próprio corpo, que ela começa a explorar já nos primeiros meses de vida. Depois, chegam os

objetos que produzem estimulações visuais, auditivas e cenestésicas, quando este passa a ser

protagonista de sua própria ação. A partir de então o brinquedo, pela função, imagem e

representação dos objetos que carrega, instala sua presença na vida da criança, do adolescente

e até mesmo do adulto.

Para Benjamin (1984) o conteúdo de um brinquedo não determina a brincadeira da

criança. Ao contrário, o ato de brincar é que revela o conteúdo do brinquedo. A criança, diz

Benjamin, “ao puxar alguma coisa, torna-se cavalo; ao brincar com areia, torna-se padeiro; ao

esconder-se, torna-se ladrão ou guarda”. (idem, 69-70). Para uma criança, quanto mais

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11354ISSN 2177-336X

atraente ou sofisticado for o brinquedo, mais distante estará de um valor como instrumento de

brincar. Quanto mais aperfeiçoado à semelhança do real, tanto mais se desvia da brincadeira

livre e dinâmica. Segundo o autor, nada é mais adequado à criança do que associar em suas

construções os materiais mais heterogêneos como pedras, bolinhas, papéis, madeira. Um

simples pedaço de madeira, uma figurinha ou uma simples pedrinha reúne em sua solidez, na

unidade de sua matéria, uma exuberância das mais variadas figuras: ninguém é mais sábio em

relação aos materiais e ao que faz com eles do que a criança.

No dizer de Manson, (2001) é preciso desconfiar dos conceitos que, “forjados nos

anos 20 ou nos anos 80, foram talvez muito úteis naqueles momentos, mas podem hoje vir a

bloquear uma pesquisa. É preciso que o pesquisador ― no caso o que investiga sobre

brinquedo ou brincadeira ― retome todos esses conceitos, vocabulário técnico ou

especializado da questão e reponha a questão como fazem os filósofos: Será que ainda hoje

posso usar esse mesmo conceito? Será que essa ideia não está caduca para meu tempo?” É

uma certa dúvida cartesiana quanto ao conhecimento que não se pode ter sobre uma questão.

Qualquer categorização inicial é monolítica, enquanto a vida real, muito frequentemente,

surge nuançada. Por fim Manson (2001) sugere que um tratamento dos dados obtidos ―

numa coleta que atente para a “delicadeza do vivido” ― é que permitirá saber a que tipo de

conceito a gente chega e não forçosamente àquele que a gente tinha em mente, no começo da

pesquisa. Essa conduta pode servir também a professores de escolas de crianças, quando as

veem brincar com algum objeto. No intuito de nos aproximar do que realmente é o brinquedo

e a brincadeira e as prováveis diferenças entre os dois termos, depois de ter lido gente

autorizada a respeito do assunto, buscamos das próprias crianças aquilo que observei e ouvi

das professoras de crianças pequenas, numa contribuição, aqui posta, como um reforço

teórico a partir do empírico.

As Brincadeiras

Elas se situam, preferencialmente, no campo simbólico, como diz Château (1987) na

seara dos jogos de faz de conta. Elas nascem de uma força criativa que têm os mais jovens —

as crianças, por excelência —, para exercer a sua identidade lúdica, isto é, a sua capacidade

natural de inventar coisas, objetos, fatos e histórias que põem em ação quando precisam

preencher o tempo de sua existência subjetiva e social. É bom lembrar que a noção de

brincadeira, como utilizamos por aqui, não existe noutra cultura linguística. Muitas vezes se

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11355ISSN 2177-336X

confunde com a palavra ludicidade que não consegue separar aquilo que dissimula, que

simboliza, que dá prazer, daquilo que também machuca e agride os seus envolvidos, porque

sempre se apresenta como um fantasma: a qualidade que tem um objeto (brinquedo) ou uma

atividade (brincadeira) que faz despertar um estado lúdico, a espontaneidade, o senso de

humor e a alegria. O professor de crianças deve saber que é precisamente em tal fato que

reside sua liberdade.

