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O CORPO NA PEDAGOGIA: O MOVIMENTO DA CRIANÇA E A LEITURA CORPORAL DA PROFESSORA RESUMO: Este painel objetiva analisar três pesquisas inspiradas no trabalho de Wilhelm Reich, autor que nos convida a refletir sobre as inúmeras dimensões da subjetividade humana. São trabalhos que propõem uma visão ampliada de formação docente pautadas num conhecimento pessoal e prima pelas relações no contexto da sala de aula tendo em vista a complexidade do vínculo entre a criança e os adultos que a educam. Independente de qualquer argumento contrário, reconhecemos que o atual contexto tem promovido o surgimento de propostas diversas compromissadas em gestar uma consistente formação para professoras, principalmente de crianças. Essa é a preocupação que move a organização desse Painel: a educação da criança e os profissionais responsáveis por elas. A pesquisa de Leonice Matilde Richter evidencia o corpo da criança, ao analisar as concepções e práticas presentes na organização do trabalho pedagógico quanto ao movimento corporal das crianças de cinco anos de idade. O trabalho de Ângela Rodrigues Luiz evidencia o corpo da professora, tendo em vista que o corpo revela os meandros e as curvas da história pessoal. Como revela Reich, o processo histórico dos indivíduos, na sua relação com os outros, ao expressar as emoções e pensamentos, percorre a estrutura corporal, concretizando-se ou não em um enrijecimento dos músculos, o que resulta em marcas corporais. Assim, toda rigidez muscular contém a história e o significado de sua origem. Tendo como meta principal uma reflexão sobre a formação do profissional responsável pelas primeiras experiências escolares das crianças, este painel coloca em destaque, através do texto “a formação do pedagogo e sua percepção da criança” (Maria Veranilda Mota), a preocupação com a formação do pedagogo. Este painel afirma a complexidade da formação do professor nos primeiros anos escolares a qual deve integrar subjetividades e objetividades do mundo vivido. Palavras-chave: Corpo, Movimento, Pedagogia XVIII ENDIPE Didática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira 2945 ISSN 2177-336X

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O CORPO NA PEDAGOGIA: O MOVIMENTO DA CRIANÇA E A LEITURA

CORPORAL DA PROFESSORA

RESUMO: Este painel objetiva analisar três pesquisas inspiradas no trabalho de

Wilhelm Reich, autor que nos convida a refletir sobre as inúmeras dimensões da

subjetividade humana. São trabalhos que propõem uma visão ampliada de formação

docente pautadas num conhecimento pessoal e prima pelas relações no contexto da sala

de aula tendo em vista a complexidade do vínculo entre a criança e os adultos que a

educam. Independente de qualquer argumento contrário, reconhecemos que o atual

contexto tem promovido o surgimento de propostas diversas compromissadas em gestar

uma consistente formação para professoras, principalmente de crianças. Essa é a

preocupação que move a organização desse Painel: a educação da criança e os

profissionais responsáveis por elas. A pesquisa de Leonice Matilde Richter evidencia o

corpo da criança, ao analisar as concepções e práticas presentes na organização do

trabalho pedagógico quanto ao movimento corporal das crianças de cinco anos de idade.

O trabalho de Ângela Rodrigues Luiz evidencia o corpo da professora, tendo em vista

que o corpo revela os meandros e as curvas da história pessoal. Como revela Reich, o

processo histórico dos indivíduos, na sua relação com os outros, ao expressar as

emoções e pensamentos, percorre a estrutura corporal, concretizando-se ou não em um

enrijecimento dos músculos, o que resulta em marcas corporais. Assim, toda rigidez

muscular contém a história e o significado de sua origem. Tendo como meta principal

uma reflexão sobre a formação do profissional responsável pelas primeiras experiências

escolares das crianças, este painel coloca em destaque, através do texto “a formação do

pedagogo e sua percepção da criança” (Maria Veranilda Mota), a preocupação com a

formação do pedagogo. Este painel afirma a complexidade da formação do professor

nos primeiros anos escolares a qual deve integrar subjetividades e objetividades do

mundo vivido.

Palavras-chave: Corpo, Movimento, Pedagogia

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

2945ISSN 2177-336X

A FORMAÇÃO DO PEDAGOGO E SUA PERCEPÇÃO DA CRIANÇA: UMA

LEITURA REICHIANA

MOTA, Maria Veranilda Soares

Universidade Federal de Viçosa - UFV

RESUMO: Este texto objetiva, a partir de pesquisas já realizadas, apontar elementos

para a formação do professor, no sentido de evidenciar subjetividades no processo de

educação das crianças. Isso se traduz no sentido de buscarmos referenciais para

percebermos a criança em sua complexidade que se apresenta primeiramente na

visibilidade do seu corpo. As reflexões contidas neste trabalho resultam de um processo

de conhecimento que se iniciou há vários anos no contato com o pensamento de

Wilhelm Reich, autor que nos convida a refletir sobre as inúmeras dimensões da

subjetividade humana. Reich é considerado o autor das contribuições mais originais do

movimento freudo-marxista, preocupado em compreender a relação entre consciência e

a existência social. No impulso dessa ideia, nas primeiras décadas do século passado,

Reich caminha por trilhas diversas chegando a compreensão da unidade entre corpo e

mente. O que trazemos para discussão é a formação do profissional responsável pela

educação das crianças, que se dá no Curso de Pedagogia. Tendo em vista as proporções

deste trabalho e a base teórica proposta, propomos indicações que podem interferir na

formação dos futuros educadores, que se encontram nos cursos de pedagogia.

PALAVRAS-CHAVE: Pedagogia, criança, professor

Proposições Iniciais

Pensar a formação dos professores responsáveis pela educação das crianças, ou

seja, para atuarem na educação infantil e para os anos iniciais do Ensino Fundamental,

tem sido tema de educadores preocupados com os rumos da educação para todos os

níveis de ensino, da Escola básica ao Ensino Superior. Por ser este profissional

incumbido de fazer a iniciação dos indivíduos no meio acadêmico, deveria ele torna-se

sujeito central das preocupações educacionais no momento atual. É no curso de

Pedagogia que ele está sendo formado. E eis a questão central: formar este professor

consciente de que ele desenvolve uma atividade intencional, que ele cria, ou não, as

condições para o desenvolvimento pessoal e social de crianças, seres em pleno processo

de construção biológica, mental, emocional.

As reflexões contidas neste trabalho resultam de um processo de conhecimento

que se iniciou há vários anos no contato com o pensamento de Wilhelm Reich, autor

que nos convida a refletir sobre as inúmeras dimensões da subjetividade humana.

Parece-nos ser relevante apontarmos propostas que aborde a formação docente tendo em

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

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pauta a subjetividade. A formação de professores vem sendo, desde a década de

noventa, discutida com afinco, e as inúmeras discussões levam-nos a crer que os

educadores, como afirma Kupfer (2012, p. 17), “padecem justamente da falta de

qualquer pauta, ao mesmo tempo em que seguem pedaços de variadas tradições, sem ter

ideia do que estão fazendo”. Dito isso, não significa negar o esforço de diversos

educadores em formular propostas formativas visando a melhoria da educação. No

entanto, não podemos perder de vista que a educação das crianças é tarefa essencial,

primordial para qualquer mudança.

O que trazemos para discussão é a formação do profissional responsável pela

educação das crianças, que se dá no Curso de Pedagogia. Vale perguntar sobre o aluno

de pedagogia e dos seus professores, sobre a formação que estamos sedimentando nos

cursos de pedagogia.

Tendo em vista as proporções deste trabalho e a base teórica proposta, algumas

indicações que possam interferir na formação dos futuros educadores, que se encontram

nos cursos de pedagogia, precisam ser apontadas. Primeiramente, as pesquisas de Gatti (

2009 ), Pimenta (2014), Marin (2014) indicam dados de uma realidade com diversas

insuficiências nos atuais cursos de Pedagogia brasileiros em relação à formação de

professores da educação infantil e séries iniciais. As análises evidenciam que a

formação dada no curso de Pedagogia, em sua grande maioria se mostra superficial,

fragmentada e dispersiva. Ao egresso da Pedagogia deveria pressupor o exercício do

processo alfabetizatório, no sentido paulofreireano, onde o ato de escrever e ler é, antes

de tudo, aprender a ler o mundo, levando o alfabetizando se conscientizar da realidade à

sua volta. Como coloca Freire (2002, p. 14), “a alfabetização e a conscientização jamais

se separam”. Vale ressaltar que legalmente o profissional responsável por esse processo

é o professor que cursou pedagogia. Como, então, garantir essa formação diante da

realidade evidenciada pelas pesquisas? E ainda, diante das Diretrizes Curriculares

Nacionais para o Curso de Pedagogia (BRASIL, 2006) que exige uma formação

abrangente envolvendo diferentes conhecimentos? Pimenta (2014) explicita críticas ao

amplo, disperso e impreciso perfil do egresso definido pelas DCNs, bem como

a indefinição do campo pedagógico, a dispersão do objeto da

pedagogia e a redução da pedagogia à docência. Consequentemente,

esses cursos, em sua maioria, não estão dando conta de formar, nem o

Pedagogo e, tampouco, o professor para os anos iniciais da Educação

Básica e para a Educação Infantil (p. 7).

