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INFÂNCIAS, HISTÓRIAS E EMOÇÕES: PROCESSOS IMAGINATIVOS EM NARRATIVAS DE CRIANÇAS Kátia Oliveira da Silva Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal (SEEDF) Débora Cristina Sales da Cruz Vieira Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal (SEEDF) Paula Gomes de Oliveira Universidade Católica de Brasília (UCB) Este painel pretende contribuir com a discussão sobre os processos de imaginação presentes nas narrativas das crianças, levando-as a criação e recriação de histórias, informações ou fatos da realidade. Nesse sentido, destacamos a inter-relação da cognição, emoção e imaginação constitutivas das narrativas infantis, pois a linguagem mediatiza processos de significação e imaginação criadores. Processos esses que, a partir da ação das crianças, as tornam capazes de reinventar o mundo, criando realidades imagináveis e inusitadas. A presente proposta apresenta três pesquisas alinhadas teoricamente na perspectiva histórico-cultural apoiadas nos estudos de Vigotski (1896- 1934) e na abordagem metodológica da Epistemologia Qualitativa González Rey que articula o caráter construtivo/interpretativo, o caráter dialógico e o caráter singular enquanto instância da produção do conhecimento. O primeiro trabalho “ Imaginação e emoção: a experiência estética de crianças com o conto „A vendedora de fósforos‟” analisa a experiência estética expressa nas narrativas e registros gráficos de crianças de uma instituição pública de Educação Infantil do Distrito Federal, evidenciando a relação da imaginação e realidade nas narrativas das crianças. O segundo trabalho “Reconto oral: emoção, memória e imaginação na produção narrativa de crianças” destaca a imaginação presente na produção narrativa de crianças de uma instituição pública de Educação Infantil do Distrito Federal, analisando as estratégias utilizadas pelas crianças na atividade de reconto oral de histórias. O terceiro trabalho “A contação de histórias e as crianças: sujeitos de pensamento, sujeitos de emoção e sujeitos imaginativos” analisa como os tempo-espaços de contação de história em uma instituição pública do Distrito Federal podem contribuir para o desenvolvimento dos processos imaginativos das crianças e para sua constituição e expressão de sujeitos de pensamento, emoção e imaginação. Palavras-chave: Narrativas. Imaginação. Literatura Infantil. XVIII ENDIPE Didática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira 2500 ISSN 2177-336X

INFÂNCIAS, HISTÓRIAS E EMOÇÕES: PROCESSOS …ufmt.br/endipe2016/downloads/233_11030_36476.pdf · Introdução ... Como o conto de fadas contribui para o processo de imaginação

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INFÂNCIAS, HISTÓRIAS E EMOÇÕES: PROCESSOS IMAGINATIVOS EM

NARRATIVAS DE CRIANÇAS

Kátia Oliveira da Silva – Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal

(SEEDF)

Débora Cristina Sales da Cruz Vieira – Secretaria de Estado de Educação do Distrito

Federal (SEEDF)

Paula Gomes de Oliveira – Universidade Católica de Brasília (UCB)

Este painel pretende contribuir com a discussão sobre os processos de imaginação

presentes nas narrativas das crianças, levando-as a criação e recriação de histórias,

informações ou fatos da realidade. Nesse sentido, destacamos a inter-relação da

cognição, emoção e imaginação constitutivas das narrativas infantis, pois a linguagem

mediatiza processos de significação e imaginação criadores. Processos esses que, a

partir da ação das crianças, as tornam capazes de reinventar o mundo, criando realidades

imagináveis e inusitadas. A presente proposta apresenta três pesquisas alinhadas

teoricamente na perspectiva histórico-cultural apoiadas nos estudos de Vigotski (1896-

1934) e na abordagem metodológica da Epistemologia Qualitativa González Rey que

articula o caráter construtivo/interpretativo, o caráter dialógico e o caráter singular

enquanto instância da produção do conhecimento. O primeiro trabalho “ Imaginação e

emoção: a experiência estética de crianças com o conto „A vendedora de fósforos‟”

analisa a experiência estética expressa nas narrativas e registros gráficos de crianças de

uma instituição pública de Educação Infantil do Distrito Federal, evidenciando a relação

da imaginação e realidade nas narrativas das crianças. O segundo trabalho “Reconto

oral: emoção, memória e imaginação na produção narrativa de crianças” destaca a

imaginação presente na produção narrativa de crianças de uma instituição pública de

Educação Infantil do Distrito Federal, analisando as estratégias utilizadas pelas crianças

na atividade de reconto oral de histórias. O terceiro trabalho “A contação de histórias e

as crianças: sujeitos de pensamento, sujeitos de emoção e sujeitos imaginativos” analisa

como os tempo-espaços de contação de história em uma instituição pública do Distrito

Federal podem contribuir para o desenvolvimento dos processos imaginativos das

crianças e para sua constituição e expressão de sujeitos de pensamento, emoção e

imaginação.

Palavras-chave: Narrativas. Imaginação. Literatura Infantil.

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

2500ISSN 2177-336X

IMAGINAÇÃO E EMOÇÃO: A EXPERIÊNCIA ESTÉTICA DE CRIANÇAS

COM O CONTO „A VENDEDORA DE FÓSFOROS‟

Kátia Oliveira da Silva – Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal

(SEEDF)

O processo de imaginação se faz presente na vida dos sujeitos, levando-os a criação e

recriação de informações ou fatos da realidade. As emoções evidenciadas pelas crianças

diante de uma obra de arte, leva-nos a fazer considerações sobre a presença do conto de

fadas na infância e como este se torna um educador estético natural (VIGOTSKI 2010).

O presente artigo busca compreender a expressão da imaginação nas atividades com

contos de fadas com crianças da Educação Infantil do Distrito Federal, observando a

imaginação presente na produção oral/gráfica e analisando a experiência estética das

crianças em relação ao conto de fadas. O aporte teórico encontra-se embasado nos

conceitos de imaginação, emoção e reação estética de Vigotski (2009, 2010). A pesquisa

encontra-se inserida na Epistemologia Qualitativa de González Rey (GONZÁLEZ REY

2005, 2010), evidenciando o caráter construtivo/interpretativo, o caráter dialógico e o

caráter singular enquanto instância da produção do conhecimento. A pesquisa foi

realizada em uma instituição pública de ensino situada numa Região Administrativa do

Distrito Federal, com um grupo composto por nove crianças do 2° período da Educação

Infantil, sendo cinco meninas e quatro meninos com idade entre 5 e 6 anos. Os

instrumentos e procedimentos utilizados para a construção das informações foram:

contação de história, roda de conversa, reconto oral e registro gráfico. A relação das

crianças com o conto de fadas possibilitou a percepção da experiência estética de cada

sujeito através de suas interações verbais e como ocorre o processo de imaginação e

criação tendo como base uma situação real. O “Era uma vez” enquanto educador

estético natural é um convite para criar, recriar e organizar as emoções das crianças.

Palavras-chave: Imaginação. Conto de fadas. Experiência Estética.

Introdução

Apresentar para a criança um conto de fadas através do suporte livro ou mídia é

proporcionar que a mesma vivencie experiências diversas, é poder ser livre para se

emocionar, para torcer por determinados personagens, compartilhar os sentimentos de

outros, é vibrar e experimentar sensações de medo, alegria ou até mesmo não sentir

nada disso.

O conto de fadas possibilita que as crianças vivenciem processos como a

imaginação, a emoção e a fantasia e assim compreendam os sentimentos duos que

permeiam o seu eu interior. É usar a realidade para disparar a imaginação, vivenciar o

real e o irreal e fazer emergir emoções reais. A questão norteadora da pesquisa foi:

Como o conto de fadas contribui para o processo de imaginação em crianças da

Educação Infantil? Com base nesse questionamento, esse trabalho pretende

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

2501ISSN 2177-336X

compreender a expressão da emoção e da imaginação nas atividades com contos de

fadas com crianças da Educação Infantil do Distrito Federal, observando a imaginação

presente na produção oral/gráfica e analisando a experiência estética das crianças em

relação ao conto de fadas.

Conto de fadas – colorindo a realidade emocional da imaginação

Pensar a imaginação é pensar na capacidade de criação do sujeito, nessa

concepção não cabe o ditado popular “na vida nada se cria, tudo se copia”, mesmo

quando reproduzimos algo que já vivenciamos colocamos nessa reprodução as nossas

marcas, nossas impressões e acabamos por construir algo novo. Para González Rey

(2014) pensar na concepção de sujeito implica pensar na imaginação:

Essas configurações subjetivas são autogeradoras e não determinadas de

forma extrínseca por elementos externos, o que implica ver na imaginação a

qualidade distintiva das produções criativas humanas e não uma função a

mais ou um sistema de funções. (GONZÁLEZ REY, 2014, p. 42).

A compreensão da imaginação se torna possível quando a relacionamos com a

realidade, para Vigotski (2009) não se separa fantasia da realidade com uma linha

intransponível. Fundamentados em Vigotski (2009) podemos afirmar que a imaginação

se constrói a partir de materiais da realidade e que quanto mais vasta for a experiência

do sujeito, mais rica será sua imaginação, o que explica a riqueza desta função psíquica

nos adultos. A imaginação pode fazer uso de experiências de outrem ou representações

que não são próprias do sujeito, o que é comum quando nos deparamos com uma obra

de arte, fazemos uso da imaginação para nos apropriarmos da experiência de outro

sujeito e a partir de suas impressões e com o uso da imaginação nos tornamos também

criadores.

A relação entre imaginação e emoção nos permite selecionar as impressões de

acordo com as emoções daquele momento ou estado de ânimo. E esta emoção que a

priori é interna acaba por se externar em modificações físicas, seja o tremor, a palidez, o

choro, o riso. É darmos colorido a realidade emocional da imaginação. A fantasia se

relaciona com as emoções e pode se transformar em realidade. Ao ouvirmos uma

história que aborda o medo e que toda vez que a porta range aparece algo assustador,

trazemos para a realidade este medo, o monstro não aparece, é apenas fruto da

imaginação, mas o medo é real. “As obras de arte podem exercer essa influência sobre a

consciência social das pessoas apenas por que possuem sua própria lógica interna”

(VIGOTSKI, 2009, p. 33).

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Ao compreendermos a literatura como uma obra de arte, que desperta no sujeito

as mais vastas emoções, estamos valorizando o processo imaginativo, em especial o

conto, histórias fantasiosas, que possibilita a compreensão de emoções e conflitos

internos. Em Vigotski (2009) fica claro que o conto ajuda a esclarecer uma relação

cotidiana complexa; suas imagens iluminam um problema vital, e o que não pode ser de

um modo frio, em prosa, realiza-se na história pela linguagem figurativa e emocional. A

literatura nos possibilita penetrar no íntimo do sujeito, tocando-o com suas emoções e

sentimentos de maneira delicada, duma forma singular.