A brincadeira consiste em um conjunto de elementos que organizam a vida social de

toda a criança. Ninguém, que labuta na arena da escolarização de crianças e jovens, contesta

que sua existência é essencial à saúde física, afetiva, intelectual e moral do ser humano. É

muito usado o clichê de que “a brincadeira é coisa séria”. Outros abusam do aforisma do

poeta-filósofo Schiller (2002) do século XVIII: “o homem só se completa quando brinca”.

Isto talvez se justifica porque a brincadeira opera numa esfera da seriedade, sem fraude,

quando o brincador se engaja num movimento voluntário e doador. Quem a ela se entrega

“promete” participar ativamente até o fim. Pode ser transmitida de forma expressiva de uma

geração a outra ou aprendida nos grupos infantis, na rua, em parques, escolas, igrejas, festas.

Alguns autores, de corrente biológica afirmam que existe uma predisposição genética: basta

nascer e já se aprende a brincar porque assim como as condutas de perduração andar, falar,

dissimular, se alimentar [...] sua aprendizagem se faz de maneira espontânea. Incorporada

pelas crianças de maneira espontânea varia nas regras e na organização do conteúdo, segundo

as convenções da própria cultura infantil.

Pode acontecer de uma brincadeira ter um nome diferente, constituir-se de número

distinto de brincadores, muda a forma, mas mantém o mesmo conteúdo e função. Na

brincadeira, por redundância da aliteração, o participante aprende a brincar a brincadeira,

descobre os seus mecanismos de execução, se torna um habilidoso, como manipular um pião,

um bilboquê, pular uma corda ou saltar os quadrados da Amarelinha. Esse movimento é

espontâneo e o brincador aprende a laborar. A brincadeira pode ser aprendida, isto é, servir de

conteúdo, quando ao mesmo tempo pode servir de ferramenta, fazendo a vez de método ―

uma maneira global de expressão, comunicação e exploração do mundo infantil que envolve

todos os domínios de sua natureza.

A bola de gude serve de exemplo que em algumas regiões do Brasil chama-se

“birosca”, “bolita” ou “burquinha”. Em alguns lugares faz um círculo para prender as

“bolitas’, noutro faz-se um triângulo, noutros não faz figura nenhuma. Em alguns lugares o

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11356ISSN 2177-336X

arremesso é distante das “burquinhas”, no centro-oeste do Brasil, o arremesso é feito próximo

ao círculo. Desse modo toda brincadeira pode ser identificada a partir de seu conteúdo que

expressa-se em relação aos seus objetivos de envolver os brincadores e fazer chegar até o fim;

a sua forma que indica a organização da atividade no que se refere aos objetos, tempo, espaço

e número de brincadores e sua função precípua: a de entreter os seus participantes. Quando

essas atividades ou conteúdos, intencionalmente, adquirem status pedagógico para ensinar

alguma coisa aos seus brincadores, eles viram jogos. Isto é, atinge o estágio de Jogo.

Nos jogos, há uma intenção anunciada, quando se aprende alguma coisa com o que se

joga. Alguma coisa externa à própria dinâmica do jogo, exemplo, quando o jogador aprende a

cooperar (literalmente a operar com o outro), a perder, a vencer, a conhecer as regras do Jogo:

aprende sobre operações matemáticas e regras da gramática. As mnemônicas (técnicas para

memorizar coisas, que utiliza exercícios e ensina artifícios, como associação de ideias ou fatos

difíceis de reter, a fazer combinações e arranjos de elementos numéricos) são um bom

exemplo para guardar datas, valores, e identificar famílias das espécies, aliás muito usadas

pelos professores de cursos propedêuticos.

Por que brincar é bom para as crianças?

Brincar, para Benjamin (1984), significa libertar-se dos horrores do mundo através

da reprodução miniaturizada. As crianças, rodeadas por um mundo de gigantes, criam para si,

enquanto brincam, um pequeno mundo próprio, protegido por leis de sua própria cultura. No

dizer de Château (1987), a brincadeira/jogo representa para criança o que o trabalho

representa para o adulto. Como o adulto se sente forte por suas obras, a criança sente-se

crescer com suas proezas lúdicas. A criança quando está brincando não olha em torno de si

como o jogador de baralho num café, mas mergulha fundo em sua brincadeira. Segundo

Lorenz (1986), criança gosta de brincar porque a brincadeira é um fenômeno da corporeidade

humana. O brincar humano se caracteriza não pela racionalidade, mas pela ludicidade: o homo

sapiens é, antes de tudo, um homo ludens.