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

2947ISSN 2177-336X

Como já afirmado, o profissional da pedagogia é o responsável pelas primeiras

experiências escolares das crianças, pelo aprendizado básico, onde a leitura e a escrita,

elementos fundamentais para o aprendizado de todas as disciplinas escolares, são

construídas. Isso faz da alfabetização inicial um momento de suma importância na vida

do aluno, já que é nesse momento que se instalam as bases de toda a aprendizagem

escolar. Diante de uma formação fragmentada como encontrar espaços para trabalhar a

dimensão subjetiva deste profissional?

Contudo, é fato: o profissional da educação infantil e anos iniciais do Ensino

Fundamental precisa de uma formação ampla e concreta, individual e coletiva. As

pesquisas denunciam a frágil formação dos cursos de Pedagogia. Formamos professores

sem uma compreensão real da criança, sem o entendimento da dimensão corporal dos

processos ensino-aprendizagem, ou seja, não se conhece a mediação das propriedades

estruturais e funcionais do sistema nervoso, especialmente o cérebro. Leonor Guerra e

Ramon Cosenza (2011, p. vii) afirmam: “Mais do que intervir quando ele [cérebro] não

funciona bem, os educadores contribuem para a organização do sistema nervoso do

aprendizado e, portanto, dos comportamentos que ele apresentará durante a vida. E essa

é uma tarefa de grande responsabilidade”. Sem saber os professores provocam

transformações no cérebro dos seus alunos, por isso é fundamental que, principalmente

o pedagogo, compreenda como os alunos aprendem, e, isso possibilitará que ele perceba

as melhores condições para o desenvolvimento da aprendizagem. Ao perceber a criança

em sua dimensão corporal, ele poderá ajuda-la a ter um bom fluxo de energia, não

permitindo que situações frustrantes cronifiquem tensões no seu corpo. Isso implica,

também, que o educador conheça seu próprio corpo, condição para desenvolver sua

capacidade de percepção do outro. Esse aspecto complementa a proposição de Libâneo

quando diz que:

somente professores que se transformam em sujeitos cultos, isto é,

sujeitos pensantes e críticos, serão capazes de compreender e analisar

criticamente a sociedade em que vivem, a política, as diferenças

sociais, a diversidade cultural, o interesse de grupos e classes sociais e

agir eficazmente frente a situações escolares concretas. (Libâneo,

2000, p. 36)

Este texto objetiva, pois, a partir de pesquisas já realizadas apontar elementos

para a formação do professor, no sentido de evidenciar subjetividades no processo de

educação das crianças. Isso se traduz no sentido de buscarmos referenciais para

percebermos a criança em sua complexidade que se apresenta primeiramente na

visibilidade do seu corpo.

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

2948ISSN 2177-336X

A criança: uma unidade funcional do corpo e da mente

Wilhelm Reich (1897-1957) é considerado o “autor das contribuições mais

originais ao debate em torno de Marx e Freud... Reich estava interessado, antes de mais

nada, em compreender as razões da defasagem entre a consciência e a existência social”

(ROUANET, 1983, p. 26 e 27). No impulso dessa ideia, nas primeiras décadas do

século passado, Reich caminha por trilhas diversas chegando a compreensão da unidade

entre corpo e mente. Hoje, a unidade entre corpo e mente é, também, objeto de estudo

da neurociência, e apresenta comprovação e atualização da teoria reichiana. Com o

advento de técnicas de neuroimagem como tomografia computadorizada, imagem de

ressonância magnética, avançou-se muito nos estudos do cérebro. O neurocientista

António Damásio tem se destacado nessa área ao estudar as relações entre razão e

sentimento, emoção e comportamento social. Para ele a mente existe dentro de um

organismo integrado. DAMÁSIO (1996, p. 17) sintetiza seu argumento nas seguintes

afirmações:

1) o cérebro humano e o resto do corpo constituem um organismo

indissociável, formando um conjunto integrado por meio de circuitos

reguladores bioquímicos e neurológicos mutuamente interativos (...);

2) o organismo interage com o ambiente como um conjunto; a

interação não é nem exclusivamente do corpo nem do cérebro; 3) as

operações fisiológicas que denominamos por mente derivam desse

conjunto estrutural e funcional e não apenas do cérebro: os fenômenos

mentais só podem ser cabalmente compreendidos no contexto de um

organismo em interação com o ambiente que o rodeia” .

Reich ao constatar que havia uma nítida distinção entre enfermidade psíquica e

enfermidade somática, questiona essa prática e elabora a ideia da identidade funcional

antitética entre os estímulos psíquicos e somáticos. Para ele é a energia biológica que

governa tanto o psíquico quanto o somático. “Bioenergeticamente, a psique e o soma

funcionam condicionando-se mutuamente e ao mesmo tempo formando um sistema

unitário” (1987, p. 291).

Procurando fundamentar essa ideia, ele faz uma profunda pesquisa na literatura

acerca da fisiologia do sistema nervoso autônomo, da química da angústia, da

eletrofisiologia dos fluidos do corpo e do movimento plasmático com protozoários

(BOADELLA,1985, p. 103). Nesse estudo percebe o processo de expansão e contração

desencadeado pelos nervos vegetativos. Identifica a antítese do prazer e angústia, do

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

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parassimpático e simpático, da expansão e contração, do aparelho vital da periferia e do

centro do organismo.

Para um melhor entendimento dessa temática, é válido destacar que o

organismo humano é constituído de dois sistemas nervosos que integram e

regulam suas reações: 1. o sistema cerebrospinal coordena a ação dos músculos

voluntários e a energia dos nervos proprioceptivos e exteroceptivos. É também

responsável pela regulação da tonicidade muscular e pela postura. Os músculos

estriados estão sob controle desse sistema. 2. O sistema nervoso vegetativo ou

autônomo regula alguns processos corporais básicos como a respiração, circulação,

pulsação cardíaca, digestão, excreção, atividade glandular e reações das pupilas. Os

músculos lisos estão sob seu controle e sua ação não é voluntária.

Esses conceitos são fundamentais na explicação do como funciona o

metabolismo energético do corpo, já que a excitação biológica ocorre através do sistema

nervoso autônomo. Este sistema consiste de dois conjuntos de nervos que funcionam

antiteticamente: o simpático e o parassimpático. Eles são compostos de nervos e

gânglios – células nervosas ligadas a todos os órgãos através de finas fibras - que

governam as fontes vitais involuntárias. Os gânglios do parassimpático estão

localizados principalmente no cérebro e na pélvis “nas duas extremidades do organismo

onde se situam as zonas erógenas e onde é importante o contato com o meio ambiente”

(BAKER, 1980:34). Os gânglios do simpático estão principalmente localizados no

abdômen e peito.

O sistema nervoso parassimpático, com a função da expansão - em direção ao

mundo, entra em ação quando há tensão, prazer. Inversamente o sistema nervoso

simpático, com a função de contração - retirada do mundo para dentro de si mesmo, é

acionado quando o sangue foge da periferia e aparece a palidez, a angústia e a dor. Na

experiência do prazer, Reich (1987:246) observa as seguintes características: os vasos

sangüíneos se dilatam na periferia, a pele se torna corada, o coração se expande, a

pulsação é calma e cheia, o sangue é impelido através de vasos largos, a expansão

funciona como excitação sexual. No estado de angústia observa-se ocorrer exatamente o

contrário: há palidez, contração dos vasos sanguíneos, desprazer, o coração se contrai e

bate rápida e fortemente, o sangue é impelido através de vasos estreitos, os vasos

contraídos causam uma congestão do sangue na direção do coração, os fenômenos

instintivos devido à contração funcionam como angústia.

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

2950ISSN 2177-336X

No encadeamento dessa discussão, Reich assegura que o desequilíbrio da

sensação somática interfere simultaneamente na autoconfiança e na unidade do

sentimento do corpo. É essa unidade que proporciona conexões com o mundo. Em

suma, é a energia biológica que governa tanto o psíquico quanto o somático. Isso

significa que as atitudes musculares e as atitudes do caráter têm a mesma função no

mecanismo psíquico, podendo substituir-se e influenciar-se mutuamente. Não é, pois,

admissível separar os processos psíquicos e somáticos.

O conhecimento desta teoria permite uma compreensão da criança em sua

visibilidade biológica, corporal, emocional, social.

A percepção docente e a visibilidade corporal da criança

A discussão ora empreendida conduz ao entendimento de que o profissional

destinado a trabalhar com a criança, requer uma formação que conduza a uma percepção

da criança, para ajuda-la se desenvolver sem grandes bloqueios. Reich exalta a

necessidade de transformarmos radicalmente a maneira de educar as crianças, com a

esperança de um processo educacional que trabalhe as características básicas do conflito

entre as expressões emocionais inatas da criança e as características próprias à estrutura

mecanizada e encouraçada do homem. Para isso o educador - a quem Reich faz

referência como o "educador do futuro" - precisa aprender a interpretar a linguagem das

expressões emocionais naturais da criança e aprender a lidar com o meio social, restrito e

amplo, na medida em que este se opõe a essas expressões (REICH,1986). É necessário,

portanto, deixar a bioenergia fluir livremente e assim aumentar a motilidade do corpo, do

pensamento e da ação .

A vida está em constante movimento e, segundo Reich, é o movimento que vai

delimitando o modo como pulsamos. Por isso cuidar da condição energética da criança é

cuidar também da condição em que o caráter vai se formando. O caráter está baseado no

modo como a educação foi vivenciada e no jeito como reagimos ao processo

educacional. É necessário construir uma base energética mais saudável sobre a qual o

indivíduo possa aprender a preservar as suas funções naturais. Para tanto, é fundamental

compreendermos a base energética do processo de desenvolvimento do organismo

humano.