A literatura infantil é uma despertadora da emoção e da imaginação na infância e

possibilita a reflexão de elementos reais a partir da fantasia. Esse caráter não pode ser

negado pela escola. A criança precisa constantemente ser convidada para a escuta de

histórias e para a criação das mesmas. O diálogo entre a imaginação e a realidade não

pode ser uma visita em sala de aula, mas sim um habitante ativo. A organização do

trabalho pedagógico com os livros de literatura não pode acontecer de maneira

mecânica e fria, precisa despertar na criança a qualidade imaginativa e criadora,

despertando os sabores, as cores, os sentimentos, as buscas, os anseios que são

estimulados quando entramos em contato com a história.

Procedimentos metodológicos

A presente pesquisa encontra-se inserida na Epistemologia Qualitativa de

González Rey (2005, 2010), com caráter dialógico por perceber que o pesquisador

possui uma intencionalidade diante do objeto estudado e ao mesmo tempo que observa

as produções de informações também é produtor das mesmas. A pesquisa ainda possui o

caráter construtivo/interpretativo e o caráter singular enquanto estância de produção de

conhecimento, por conceber o sujeito em sua subjetividade, reconhecendo que a sua

individualidade encontra-se pautada no contexto histórico e cultural no qual está

inserido. O olhar voltado para as produções das crianças buscou-se vê-los em sua

pluralidade de aspectos e na valorização de suas singularidades subjetivas.

O cenário da pesquisa foi uma instituição pública de ensino, localizada numa

Região Administrativa do Distrito Federal, que atende turmas da Educação Infantil ao 5º

ano. Os sujeitos colaboradores da pesquisa foram um grupo composto por 9 crianças do

2° período da Educação Infantil, sendo cinco meninas e quatro meninos com idade entre

5 e 6 anos. Ressaltamos que os nomes utilizados no texto são fictícios e foram

escolhidos pelas próprias crianças para preservar a identidade dos sujeitos participantes

da pesquisa por questões éticas. Os instrumentos e procedimentos utilizados para a

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

2503ISSN 2177-336X

construção das informações foram: contação de história, roda de conversa, reconto oral

e registro pictórico.

A pesquisa embasada na Epistemologia Qualitativa de González Rey (2005,

2010) proporciona a percepção dos sentidos subjetivos como unidade que permite a

organização da subjetividade humana, sendo indissociável dos processos simbólicos, do

afeto e da cognição e a interação entre estes são responsáveis pela produção da

subjetividade.

„A vendedora de fósforos‟: imaginando e se emocionando

O conto de fadas, „A Vendedora de Fósforos‟, tem sua escolha justificada por

apresentar uma história desconhecida para as crianças do grupo pesquisado, com

elementos diferenciados de outros contos clássicos. O conto de Hans Christian

Andersen (1805-1875), publicado pela primeira vez em 1845, retrata a história de uma

menina pobre que sai para vender fósforos na véspera do ano novo e se confronta com o

frio e a neve, não volta para casa temendo apanhar de seu pai. Ao acender cada fósforo

para se aquecer tem uma visão, porém termina congelada, vindo a falecer.

Para Vigotski (2010) a reação estética do sujeito diante de uma obra de arte

ocorre de forma distinta, pois reflete a experiência de vida de cada um que diante da

mesma obra refletem sentidos diferentes. O que emociona alguém em determinada obra

pode não impactar o outro.

A roda de conversa não é um instrumento de fácil realização, pois implica numa

construção coletiva e no respeito às memórias culturais e sociais de cada sujeito.

Conversar leva à interação, à emoção e ao diálogo na construção e reconstrução de

conceitos de cada sujeito.

A roda de conversa sobre o conto produziu elementos significativos para a

análise e discussão das informações e fez emergir entre os sujeitos colaboradores da

pesquisa o constructo de cada um sobre a imaginação. Durante a conversa sobre as

impressões de cada criança sobre a história surgiu a palavra „imaginou‟ e os

colaboradores da pesquisa foram convidados a falarem sobre imaginação.

1. Pesquisadora – O que aconteceu quando a menina acendeu o terceiro

fósforo?

2. Pedro – Ela viu a vó.

3. Shrek – A vovó tava viva.

4. Pesquisadora – Como assim?

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

2504ISSN 2177-336X

5. Branca de Neve – Tava viva, mas só que ela voltou pro céu de novo.

6. Lilla – Deus desceu e colocou ela na Terra.

7. Pedro – Ela foi pro céu.

8. Bela – Ou tia ela tava viva ou tava morta?

9. Lilla – Ela imaginou.

10. Pesquisadora - Imaginou?

11. Pedro – É você pensar numa coisa assim (fecha os olhos e trava os lábios),

aí aparece uma nuvem e a coisa que você quer fazer.

12. Bela – É você querer ser o que não é, aí você pensa muito e aí você é.

13. Branca de Neve – Você imagina uma coisa e aí quando você dorme você

sonha uma coisa de terror, coisa de romance, tipo assim. Quando você quer

uma coisa, aí você deseja a coisa aí a coisa aparece na sua cabeça.

14. Ana Júlia – Tia eu quero falar!

15. Pesquisadora – Pode falar!

16. Ana Júlia – É quando uma criança quer que alguma coisa aconteça de

verdade, e quer que a coisa venha até ela, aí ela imagina. Às vezes ela

imagina o próprio sonho.

17. Pesquisadora – Como?

18. Ana Júlia – Quando a criança não tem nada pra fazer, ela imagina pra se

divertir e brinca com a imaginação.

19. Pesquisadora – Como se brinca com a imaginação?

20. Ana Júlia – Igual você se fantasia, e você quer ser alguém e você é. Um

pirata, uma sereia, uma fada, uma princesa, a gente imagina que eles são de

verdade, e eles fala.

21. Homem de Ferro – Tia, eu imaginei ser artista!

22. Pesquisadora – E como era?

23. Homem de Ferro – Artista de pintar e pintar um quadro e não sei mais.

A fala das crianças evidencia a transposição entre a realidade e a imaginação.

Na fala de Pedro percebe-se o uso de marcas da realidade e quando a criança fala

que aparece uma nuvem, percebe-se uma relação entre as características dos

desenhos de animação e histórias em quadrinhos, onde o personagem ao imaginar

algo tem seu pensamento ilustrado por uma espécie de nuvem. Ao fechar os olhos e

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

2505ISSN 2177-336X

cerrar os lábios fica clara a marca física em que a criança deixou a realidade e

começa a mergulhar na imaginação.

Na fala de Branca de Neve, a palavra imaginação aparece relacionada a desejos e

sonhos. A imaginação surge quando um desejo real não é realizado e no mundo

imaginário ela pode ter, ser e conquistar tudo aquilo que não consegue em seu

cotidiano.

Ana Júlia também percebe a imaginação como forma de conseguir algo que não

possui e que a constância desse pensamento, o desejo de possuir algo transpõe a

barreira da imaginação e permeia seus sonhos. No outro momento, a Ana Júlia

coloca a imaginação como fruto do ócio: “Quando a criança não tem nada pra

fazer, ela imagina pra se divertir e brinca com a imaginação”. A imaginação surge

desprendida de qualquer obrigatoriedade, a criança neste momento a percebe como

uma forma de fazer uso dela de maneira despreocupada, como uma descontração.

Na fala dos colaboradores percebemos que a imaginação tem seu disparador

num fato ou num desejo real. O sujeito tem sua imaginação alicerçada no concreto, a

forma que ele se relaciona com este dá novos sentidos aos seus processos de

cognição e emoção. Para Laplantine e Trindade (2003):

Como processo criador, o imaginário reconstrói ou transforma o real. Não se

trata, contudo, da modificação da realidade, que consiste no fato físico em si

mesmo, como a trajetória natural dos astros, mas trata-se do real que constitui

a representação, ou seja, a tradução mental dessa realidade exterior. O

imaginário, ao libertar-se do real que são as imagens primeiras, pode

inventar, fingir, improvisar, estabelecer correlações entre os objetos de

maneira improvável e sintetizar ou fundir essas imagens (LAPLANTINE e

TRINDADE, 2003, p. 27).

Ainda baseada na fala da Ana Júlia que disse: “Igual você se fantasia, e você quer

ser alguém e você é. Um pirata, uma sereia, uma fada, uma princesa, a gente imagina

que eles são de verdade, e eles fala”. A criança neste momento faz uso de um adereço e

lhe atribui novas formas, aqui ela é livre para inventar, fingir e improvisar, é a ação do

sujeito sobre o objeto que faz nascer essa imaginação subjetiva, repleta de significados,

de emoção. É uma ação emancipadora, mas uma forma de organizar suas riquezas

contraditórias, de vivenciar experiências que a realidade não lhe permite, de manifestar

seus sentimentos mais guardados, de poder vivenciar tanto o lado bom quanto o lado

mais obscuro do ser humano, atividade que propicia a organização de pensamentos

opostos.

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

2506ISSN 2177-336X

A imaginação encontra-se vinculada a uma experiência passada, ela se relaciona

com as memórias do sujeito e neste momento tudo se torna permitido e o conto de fadas

é uma ferramenta propícia, pois convida o ouvinte e/ou leitor ao processo da imaginação

criadora, criando e recriando novas imagens. Este é o momento que o sujeito cria um

mundo só seu com suas marcas e impressões, você pode ser tudo ao mesmo tempo, a

menina com suas faces roxas de frio, uma avó generosa que já se encontra morta, um

pai com conduta duvidosa e até mesmo as pessoas que se tornam indiferentes frente à

problemática da criança. Mas no contexto da imaginação, a história é de cada um e o

sujeito tem a liberdade para mudar a história, para recriá-la, para imaginá-la.

A roda de conversa proporciona ao sujeito refletir sobre a história, falar abertamente

sobre o enredo e como estes se tornaram significativos ou não para eles. A necessidade

de conversar sobre a história se torna mais viva para uns do que para outros. A

indiferença frente ao conto também é uma característica que apareceu diante deste

conto.

Oportunizar a fala da criança após uma contação de história, abre caminhos para

possíveis compreensões e reflexões acerca do conto, permite ao contador perceber as

mediações que surgem entre o sujeito e a história e o que esta ofereceu para quem a

escutou.

A história se constituiu num momento mágico, a forma como as crianças

demonstraram seu interesse, surpresa como torceram por determinados personagens ou

criaram apatia por outros foram perceptíveis por algumas reações demonstradas durante

a escuta da mesma. Mas exteriorizar isso é compartilhar com o outro o que nos

envolveu tanto em determinado enredo, é dar voz a imaginação, enriquecê-la e receber

dos pares contribuições para a criação e recriação da mesma.

A linguagem proporciona que a criança pense sobre aquilo que não viu e não

conhece e através desta mesma linguagem, ela pensa sobre o objeto e o que antes era

apenas um objeto da imaginação, passa a ser uma realidade emocional. O uso da

linguagem simbólica do conto de fadas, além de divertir a criança também esclarece

sobre si mesmo, possibilitando o desenvolvimento da personalidade.