Tido como um autor clássico sobre o jogo e a ludicidade, Huizinga (1990), considera

o brincar como um fenômeno cultural e repetível a qualquer momento, uma ação que introduz

na confusão da vida e na imperfeição do mundo uma perfeição temporária e limitada. Já para

Caillois (1990), talvez menos filosofando que propondo uma teoria, o jogo ou brincadeira é

atividade “livre”: se o jogador/brincador fosse obrigado a jogar/brincar, o jogo perderia sua

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“natureza de diversão atraente e alegre. Dada e acontecida dentro de certo espaço e certo

tempo; não se prevê nem seu desenrolar nem seu resultado, além de deixar o jogador inventar;

não produz nem bens, nem riquezas ― exceto alteração de propriedade dentro do círculo dos

jogadores. Além disso, ainda na palavra de Caillois (1990), a brincadeira é “regulamentada”,

por estar sujeita a convenções criadas pelo jogador/brincador, é “fictícia”, há uma realidade

outra ou uma irrealidade em relação à vida normal.

Dos achados na Pesquisa: as Condutas de Risco ou Brincadeiras Violentas

Pelo que pôde ser visto de perto, somado ao que foi ouvido, o rito de uma aula ou um

dia de aula tem a relação stricto sensu com uma distribuição de ações dos professores e das

crianças no tempo e no espaço escolar. Pelas vozes dos professores de sala ― aquelas que

cuidam da mente ou do espírito ― sobre suas aulas apareceram marcantes quatro

preocupações. A primeira é com um “objetivo”: algo precisa ser ensinado na mesma

proporção do que deva ser aprendido para se cumprir o papel cardeal da escola ― a de fazer o

educere das gerações mais jovens, numa locução antropológica a de fazer a travessia do

animal natural ao “bicho domesticado”, que é papel da cultura. A segunda é a preocupação

com o “método” que é trabalhado na escola.

Para Lakatos e Marconi (2010, p. 65) “é um conjunto das atividades sistemáticas e

racionais que, com maior segurança e economia, permite alcançar o objetivo ―

conhecimentos válidos e verdadeiros ― traçando o caminho a ser seguido, detectando erros e

auxiliando nas decisões do cientista”. Aqui no caso os professores porque desenvolve seu

trabalho com ciência. A terceira é a preocupação com o “treino”, principalmente dos

pequeninos, que precisam ter pré-requisitos para a alfabetização. A quarta, e talvez a mais

importante pela repetição, é a renitente preocupação com a “disciplina”, a qual, enquanto uma

ideia obsessiva, que nada tem de pessoal, mas que se engendra no círculo coletivo de todas as

civilizações, para lembrar Maffesoli (2005, p. 11) é a “vida moral”, que de “maneira

transversal atravessou todas as civilizações”. Daí que essa obediência silenciosa aos ritos

sagrados das aulas só se consegue porque a palavra disciplina demanda uma etologia

moralizadora.

As brincadeiras na sala de aula que parecem violentas, ao julgo das professoras,

conforme o que pude ouvir de suas falas e ver, quando observei as crianças, eram brincadeiras

escondidas, longe dos olhos da professora, que às vezes fingia não saber dessas atividades

clandestinas. Uma brincadeira na sala de aula nem precisa ser violenta, basta que ela não “seja

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do jeito da tia”, para se caracterizar uma transgressão e, que, portanto, violenta um espaço e

um tempo, sagrados que são dedicados ao labor da sala de aula.

Nas aulas de sala, as brincadeiras acontecem sempre ou quase sempre “separadas” das

atividades do espírito, que são exercícios de ouvir e ver para aprender, os de escrever e falar

para treinar, fixar e os de fazer para ser avaliado. O caráter perturbador ou agressivo da

brincadeira nas aulas de sala reside em que ela “mexe” com os corpos das crianças e, assim,

faz barulho, desarruma, desvia atenção e, principalmente, “atrasa as tarefas” que têm a ver

com o espírito, e tarefas exigem corpos quietos e silenciosos. Bastava que a professora virasse

as costas e a sala virava “um pandemônio” com meninos e meninas correndo, fazendo pega-

pega, subindo nas carteiras, gritando e gargalhando... até a “tia” voltar. Assim, qualquer coisa

que estorva o trabalho sagrado de qualquer sala de aula, para a professora, se encerra numa

etologia proscritiva e agressiva que precisa ser admoestada para depois domesticada.