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

2951ISSN 2177-336X

Como já foi elucidado neste trabalho, a preocupação com a energia humana torna-

se basicamente a grande matriz do pensamento reichiano. Sua preocupação é com o livre

metabolismo energético, a base de um organismo sadio. Devido à educação dada desde os

primeiros minutos da vida, poucos indivíduos percebem, no próprio organismo, o

metabolismo energético, bem como pouco se sabe da existência e dos efeitos desse

metabolismo no organismo humano.

Lamentavelmente a organização social contemporânea - o ambiente familiar,

escolar e social - frequentemente se opõe às necessidades de movimento das crianças.

Em nossa sociedade as perturbações, as repressões na primeira infância são

consideradas como algo normal e necessário. Apesar de estudos anunciarem que o ato

de aprender é relacional, já que aprendemos com os outros, com o conhecimento

produzido, consigo mesmo, a escola ainda se centra numa concepção de aprendizagem

vinculada a memória e a reprodução de saberes. Associado a esse drama, ainda está o

fato da escola ressaltar predominantemente as deficiências dos alunos, em vez de

valorizar e incentivar as capacidades já desenvolvidas.

A educação autoritária continua a prevalecer apesar das muitas teorias que

apresentam maneiras diferentes e melhores de se fazer educação. Contudo, ao levarmos

em conta que é importante a experiência que a criança tem do mundo, iniciada na

experiência do seu próprio corpo, saberemos que as necessidades emocionais das

crianças devem ser consideradas no ambiente escolar. Estar atento às perturbações no

funcionamento da criança, é possível intervir e impedir a cronificação dos bloqueios

físico-emocionais. Por isso ao professor se deveria dar uma formação que possibilitasse

o conhecimento da criança. Ele poderia, então, ajudar a criança a manter um bom fluxo

de energia, a sentir o seu corpo livre, a respirar reguladamente. O próprio REICH (1983,

p. 57) assim se expressa: “Precisamos assumir que educar crianças saudáveis não será

simples nem fácil, mesmo quando as funções básicas de saúde sejam perfeitamente

conhecidas.” Por isso, ao se tratar de crianças, a tarefa principal a ser exercida é

desviar o interesse de uma humanidade sofredora de prescrições

infundadas para a criança recém-nascida, a eterna „criança do futuro‟.

A tarefa é salvaguardar suas potencialidades inatas para que

encontrem o caminho. Assim a criança (...) é o princípio funcional

comum de toda a humanidade, passada, presente e futura. Ela é,

devido à sua plasticidade e por ser dotada de ricas potencialidades

naturais, a única esperança viva que resta neste holocausto do inferno

humano. A criança do futuro como o centro da atenção e do esforço

humano é a alavanca que novamente unirá a humanidade numa única

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

2952ISSN 2177-336X

comunidade pacífica de homens, mulheres e seus descendentes.

(REICH,1986, p. 223).

As pesquisas de Albertini (1992), Mota (1999), Moyzés (2003), Teixeira (2005),

Bacri (2005), Richter (2006), Lelis (2006), Rodrigues (2007), Oliveira (2008), Pereira

(2010) a partir do referencial reichiano, ressaltam a necessidade de se trabalhar uma

formação que possibilite ao educador tomar consciência de seus processos emocionais e

amplie sua percepção da criança com quem se relaciona. A criança traz consigo

potencial criativo, fé na vida. São mais sensíveis à comunicação do corpo, são capazes

de captar a linguagem corporal da professora valorizando-a, muitas vezes, mais do que a

comunicação verbal.

Com a discussão empreendida, esperamos entender os fundamentos das visões

que estruturam a organização escolar atual, pois, assim como Reich (1981, p.61),

acreditamos que “a organização de uma „nova vida‟ pressupõe o conhecimento das

contradições da antiga.” Por isso os professores, em exercício e em formação, ao

refletirem sua prática, precisam de uma considerável análise das condições sociais e

políticas que influenciam seu trabalho. Mas isso não basta. É preciso uma reflexão sobre

si mesmo. Ter clareza de que estamos situados num universo onde há contínua troca e

interpenetração de todos os fenômenos e que o ser humano como parte deste universo,

vivencia esta mesma dinâmica, é elemento básico para se pensar essa formação. O

homem é um sistema complexo que se inter-relaciona com tudo existente. O ser

humano é, pois, resultado de suas inter-relações, pelas quais, em troca com outros

sistemas energéticos vivencia afeto, rejeição, amor, alegria, tristeza.

Partindo desse pressuposto, demandamos pensar a formação de um pedagogo

que compreenda mais profundamente a criança e seja capaz de contribuir para sua

autonomia.

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2955ISSN 2177-336X

MOVIMENTO EXPRESSIVO: FONTE DE COMUNICAÇÃO DA

CRIANÇA NA EDUCAÇÃO

Leonice Matilde Richter – UFU/FACIP

Resumo: Este trabalho objetiva analisar as concepções e práticas presentes na

organização do trabalho pedagógica de uma instituição pública de educação Infantil

quanto ao movimento corporal das crianças de cinco anos de idade. O propósito é

problematizar a perspectiva de movimento assumida pelos profissionais e como esta

linguagem é explorada no desenvolvimento da criança pequena no ambiente

institucionalizado da Educação Infantil. Compreendemos o movimento a partir do

referencial walloniano e reichiano, como movimento exógeno (passivo), autógeno

(ativo) e o deslocamento de segmentos corporais ou de frações musculares

(expressão/comunicação). Para a coleta de dados, realizamos observações da rotina da

instituição ao longo de um semestre, totalizando 193 horas de acompanhamento,

fazendo uso de registros fotográficos; utilizamos notas de campo; entrevistas com as

professoras da turma; a coordenadora pedagógica e diretora da instituição. As análises

apontam que as professoras compreendem o movimento corporal apenas em sua

dimensão ativa, a qual, não raro, é vista como distração e/ou indisciplina que deve ser

cerceada. O movimento corporal não é assumido como dimensão importante do

desenvolvimento das crianças, assim, no planejamento o tempo/espaço dedicado ao

movimento livre ou orientado é centralmente limitado. Em contrapartida, ao longo da

pesquisa, evidenciou-se a riqueza e criatividade das crianças para encontrar alternativas

para expressarem-se corporalmente. Esses momentos passam despercebidos pelos

docentes. Destaca-se, ainda, como nesta faixa etária a criança faz uso da linguagem

corporal como recurso de comunicação com os demais sujeitos e como elas captam, a

todo o momento, a expressividade corporal das professoras.

Palavras-chave: Educação Infantil. Movimento corporal. Trabalho pedagógico.

Introdução

No Brasil, a industrialização, a urbanização, a explosão demográfica nas

cidades, as mudanças da estrutura familiar, a intensificação da participação da mulher

no mercado de trabalho, o desenvolvimento de pesquisas nacionais sobre a criança,

entre outros fatores, ensejaram, nas últimas décadas, movimentos em favor do

reconhecimento do direito da criança pequena à educação institucionalizada.

Contudo, o momento em que vivemos hoje em nosso país é marcado pelo

divórcio entre a legislação e a realidade. Temos uma tradição cultural e política

assinalada por essa distância e, “até mesmo, pela oposição entre aquilo que gostamos de

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colocar no papel e o que de fato fazemos na realidade” (CAMPOS, 2005, p.27). Assim,

embora se assinale a compreensão do valor das experiências da primeira infância na

Educação infantil como aspecto essencial na qualidade do desenvolvimento cognitivo,

emocional e social da criança e, em longo prazo, para seu sucesso na escola e na vida,

na realidade, ainda, estamos longe de garantir o desenvolvimento completo da criança

como sinalizado do Referencial Curricular Nacional de Educação Infantil (RCN/EI,

1998)

Nosso objetivo no presente artigo é analisar as concepções e práticas presentes

na organização do trabalho pedagógica de uma instituição pública de educação Infantil

quanto ao movimento corporal das crianças de cinco anos de idade. Localizada em uma

região periférica, a instituição, locus da pesquisa, oferece creche e pré-escola, e suas

instalações foram projetadas para esta finalidade. Acompanhamos a rotina de uma turma

ao longo dos cinco meses, entre março a julho de 2005, três vezes por semana, das 7:00

às 11:15. A turma era formada por crianças na faixa etária de 5 a 6 anos de idade, sendo

ao todo 28 crianças, dentre elas, 11 meninas e 17 meninos. Foi realizado entrevistas

com a professora regente, a professora de Educação Física, assim como de

coordenadora pedagógica e diretora da instituição. As observações realizadas no

período em que estivemos presentes na instituição foram registradas em um diário de

campo, além do registro fotográfico. O período de observação na turma selecionada

perfez um total de 138 horas. Ao longo de todos os meses, participamos, por

aproximadamente 193 horas, da rotina da instituição, contabilizando reuniões,

entrevistas e observações.

A compreensão teórica do movimento pautou-se na perspectiva de Wallon (1971;

1975; 1979) e Reich (1999, 2001) que têm indicado para a necessidade do trabalho e o

entendimento do movimento corporal como uma dimensão do processo de

desenvolvimento humano que proporciona o entendimento, a expressão e a

comunicação de significados presentes no meio sócio-cultural.