Num segundo momento os sujeitos colaboradores da pesquisa foram convidados a

realizarem o reconto oral do conto: 'A vendedora de fósforos'. Nesta oficina as crianças

foram divididas em três grupos e orientadas a se organizarem para a realização do

reconto oral fazendo uso do cenário que foi utilizado pela pesquisadora durante a

primeira oficina. As crianças se organizaram a contento, mas houve o impasse entre

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

2507ISSN 2177-336X

duas colaboradoras em quem iria narrar a história, Branca de Neve acabou cedendo para

que Let it Go narrasse o conto manuseando os elementos que compunham o cenário.

Contar novamente uma história que já é conhecida tem seu encantamento, o sujeito

se apropria da história, dá características próprias ao enredo e muitas vezes transforma a

história original. No momento do reconto oral, Homem de Ferro se incumbiu da tarefa

de narrar a história:

“Era uma vez uma menina muito pobre que caminhava pela rua pra vender os

fósforos, ninguém comprou os fósforos por que ninguém precisava e a menina não

voltou pra casa. Se ela voltasse o pai batia, né tia? Aí a menina foi na parede e acendeu

um fósforo e viu uma mesa cheia de comida. Aí acendeu outro fósforo e viu a árvore de

natal, mas não tinha presente pra ela. Tudo desapareceu e... E acendeu outro fósforo e

apareceu a vó da menina e a vó foi lá no pai e o pai ficou bom e buscou a menina e

acabou”.

Na história original contada pela pesquisadora e apresentada na segunda oficina

no formato de vídeo a história termina com a morte da menina, mas Homem de Ferro

mostra que interagiu com a história e recriou as informações do enredo original do

conto. O final não lhe agradava, durante a roda de conversa e a realização dos registros

pictóricos foi possível perceber que a criança sempre buscava colocar suas marcas na

história. Percebemos isso na seguinte fala: “Se eu tivesse lá, eu tinha colocado uma

arma na cabeça do menino e dizia: deixa essa chinela aí. E aí ajudava a menina a

achar a outra chinela. Eu tinha comprado todos os fósforos e ela voltava pra casa. Eu

ia ser bom”.

O desenho de Homem de Ferro também expressa esse mesmo desejo, ao ser

orientado a fazer o registro pictórico sobre a impressão da história, ele desenha a

menina, o pai e um coração entre os dois. Ao ser questionado sobre a sua produção,

explica que se o pai fosse bom, a menina não teria morrido e afirma gostar da família.

Figura 1 – Registro Pictórico Homem de Ferro

Fonte: material empírico Podemos perceber ainda que no reconto oral da história do Homem de Ferro, a

avó da menina assume o papel de fada, ela aparece e soluciona toda a problemática da

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

2508ISSN 2177-336X

criança, transformando os sentimentos do pai e fazendo com que o mesmo vá em busca

da sua filha. Essa intervenção dá um novo final para a menina que não tem mais na

morte a única oportunidade de se livrar do sofrimento que vivenciava.

A criança não recebeu a história de forma passiva, ela atuou sobre ela e a

transformou, visualizando um futuro esperançoso para a menina. A liberdade para

recontar o conto permite a criança imaginar e realizar esta ação trazendo para a

realidade sua visão de mundo e sua interação com o conto.

As produções infantis já não se encontram fechadas sobre si próprias, nem

encerradas num museu da “arte infantil” que as prenderia e louvaria a fim de

melhor mumificar; elas viram-se para o antropológico museu imaginário que

as alimenta e as ajuda a gerarem-se a si próprias, que elas aprendem e que

elas reinventam, que elas perscrutam e que elas amplificam; que as

comportam e que elas inauguram à maneira delas, que elas esboçam e que as

ostenta, que elas interpretam e que as anima, que elas ressuscitam e que é

Musa delas (DUBORGEL, 2003, p. 216).

A leitura do mundo real permite que a criança acione elementos simbólicos do

mundo fantástico, aproximando-os e trazendo novos significados para a história. Let it

Go fez o reconto oral mantendo o contexto original, tentou ser o mais fiel possível ao

enredo original. As falas entre parênteses são as orientações da criança para que os

colegas executem algumas ações durante o reconto oral, vejamos:

“Fazia muito, muito frio mesmo (É sua vez de jogar a neve.) e a menina caminhava

pela rua para vender os fósforos e aí apareceu um trem e a menina teve que fugir e

perdeu sua chinela e o menino pegou a chinela e levou pra fazer um berço para a

boneca da irmãzinha. A menina já tava era vermelha de tanto frio e ninguém quis

comprar o fósforo e a menina gritava: quem compra o fósforo? E ninguém comprava o

fósforo e a menina desistiu e sentou perto do muro (Joga mais neve.) e aí a menina

riscou um fósforo (Agora é sua vez de colocar a caixa.) aí a menina riscou o fósforo e

apareceu foi uma mesa cheia de comida e quando a menina foi pegar a comida a

comida desapareceu. A menina ficou triste e riscou outro fósforo e apareceu uma árvore

de natal e desapareceu e depois ela riscou outro fósforo e a avó apareceu e queria

pegar a menina no colo e o fogo apagou e amenina riscou todos os palitos e a menina

foi com a vó. No outro dia a menina tava morta e todo mundo olhando.”

No reconto feito por Let it Go percebe-se que a narrativa se manteve quase que

intacta. Ela soube estruturar a história, recontando-a de forma coordenada, durante a

roda de conversa a criança se manteve atenta a fala de seus pares e mas não se

manifestou. No momento do registro pictórico Let it Go também se manteve fiel à

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

2509ISSN 2177-336X

história, desenhando o menino que apanhou o chinelo e a menina acendendo o fósforo e

imaginando a árvore de natal, conforme o desenho:

Figura 2 – Registro pictórico Let it Go

Fonte: material empírico

Mais uma vez a Let it Go não apresentou nenhuma informação diferente da

história. Aparentemente a contação de história, a roda de conversa, o reconto e o

registro pictórico não conseguiu captar nenhuma apreciação da criança em relação ao

conto. Todavia na última oficina, foi realizada uma eleição para a escolha do conto

preferido. Let it Go escolheu „A vendedora de fósforos‟ e justificou ter gostado de todas

as partes por que “Morrer, às vezes é a melhor coisa”. A fala da criança evidencia sua

constituição subjetiva, os princípios religiosos são notados, pois para a mesma existe a

esperança de uma vida pós-morte e como sujeito histórico e social, a criança apresenta

uma crença, que vê na morte a continuação da vida em outro plano.

As crianças participaram da produção de registros pictóricos para expressarem

as suas impressões sobre a história, podendo desenhar o que gostaram ou não gostaram

na história e até mesmo o que mudariam. Posteriormente as crianças foram convidadas a

apresentarem seus desenhos e explicá-los através da palavra.

Os objetos figurativos do desenho da criança não são considerados “códigos”

em si mesmos. Para serem “decifrados”, há a necessidade do diálogo entre a

criança/autora e o adulto/intérprete, como condição fundamental, visto que os

significados e os sentidos das figurações são explicitados pelas palavras

(FERREIRA, 1998, p. 16).

O desenho da criança ganha significado mediante a linguagem e percebido como

produções históricas que são carregadas das vivências e da história de cada um. Os

desenhos por si só não falam, é necessário que haja a comunicabilidade do que se

desejou expressar

João Pedro apresentou seu desenho e fez a seguinte interlocução:

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

2510ISSN 2177-336X

Figura 3 – Registro pictórico João Pedro

Fonte: material empírico

1. Pesquisadora – Mostra pra gente o que você desenhou.

2. João Pedro – Eu desenhei o sol.

3. Pesquisadora – Mas na história aparece o sol?

4. João Pedro – Mas se o sol aparecesse, a menina não tinha

morrido.

5. Branca de Neve – Ela morreu e começou a ser feliz.

6. João – Ela encontrou a mãe e a avó e pronto.

O desenho de João Pedro mostra a busca de alternativas para a construção de um

final feliz para o conto, o aparecimento do sol evitaria que a menina sentisse tanto frio e

fosse a óbito. João Pedro demonstra sua inquietação com o conto e no seu registro

encontra uma solução para o fim do sofrimento da menina, o surgimento de um

elemento real, neste caso o sol, teria a função de mudar os rumos da história.

Branca de Neve percebe na morte um final reconfortante para história, o caráter

religioso pode estar implícito na afirmação acima, pode-se compreender que existe uma

vida após a morte e que num outro plano a vida continua.

Considerações finais

A pesquisa visou compreender a expressão da emoção e imaginação nas

atividades envolvendo conto de fadas com crianças da Educação Infantil do Distrito

Federal, buscando analisar a experiência estética das crianças em relação ao conto de

fadas e compreender a relação entre imaginação e a realidade na produção oral/gráfica

das crianças. Os objetivos foram alcançados através da aplicação dos instrumentos

metodológicos que a partir da relação dialógica com os pares permitiu a percepção da

imaginação-realidade-emoção.

A pesquisa colabora para um debate consistente sobre a relação entre o conto de

fadas e a imaginação para profissionais de diversas áreas e ainda se faz importante por

servir de fonte de consulta para professores a fim de quebrar com a crença que os contos

de fadas são histórias fantasiosas que inserem as crianças num mundo falso e em que

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

2511ISSN 2177-336X

nada acrescentam no desenvolvimento infantil. Ainda contribui para o entendimento da

imaginação como educadora estética tão importante quanto à brincadeira e que não pode

ser marginalizada nas atividades pedagógicas e se restringir puramente ao prazer, mas

como forma de expressão da emoção e da imaginação.

Referências bibliográficas

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BAPTISTA, Fernando Paulo (Coord.). Variações sobre o imaginário: domínios,

teorizações, práticas hermenêuticas. Lisboa: Instituto Piaget, 2003, p. 203-217.

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GONZÁLEZ REY, Fernando. A imaginação como produção subjetiva: as ideias e os

modelos da produção intelectual. In: MITJÁNS MARTÍNEZ, A.; ÁLVAREZ,P. (Org.)

O sujeito que aprende: diálogo entre a psicanálise e o enfoque histórico-cultural.

Brasília: Liber Livros, 2014.

__________________. Pesquisa qualitativa em psicologia: caminhos e desafios. São

Paulo: Cengage Learning, 2005.

________________. Pesquisa qualitativa e subjetividade: os processos de

construção da informação. São Paulo: Cengage Learning, 2010.

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VIGOTSKI, Lev. Semenovich. Imaginação e criação na infância. São Paulo: Ática,

2009.

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Fontes, 2010.