As brincadeiras de quadra ― da Educação Física ―, aquelas permitidas por essa

modalidade de professor, são chamadas de brincadeira “normal”. Para os professores de

Educação Física, esses exercícios — o correr, o saltar, o tocar, o empurrar, o chutar, o puxar,

o arremessar, o girar, o lançar, o bater, o subir ou trepar ― demandam habilidades mais

complexas. É, entretanto, uma “atividade séria”, planejada e organizada, e só pode ser feita

quando por eles autorizada. Qualquer movimento que não esteja nos “planos” de suas aulas

precisa ser controlado para que a aula não vire uma “bagunça” ou, como diz uma professora,

não vire um “auê”. O depoimento de uma professora, ao dizer desse comportamento agressivo

dos alunos em suas aulas, referindo-se a “brincadeiras de mau gosto”, mostra a sua

permanente preocupação:

...eles têm muita brincadeira de mau gosto... como empurrar, chutar, machucar, de

meter o pé um no outro. [...]. Daí eu sento todo mundo e faço aquele sermão [...]

Agora, brincadeiras assim... eles vêm e contam alguma piada... durante a aula, ou

contam um fato que aconteceu na casa deles... daí a gente dá risada, porque isso é

uma brincadeira, também... Tem hora que eu deixo eles brincarem, tem horas que eu

participo... É uma liberdade que você tem que dar, né? Dependendo da hora. Eu não

deixo brincar na hora que eu tô explicando a atividade... que daí você dá trela pra

aula virar um auê, né? Daí vira bagunça. (P.A.T./F – 27 anos).

Diversamente dos demais, esta professora afirma que não deixa o “mau-gosto” ― as

brincadeiras violentas de empurrar/chutar/meter o pé ― tomar espaço em suas aulas. Para ela,

o “bom gosto” ou o não-violento seria uma “piada”, um “fato que aconteceu na casa deles”. Já

que isso “também é brincadeira”, ela deixa que os alunos o façam “durante a aula”. Insiste ela,

a brincadeira não é a aula, a aula não é a brincadeira. Essa professora se considera depreciada

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11359ISSN 2177-336X

e agredida quando os colegas, os professores de sala e, mesmo as crianças se referem à

Educação Física como um tempo-espaço para brincadeiras. “A Educação Física também tem

conteúdos sérios que precisam ser ensinados para os alunos e isso eu considero uma

agressão”, lamenta a professora. Nos tempos atuais, essa professora lamentaria o bullying por

ser professora de educação física.

Entretanto, a observação das atividades dessa professora e seus alunos em diversos

momentos de aula não me fizeram ver nem “mau gosto”, “nem auê”, nem “bagunça”. Vi

atividades em que as crianças se movimentavam ― pulavam, corriam, dançavam, rolavam,

riam ― num espaço e tempo de aula de quadra e de pátio. Não registrei nenhuma “conduta de

risco” que colocasse em perigo alguma parte do corpo. Ainda, com relação às aulas de quadra,

nas partes ou momentos de aula em que estive presente pude registrar uma atividade — o

Relatório — por todos os alunos, apontada como realmente “chata”, para não dizer violenta.

Na voz desses alunos, nenhuma outra “castiga” mais, nem mesmo o “sermão” quando é usado

para controlar o “auê”.

O Relatório é uma espécie de punição para os alunos que não fazem a aula de

Educação Física. É quando vêm de calçado ou de roupa inapropriada; quando se recusam a

fazer algum movimento e, em último caso, para aquele que está doente. O aluno permanece à

beira da quadra e vai fazendo apontamentos sobre a aula. Perguntados se eles gostavam de

fazer relatório, um menino me respondeu que não, porque se sentia “encostado”, “castigado”

e “punido”. Além disso, “é muito ruim ficar escrevendo enquanto os outros estão brincando”.