A pré-escola e o movimento corporal da criança

Pensar a educação e o cuidado das crianças que se encontram na Educação

Infantil é pensar numa fase da vida em que se vivenciam as primeiras experiências

escolares, concomitantemente às expressões afetivas, emocionais e relacionais

extrafamiliares. Tal fato exige a concepção de uma prática pedagógica que conceba a

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criança como um ser que pertence a um contexto sócio-econômico-cultural, possuidora

de uma história de vida e, que apresenta várias dimensões (psicomotora, cognitiva,

afetiva e social) a serem desenvolvidas.

Uma das marcas da Escola Tradicional é a limitação do movimento. Ela é

estruturada em torno da compreensão de que a criança só aprende se o ambiente estiver

organizado em salas de aula, com crianças sentadas em carteiras enfileiradas, corpos

imóveis por várias horas seguidas, onde paire o silêncio profundo. Diante desta

concepção, muitos profissionais adotam na educação infantil, o ranço de uma prática

que já muito questionada no meio educacional, e atribuem que “o papel da pré-escola é

desenvolver hábitos, atitudes, habilidades e comportamentos necessários à sua vida

escolar” (ESTEBAM, 2001, p.23). Nessa percepção, a educação infantil é vista como

espaço para moldar a criança de maneira que esta se encaixe perfeitamente nos

princípios da escola, no ensino fundamental.

Percebemos ser ainda forte a noção de que, para haver aprendizagem, as crianças

devam ser enquadradas em ambientes organizados de modo tradicional, tendo em vista

a disciplinarização dos corpos. Além disso, a educação infantil definida, notadamente

nas últimas décadas no Brasil, como espaço do cuidado e educativo, vem adquirindo,

não raro, conotação propedêutica, particularmente com as crianças de faixa etária de 5

anos, como uma forma de legitimar seu cunho educativo.

O que a criança descobre poder realizar com seu corpo, os

movimentos que gostaria de saber fazer, ou os conhecimentos que

desejaria adquirir, não têm lugar na escola. Tal descoberta é

substituída pelos movimentos “necessários” a uma “boa

aprendizagem”, em especial, da leitura e da escrita (ESTEBAM, 2001,

p.25).

A educação infantil de qualidade deve potencializar o desenvolvimento global

da criança, deve contribuir para que as crianças vivenciem as diferentes linguagens

utilizadas na sociedade, aprendendo a ler essas linguagens e a usá-las para se expressar

(GARCIA, 2001, p. 19). Dentre as linguagens pouco trabalhadas, ou muitas vezes

cerceadas do espaço escolar, está a linguagem corporal, pois o movimento do corpo, via

de regra, é compreendido como bagunça. Segundo o RCN/EI, evidenciam-se, na

educação infantil brasileira, práticas de contenção do movimento, parece haver a ideia

de que o movimento impede a concentração e a atenção. Mas não seria a proibição

excessiva do movimento, a fonte da dificuldade em manter a atenção?

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É muito comum que, visando garantir uma atmosfera de ordem e de

harmonia, algumas práticas educativas procurem simplesmente

suprimir o movimento, impondo às crianças de diferentes idades

rígidas restrições posturais. Isso se traduz, por exemplo, na imposição

de longos momentos de espera - em fila ou sentados - em que a

criança deve ficar quieta, sem se mover; ou na realização de atividades

mais sistematizadas, como de desenho, escrita ou leitura, em que

qualquer deslocamento, gesto ou mudança de posição pode ser visto

como desordem ou indisciplina (RCN/EI, 1998, p.17).

O “movimento”, um dos eixos de trabalho apresentados no RCN/EI, é definido

como essencial para o desenvolvimento das crianças. Nesse referencial, compreende-se

que o movimento para a criança pequena “é muito mais do que mexer partes do corpo

ou deslocar-se no espaço. A criança se expressa e se comunica por meio dos gestos e

das mímicas faciais e interage utilizando fortemente o apoio do corpo” (RCN/EI, 1998,

p.18).

Para Reich (1950) todo movimento de um organismo vivo tem uma expressão

compreensível, isto é, significativa. Para tanto, a linguagem expressiva do organismo

está além da expressão verbal. Segundo Wallon (1975b, p.75) o “movimento, pela sua

natureza, contém em potência as diferentes direções que poderá tomar a atividade

psíquica”. No entanto, o corpo da criança, logo que chega à escola, é limitado de seus

movimentos, pois é compreendido como limitador do processo de desenvolvimento

cognitivo que é assumido como foco central da escola. Contraditoriamente, como

aponta Fernandez (1991), todo processo de aprendizagem depende e é construído com e

no corpo.

Tradicionalmente, de acordo com uma visão racionalista e dualista do

ser humano, considerou-se a aprendizagem exclusivamente como um

processo consciente e produto da inteligência, deixando o corpo e os

afetos de fora; mas se houve humanos que aprenderam é porque não

fizeram caso de tal teoria (FERNANDEZ, 1991, p.47)

A forma como, geralmente, o corpo e seu movimento é percebido no espaço

escolar, em grande parte, decorre das concepções dos docentes que nem sempre tiveram

no seu processo de formação inicial e continuado, atenção a essa temática. Moyzés

(2003) desenvolveu uma pesquisa, por meio da qual realizou um trabalho de

sensibilização e conscientização corporal com um grupo de professoras. Após a

realização desse trabalho, a autora observou uma significativa transformação na prática

pedagógica das professoras, evidenciando-se uma maior interação e contato entre elas e

as crianças.

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Para esta pesquisa, o movimento corporal foi analisado segundo o referencial

walloniano em suas três dimensões: o Movimento Passivo ou Exógeno, o Movimento

Ativo ou Autógeno e o Deslocamento de Segmentos Corporais ou de Frações. O

primeiro, como movimento de equilíbrio, está sob a dependência de forças externas,

principalmente a gravidade, e ocorre desde a vida intrauterina, possibilitando a

adaptação da criança ao meio, ao mundo. São movimentos de respostas, de

compensação e de reajustamento do corpo. Já o movimento autógeno ou ativo refere-se

ao movimento de locomoção e preensão, é a possibilidade de explorar os espaços e

objetos do nosso meio. Ele viabiliza a autonomia para explorar o mundo que nos cerca,

para onde se deseja ir, o que desejamos manusear, conhecer. Envolve, diretamente, a

construção da autonomia do sujeito ao ser explorado (WALON, 1975a).

E o deslocamento de segmentos corporais ou de frações diz dos movimentos de

reações posturais, que se dão mediante o deslocamento do corpo e de suas partes, os

quais se traduzem em atitudes expressivas e mínimas (WALON, 1975a). Estes

apresentam um caráter mais psicológico, ou seja, evidenciam um significado de relação

afetiva que se exterioriza na atitude, no corpo, no movimento de suas frações, que

muitas vezes comunicam muito mais que a fala oral da criança. Dedicamos-nos nas

páginas seguintes à análise dessas três dimensões no contexto da instituição pesquisada

O movimento corporal na organização do trabalho pedagógico

No diálogo tecido entre duas crianças envolvidas na pesquisa, no momento em

que estavam desenvolvendo uma atividade [colorir a imagem de uma pessoa], evidencia

o processo de aprendizagem da expressão do corporal como forma de interação e

comunicação social. Na situação abaixo elas associam o tom da pele à demonstração da

raiva.

João: Você já viu uma cara amarela de raiva?

Pedro: Não, eu já vi cara vermelha de raiva.

João: Não, é que ela também tá com a cara inchada.

[Diante desse diálogo, João, que já havia colorido de amarelo o rosto

do personagem do desenho, pega o lápis vermelho e pinta com muita

força por cima da cor amarela. O colega olha e diz:]

Pedro: Nummm!!

João: Olha que tanto de raiva. (Diário de Campo).

O foco do trabalho da professora é o ensino da leitura e escrita, expresso em

atividades realizadas em sala de aula e registradas em folhas mimeografadas. As

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situações, como o episódio anterior, não eram vistos como processo de aprendizagem e

o corpo e movimento das crianças estava associada à desatenção.

Era comum as crianças, nas terças-feiras, ocuparem lugares diferentes daqueles

ocupados nos outros dias da semana, geralmente, isso era definido pela professora

regente. Mas, em uma terça específica, na aula de Educação Física, que raramente

definia ou trocava as crianças de lugar, uma criança que sempre se sentava no fundo da

sala - já que “não precisa muito de ajuda” segundo a professora regente -, sentou-se na

frente. Todavia, nesse dia, a professora de Educação Física iria ocupar o espaço da sala

de aula. Então, a criança teve que se levantar e voltar para o fundo, para uma das únicas

carteiras disponíveis. Sua expressão facial mostrava seu desagrado e insatisfação (Fotos

1 e 2). Ainda que não possamos definir os sentimentos precisos da criança naquele

momento, a expressão corporal apontava que a situação que estava vivendo não a

agradou, embora não tenha manifestado oralmente. Evidencia-se o quanto, numa cultura

extremamente verbal, presa à fala, mesmo que a criança se expresse nessa idade

intensamente pelo movimento corporal pouco se valorizam essas informações.

A criança envolvida no episódio anterior aparecia ao longo das notas de campo,

sempre em cenas em que é a primeira a responder às perguntas da professora regente.