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

2512ISSN 2177-336X

RECONTO ORAL: EMOÇÃO, MEMÓRIA E IMAGINAÇÃO NA PRODUÇÃO

NARRATIVA DE CRIANÇAS

Débora Cristina Sales da Cruz Vieira – Secretaria de Estado de Educação do Distrito

Federal (SEEDF)

A produção narrativa das crianças pequenas se constitui um processo configurado por

dimensões linguísticas, psicológicas, sociológicas e filosóficas. Entendemos que a

disciplinarização do conhecimento, restringe a complexidade do objeto estudado,

entretanto essa pesquisa fundamenta-se na perspectiva histórico-cultural. A presente

pesquisa se norteia a partir do seguinte questionamento: como podemos perceber a

presença de processos imaginativos nas narrativas produzidas pelas crianças na

Educação Infantil? A partir desta questão levantada, visamos compreender a imaginação

na produção narrativa de crianças de uma turma de 2° período de uma instituição

pública de Educação Infantil do Distrito Federal. A revisão de literatura contempla o

desenvolvimento cultural na infância (PINO 2005, ROGOFF 2005, VIGOTSKI 2012b,

VIGOTSKI E LURIA 1996); dimensão psicológica da narrativa (BRUNER 2008, 2014,

VIGOTSKI 2012a, VIGOTSKI E LURIA 1996) e dimensão filosófica da narrativa

(BENJAMIN 2012). A construção e análise das informações foram realizadas sob a

abordagem metodológica Epistemologia Qualitativa de González Rey (GONZÁLEZ

REY 2005, 2010). A pesquisa empírica foi realizada em uma instituição pública de

Educação Infantil do Distrito Federal, com a participação de oito crianças, quatro

meninos e quatro meninas de uma turma do 2° período da Educação Infantil. Os

instrumentos e procedimentos utilizados foram: oficinas realizadas para a leitura de

histórias infantis, recontos orais e registros pictóricos. Analisamos produções narrativas

de reconto oral das crianças e identificamos a inter-relação da imaginação, emoção e

cognição nesse processo de criação infantil. Destacamos ainda a imaginação como um

complexo processo subjetivo e base da produção humana. A compreensão da

imaginação na produção narrativa apresenta uma possibilidade de entendimento mais

amplo sobre processos de desenvolvimento da linguagem, no qual o sujeito é produtor

de linguagem.

Palavras-chave: Educação Infantil. Imaginação. Produção narrativa.

Introdução

A prática cultural de ouvir e contar/recontar histórias acompanha a humanidade

desde a Antiguidade e está presente em todas as culturas. Como uma atividade cultural,

o reconto oral, imprime diferentes tons de acordo com cada cultura, pois, por meio das

histórias contadas/recontadas e ouvidas, a criança toma conhecimento da maneira de ser

humana na sua própria cultura. São as diversas narrativas (mitos, contos, lendas,

fábulas, parábolas, casos entre outras) ouvidas e representadas nos mais diversos

suportes (livros, vídeos, filmes, programas de TV, entre outros) que vão constituindo a

criança como ser cultural e como produtora de suas próprias narrativas.

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

2513ISSN 2177-336X

Bajard (2007) explica que o reconto oral não tem grande valor apenas pelo

aspecto cultural, mas sobretudo, pelo seu aspecto linguístico. Este pois, enriquece a

língua pelo discurso articulado, que se diferencia das demais interações verbais. As

crianças desde cedo percebem a diferença entre uma narrativa e os demais tipos de

discurso (PERRONI, 1992), pelos aspectos segmentais e/ou suprassegmentais. Pois, o

contador tem que construir pela língua a totalidade da situação narrada (tempo, espaço,

objeto, participantes, etc.) para que o ouvinte compreenda a narrativa.

A presente pesquisa se norteia a partir do seguinte questionamento: como

podemos perceber a presença de processos imaginativos nas narrativas produzidas pelas

crianças na Educação Infantil? A partir desta questão levantada, visamos compreender a

imaginação na produção narrativa de crianças de uma turma de 2° período de uma

instituição pública de Educação Infantil do Distrito Federal.

A construção e análise das informações foram realizadas sob a abordagem

metodológica Epistemologia Qualitativa de González Rey (2005, 2010). A pesquisa

empírica foi realizada em uma instituição pública de Educação Infantil do Distrito

Federal, com a participação de oito crianças, quatro meninos e quatro meninas de uma

turma do 2° período da Educação Infantil. Os instrumentos e procedimentos utilizados

foram: oficinas realizadas para a leitura de histórias infantis, recontos orais e registros

pictóricos.

Cultura: base do desenvolvimento humano

A criança nasce com funções biológicas que diferente de outros animais, não

lhe garante a sobrevivência, pois depende do adulto para sobreviver. E este nascimento

biológico não outorga à criança o nascimento cultural, que é um processo de

desenvolvimento de mecanismos específicos de comportamento. Vigotski e Luria

(1996) nos afirmam que:

A criança nasce em um ambiente cultural-industrial já existente, e esse fato

constitui a diferença crucial, crítica, entre a criança e o homem primitivo.

Contudo, a questão é que a criança recém-nascida está desligada de seu

ambiente e não é imediatamente integrada a ele. (VIGOTSKI E LURIA, 1996,

p. 180, grifo dos autores)

Pino (2005) nos explica que afirmar que o desenvolvimento é cultural, não anula

a realidade biológica do ser humano, mas que as realidades (biológica e cultural)

pertencem a ordens diferentes, sendo interdependentes e constitutivas de dimensões de

uma mesma e única história humana. Entendemos que esta integração da criança ao

ambiente cultural se dá por meio da relação da criança com os espaços e os seres

humanos que os constituem. Pois, segundo o princípio de Vigotski (2012b) da origem

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

2514ISSN 2177-336X

social das funções psíquicas superiores, o ser humano necessita de um nascimento

cultural, pois apenas o nascimento biológico não lhe assegura a condição de ser

humano.

A humanização da espécie é uma “tarefa coletiva”, enquanto a humanização de

cada indivíduo é “tarefa do coletivo” e, de outro lado, que a humanização da

espécie confunde-se com o processo de produção da cultura, enquanto que a

humanização do indivíduo confunde-se com o processo de apropriação dessa

cultura. (PINO, 2005, p.53)

Embora o termo cultura seja um eixo central no construto teórico de Vigotski

(1896-1934) não foi objeto de sua atenção o aprofundamento conceitual do termo

(PINO, 2005). Pino (2005) comenta: “Cultura é o produto, ao mesmo tempo, da vida

social e da atividade social do homem”(VIGOTSKI apud PINO, 2005, p. 88). Segundo

o autor, esta foi uma das breves pistas deixadas por Vigotski. Nesta expressão, com a

palavra produto, percebe-se uma linha que separa cultura e natureza, as une e passa pelo

homem, um ser da natureza e agente de transformação, “capaz de produzir cultura e

incapaz de produzir natureza”, retomando o debate filosófico sobre a natureza e a

cultura (PINO, 2005), que pode ser ilustrado pela citação:

Tudo que nos cerca e foi feito pelas mãos do homem, todo o mundo da cultura,

diferentemente do mundo da natureza, tudo isso é produto da imaginação e da

criação humana que nela se baseia. (VIGOTSKI, 2009, p.14)

Baseando-se nessa afirmação, Pino (2005) entende que entre todas as produções

humanas, aquelas que reúnem características que dão o sentido do humano, são

produções culturais e se distinguem por serem constituídas por duas dimensões

(material e simbólica). A materialidade e a significação são componentes que se

articulam de modos distintos e se estabelecem em dois subconjuntos de produção

humana: a) produtos da ação física do homem sobre a natureza dando-lhe uma forma

material que propaga uma significação que expressa a intencionalidade da ação; b)

produções oriundas das atividades mentais do homem sobre objetos simbólicos (ideias)

com o uso de meios simbólicos (linguagem), cuja formas de comunicação aos outros se

dá por meio de formas materiais de expressão (fala, escrita, formas sonoras, formas

gráficas, formas estéticas, etc.) (PINO, 2005, p. 92).

Com entendimento que cultura é “o conjunto de produções humanas, as quais,

por definição são portadoras de significação, ou seja, daquilo que o homem sabe ou

pode dizer a respeito” (PINO, 2005, p.59), logo o nascimento cultural da criança é a sua

chegada ao universo das significações humanas, se constituindo um ser cultural.

Rogoff (2005) explica que o processo do desenvolvimento humano consiste na

transformação das pessoas por meio da participação contínua em atividades culturais, e

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

2515ISSN 2177-336X

que estas contribuem para as transformações em suas comunidades culturais. Nesta

relação dialética, as pessoas se constituem com a experiência cultural e constituem a

experiência cultural da sua comunidade.

Cada comunidade se organiza de modo distinto, o que preconiza a construção de

significados distintos atribuídos às produções culturais. A produção narrativa humana se

constitui uma produção cultural por apresentar os elementos fundamentais de

materialidade e significação e seu desenvolvimento se dá a partir das práticas culturais

que envolvem o ato de ouvir e contar histórias.

Neste movimento complexo, as crianças são constituídas e constitutivas da

cultura, reelaborando por meio da brincadeira, pela imaginação e estabelecendo formas

criativas de se relacionar com a cultura.

As crianças aprendem a utilizar o formato narrativo preferido em sua

comunidade para contar eventos [...] a participação das crianças na narração de

histórias, nas descrições e nas charadas se estende à encenação de formas

culturalmente valorizadas de fazer as coisas, praticando e brincando com

rotinas sociais e papéis em sua comunidade. (ROGOFF, 2005, p. 240)

Concluímos este tópico com essa citação de Rogoff (2005) cuja ênfase está na

valorização da criança. No próximo tópico ampliaremos a nossa reflexão sobre o

processo de produção narrativa da criança. Entendemos que este processo se constitui

como um marco cultural na vida da criança, pois ao dominar a técnica narrativa, esta se

inscreve como um ser apto a narrar suas histórias, as histórias dos outros e até mesmo as

histórias inventadas e integrar o grupo social de modo a compartilhar os seus

significados com o mundo.

Narrativas: abordagens multidisciplinares

Bruner (2008, 2012) afirma que a narrativa não é simplesmente uma realização

mental, mas uma realização de prática social que outorga estabilidade à vida social da

criança. Reconhecendo a importância da ação narrativa no desenvolvimento humano, o

autor elenca características da narrativa e conceitua “uma narrativa é composta por uma

única sequência de eventos, estados mentais, acontecimentos envolvendo seres humanos

como personagens ou actores.” (BRUNER, 2008, p. 63). Ser real ou imaginária não

diminui o poder da narrativa, enquanto história, pois os significados atribuídos a ela são

individuais.

O modo de pensar e de sentir que ajuda as crianças na verdade, a generalidade

das pessoas, a criar uma versão do mundo no qual, psicologicamente, podem

encontrar um lugar para si mesmas - um mundo pessoal. (BRUNER, 1996, p.

65)

Nesta construção pessoal destacada pelo autor, a narrativa se configura como

modo de pensamento e veículo da produção de significação. A linguagem oferece uma

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

2516ISSN 2177-336X

maneira de organizar os nossos pensamentos sobre o mundo que nos cerca (DEWEY

apud BRUNER, 2008). E esta concepção também é partilhada por Vigotski (2012a,

2012b) que em seu construto teórico sobre a relação pensamento e fala explica que o

desenvolvimento da linguagem reestrutura o pensamento e lhe chancela novas formas.