Essa atividade considerada “chata” talvez esconda aquilo que os professores não “sentem”

como um ritual de humilhação pois ninguém gosta porque fica malvisto pelos colegas. Se há

uma marca de violência nessa atividade, o fato se dá porque ela se esconde numa atividade de

trabalho extra do espírito na arena sagrada do corpo ― a quadra ―, não como recompensa,

mas como uma punição para o aluno que, por forças das circunstâncias, vê-se impedido de

exercitar seu corpo.

No decorrer de minha permanência e convívio com o grupo da escola, estive

passeando pelo pátio, principalmente durante os recreios. O Recreio é um tempo separado e

organizado para distribuir o lanche, evitar bagunça e contato dos menores com os “maiores”,

ocasião em que, segundo o diretor e a inspetora do pátio, há sempre “tumultos” e

“brincadeiras violentas”. A maioria das professoras de sala afirmou que os alunos brincam e

essas brincadeiras “nunca são calmas”. Têm sempre muito de “correria”. Correm “um atrás do

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outro, feitos loucos”, correm “que nem uns doidos”, ficam “vermelhinhos” ou “suados de

tanto correr”, “quase que direto de criança cair e quebrar dente”. Em resumo, “a brincadeira

deles, lá fora, se resume em correr”. É possível ver um tom entre judicativo e depreciativo por

trás das falas seguintes:

Eles brincam no pátio, na hora do recreio, que eu vejo. Mas é sempre de correr,

jogando o chinelo do outro, na árvore... (riso). (Z.U.L./F – 31 anos).

Não! Eles saem muito pouco. Quando saem, é só no recreio que eu vejo. Olha, por

mais que eles falem pra não correr, é correndo, empurrando. [...] Eu percebo [...]

brincam muito de empurrar, de bater. (S.I.L./F – 29 anos).

... De luta, de correr, de chutar, de machucar... Olha, tem um menino aqui que jogou

uma menina no chão e a menina bateu a cabeça no chão e teve que ser internada.

Não faz nem um mês. É esse tipo de brincadeira que se vê! (S.O.N./F – 40 anos).

As brincadeiras descritas por quem só veem violência nos encontros das crianças,

representam um perigo para a ordem ou à paz da escola. Elas “não cabem no pátio”, elas

fazem “entrar muita criança”. São atividades nas quais as crianças se juntam não só para

brincar, mas também para brigar, longe dos olhos daqueles que organizam ou dirigem suas

brincadeiras. Há o perigo da disputa e do contato corporal, o que tornam os acidentes

inevitáveis. O tom demolidor continua no depoimento de duas professoras:

Nessas brincadeiras deles. São mais essas rasteiras, de voadoras. As meninas, é uma

coisa impressionante: você não vê mais as meninas brincar. Quando elas brincam, é

com o mesmo tipo de brincadeira dos meninos: voadora, rasteira, empurrões!

(M.A.R./F – 28 anos).

Eles brincam, que eu noto, no recreio. Que eu tenho contato... São brincadeiras do

tipo Pega-Pega, muito Empurra-empurra, né? Tanto é que a maioria das escolas têm

alguém olhando o recreio, né? Porque dá muita confusão... Dá muita briga, socos...

Eu vejo que o comportamento é diferente, porque eu, nas minhas aulas, fico muito

em cima. Não permito que aconteça... (P.A.T./F – 27 anos).

A brincadeira do pátio, por ser semelhante ou sugerir a brincadeira de rua, é um

perigo! Precisa ser vigiada pela “tia” especializada em vigiar recreios, ajudada pelos outros

tios em outros momentos diferentes de recreio. Os meninos contam como é essa

administração nem sempre conseguida, de seu tempo e espaço de recreio:

A tia não gosta que a gente corre. Correr pra tia é um inferno. Por causa que a gente

pode cair, machucar e tropeçar, depois a responsabilidade é da escola... (A.L.F./F –

9 anos – 4ª. S).

Elas fala, todo mundo fala que não é pra correr, que não é pra correr, mas todo

mundo corre... Não tem jeito de não correr... (M.A.D./M – 8 anos – 2ª. S).

Ela implicava que nós não corresse e colocava nós de castigo. Ela me colocava de

castigo e eu saía... Eu saía correndo... (S.I.F./M – 9 anos – 3ª. S).