Segundo avaliação dessa professora, ela estava em um processo adiantado de

alfabetização. Entretanto, em muitas situações (como a anterior), suas manifestações

não eram percebidas, geralmente, retraia-se, ficava calada, ainda que o ocorrido lhe

desagradasse. Não eram percebidos, pois tais questões eram manifestadas pela

expressão corporal.

FOTO 1 e 2: Expressão corporal de desagrado diante da troca de lugares

Fonte: Leonice M. Richter

Durante as observações, procuramos chamar a atenção da professora regente

para o recolhimento/retração dessa criança, mas a professora por estar preocupação com

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a alfabetização, nem sequer percebia o que intencionávamos ao tentarmos induzi-la a

um olhar mais atento para essa criança. Suas respostas referiam-se sempre de modo

satisfatório ao processo “adiantado de alfabetização”. Antônio, segundo ela, era

inteligente, respondia prontamente às suas perguntas, mas a expressão sempre fechada

não era “percebida” pelas professoras ou foco de atenção.

Crianças são mais sensíveis à comunicação do corpo e exprimem suas emoções

e pensamentos por esse meio, são capazes de captar a linguagem corporal do professor

valorizando-a, muitas vezes, mais do que a comunicação verbal. Como destaca Lowen

(1982, p.86), “as crianças estão mais cônscias da linguagem corporal do que os adultos

que, após anos e anos de escolarização, aprenderam a dar mais atenção às palavras e a

ignorar a expressão do corpo”. O corpo fala da nossa história de vida e “fala” não

apenas na infância, mas em todas as fases da vida. Na educação infantil, a valorização

do movimento corporal é ainda mais necessária, considerando que, nesse momento do

desenvolvimento do indivíduo, ele tanto lê quanto se expressa de forma mais acentuada

por meio do corpo. A criança pulsa vida, busca conhecer o mundo, para isso, o

movimento é um elemento essencial.

O corpo é produzido culturalmente, e a escola se constitui em um espaço que

realiza de forma significativa essa função de produção/adaptação dos corpos dos

“educandos”. O corpo, tal como a vida, está em constante mutação, cada corpo, longe

de ser apenas constituído por leis fisiológicas, supostamente imutáveis, não escapa à

história (SANTA‟ANNA, 2000). Entretanto não consideramos que nossos corpos sejam

apáticos e pacíficos, mas, ao contrário, também se manifestam, rebelam-se, encontram

meios de se oporem a esse mecanismo de “normatização”. Durante as observações

realizadas por nós, percebemos significativos momentos de manifestação corporal das

crianças burlando as regras definidas pela professora, elas encontram meios para

movimentar/tocar/brincar de modo variado e criativo. Na foto 3, duas crianças brincam

com os lápis de cor em um momento de silêncio em que a brincadeira estava proibida na

sala e para que não fossem repreendidas elas buscam uma alternativa: escondem as

mãos embaixo da mesa. Estas imagens revelam corpos que interagem, que brincam, que

aprendem, apontando para indivíduos que são influenciados pela história de seu tempo,

mas que também são sujeitos ativos nessa produção.

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FOTO 3 Reação corporal da criança diante da disciplinarização

Fonte: Leonice M. Richter

Hoje, as instituições de educação infantil organizam rotinas em que o tempo para

brincar, para o movimento corporal fica cada vez mais restrito. Assim como, na

pesquisa há uma valorização conflitante dos espaços físicos, uma vez que as crianças

veneram o parquinho e para as professores esse é um espaço para descanso com valor

secundário em termo de aproveitamento pedagógico. O parquinho tão adorado pelas

crianças é, não raro, negado a elas, a ponto de ser alvo de castigo ou premiação, como

notamos nas seguintes falas da professora: “Vai ter [parque], mas depende de como

vocês se comportarem”, “Esse negócio do parque funciona bem!”,

Percebemos que há uma relação de hierarquia inversa da importância atribuída

ao espaço na instituição de Educação Infantil, entre as crianças e os profissionais. As

crianças veneram o parque e os profissionais o assumem como passatempo,

valorizando, essencialmente, a sala de aula, o que indica uma concepção de educação

infantil voltada, notadamente, para a alfabetização. Nas falas das professoras, o parque

aparece como recompensa diante do comportamento e do bom desenvolvimento das

atividades em sala. A fala da professora evidencia a importância dada à tarefa: “Todo

dia da minha aula eu levo vocês ao parque, mas tem que fazer a tarefa direito” (Diário

de campo). Já para as crianças, a expectativa é de vivenciar outras experiências que o

espaço possibilita: “Ah.! eu vou andar, vou correr, vou pular, brincar” (Diário de

campo).

O brincar e o movimento estão muito associados na infância. É comum

observarmos o movimento dar significado ao objeto com o qual a criança brinca, nesse

caso, o movimento é que viabiliza representação do objeto. Isso pode ser observado na

foto 4:

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Foto 4 Movimentos e gestos na representação de objetos: binóculo

Fonte: Leonice M. Richter

A criança utiliza gestos que comunicam o que os objetos que ela está

manipulando estão designando ou ela mesmo realiza movimentos representativos,

tornando-se um “monstro” (FOTO 5) ou “cachorro” (FOTO 6). Dessa dimensão,

observamos o movimento corporal como meio expressivo da criança, utilizado por ela

como elemento importante do mundo da representação, do desenvolvimento do

simbolismo. Ao propiciar momentos do brincar estamos possibilitando à criança o

desenvolvimento de uma expressão corporal.

Foto 5 e 6: Formas de representações corporais realizadas pelas crianças

Fonte: Leonice M. Richter

A criança interage por meio do movimento expressivo com os sujeitos do seu

meio. A organização do espaço que viabilize às crianças comunicar-se pelo movimento

deve possibilitar a ampliação do seu campo de visão, permitindo que vejam seus

colegas da forma mais completa possível. Na turma pesquisada as crianças, geralmente

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“enfileiradas”, veem apenas a nuca umas das outras, essa organização evidencia a

desvalorização dessa forma de comunicação (movimento expressivo).

Noutra situação a Professora lia uma história, enquanto isso, algumas crianças se

entretinham com outras coisas, como Fernando, que ficava brincando com a sombra da

sua mão projetada na mesa (Foto 7), ou Tiago que olhava para a janela e parecia

“ausente”. Já outro grupo estava atento e participativo da atividade proposta, o que

ficava bem evidente pelos gestos e expressões realizados por elas. Num instante da

história, por exemplo, o cachorro, personagem dessa história, pega uma planta e

caminha sobre apenas duas patas, nesse momento, as crianças que estavam prestando

atenção reproduziram corporalmente como imaginavam a imagem dessa cena (Foto 8).

A cena gerou a movimentação dessas crianças, foi justamente nesse momento que a

professora interveio falando e olhando para elas: “vamos prestar atenção”. Em outros

momentos da história em que professora também pede atenção, as crianças riam por que

a menina da história teria dado um beijo em uma flor (Diário de Campo).

Foto 7 Dispersão da criança na contação de história Foto 8 Grupo de crianças se envolve na história

Fonte: Leonice M. Richter

Diante da situação relatada, percebemos que os movimentos e gestos

reproduzidos indicavam a atenção das crianças e não o contrário. Esse grupo de crianças

estava elaborando mentalmente a história e reproduzindo-a corporalmente, ou seja,

construindo conhecimento. Desse modo, essas manifestações eram aliadas da

professora, pois mostravam o aprendizado delas, visto que os movimentos estavam

sendo materializados, diante da docente, o que a criança estava elaborando sobre a

história. Mas, contraditoriamente, é desse grupo de crianças que a professora chamou

atenção. As crianças que estavam quietas e desatentas à história não foram cobradas

pela professora.

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Chegamos a algumas constatações ao longo de nossas observações e de forma

mais específica com esse episódio. Primeiramente, percebemos que, em muitos

momentos, o que o corpo comunica por meio de seus movimentos no espaço escolar

não é considerado, pois passa despercebido pelas educadoras, por isso, não é valorizado.

Em outros momentos, ele é reprimido, porque o objetivo da professora é o “silêncio

corporal”, limitando, assim, o espaço de manifestação dessa forma de comunicação.

Definimos o silêncio corporal como corpos imóveis, que devem calar-se, em que o olhar

se direciona, ora para a professora, ora para a folha de atividade, um corpo que segue as

prescrições anunciadas pela professora.

Considerações finais

O movimento humano é mais que o deslocamento no espaço. Nossos

movimentos diferenciam-se dos demais animais por nossa capacidade de significar

nossos gestos, expressões e posturas. Neste estudo evidencia-se que ainda perdura uma

educação que busca “ensinar” a criança a congelar suas necessidades e manifestações

corporais quando, limitar os movimentos é limitar o seu desenvolvimento.

Percebemos na pesquisa que, em muitos momentos, o que o corpo comunica por

meio de seus movimentos no espaço escolar não é considerado, pois passa despercebido

pelas educadoras, por isso, não é valorizado. Em outros momentos, ele é reprimido,

porque o objetivo da professora é o “silêncio corporal”, limitando, assim, o espaço de

manifestação dessa forma de comunicação.

Os movimentos de reações posturais exteriorizam-se como atitudes e como

mímicas. Este movimento relaciona-se com o íntimo do sujeito, com suas emoções, atua

como fonte de comunicação entre a professora e a criança, é uma forma de linguagem.

Portanto, essa forma de movimento, que está vinculada a uma forma de comunicação

dos seres humanos, os quais atribuem significados às expressões corporais, que, muitas

vezes, passam despercebidas aos nossos olhos de professores, tem muito a contribuir na

compreensão da criança que está notoriamente voltada para essa forma de linguagem.