O pensamento e a fala têm raízes genéticas diferentes, as duas funções se

desenvolvem ao longo de trajetórias diferentes e independentes, (VIGOTSKI 2012b). O

pensamento se desenvolve inicialmente, sem estar relacionado à fala, ou seja, a fase pré-

linguística enquanto o desenvolvimento da fala passa por uma fase pré-intelectual.

“Com choro ou balbucios, o bebê utiliza seus recursos físicos para expressar emoções,

embora estes sons não apresentem relação direta com a evolução do pensamento”,

(VIGOTSKI, 2012b, p.145, tradução nossa), percebemos amplo desenvolvimento da

função social da fala no primeiro ano de vida,

De acordo com Vigotski (2012b), por volta dos dois anos de idade, as curvas da

evolução do pensamento e da fala se fundem, inaugurando uma nova maneira da criança

se comportar no mundo. Este fato se constitui de grande relevância para o

desenvolvimento psicológico da criança, pois nela é despertada uma vaga consciência

do sentido da linguagem e o desejo de dominá-la. Embora, a fala e o pensamento não

sejam ligados por um elo primário, ao longo desta evolução tem início uma conexão

entre ambos, que se modificam e se transformam.

Com a sua entrada no universo das palavras, a criança está em uma nova etapa,

cujo significado das palavras se encontra a unidade do pensamento verbal, elemento

básico da construção teórica de Vigotski. A relação entre pensamento e fala é estreita no

significado das palavras, pois se apresenta como um fenômeno de pensamento à medida

que ganha corpo por meio da fala, e se torna um fenômeno da fala em que está ligada ao

pensamento. Isto é, o pensamento verbal ou fala significativa representa a união da

palavra e pensamento. O significado das palavras está relacionado às experiências

vividas e ao ambiente que está inserido o sujeito. Não só as palavras estão em

movimento, mas os pensamentos transitam, estabelecem relações entre as coisas, se

movendo, amadurecendo e desenvolvendo. As ferramentas culturais para a narrativa, já

estão presentes desde muito cedo. É na infância que a narração/escuta de histórias se

torna uma prática social.

Smolka (2009) nos comentários do texto de Vigotski sobre „A criação literária

na idade escolar‟ explica que “as narrativas das crianças vão se realizando de diferentes

formas, nas interações com os adultos. As crianças aprendem modos de dizer nos

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

2517ISSN 2177-336X

diversos contextos de suas experiências de vida” (SMOLKA, 2009, p.82). Pois, como

afirma Bruner: “construir-se através do narrar-se é um processo incessante e eterno,

talvez mais do que nunca. É um processo dialético, é um número de equilibrista”

(BRUNER, 2012, p.95). O autor explica que por configurar dois planos (individual e

social), o movimento dialético da produção narrativa é complexo e representa mais que

a individualidade do narrador, na condição de ser cultural, mas também a cultura em

que está inserido.

Como ser humano, produzimos narrativas que nos constituem e ilustram a nossa

condição humana, como nos explica: “Fabricar histórias é o meio para nos conciliarmos

com as surpresas e estranhezas da condição humana, para nos conciliarmos com a nossa

percepção imperfeita dessa condição.” (BRUNER, 2012, p.100).

Por meio da narrativa nós construímos, reconstruímos, e de alguma forma

reinventamos o ontem e o amanhã. Memória e imaginação amalgamam-se

nesse processo. Mesmo quando criamos os mundos possíveis da ficção, não

desertamos do familiar, mas o subjuntivizamos naquilo que poderia ter sido ou

no que poderia ser. Memória e imaginação são fornecedoras e consumidoras

uma das outras. (BRUNER, 2012, p.103)

A memória e a imaginação estão presentes na constituição da narrativa, ou seja,

o real e o irreal se articulam nesta produção criativa e estas funções psíquicas superiores

(VIGOTSKI 2012a) constituem uma complexa trama. A memória da criança e do

adulto se difere na utilização de ferramentas culturais, pois a memória natural ou

primitiva se distingue da memória cultural, que utiliza mecanismos intencionais para a

rememoração que vão sendo constituídos com as marcas da nossa experiência,

(VIGOTSKI E LURIA, 1996, p. 189).

Benjamin (2012) com seu olhar reflexivo, afirma que a modernidade trará a

extinção das narrativas, que ao longo do tempo foram se modificando e estão

caminhando para o desaparecimento. Segundo o autor, o espaço que antigamente era

ocupado pelas narrativas está sendo ocupado pela informação. “A cada manhã

recebemos notícias de todo mundo. E, no entanto, somos pobres em histórias

surpreendentes [...] Em outras palavras: quase nada que acontece é favorável à

narrativa.” (BENJAMIN, 2012, p.219) .

Para o autor a experiência vivida oferece os elementos necessários às narrativas,

de modo que estas vão sendo passadas de boca em boca. E este tipo de narrativa se

constitui como a fonte em que recorreram todos os narradores. Porém, o narrador agrega

a esta narrativa, elementos da sua experiência e da experiência dos ouvintes

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

2518ISSN 2177-336X

O narrador retira o que conta da própria experiência: da sua própria experiência

ou da relatada por outros. E incorpora por sua vez, às coisas narradas a

experiência dos ouvintes. (BENJAMIN, 2012, p.216)

Como já foi dito anteriormente, o ato de ouvir histórias se constitui como uma

prática cultural desde a antiguidade, por meio delas a humanidade escreveu sua história

ao longo dos séculos. E quanto mais uma história era ouvida, mais começava a fazer

parte da vida daquela pessoa ou comunidade.

Contar histórias sempre foi a arte de contá-las de novo, e ela se perde quando

as histórias não são mais conservadas. Ela se perde porque ninguém mais fia ou

tece enquanto ouve uma história. Quanto mais o ouvinte se esquece de si

mesmo, mais profundamente se grava nele o que é ouvido. (BENJAMIN, 2012,

p.221)

“O narrador infunde a sua substância mais íntima também naquilo que sabe por

ouvir dizer. Seu dom é poder contar sua vida; sua dignidade é contá-la inteira”

(BENJAMIN, 2012, p.240). Se constituir como narrador, parte do princípio de ouvir e

ouvir muitas e muitas histórias, que pouco a pouco vão constituindo este ser cultural,

que não domina apenas o código, mas recheia de experiências suas e/ou dos outros, suas

próprias narrativas.

Procedimentos metodológicos

A abordagem teórico-metodológica da pesquisa é a Epistemologia Qualitativa de

González Rey (2005b, 2010), que visa superar a simples identificação da pesquisa

qualitativa com a metodologia qualitativa, compreendendo o caráter subjetivo da

construção do conhecimento no próprio ato investigativo. A proposta metodológica se

opõe ao paradigma positivista e apresenta três pressupostos basilares: caráter

construtivo-interpretativo, no qual o pesquisador se constitui sujeito da pesquisa; caráter

dialógico, no qual a escolha de instrumentos cuja comunicação entre pesquisador e

sujeito da pesquisa se torna espaço legítimo de construção de informações e o caráter

singular, no qual há a legitimação de casos singulares na produção de conhecimento.

A pesquisa empírica foi realizada em uma instituição pública de Educação

Infantil localizada em região periférica do Distrito Federal. Os sujeitos colaboradores da

pesquisa foram um grupo de oito crianças, quatro meninos e quatro meninas de uma

turma do 2° período da Educação Infantil com faixa etária entre 5 e 6 anos. Os nomes

das crianças são fictícios e foram escolhidos pelas próprias crianças por princípios

éticos de pesquisa. Os instrumentos e procedimentos utilizados foram: oficinas

realizadas para a leitura de histórias infantis, recontos orais e registros pictóricos.

Casa Monstro: vozes e registros da produção narrativa de crianças

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

2519ISSN 2177-336X

No processo empírico desenvolvido optamos por realizar a atividade de reconto

oral em duas possibilidades, com apoio visual (livro) e sem apoio visual. E nas duas

situações pudemos analisar as estratégias utilizadas pelas crianças nas produções

narrativas de reconto oral de histórias, e com base nisto levantamos alguns indicadores

que apontaram para a presença dos processos psicológicos (emoção, memória e

imaginação) na atividade de reconto oral.

Neste episódio realizado na oficina de reconto oral livre, Godzila recuperou via

memória um trecho significativo de uma história que havia ouvido há algum tempo,

embora não tenha conseguido recuperá-la na sua totalidade. Entendemos que este trecho

recuperado via memória, representa um fragmento especial para ele, pois nesta

atividade foi solicitado que recontasse a história que mais gostou de ouvir sem nenhum

apoio visual.

1. Pesquisadora: Eu queria que você me contasse a história que você

mais gostou de ouvir. Fala prá mim.

2. Godzila: A da Casa Monstro.

3. Pesquisadora: Legal! Então, conta aí a história da Casa Monstro.

4. Godzila: Ela... Ih...Eu esqueci todas as parte.(Sorri e coloca a mão

na boca.)

5. Pesquisadora: Tenta contar para a Tia Débora. Eu não conheço a

história da Casa Monstro. O quê que acontece? Como é que começa?

6. Godzila: Sei que bate, que bate na porta... Tem um quadro que tem

uma mulher que fica assim, ó. (Vira os olhos para a direita e para esquerda).

7. Pesquisadora: Hum...Tô vendo.

8.Godzila: Aí ela falou: “Enta seu dotô.”

9. Pesquisadora: E aí?

10. Godzila: E aí todas vezes que, todas vezes que as mininas ia

sumir. Aí acontece uma coisa. Aparece um esqueleto e aparece um monte de

coisa e... E todas vezes que eles, ó, (Olha para o teto) que as meninas olha pu

teto tem um gato lá. E... E sempre que ela ia no banheiro, aparecia o homem

do cisco e o bicho do cisco. E ela abriu o vaso e teve um gato lá no vaso. E...

eles...ela... e apareceu o ...(Silêncio e fica pensativo)

11. Pesquisadora: Lembra de mais alguma parte?

12. Godzila: Não. (Sorri e põe a mão na boca.)

13. Pesquisadora: Então está bem. Muito obrigada!

A história escolhida pelo Godzila, nomeada de Casa Monstro, embora se refira a

um filme, não descreve o enredo do filme que preenche o conteúdo da sua produção

narrativa. Ao nomear a história de Casa Monstro percebemos que Godzila estabeleceu

uma relação com os elementos sombrios presentes na história recontada (quadro que se

mexe, gato no teto e esqueleto), que tornam esta parecida com as histórias de casas mal-

assombradas. Possivelmente, ele tenha assistido ao filme, pois, por meio de dinâmicas

conversacionais, identificamos o interesse de Godzila por filmes, desenhos e jogos de

vídeo game com conteúdo de violência e terror. Esta escolha para o título se constitui

como uma ação criativa, pois, a partir dos elementos presentes na história foi possível

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

2520ISSN 2177-336X

estabelecer a relação de intertextualidade entre as duas histórias (a história recontada e a

do filme Casa Monstro).