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Por outro lado, os comportamentos rotulados de “agressivos” e “violentos” pelos

professores, para os alunos não passam de uma gostosa brincadeira. Nada parece ser visto

pelos adultos como natural, criativo ou alegre no comportamento da piazada no pátio. Eis aqui

alguns depoimentos bem eloquentes para mostrar que pode ser considerado condutas de

riscos:

Por exemplo, as meninas brinca de tentar pegar os meninos. Aí, quando pegou

todos, aí os meninos pega as meninas... (J.E.B./F – 8 anos – 2ª. S).

E uma vez, que eu vi, estava uns moleque ali perto da árvore dali e estavam

brincando, não sei, parece com uma garrafa [...] eles estavam brincando de chutar.

Daí a que cuida do lanche pegou... (M.A.D./M – 8 anos – 2ª. S)

A gente vivia gingando Capoeira. Mas só que agora o tio [...] falou assim que

também é uma coisa que a gente pode cair, quebrar o braço, [...] Agora nós

maneiramos de brincar de Capoeira... (A.L.F./F – 9 anos – 4ª. S).

Para compreender melhor o que as próprias crianças pensam e dizem sobre as

brincadeiras na escola e fora da escola, julguei necessário ilustrar o assunto usando uma

“ferramenta teórica”, tomando emprestado de Roger Caillois suas quatro rubricas principais:

Agôn, Álea, Mimicry e Ilinx, quando reúne num quadro algumas atividades, jogos ou

brincadeiras classificando-os conforme a natureza específica de cada um.

Figura 1. As rubricas de Roger Caillois endereçadas aos tipos de jogos Agôn (competição) Álea (sorte) Mimicry (simulacro) Ilinx (vertigem)

Corrida, Luta,

Atletismo, Boxe,

Bilhar, Esgrima

Damas, Futebol

Xadrez,

Competições

Cara ou coroa, Apostas

Roleta, Loterias

Imitações, Ilusionismo

Bonecas, Brinquedos em

geral, Máscaras, Teatro

Shows

Piruetas, Carrossel

Balanço, Dança

Trapézio, Roda gigante

Ski,

Alpinismo,Acrobacias

Fonte: Caillois (1990, p. 57).

Com base nas categorias de Caillois, registro num quadro, algumas brincadeiras que os

professores sugerem enxergar como perigosas, agressivas ou que se encaminham para a

violência. Seja no caso da violência física, com as brincadeiras que estabelecem contatos

como o Pega-pega, Balança-caixão, Capoeira, Rela-aumenta..., seja no caso com a violência

moral, com as brincadeiras criadas a partir das danças Axés, Tchan, Pagodes... que produzem

gestos de apelo ou conotação sexual. Dentro e fora da escola, para as crianças, essas não

passam de gostosas brincadeiras.

Figura 2. As brincadeiras dos alunos com base nas rubricas de Roger Caillois

Agôn (competição) Álea (sorte) Mimicry (simulacro) Ilinx (vertigem)

Corrida, Luta

Pega-pega, Rela-

aumenta, Bola-

Tazo, Figurinhas

Burquinha, Verdade-ou-

desafio, Videogame

Balança-caixão,Telefone-

sem-fio, Polícia-ladrão

Pé-na-lata, Cair-no-poço

Estrela, Dança (Tchan,

Axé...), Rolemã

Skate, Cada-macaco-

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queimada, Corcoveia

Cola-cola-americano,

Alerta-cor

Baralho, Pião

Mãe-da-rua, Televisão

Computador, Estilingue

no-seu-galho, Pé-de-

lata, Perna-de-pau,

Voadora, Capoeira,

Subir em árvores

Fonte: Gomes (2001, p. 232).

No dizer dos adultos da escola, as brincadeiras constantes na quadra, no pátio e na rua,

ou seja, quando as crianças estão livres para brincar, preferidas, sempre são aquelas que vão

produzir algum tipo de violência. A propósito de como vivem esses meninos, o registro da

fala de dois professores faz uma triste imagem dessa corporeidade violenta, agressiva e

perversa. A TV e os videogames podem assumir, assim, o papel de destruidores de uma

infância inocente:

Você só vê é luta. É essa coisa de desenho animado, da televisão. [...] É só um

correndo atrás do outro, só vê um fazendo maldade com outro. Quer dizer, se nos

desenhos animados, que é uma coisa infantil, é passado só a perseguição, a maldade,

a violência, a criança vai incorporar. [...] Hoje as brincadeiras deles são agressivas.