Referências

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CORPO DE PROFESSORAS: ESPAÇOS DE MÚLTIPLAS DETERMINAÇÕES

Angela Rodrigues Luiz- UFG

RESUMO: No centro de todos os fatos vividos, situa-se o corpo, que pode ser visto e

entendido por um observador atento e interessado. O corpo revela os meandros e as

curvas da história pessoal. Analisar o corpo pode ser um caminho seguro para

compreender o comportamento humano. Nessa direção constituiu-se o investimento do

presente estudo: dar voz ao corpo silenciado de professoras, em especial a que trabalha

com crianças. Para tanto, tomamos como aporte neste estudo uma professora que com

quase três décadas de atuação docente, apresenta em seu corpo marcas corporais

registradas conscientes e inconscientes ao longo de sua vida. Vale ressaltar que nossa

pretensão não está ancorada na análise judicativa do que seria certo ou errado no

ambiente escolar ou com os corpos, contudo perscrutar a história sinalizada na

individualidade da silhueta de professoras incita-nos ao autoconhecimento, à

autopercepção. Destacamos a importância de um olhar mais atencioso para o que falam

os corpos, de modo a vislumbrarmos relações pedagógicas mais gratificantes e

lançarmos indícios para compreensão das marcas corporais das professoras sem, no

entanto, esgotar as possibilidades de interpretação da vida energética e pulsante contida

no corpo.

Palavras-chave: corpo, professora, formação docente

Primeiras Palavras

Referendados pelo pressuposto reichiano de que toda história de vida está

registrada no corpo, dedicamo-nos a perscrutar a história marcada no corpo de

professorasi. Para tanto, tomamos como aporte neste estudo uma professora de

Educação Física que, com quase três décadas de atuação docente, apresenta em seu

corpo marcas corporais registradas conscientes e inconscientes ao longo de sua vida.

Wilhelm Reich (1897-1957), psicanalista austríaco dedicou seu trabalho à

análise das várias manifestações da vida, buscando integrar o homem e sua própria

natureza, e compreendendo a energia como aspecto inerente ao ser vivo. Para ele o

processo histórico dos indivíduos, na sua relação com os outros, ao expressar as

emoções e pensamentos, percorre a estrutura corporal, concretizando-se ou não em um

enrijecimento dos músculos, o que resulta em marcas corporais. Assim, toda rigidez

muscular contém a história e o significado de sua origem.

O encontro com a teoria reichiana foi de fundamental importância para

vislumbrar um caminho investigativo que dá voz a um corpo e sua história. A

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professora que ilustra essas análises graduou-se em Educação Física aos 22 anos de

idade em 1983, e, desde então atua na educação básica e, a partir do ano de 1991,

especificamente nas séries da educação infantil. Os longos anos de atuação docente e o

contato direto com crianças configuram-se como indícios significativos para evidenciá-

la como sujeito de nossa pesquisa. Seu corpo apresenta marcas corporais dimensionadas

por trabalho, família, opções pessoais e interferências sociais, aspectos sinalizados por

Reich (1983) como determinantes da história da vida, marcadamente observáveis e

manifestos no ambiente escolar.

Neste estudo, referendado pelas ideias de Reich, intentamos atribuir análise e

significado às marcas corporais manifestas no corpo de uma professora com o objetivo

de situá-lo como espaço de registro das diferentes dimensões educativas.

Compreender as marcas corporais em professoras tornou-se possível à medida

que articulamos as marcas visíveis com a história relatada. Assim, assumimos como

procedimentos metodológicos o registro fotográfico, o audiográfico e a observação. O

registro fotográfico e as observações aconteceram em momentos concomitantes, com o

objetivo de identificar padrões ou repetições de posturas que pudessem ser analisadas

como marcas corporais. Após o período de observação, mostramos à professora suas

fotografias e, com base em um roteiro, registramos a verbalização de suas impressões

sobre as fotos, sobre seus trejeitos, feições, silhueta corporal. Nesse momento, a

professora ofereceu elementos de sua história de vida, aspectos que extrapolavam a

dimensão profissional. Em todas as etapas da coleta de dados, mantivemos a intenção de

capturar a feição corporal da professora sem eliminar sua movimentação, sua

espontaneidade em meio à dinâmica cotidiana das atividades escolares.

Interpretações corporais: a leitura teórica e corporal

Educar configura-se como uma atividade complexa, e as professoras dispõem

de registros das transformações políticas e econômicas que incidem sobre sua ação

profissional. Situações socialmente impostas às professoras são refletidas em seus

corpos, ou seja, a situação de desconforto assume conotações de mal-estar, de

síndromes, de doenças, de enrijecimentos musculares.

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O processo de enrijecimento do corpo está presente na escola e incide sobre

educadoras e educandos, compondo uma lógica cíclica em que as professoras imprimem

nos alunos o modelo educacional que vivenciaram, o que, provavelmente, se repetirá

quando esses alunos se tornarem docentes. Logo, devemos atentar e atuar na formação

de professoras para diminuir situações causadoras de bloqueio nos alunos, que evitam o

livre fluxo de energia (Bacri, 2005).

Compreender as marcas corporais, próprias e do outro, constitui um saber

fundamental para qualquer professora, independentemente do conteúdo que ministre ou

do nível escolar em que atue. Nos limites deste estudo, quando atentamos para os

padrões de comportamento, marcas e silhueta de uma professora de Educação Física,

em grande medida, referendamos seu tempo de profissão, suas histórias e conquistas

pessoais, sua constituição familiar, suas vivências político-pedagógicas, suas relações

interpessoais, que podem ser semelhantes ou tomadas de empréstimo por aqueles que

veem seu corpo ser marcado, remodelado, em resposta às situações vividas.

Existe uma diversidade de obras que se dedicam a interpretar o que o corpo

relata. Em razão dos objetivos e das características deste estudo, limitamo-nos a

referendar os estudos corporais de Dychtwald (1984) e Kurtz e Prestera (1989), que dão

crédito e apreciam as contribuições de pesquisadores pioneiros nos estudos corporais,

como Wilhelm Reich e Alexander Lowen. Perceber as marcas corporais configura-se

como um exercício constante de observar corpos, na tentativa de compreender a história

que origina aquela marca e afinar nossa escuta sensível aos relatos nelas contidos.

Após o estabelecimento do primeiro contato com a professora, sujeito de

nosso estudo, passamos à observação minuciosa do comportamento e da movimentação

de seu corpo no espaço. Registramos, por meio de fotos, padrões em seu arranjo

corporal, de modo a caracterizar suas marcas corporais. Cada parte do corpo está ligada

a um determinado sentimento e/ou função orgânica. Desmembrar o corpo humano

constitui um caminho teórico utilizado por pesquisadores e terapeutas, a fim de

promover o descobrimento e posterior integração das partes corporais e seus

relacionamentos, permitindo colocá-lo em um estado de maior harmonia (Dychtwald,

1984).

Observamos, de modo geral, quanto à aparência e imagem física da professora,

pelo uso de roupas aderentes ao corpo e de tecidos transparentes, que seu corpo não

apresenta deformações evidentes. O aspecto vigoroso expresso pelo seu corpo advém da

coerência entre sua história de vida pessoal e profissional, marcada pela manutenção de

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

2971ISSN 2177-336X

um arranjo das atividades diárias, dentre elas, a prática constante de atividades físicas e

a ponderação de suas ações docentes.

A professora tem por hábito utilizar o apito em suas aulas e, a esse respeito,

afirma que se trata de uma estratégia utilizada para amenizar o desgaste nas cordas

vocais, tendo em vista que, ao longo dos anos de profissão, houve um declínio na

eficiência de sua voz, fato que também afeta sua disponibilidade para entoar cantigas e

músicas com as crianças.

A voz constitui um dos aspectos observados por Lowen (1990). Para ele, a voz

está largamente relacionada com o modo de expressarmos a vida contida no corpo, e,

por meio dela também alcançamos e afetamos o outro. Estabelecemos contato físico por

meio do toque e, a voz constitui um modo distinto de contato.

O corpo humano configura-se como um sistema complexo, composto de

muitas partes, exibindo em cada uma a natureza dual de atributos independentes que

resultam em uma totalidade maior. A configuração do todo faz cada corpo ser único,

mas “cada parte, devido à sua posição exclusiva no funcionamento do organismo, revela

algo diferente sobre nossos padrões estruturais, mentais e emocionais” (KURTZ;

PRESTERA, 1989, p. 61).

Ao assumirmos os pés como principal ponto de contato com a superfície

terrestre, passamos a interpretar como os demais segmentos corporais estão dispostos

em relação a eles, favorecendo as condições de movimentação e estabilidade das

diversas funções exercidas pelo corpo humano no espaço. Nas palavras dos autores,

embora em nossa cultura não se dê muita atenção aos pés como a base

sobre a qual toda a estrutura de nosso corpo repousa e como nossa

ligação com o chão, essa complexa rede de nervos, músculos e

tendões é extremamente importante [...] De um modo geral, o modo

como lidamos com a realidade se expressa no contato que nossos pés

têm com o chão (KURTZ; PRESTERA, 1989, p. 66).

Um padrão de postura que observamos no cotidiano da professora se expressa

pela parada com a deposição do peso corporal sobre o pé direito, e o calcanhar esquerdo

quase forma um ângulo perpendicular com o direito. O eixo de gravidade de seu corpo

também se aproxima do pé direito, marcando assim seu ponto de equilíbrio estático.