Na sequência do reconto oral, Barbie recontou a mesma história que Godzila,

intitulada de Casa Assombrada, nesse momento foi esclarecido que a história foi

contada em sala pela professora. Ela narrou a história com uma sequência temporal

maior, incluindo novos personagens e novos acontecimentos ao enredo. Ao ouvir a

história narrada pela colega, Godzila a interrompeu uma vez com a expressão: “Ih! Eu

esqueci de lembrar desta parte!” e a cada novo acontecimento narrado pela colega,

ele recuperava a história e ficava eufórico por isso e quando a Barbie hesitava em narrar

um fato novo, ele completava a fala dela.

Nesta experiência, Godzila toma consciência da sua memória e de suas

lembranças em relação à história original, contada em sala pela professora Camila. Na

parceria narrativa com a Barbie pode recuperar elementos esquecidos quando contou a

história pela primeira vez, e ao completar a fala da colega tornou-se conarrador da

história.

A memória de Godzila foi ressignificada pela parceria afetiva estabelecida com

a colega (ambos partilham o mesmo gosto literário), pois ao ouvir a história novamente,

outros elementos da narrativa que estavam esquecidos ressurgem mentalmente com um

novo significado. A memória resgata e seleciona histórias ouvidas, vividas e

imaginadas, porque “consiste em fazer uma eleição entre as múltiplas imagens que

chegam à mente”. (VIGOTSKI, 2012a, p.25).

Vigotski (2012a) nos explica que a memória se desenvolve via conexões

nervosas, entretanto, estas conexões correspondem a um complexo processo na

realidade. Pois:

[...] se torna evidente que a formação de uma nova conexão jamais se limita a

uma simples afinidade associativa da palavra, do objeto e do signo, mas que

pressupõe a criação ativa de uma estrutura bastante complexa na qual

participam ambos estímulos. (VIGOTSKI, 2012 a, p. 252, tradução e grifo

nosso)

Entendemos que a memória pertence a uma complexa trama que implica na

criação de uma também complexa estrutura, mas que é subjetivada pela emoção e pela

imaginação, pois se inter-relacionam de maneira articulada. Lembrar, não é apenas uma

ação isolada, mas consiste em recuperar mentalmente pessoas, vivências, histórias,

sabores, odores, tempos e espaços que não pertencem mais ao presente, como uma

possibilidade de voltar ao passado via memória, permanecendo no presente e dando

sentido ao vivenciado.

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

2521ISSN 2177-336X

Em outro momento da oficina foi solicitado que as crianças desenhassem a

história que haviam acabado de recontar e depois realizamos uma roda de conversa

sobre os desenhos produzidos. Godzila desenhou um castelo e um personagem que não

aparece na história recontada por ele. Na socialização do desenho sua fala foi

estritamente descritiva sobre o desenho.

Ilustração1 – O homem de duas cabeças e o castelo

Fonte: Material empírico

1. Pesquisadora: Agora vamos lá. Fala para nós sobre o seu desenho.

2. Godzila: Eu fiz uma estrela do mar. Eu fiz uma luven. E eu fiz um castelo

dos bichos. É um castelo muito feio! E um homem de duas cabeças e... e ...de dois rabos

e só. Ih, esqueci de fazer a boca. (Desenha a boca com caneta hidrocor.)

3. Aline Barros: Eles dois são gêmeos!!!

4. Pesquisadora: E eles são gêmeos?

5. Godzila: São. (Responde com uma expressão desapontada.)

6. Aline Barros: São por causa do cabelo.

Neste registro pictórico Godzila abandona a história da „Casa Monstro‟ e inclui

dois elementos igualmente sombrios como o castelo e o homem de duas cabeças. Na sua

explicação do desenho, ele explicita que o castelo era muito feio e esta referência não

diz respeito à questão estética, mas “muito feio”, para ele apresenta um sentido

assustador. Sua expressão facial e a entonação da sua voz, evidenciaram que na sua

intencionalidade, este castelo representava um castelo assustador, assim como a „Casa

Monstro‟.

O homem de duas cabeças também apresenta elementos para discutirmos. Com

duas cabeças e dois rabos, poderia ser confundido com gêmeos siameses, como foi por

Aline Barros, que não conseguiu ver o monstro criado por Godzila. Ela viu apenas

gêmeos siameses que tinham o cabelo parecido. A leitura da colega e dúvida levantada

pela pesquisadora sobre o seu desenho o deixou desapontado, pois ao declarar

tristemente que eram gêmeos, Godzila anula a monstruosidade do homem, que deixa de

ser uma criação assustadora e se torna apenas um ser humano.

A tensão entre a imaginação e a realidade se torna presente neste episódio, ao

criar o personagem com estas características, sua intencionalidade de compor um

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

2522ISSN 2177-336X

cenário de história de terror com um monstro de duas cabeças é desconstruída pela

intervenção do Outro. Por meio da fala do Outro a sua criação perde o significado e

sentidos originais e a brincadeira solitária estabelecida com o homem de duas cabeças

no castelo é interrompida, gerando um desconforto para Godzila.

Na produção narrativa de Godzila, pudemos perceber que a recuperação de

trechos da história via memória se constitui como uma estratégia para a realização da

atividade de reconto oral, compreendendo que esta ação de lembrar é subjetivada pela

emoção e pela imaginação.

Considerações finais

O reconto oral se constitui uma atividade complexa, que envolve três processos

psicológicos distintos (emoção, memória e imaginação) de maneira articulada que se

expressam em unidade na produção narrativa da criança.

Analisamos produções narrativas de reconto oral das crianças e identificarmos a

inter-relação da imaginação-emoção-cognição nesse processo de criação infantil.

Destacamos ainda a imaginação como um complexo processo subjetivo e base da

produção humana. A compreensão da imaginação na produção narrativa apresenta uma

possibilidade de entendimento mais amplo sobre processos de desenvolvimento da

linguagem, no qual o sujeito é produtor de linguagem

Referências Bibliográficas

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BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas I: Magia e técnica, arte e política: ensaios

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construção da informação. São Paulo: Cengage Learning, 2010.

PERRONI, Maria Cecília. O desenvolvimento do discurso narrativo. São Paulo:

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2524ISSN 2177-336X

A CONTAÇÃO DE HISTÓRIAS E AS CRIANÇAS: SUJEITOS DE

PENSAMENTO, SUJEITOS DE EMOÇÃO E SUJEITOS IMAGINATIVOS

Paula Gomes de Oliveira – Universidade Católica de Brasília (UCB)

Este trabalho trata da contação de histórias para crianças dos primeiros anos do ensino

fundamental como um momento de intensa produtividade e criação, e não apenas como

um momento de distração, sem intencionalidade. Momento no qual o social, o

individual, o político, o ético e demais dimensões humanas tornam-se capazes de

intervirem na construção e significação dos signos por parte das crianças. Utilizando-se

do aporte teórico da perspectiva histórico-cultural de Vygotsky, e em especial seus

conceitos de imaginação criadora e unidade cognição-afeto, analisamos como os tempo-

espaços da contação de história na escola podem contribuir para o desenvolvimento dos

processos imaginativos das crianças e para sua constituição e expressão de sujeitos de

pensamento, sujeitos de emoção e sujeitos imaginativos. A linguagem mediatiza

processos de significação e imaginação criadores. Processos esses que, a partir da ação

das crianças, as tornam capazes de reinventar o mundo, criando realidades imagináveis

e inusitadas. A pesquisa desenvolveu-se em uma escola de pública de uma cidade

situada a 26 quilômetros de Brasília, que agrega uma comunidade de classe social baixa

e média baixa que possui um eixo de trabalho pedagógico baseado na contação de

histórias. Os sujeitos da pesquisa foram as professoras que atuam na biblioteca escolar e

as crianças do 1º ao 5º ano do ensino fundamental. Em situações coletivas e pontuais, as

professoras regentes, equipe gestora e a comunidade escolar participaram também na

condição de sujeitos da pesquisa. Os instrumentos utilizados foram: observação

participante, entrevistas semiestruturadas, diálogos informais e oficinas de contação de

histórias. Percebemos que o contato e a exploração dos textos narrativos relacionando-

os com as experiências e vivências das crianças foram capazes de intensificar a

expressão da imaginação das crianças e sua capacidade criadora, já que as crianças

ocupavam um espaço-tempo de sujeitos.

Palavras-chave: Imaginação. Narrativas. Contação de histórias.

Um início para a história

As crianças estão cotidianamente inseridas em situações complexas de

aprendizagem na escola. Por vezes, o trabalho com o texto literário torna-se pretexto

para o estudo de conteúdos gramaticais e morais, relacionados às regras de “boa

conduta” e “bom comportamento”, capazes de atender ao que os professores esperam

das crianças. Em consequência, perdem-se inúmeras oportunidades de desenvolvimento

da imaginação das crianças. Se estamos convencidos de que imaginar é uma atividade

ímpar na espécie humana, então, remetendo esse problema para o campo da pedagogia,

necessitamos de processos educativos capazes de incitar a imaginação nas crianças.

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

2525ISSN 2177-336X

Além disso, a imaginação está ligada simultaneamente à realidade e à

afetividade das crianças, o que permite a ampliação de elementos da experiência de seu

contexto para reorganizá-los em novas combinações e em outro campo de entendimento

– o campo imaginativo. Vigotski (1996, 1998) mostra a imaginação como um complexo

sistema psicológico que integra várias funções mentais. A imaginação ou fantasia é uma

atividade combinatória complexa que cria novas imagens a partir de ações vividas ou

não vividas, permitindo que a criança não apenas conserve o passado, mas modifique

seu presente e projete-se para o futuro. O que também implica em uma estreita

vinculação com a realidade.

Dessa forma, pode-se compreender que o desenvolvimento da imaginação não

depende somente de fatores internos à criança, mas das oportunidades que ela encontra

em seu contexto social: a interação com os produtos significativos da imaginação

humana presentes na cultura. E, no caso desse estudo, daremos ênfase aos textos

literários enquanto produto cultural que encontra na escola, um espaço privilegiado de

contato e de interação junto às crianças. Analisamos como os tempos-espaços da

contação de história na escola podem contribuir para o desenvolvimento dos processos

imaginativos das crianças e para sua constituição e expressão de sujeitos de

pensamento, sujeitos de emoção e sujeitos imaginativos.

A Imaginação Criado

A base da discussão de Vigotski sobre imaginação, no que tange ao interesse

desse trabalho, encontra-se, principalmente, nas obras La imaginacion e el arte en la

infância (1987) e Formação Social da Mente (1995), quando apresenta o conceito de

imaginação como atividade criadora.