É de ninja, é de não sei o quê. Você só vê pé voando! É de correr pra pegar outro

pelo pescoço. (M.A.L./F – 45 anos)

Tem também aquelas brincadeiras perversas. Os meus alunos são muito agressivos.

Você olhou com o olho torto eles perguntam o que é que é? já tá te chutando, te

xingando... Eu não vejo eles como infância. (S.O.N./F – 40 anos).

Considerações Finais

A impressão causada por essas descrições foi a de que as brincadeiras brincadas pelas

crianças provocam uma sensação de desconforto aos adultos. Elas estão sempre à espreita de

um perigo qualquer, não importando a natureza física, moral, sexual... São brincadeiras

violentas, porque machucam, ferem, quebram ossos, deslocam mandíbulas, ralam cotovelos,

luxam tornozelos, produzem escoriações, como no caso da Capoeira, do Rela-aumenta, do

Cada-macaco-no-seu-galho, do Pega-pega, do Roller, da Voadora, do Mãe-da-rua. São

também violentas, porque trazem músicas de apelo sexual, no caso do Lambachan e do “axé-

bundinha”. Produzem gestos obscenos, evocam para uma sensualidade corporal e antecipam o

aparecimento dos hormônios, como no caso do Cair-no-poço, do Verdade-ou-desafio, do

Balança-caixão e da Luta. Alienam, imbecilizam e incitam ao sedentarismo e à obesidade, no

caso da Televisão e do Computador. Desenvolvem a agressividade, pelas constantes brigas,

como no caso da Figurinha, do Tazo e da Burquinha. São iguais perigosas porque podem

estimular ao vício como as variações do jogo de Baralho: Pif-paf, Truco e Rouba-monte ou

àquilo que Caillois chama de “corrupção da brincadeira”,

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A análise comparativa daquilo que falam os professores como brincadeiras “violentas”

e daquilo que fazem os alunos como brincadeiras “gostosas” vem mostrar que a escola ― a

sala, a quadra, o pátio ― é um espaço de conflito entre o querer brincar da criança ― livre,

clandestina ou teimosamente ― e o querer “administrar” ― organizando, interditando,

separando ― o fazer do espírito e o viver do corpo. É pertinente pensar sobre aquilo que Le

Breton (2009) diz. Em um de seus ensaios sobre o jogo enquanto uma atividade perigosa, ele

descreve como a integração social do indivíduo suscita, às vezes, uma resposta a atividades

físicas intensas, implicando em riscos.

Esses riscos, conforme faz pensar o autor, não devem ser negligenciados pelos adultos,

mas essas atividades, esses lazeres, essas brincadeiras fazem mergulhar numa tranquilidade,

admitindo todo o esforço necessário contra os obstáculos, incitando o indivíduo a recriar com

toda força em um tempo/espaço onde exerça, sem barreiras, seu controle e sua criatividade. É

provável que esteja aí o apelo da ludicidade infantil, porque apesar de todas as barreiras, os

meninos brincam. Se a brincadeira é retirada pela porta, ela volta pela janela sob a forma de

transgressão. Isso pode ser uma demonstração de que os meninos brincam. Tanto brincam em

brincadeiras “de mau-gosto”, no dizer de certo professor, quando eles “empurram, chutam,

metem o pé no outro” — e ganham um “sermão” —, como, quando brincam em brincadeiras

com o professor ajudando ou, no dizer de outro professor, “trabalhando de forma mais lúdica”

as regras da gramática, o salto, a cambalhota ou a tabuada...

Deixo o ensaio na companhia de uma imagem, que soube, como ninguém, traduzir o

espírito que me animou a enxergar numa aventura de etnógrafo aquilo que as crianças

estimam como gostosas brincadeiras, mas que para os adultos ritualizam as ditas “Condutas

de Riscos”.

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Figura 3. Uma menina e um menino brincam com passes da capoeira no recreio.

Fonte: Gomes: (2001, p. 147)

REFERÊNCIAS

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1984.

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