Conforme enfatiza Hay (1985, p. 129), “um corpo pode ter grande estabilidade numa

direção e ser quase instável em outra”. Para Lowen (1982),

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

2972ISSN 2177-336X

uma pessoa equilibrada está com os pés em bom equilíbrio, o peso

sendo distribuído igualmente entre os calcanhares e a parte

arredondada perto dos dedos. Quando o peso se situa nos calcanhares,

algo que acontece se a postura é mantida com os joelhos trancados, a

pessoa está fora de equilíbrio. Um leve empurrão no peito será o

bastante para fazê-la oscilar para trás, principalmente se estiver

desatenta ao movimento (p. 84).

O pé determina a troca de energia com o chão, e esse intercâmbio com o chão

fornece o senso de ligação com o mundo, ou seja, se sentimos um chão de apoio firme

de realidades genuínas, teremos uma certeza semelhante nas posturas na vida, estaremos

em contato com a realidade (Kurtz; Prestera, 1989).

Durante o período de observação das aulas, visualizamos a execução

conjunta de atividades realizadas pela professora e as crianças. Porém, sua ação docente

não evidenciou a interação ou execução de exercícios que pudessem contribuir para uma

estrutura musculosa. Posteriormente, a professora relatou, durante a narrativa, a

periodicidade na prática de caminhadas e natação, atividades que lhe conferem firmeza

aos músculos e que constituem momentos de exercício físico realizados com a família e

amigos.

Dychtwald (1984) apontou quatro tipos básicos de desenvolvimento das

pernas: fracas e subdesenvolvidas, maciças e superdensenvolvidas, grossas e

subdesenvolvidas, finas e tensas. Pessoas com pernas fracas e subdesenvolvidas

demonstram fragilidade em seu sistema de autossustentação, e, em resultado, têm sua

autoimagem diminuída. Em muitos casos, são forçadas a compensar tal fragilidade com

outras regiões do corpo, apresentando assim firmeza nos braços, pescoço, queixo, olhos

ou no intelecto, em substituição à falta de força e de apoio nas pernas. Pessoas que

apresentam pernas maciças e superdesenvolvidas desenvolvem com êxito a ação de

“segurar-se”, limitando a movimentação brusca e repentina que caracteriza mudança de

posição do corpo ou de opções na vida. O autocontrole e a aptidão para manter-se de pé

colocam a pessoa em uma situação de compulsividade e rigidez.

A professora observada, por sua prática de atividades físicas em associação

com sua postura comedida diante da vida, apresenta pernas que se aproximam à

descrição das pernas maciças e superdesenvolvidas. Tipicamente, mulheres na mesma

faixa etária da professora apresentam uma diminuição da musculatura das pernas,

conferindo-lhes um aspecto atrofiado ou com deposição de gorduras localizadas,

evidenciando o pouco recrutamento dessa parte corporal para a execução de atividades

de força e peso.

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

2973ISSN 2177-336X

Pessoas com pernas de constituição semelhante às da professora demonstram

traços de personalidade rígidos, não se entregando de forma completa e espontânea a

atividades que não apresentem estruturação e controle das situações. A pessoa de pernas

grossas e subdesenvolvidas está congestionada no mundo, sentindo-se incapaz de

lançar-se à frente para iniciar uma ação e para prosseguir de modo súbito (Dychtwald,

1984).

As pernas finas e tensas, em geral, são características de pessoas que não se

movem pela vida de maneira integrada e consciente, apesar do intenso fluxo energético

nessa região corporal que mobiliza a pessoa para a vida sem desenvolver por completo a

graça e fluidez ao mover-se. A rigidez na parte posterior das pernas incide sobre os

diversos tipos de pernas e tal aspecto está diretamente ligado à constante manutenção da

capacidade de autocontrole e a falta de confiança nas pessoas com quem convive. A

crescente individuação da vida na modernidade vem condicionando as pessoas a

enrijecerem-se diante das adversidades e das frustrações, e essa tensão evidencia-se na

rigidez da parte posterior das pernas como um movimento compensatório de

manutenção do arranjo de vida (Dychtwald,1984).

Remetendo-nos ao estudo de Duarte Jr, (1997), podemos visualizar o

enquadramento sofrido pelo corpo nos últimos anos. A carga depositada sobre o

controle das silhuetas corporais tem afastado as pessoas de suas emoções, sensações de

prazer, tem minado suas posturas e condutas naturais. As determinações da mídia sobre

o corpo incidem em grande medida sobre a barriga, sobretudo as femininas,

desrespeitando os princípios relacionados à natureza gestacional das mulheres. O

aumento na metade inferior da barriga pode refletir a maturidade orgânica e funcional

do corpo para o período da gravidez.

Culturalmente, conforme os ditames da mídia moderna, se idealizou um corpo

portador de uma cintura fina e barriga achatada. Muitas pessoas destinam parte de seu

tempo, dinheiro e esforço para reduzir o tamanho dessas regiões corporais.

Historicamente, o uso de espartilhos manteve a barriga feminina em constante aperto.

O corpo da professora observada acumula, em sua barriga ligeiramente

aumentada, a experiência de duas gestações, não caracterizando um excesso de peso. A

barriga, para além da comparação estética, está diretamente relacionada com o processo

respiratório. Normalmente, a barriga expande-se a cada inspiração, ação realizada por

atuação do diafragma, músculo respiratório que separa o tórax do abdômen, mas o

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

2974ISSN 2177-336X

diafragma é também responsável por integrar as duas metades corporais – parte de cima

e parte de baixo – para uma respiração efetivamente natural (Souchard, 1989).

O tipo de respiração pode variar de acordo com a atividade que o indivíduo

execute no momento. Para uma respiração normal, o fluxo de ar entra nos pulmões e no

abdome, expandindo assim a caixa torácica e as paredes abdominais. Contudo, os

padrões comportamentais e de beleza vêm condicionando a respiração a um processo

puramente torácico, comprimindo a barriga, e o músculo diafragma, antes responsável

pela integração entre tórax e barriga, agora, assume o papel de divisor, de barreira física

para a corrente de ar no processo respiratório (Souchard, 1989).

Respirar inadequadamente provoca ansiedade, irritabilidade e tensão. Todavia,

condicionamo-nos a realizar essa tarefa de modo inconsciente. Desde crianças, as

pessoas seguram a respiração para não chorar, tensionam os ombros para trás, enrijecem

o peito e comprimem a garganta para que não se ouça o grito, manobras que incidem

diretamente sobre a limitação do fluxo respiratório e, consequentemente, do fluxo

energético (Lowen, 1984).

Estar em contato com a barriga e aceitar as funções vitais ocorridas nessa

região possibilitam também entrar em contato com sensações de bem-estar promovidas

pela ampliação do fluxo energético, ampliando nossa consciência e sensibilidade em

relação ao próprio corpo. Sentimentos e sensações são oriundos das vísceras contidas na

cavidade abdominal e nos conferem uma consciência fundamental e instintiva.

Constantemente experimentamos a sensação de “frio na barriga”, sentimento

instintivo que tem origem na região abdominal, faz conexões instantâneas com o ritmo

respiratório, e, muitas vezes há uma compressão do tórax, que aciona o sistema nervoso

central e coloca nosso corpo em alerta. Por assim dizer, encontramos nesse exemplo de

sensação o equilíbrio no corpo, pois os três centros de impulso de energia (sistema

muscular, neural e respiratório) estão funcionando harmoniosamente (Kurtz; Prestera,

1989).

Na infância experimentamos, repetidas vezes, essa sensação de “frio na

barriga”, tendo em vista a descoberta do mundo e as infinitas possibilidades de

movimento, de contato e sentimentos que essa descoberta nos proporciona.

Vale atentar para o cotidiano das professoras de Educação Física Infantil e a

promoção de novas experiências para as crianças que ali se encontram. Executar um

movimento não habitual e controlar as sensações de ansiedade, medo e insegurança

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

2975ISSN 2177-336X

torna-se, para as crianças, uma ação mais fácil quando podem contar com o auxílio de

uma pessoa adulta. Podemos dizer que a professora observada conhece o prazer e a

aventura de realizar determinado movimento, e por esse motivo, ela se empenha na

conquista da confiança da criança para a realização do rolamento, da roda, da parada de

mãos, por exemplo, e ao fim de sua execução, pode conferir na sua face a sensação de

satisfação por ter experimentado o movimento. Estar aberto às necessidades sentidas

pelo outro é um exercício constante ao qual as professoras devem atentar-se,

contribuindo para o desenvolvimento das crianças que compõem sua turma.

Registramos a professora em posição de repouso, respirando livremente e sem

o policiamento comportamental de perceber-se corcunda. Em contrapartida, em outros

momentos executando movimentos compensatórios para a leve curvatura torácica, o que

demonstra o esforço e a sobrecarga em outros músculos das costas, a fim de estabelecer

uma postura mais ereta.

As posturas não naturais, geralmente, não são mantidas por longo tempo.

Quando a compensação de uma postura é forçosamente conseguida, o corpo evidencia

novos focos de complicações ou distorções musculares. O arranjo corporal é conseguido

mediante a interação de fatores biológicos e da nossa própria ação cultural sem,

contudo, tender desmedidamente para um desses fatores determinantes.