Para ele, a atividade criadora é definida como qualquer atividade que cria algo

novo, quer seja um elemento do mundo externo como produto dessa atividade, quer seja

certa organização do pensamento ou dos sentimentos que atuam presentes no indivíduo

e que o distingue na formação das funções psíquicas superiores. Como podemos atestar,

(VIGOTSKI, 1987, p. 7):

(...) La imaginación como fundamento de toda actividad credora se manifesta

decididamente em todos lós aspectos de la vida cultural haciendo possible la

criacion artística, cientifica y técnica, em este sentido, absolutamente todo ló

que nos rodea y há ido hecho por la mano del hombre, todo el mundo de la

cultura a diferencia del mondo de la natureleza, es producto de la

imaginación humana baseada en esa imaginación.

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

2526ISSN 2177-336X

A realidade possui um papel primordial junto ao mecanismo psicológico da

imaginação e da atividade criadora que com ela se relaciona, e tal mecanismo pode ser

melhor compreendido a partir da vinculação existente entre a fantasia e o real na

conduta humana. Para isso, Vigotski (1987) afirma que a imaginação criadora mantém

forte relação com o nível de desenvolvimento da criança e, por sua vez, atua como uma

função psíquica que tem suas bases desenvolvidas a partir das experiências reais da

criança.

Segundo Vigotski (1995), na obra A formação social da mente, por meio dos

jogos infantis, o objeto real é abstraído para o campo do imaginário, o que implica em

ressignificá-lo em sua estrutura cognitiva. Para que isso ocorra, a criança precisa colocar

seus pensamentos no lugar do objeto, sendo assim possível que um cabo de vassoura se

transforme em um cavalo, por exemplo. E na medida em que o signo assume o espaço

do objeto real, a representação faz com que a ação imaginária substitua o próprio fazer

real: andar de avião sem na realidade fazê-lo, trocar a fralda da boneca, etc. Esta é a

habilidade que corresponde à primeira função da imaginação.

A segunda forma de vinculação entre a realidade e a imaginação amplia e

ressignifica a anterior. A essência dessa elaboração consiste na combinação, por meio

da fantasia, de elementos da realidade alheia ou social que não são captados por meio de

percepções, mas sim adquiridos por meio de relatos, descrições, etc. Nesse caso, a

experiência se apoia na imaginação, uma vez que depende da capacidade de a criança

imaginar o que não viveu.

A terceira forma de vinculação se dá por intermédio da combinação dos

conteúdos emocionais presentes entre o real e o imaginário. Podendo manifestar-se de

duas formas: sentimentos influenciando a imaginação ou a imaginação influenciando

sentimentos. Pois, para Vigotski, sentimentos e pensamentos, dispostos em uma unidade

cognição-afeto, são propulsores de toda a criação humana.

A quarta forma de vinculação entre a realidade e a imaginação consiste, em sua

essência, no fato de que a nova criação pode representar algo completamente novo, não

existente nas suas experiências e nem iguais a qualquer outro objeto. E tal criação pode

influenciar e dar uma nova organização a objetos e comportamentos já existentes. Mais

explicitamente:

(...) la combinación de estos elementos constituye algo nuevo, creador, que

pertenece al nino, sin que sea mera repetición de cosas vistas u oídas. Esta

facultad de componer um edifício com esos elementos, de combinar ló

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

2527ISSN 2177-336X

antiguo com ló nuevo, sienta las bases de la creación. (VIGOTSKI, 1987, p.

12)

Ao contrário das perspectivas da psicologia comportamental ou da psicologia

psicanalítica, para Vigotski, o estímulo, a necessidade ou o desejo por si só, nada criam.

Faz-se necessário o surgimento de imagens. A função imaginativa depende de

experiências, necessidades e influências de sua própria cultura, fazendo crescer,

progressivamente, o repertório das criações infantis. Assim, quanto mais elementos

extraídos da realidade a criança tiver ao seu dispor, maior será a possibilidade de novas

combinações e, portanto, maior será sua capacidade criadora por meio da expressão

imaginativa.

Nesse sentido, os processos imaginativos não são percebidos como uma meta a

ser alcançada, mas como uma produção. Os processos imaginativos não são uma

expressão objetiva de algo, são algo novo criado pela criança e posto no mundo. A

imaginação não é responsável por aquilo que a criança define, ainda menos pelo que ela

compreende da linguagem e dos signos, mas por aquilo que ela produz e ultrapassa as

referências estruturantes da linguagem e da própria narrativa. A narrativa coloca a

criança no movimento da imaginação criadora.

O caminho percorrido

Assim, a pesquisa desenvolveu-se em uma escola da rede pública de ensino do

Distrito Federal, que atua no ensino fundamental, do 1º ao 5º ano. Situada em uma

cidade satélite do Distrito Federal, com situação socioeconômica e cultural heterogênea,

com crianças de classe socioeconômica baixa e média.

A escola atende uma clientela de 280 crianças em cada um dos turnos de

funcionamento. É reconhecida pela comunidade local como uma escola de qualidade.

Quanto ao desempenho em avaliações externas, possui bom resultado no Ideb, na

Provinha Brasil e por alcançar níveis bons de aprendizagem, considerados índices de

sucesso no processo de alfabetização, que compreende o período do 1º ano ao 3º ano do

ensino fundamental. Esses primeiros anos funcionam na modalidade de ciclo, chamado

de Bloco Inicial de Alfabetização – BIA, caracterizado por uma concepção de

alfabetização processual e não há retenção da criança até o 3º ano.

Interessou-nos investigar também: como as professoras trabalham as narrativas

em sala de aula? Como as crianças se relacionam com a experiência desenvolvida pelas

professoras “contadoras de histórias”? E quais ocasiões em que as histórias são

contadas? Eram utilizados recursos visuais, cênicos ou performáticos? As professoras

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

2528ISSN 2177-336X

ampliam e desenvolvem o trabalho com as narrativas por meio de outras atividades?

Quais os elementos presentes na expressão oral e ou escrita das crianças nas atividades

produzidas após a contação de histórias?

Os sujeitos da pesquisa foram as professoras que atuam na biblioteca escolar e as

crianças do 1º ao 5º ano do ensino fundamental. Em situações coletivas e pontuais, as

professoras regentes, equipe gestora e a comunidade escolar participaram também na

condição de sujeitos da pesquisa. Os instrumentos utilizados foram: observação

participante, entrevistas semiestruturadas, diálogos informais e oficinas de contação de

histórias.

As narrativas e as crianças que criam

E o que a criança cria? Não se sabe. Não se prevê. Mas percebemos que as

criações fluem, explodem e manifestam-se como formas de expressão do desejo e das

emoções dela. A narração desencadeia múltiplos processos de imaginação e de

subjetivação. A contemplação dos signos que vão se formando ao longo da narrativa, as

surpresas, os sustos, expectativas e encantamentos vão se configurando como zonas

abertas de constantes interrogações e deslumbramentos. Quando a professora perguntou

ao José:

Professora Márcia: - Que parte mais gostou da história dos “fantásticos

livros voadores do Sr.”?

José: - Da hora em que ele voa com os livros.

Professora Márcia: - Por quê? O que aconteceu com ele?

Maria:- Ele morreu.

José: - Não importa. Gostei que ele estava velhinho voando no céu.

Professora Márcia: - Que mais?

Joana: - Gostei da hora do redemoinho.

Mariana: - Gostei da hora que os livros estavam doentes porque

ninguém lia.

Professora Márcia: e aí, o que aconteceu com eles?

A professora tentava conduzir as crianças em direção à interpretação ao

enredo central da história.

Fernanda: - Ele começou a ler o livro e o livro foi respirando melhor.

Felipe: - Depois o livro nem precisava de aparelhos. Estava ótimo pronto

para ser lido por outras pessoas.

José: - As Crianças é que iam ler os livros. Adultos não gostam de ler

livros que adoecem. (e a professora prossegue)

Professora Márcia: - Mas por que ele ficou velhinho?

Cleide: - Porque o tempo passou tia.

José:- Será que ele conseguiu ler todos os livros da biblioteca?

Professora Márcia: - O que vocês acham será que ele leu todos os livros da

biblioteca?

Mariana: - Acho que sim. Pois ele estava muito velhinho.

Eduardo: - Ah, ele poderia ler os livros que ele gostava mais de uma vez...

Aí não ia dar tempo.

Mariana: - Acha que ele era igual a você que repete um livro mil vezes

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

2529ISSN 2177-336X

Professora Márcia: - Psiu. Não tô conseguindo ouvir os colegas. Diga,

Manuela? O que mais gostou na história?

Manuela: - A hora em que tudo fica colorido. Como se tivesse acontecido

uma mágica.

Professora Márcia: - Será que houve uma mágica?

Bruno: - Houve. Os livros eram mágicos.

As crianças parecem não se curvarem ao movimento de interpretação da

professora. Novos elementos da narrativa, como os personagens e vivências, emoções e

desejos das crianças surgem em suas falas. As imagens poéticas do enredo parecem

conduzir a imaginação e o pensamento a sobrevoos importantes para as crianças e

incontroláveis para a professora.

O trabalho com a linguagem poética detém uma potência interrogativa que não

se deixa sucumbir às interpretações de referência objetiva nas narrativas. Outras

interpretações emergem e ganham relevância para a criança. A despeito da boa vontade

e da intencionalidade do professor, as crianças subvertem o enredo em busca de outras

possibilidades para as histórias. Em função da incompreensão ou por força da imagem,

as crianças são compelidas a buscarem outras possibilidades de entendimento da

narrativa. Possibilidades essas que dialoguem com suas questões subjetivas e com toda

a emoção do momento. Vejamos o trecho de Letícia:

Pesquisadora: Então quer dizer que gostou da parte em que a “moça”

aparece?

Letícia: - É, Gostei. Porque ela parece uma princesa.

Pesquisadora: - E como é uma princesa?

Letícia: - Tem coroa, vestido grande. O cabelo com um arranjo lindo.

Pesquisadora: - Hum, acha que parece com a moça?

Letícia: - Acho. Mas a moça do livro não tem nada disso.

Pesquisadora: - Mas parece?

Letícia: - É parece. Mas não tem vestido, nem a coroa, nem o cabelo pra

cima. É mas não tem nada de princesa. Não sei porque achei ela

parecida.

Pesquisadora:- Não tem coroa, nem cabelo, nem vestido, mas você achou

parecida.

Letícia: - É.

Ficou olhando para a tela em silêncio e depois interveio:

Letícia:- Sabe, tia, ela não tem nada de princesa, mas eu achei parecida.

Na semana seguinte, Letícia cumprimenta a pesquisadora dizendo:

Letícia: - Oi, tia. Sabe a moça do livro do Sr.... Lembra que eu disse que

ela parecia com princesa, mas não tinha nada de princesa.

Pesquisadora: Lembro. Claro que lembro.

Letícia: - Ela não tem nada de princesa, tia, mas tem jeito de princesa.

A cena da narrativa marcante para a Letícia foi a da moça carregada pelos livros.

Uma imagem poética bonita e sugestiva. A primeira hipótese era a de que para Letícia,

“os livros” teriam sido o elemento causador da empatia. Porém, na resposta, “os livros”

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

2530ISSN 2177-336X

se quer apareceram. Mas um outro elemento se destacou: a ligação, feita por Letícia,

entre a moça e uma princesa. As princesas parecem transitar no universo imaginativo

das narrativas de uma garota de 8 anos. Mas quando exploramos os aspectos de

semelhança, percebemos que os aspectos citados por ela relacionavam-se à vestimenta e

aos assessórios utilizados pela princesa que não estavam presentes na moça carregada

pelos livros. No momento em que repetimos a sua resposta de modo que ela a ouvisse

novamente, lançamos Letícia em um lugar de dúvida e de inquietação, como quem

pergunta: “qual seria então a semelhança entre a princesa e a moça”?

Na semana seguinte, a pergunta provocativa retorna junto com o “bom dia”: a

pergunta e uma resposta. Uma resposta muito procedente. Uma resposta intensa em

relação ao nível de abstração e de associações que possivelmente ela, a pergunta,

engendrou no pensamento de Letícia. Nesse ponto concordamos com Kohan (2012, p.

20) quando afirma que: “não há perguntas boas ou ruins, há uma relação com o

perguntar que pode propiciar ou limitar o caminho do pensar. Trata-se de criar as

condições para um perguntar tão intenso, potente e alegre quanto possível”.

O signo parece que faz um percurso que vai da narrativa, suscita a imaginação e

o pensamento e chega às produções de significado e de sentido. Os signos forçam a

imaginar. No desenvolvimento das ações do enredo, personagens, situações e,

principalmente, emoções vão emergindo e se ampliando. A complexidade da narração

reside na complexidade das perguntas e questões que surgem a partir dos assombros e

das novidades vivenciadas por meio da narrativa. A narrativa dialoga com sentimentos,

vivências e contradições, que colocam a imaginação em movimento e a imaginação, por

sua vez, coloca o pensamento em movimento.

A cena de Letícia, tal como outras que se apresentaram, trouxe para o âmbito de

nossa pesquisa as seguintes questões: qual a relação entre imaginação, pensamento e as

narrativas? Como as narrativas operam sobre as crianças a ponto de criarem modos de

imaginar e de pensar? Quais as inter-relações entre essas duas operações cognitivas: o

imaginar e o pensar? Onde elas se tocam? Se unem? Se distanciam?

Para Vygotsky (1998, 2006), um dos processos mais importantes do

desenvolvimento humano é a imaginação, pois possibilita a flexibilização dos processos

de constituição de significados. A partir da imaginação, nossos pensamentos e ações,

antes regidos pelos significantes passam a ser regidos pelos significados, o que

representa uma “ancoragem” para a construção do pensamento abstrato. E, a partir do

nosso desenvolvimento, a construção dos significados pode desprender-se do concreto,

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

2531ISSN 2177-336X

formando os sistemas de significação que constituem os conceitos científicos e

imaginários e as lógicas que configuram e dão sentido a nossa visão de mundo.

Quando Vigotski (1993) analisa o papel do brinquedo no desenvolvimento das

crianças aponta para a relação entre o pensamento e o lúdico que, no caso de nossa

discussão, pode ser comparado ao aspecto simbólico-emocional presente nas narrativas:

Sob o ponto de vista do desenvolvimento, a criação de uma situação de uma

situação imaginária pode ser considerada como um meio para desenvolver o

pensamento abstrato. (...) A essência do brinquedo é a criação de uma nova

relação entre o campo do significado e o campo da percepção visual – ou

seja, entre situações no pensamento e situações reais (VIGOTSKI, 1930-

1998, p. 136).

Portanto, as narrativas operam na imaginação das crianças a partir de sua

significação, ou seja, de seu conteúdo simbólico, transversalizado por seus conteúdos

afetivos, expressos, por Vigotski (1993), na unidade cognição-afeto, por ele tão

enfatizada. As narrativas propõem situações imaginárias semelhantes a um brinquedo. A

criança quando brinca, por vezes, miniaturiza suas relações com o mundo e com as

pessoas, bem como engendra na brincadeira seus conteúdos afetivos. A cada nova

manuseio, a cada novo arranjo com os brinquedos, novos processos de significação

surgem, podemos dizer que novas ligações entre os planos do pensamento e da emoção

se constituem. Talvez por isso, o brincar de novo, o fazer de novo, a busca pela

novidade conduz às sucessivas repetições da mesma brincadeira. A repetição parece ser

o cerne da brincadeira da criança: nada lhe dá mais prazer do que “brincar outra vez”,

começar tudo de novo, desde o início, a mesma brincadeira, que é outra, a bem da

verdade.

Com relação às narrativas, percebemos também esse desafio que a repetição

coloca no ordenamento do pensamento e da emocionalidade das crianças. Os aspectos

de significação e de simbolismos presentes nas narrativas mobilizam as crianças em

torno da ação do ler de novo, ouvir de novo, como forma de apreender e experienciar, a

partir dos meandros da linguagem, o translado para o mundo simbólico e poético por

elas construído.

Por vezes, as crianças dialogam e recriam trechos de livros lidos, inserindo-os

em outros contextos:

Leonardo (na fila, observando a capa de um livro):- Você parece esse aqui.

Tiago: - Eu não, eu sou esse aqui.

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

2532ISSN 2177-336X

Leonardo: - Não, você tem olho esbugalhado!

Tiago (apontando para a capa de outro livro): - Nada. Eu sou esse aqui: um

guerreiro lutador de grandes aventuras. Ninguém me vence, nem mesmo

o dragão de mil cabeças. Lucas: - Eu peguei esse aqui ô (mostra o livro). Era uma vez Dom Quixote!

Rubens: - Pois eu prefiro o livro de “era uma vez Rubens Marques”, um

lutador de FWC.

Camila: - Que legal! Dona bruxa, Dona Bruxa!

Professora Márcia: - Você conhece esse livro?

Camila: Meu irmão levou pra casa e leu pra mim.

Professora Márcia: - e gostou?

Camila: Gostei. Só não gostei da “carona” da bruxa na capa!

Professora Márcia: - Mas ela é tão simpática!

Camila: É não, tia. Parece tá olhando pra gente, pra pegar e fazer uma

sopa.

Luisa: - Eu queria o livro das duas possibilidades.

Letícia: - Qual livro?

Luisa: - Aquele que a tia contou na semana passada.

Letícia: - O dos monstros?

Luisa: - É. Eu gostei daquela história das “duas possibilidades”. Tudo meu

agora eu penso nas duas possibilidades...

Letícia: - Você é doida mesmo...

O último fragmento refere-se ao livro “Quando nasce um monstro”, uma história

contada pelas professoras da biblioteca. No desenrolar do enredo, os fatos narrados em

torno do nascimento do monstro e demais acontecimentos são apresentados sempre sob

a ótica de duas possibilidades, observem o fragmento:

Quando nasce um monstro

existem duas possibilidades

ou é um monstro DAS-FLORESTAS-DISTANTES, ou

é um monstro DEBAIXO-DA-SUA-CAMA

Se é um monstro DAS-FLORESTAS-DISTANTES, tudo bem. Mas se é um

monstro DEBAIXO-DA-SUA-CAMA, existem duas possibilidades, ou ele

come você, ou

Vocês ficam amigos e você o leva para a escola.

Se ele come você, tudo bem.

Mas se você o leva para a escola, existem duas possibilidades- ou ele senta

quietinho, faz toda a lição e se torna o primeiro monstro a jogar no time da

escola, ou

Ele come a diretora

(...)

(TAYLOR, 2009, não há indicação de páginas)

Na narrativa, os acontecimentos e façanhas do monstro são narrados sempre a

partir da lógica de que existem para os fatos sempre duas possibilidades. Essa lógica se

estende às crianças como uma forma de operar o pensamento, como expressão de um

modo de pensar, já que a interpretação da história pelas crianças torna-se mais exigente,

pois depende do entendimento das opções apresentadas e da opção escolhida, pois é a

opção escolhida que dá seguimento ao enredo da história. As possibilidades

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

2533ISSN 2177-336X

apresentadas na narrativa são engraçadas e interessantes, a imaginação das crianças

participa intensamente desse processo de pensamento, baseado na construção das

possibilidades, como também participa intensamente da interpretação das opções

escolhidas e das ilustrações. Essa brincadeira de pensar e imaginar possibilidades teve

início na hora em que a professora Sônia contava a história:

Professora Sônia: - Ou ele se apaixona por ela ou...

Juliana: Tia, por que ele se apaixona por ela?

Professora Sônia: - Porque era uma das possibilidades.

Heloisa: - Por que ela vira uma monstra?

Júlio: - Porque eles se apaixonam?

Marcelo: - Ele deu “uma olhada daquelas” pra ela, e ela se apaixonou!

(todos riem muito)

Professora Sônia: - O Marcelo está entendendo muito disso.

Marcelo:- Não, tia, eu inventei essa possibilidade. Mas se ele tivesse de

óculos de sol, não seria essa possibilidade, seria outra...

Nesse ponto resgatamos Vigotski (1995), quando define a palavra como uma

unidade de transformação do pensar, na atividade humana, que correspondesse ao

instrumento na atividade prática. A palavra, como signo, ao ser enunciada é constituída

por significados do contexto histórico de seu uso na comunidade, no contexto da

interação para comunicar e no contexto psicológico para construir significações novas, a

partir da relação cognição-afeto.

Um desfecho para a história

Dimensões cognitivas, afetivas e imaginativas – os sentimentos influenciam a

imaginação das crianças, já que todo sentimento tende a manifestar-se em determinadas

imagens concordantes com ele. De modo semelhante, a imaginação é também produzida

por sentimentos (VIGOTSKI, 1987). O material da imaginação é extraído da realidade

externa que as impacta emocionalmente. Portanto, a realidade constitui origem do

material semiótico da imaginação, que por sua vez, é perpassada por pensamentos,

ideias e impressões, demonstrando o caráter indissociável entre pensamento, emoções e

imaginação das crianças, que possibilita as criações.

Há, no movimento imaginativo, uma composição, uma justaposição de significados e

sentidos, algo que cria laços, estremece, explode, cria brechas vazantes, rompe com tudo aquilo

que poderia amarrar o pensamento e as palavras. Nesse sentido, narrar pode ser imaginar. Não

há uma grande narrativa a ser imaginada por nossas crianças, ao contrário, percebemos, neste

trabalho, que as concretizações parciais, inacabadas e cotidianas das crianças apresentam

descobertas, significados e processos de subjetivação manifestos por meio de palavras.

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2534ISSN 2177-336X

As palavras ajudam as crianças a pensar e a imaginar realidades compartilhadas e

também realidades criadas. Imaginar é dar um movimento ao pensamento e aos

sentimentos que permita a geração de novas ideias mentais, com nuances lúdicas no

pensamento.

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