Complementando a sequência de análise, passamos a observar a cabeça da

professora. Nela estão quatro dos cinco sentidos sensoriais possuídos pelos seres

humanos. A rica gama de impressões do mundo são percebidas e processadas, em

grande parte, nessa região corporal e desse modo a consideramos em dois aspectos: o

primeiro relacionado à forma física e suas peculiaridades, e o segundo, relacionado às

expressões faciais percebidas no cotidiano escolar da professora observada.

Conforme enfatizam Kurtz e Prestera (1989, p. 116), “em certo sentido,

enquanto é verdade que cada parte reflete o todo, é a dinâmica do todo que determina o

significado particular dos segmentos individuais”. Desse modo, quando observamos o

posicionamento da cabeça da professora em relação às outras partes corporais, passamos

a investigar a ligação entre a cabeça e o corpo em uma acepção energética. Uma

evidente dissociação entre a cabeça e o corpo pode resultar na falta de sentimento na

pessoa, com bloqueios na percepção subjetiva de eventos corporais (Lowen, 1983).

Observamos uma leve projeção da cabeça para frente. Considerando que os

ombros da professora são levemente retraídos à frente, sua cabeça também se encontra

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

2976ISSN 2177-336X

projetada na mesma direção. Tal projeção pode ser medida a partir da variação existente

entre o posicionamento das partes corporais com uma linha lateral ideal.

O eixo ideal para se obter o maior equilíbrio é aquele que liga pontos

do topo da cabeça, meio da orelha, meio do ombro, meio da junta do

quadril, centro da junta do joelho e centro da junta do tornozelo. Essa

linha também passará através da junção da parte inferior da espinha e

do grande osso triangular apoiada na sua base (sacro). Quando esses

pontos estão alinhados dessa forma, cada segmento sustenta aqueles

que lhe estão acima (KURTZ; PRESTERA, 1989, p. 48).

O pescoço representa o caminho pelo qual nossos sentimentos e emoções

transitam desde o tronco até o sistema nervoso central. O pescoço representa o elo entre

a emoção e a racionalização de nosso comportamento, desse modo, essa parte corporal

também está à mercê de nossos tensionamentos musculares, uma vez que, para evitar a

expressão de alguns sentimentos, os retemos nessa região (Keleman, 1995).

Quando crianças, ouvíamos, por muitas vezes, a expressão “engole o choro”, e

passamos a travar uma luta contra a expressão de nossas emoções e sentimentos. Com

esse comando verbal, condicionamos nossos músculos do pescoço a evitar a ascensão

do choro, as contrações iniciadas no diafragma. Ele funciona como um filtro pelo qual

não passam as emoções, mas no qual concentramos nossas tensões.

O pescoço recebe atenção na bioenergética de Lowen (1982), pois, para ele,

“esta área é crítica porque representa a região de transição do controle voluntário para o

involuntário” (p. 240). Também Dychtwald (1984), em análise dos segmentos

corporais, enfatiza as transformações acontecidas no pescoço a fim de expressar nossos

sentimentos e emoções. O autor observa que

o pescoço é uma parte fascinante do corpomente humano por diversos

motivos. Primeiro, à medida que as emoções sobem num fluxo da

barriga e do peito e entram no pescoço, são aí adicionalmente

traduzidas em pensamentos e palavras. O pescoço é um outro ponto de

processamento ao longo do caminho do fluxo emocional pelo

corpomente. [...] Enquanto o peito serve para expandir e amplificar

estes fluxos emocionais, torna-se função do pescoço classificar e

refinar os mesmos, despachando-os depois a seus destinos apropriados

(DYCHTWALD, 1984, p. 185-186).

A função psicossomática de mediação exercida pelo pescoço contribui em

grande medida para a posição da cabeça na composição corporal. A impressão que

temos quando o pescoço e a cabeça estão debruçados para a frente é “que a cabeça é

uma carga grande demais para o corpo, de modo que este consentiu que ela pendesse”

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

2977ISSN 2177-336X

(DYCHTWALD, 1984, p.191). Essa postura pode declarar uma atitude permissiva da

pessoa perante a vida.

Na cabeça, por meio das expressões faciais, externalizamos os mais variados

sentimentos, com sorrisos, caretas, franzir de testa ou uma simples variação da nuance

cutânea. “O número e variedade de expressões que podem aparecer na fisionomia de um

indivíduo é enorme” (LOWEN, 1977, p. 107), e assim podem expressar leveza e

satisfação, suavizadas por um sorriso, expressão de cansaço, um momento de

introspecção ou reavaliação do fazer pedagógico, expressão de determinação com um

olhar objetivo e uma cabeça altiva, empreendedora.

Apesar do sorriso e da risada fluírem facilmente da face da professora

observada, a expressão que comumente percebemos se configura em seriedade, muitas

vezes imposta aos momentos de aula. Tal expressão deve ter se firmado ao longo dos

anos, mediante a contenção inconsciente de expressões mais suaves e sutis, bem como a

contenção do fluxo respiratório.

Para Reich (1995), a primeira ação do procedimento terapêutico consiste em

estabelecer o fluxo respiratório do paciente, permitindo que o ar entre mais fácil e

profundamente, quando o tórax se move, aumentando e diminuindo de tamanho com

cada respiração. Depois, há o estágio de mobilizar a expressão emocional mais evidente.

Também para Lowen (1984), a respiração é crucial para obtenção dos benefícios dos

exercícios da Bioenergética: “a respiração é a pulsação básica (expansão e contração) de

todo o corpo; portanto é a base da experiência de prazer e dor” (p. 37).

Respirar profundamente constitui um reflexo da saúde emocional da pessoa,

indica que seu diafragma está livre para executar seu papel extensor, participando

efetivamente do processo respiratório. A respiração superficial e aligeirada,

condicionada pela vida na modernidade, reduz a vitalidade do organismo, pois respirar é

imprescindível à vida.

Vale ressaltar que somos configurados por estruturas da realidade interna,

determinada geneticamente, e por estruturas da realidade externa que sofrem

interferência social, definindo padrões imitativos e determinações pessoais, subjetivas e

volitivas, aspectos que deve ser associados à compreensão da história de vida de cada

pessoa, de cada professora, de cada aluno.

Palavras Finais

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

2978ISSN 2177-336X

O referencial teórico ofereceu-nos subsídios substanciais para considerar, ler,

ouvir, interpretar, compreender as marcas corporais dos personagens envolvidos no

processo educacional. Pelo corpo, portanto, sentimos e expressamos concretamente as

transformações dos processos familiares, educacionais, sociais, profissionais.

A escola deixa marcas no corpo, pois, com o passar dos anos, o processo

educacional, muitas vezes repressivo, define os hábitos corporais que também passam a

limitar o movimento, diminuindo a flexibilidade, bloqueando e truncando a nossa

expressão, nos impedindo de experimentar de forma plena a vida. De modo evidente,

sabemos que a escola não é a única responsável por esse processo. À sua ação somamos

os fatores hereditários e as relações sociais estabelecidas no seio da família e da

sociedade.

Reich (2001), Lowen (1982), Kurtz e Prestera (1989), Dychtwald (1984), como

foram apontados, sustentam de maneira uníssona, que, com sensibilidade e prontidão,

compreendemos as marcas corporais, tanto de nossos próprios corpos quanto de outrem.

Essa compreensão humaniza e suaviza as relações interpessoais na complexa sociedade

que vivemos.

Por pensar em nossos alunos, buscamos compreender a atuação da professora,

que se configura como meio de alcance e viabilização do processo educacional. E, desse

modo, torna-se eminente o resgate da relação que esse profissional tem com seu próprio

corpo, para que, posteriormente, possa estabelecer relações com os demais.

A escola é tida como o local da produção de conhecimento e também de

disseminação da prática de “bons costumes”: permanecer sentado, controlar o tom de

voz ao falar, relacionar-se “educadamente” com seus pares. Mas é preciso estar atento,

como diz Gaiarsa (2006, p. 14), ao seu poder dominador, “atuando sobre as crianças a

fim de torná-las obedientes, alheias a si mesmas e a quase tudo o que as cerca – massa

plástica nas mãos de poderosos”. Segundo o autor, esse processo dominador vem se

repetindo e se intensificando ao longo dos anos. Assim é que, nos dias atuais, existem

professoras que um dia foram crianças dominadas e que agora reproduzem, ainda que de

modo inconsciente, as mesmas práticas educativas a que foram submetidas.

Destacamos a importância de um olhar mais atencioso para o que falam os

corpos, de modo a vislumbrarmos relações pedagógicas mais gratificantes e lançarmos

indícios para compreensão das marcas corporais das professoras sem, no entanto,

esgotar as possibilidades de interpretação da vida energética e pulsante contida no

corpo.

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

2979ISSN 2177-336X

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SOUCHARD, Philippe-Emmanuel. O diafragma. 3. ed. São Paulo: Summus, 1989.

i Encontramos na obra de Peter McLaren o respaldo para esta opção estilística, a fim de evitar o

automatismo do “(a)” ou “es/as” ao término da palavra “professor” e homenagear o “grande número de

mulheres que lutam por uma realidade educacional digna em nosso país, mas também como um convite

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

2980ISSN 2177-336X

aos leitores masculinos a experimentarem a sensação de serem incluídos em um signo lingüístico cuja

leitura meramente denotativa lhes excluiria” (SCHAEFER, 2000, p. 19).

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2981ISSN 2177-336X