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O CORPO NA PEDAGOGIA: O MOVIMENTO DA CRIANÇA E A LEITURA
CORPORAL DA PROFESSORA
RESUMO: Este painel objetiva analisar três pesquisas inspiradas no trabalho de
Wilhelm Reich, autor que nos convida a refletir sobre as inúmeras dimensões da
subjetividade humana. São trabalhos que propõem uma visão ampliada de formação
docente pautadas num conhecimento pessoal e prima pelas relações no contexto da sala
de aula tendo em vista a complexidade do vínculo entre a criança e os adultos que a
educam. Independente de qualquer argumento contrário, reconhecemos que o atual
contexto tem promovido o surgimento de propostas diversas compromissadas em gestar
uma consistente formação para professoras, principalmente de crianças. Essa é a
preocupação que move a organização desse Painel: a educação da criança e os
profissionais responsáveis por elas. A pesquisa de Leonice Matilde Richter evidencia o
corpo da criança, ao analisar as concepções e práticas presentes na organização do
trabalho pedagógico quanto ao movimento corporal das crianças de cinco anos de idade.
O trabalho de Ângela Rodrigues Luiz evidencia o corpo da professora, tendo em vista
que o corpo revela os meandros e as curvas da história pessoal. Como revela Reich, o
processo histórico dos indivíduos, na sua relação com os outros, ao expressar as
emoções e pensamentos, percorre a estrutura corporal, concretizando-se ou não em um
enrijecimento dos músculos, o que resulta em marcas corporais. Assim, toda rigidez
muscular contém a história e o significado de sua origem. Tendo como meta principal
uma reflexão sobre a formação do profissional responsável pelas primeiras experiências
escolares das crianças, este painel coloca em destaque, através do texto “a formação do
pedagogo e sua percepção da criança” (Maria Veranilda Mota), a preocupação com a
formação do pedagogo. Este painel afirma a complexidade da formação do professor
nos primeiros anos escolares a qual deve integrar subjetividades e objetividades do
mundo vivido.
Palavras-chave: Corpo, Movimento, Pedagogia
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
2945ISSN 2177-336X
A FORMAÇÃO DO PEDAGOGO E SUA PERCEPÇÃO DA CRIANÇA: UMA
LEITURA REICHIANA
MOTA, Maria Veranilda Soares
Universidade Federal de Viçosa - UFV
RESUMO: Este texto objetiva, a partir de pesquisas já realizadas, apontar elementos
para a formação do professor, no sentido de evidenciar subjetividades no processo de
educação das crianças. Isso se traduz no sentido de buscarmos referenciais para
percebermos a criança em sua complexidade que se apresenta primeiramente na
visibilidade do seu corpo. As reflexões contidas neste trabalho resultam de um processo
de conhecimento que se iniciou há vários anos no contato com o pensamento de
Wilhelm Reich, autor que nos convida a refletir sobre as inúmeras dimensões da
subjetividade humana. Reich é considerado o autor das contribuições mais originais do
movimento freudo-marxista, preocupado em compreender a relação entre consciência e
a existência social. No impulso dessa ideia, nas primeiras décadas do século passado,
Reich caminha por trilhas diversas chegando a compreensão da unidade entre corpo e
mente. O que trazemos para discussão é a formação do profissional responsável pela
educação das crianças, que se dá no Curso de Pedagogia. Tendo em vista as proporções
deste trabalho e a base teórica proposta, propomos indicações que podem interferir na
formação dos futuros educadores, que se encontram nos cursos de pedagogia.
PALAVRAS-CHAVE: Pedagogia, criança, professor
Proposições Iniciais
Pensar a formação dos professores responsáveis pela educação das crianças, ou
seja, para atuarem na educação infantil e para os anos iniciais do Ensino Fundamental,
tem sido tema de educadores preocupados com os rumos da educação para todos os
níveis de ensino, da Escola básica ao Ensino Superior. Por ser este profissional
incumbido de fazer a iniciação dos indivíduos no meio acadêmico, deveria ele torna-se
sujeito central das preocupações educacionais no momento atual. É no curso de
Pedagogia que ele está sendo formado. E eis a questão central: formar este professor
consciente de que ele desenvolve uma atividade intencional, que ele cria, ou não, as
condições para o desenvolvimento pessoal e social de crianças, seres em pleno processo
de construção biológica, mental, emocional.
As reflexões contidas neste trabalho resultam de um processo de conhecimento
que se iniciou há vários anos no contato com o pensamento de Wilhelm Reich, autor
que nos convida a refletir sobre as inúmeras dimensões da subjetividade humana.
Parece-nos ser relevante apontarmos propostas que aborde a formação docente tendo em
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pauta a subjetividade. A formação de professores vem sendo, desde a década de
noventa, discutida com afinco, e as inúmeras discussões levam-nos a crer que os
educadores, como afirma Kupfer (2012, p. 17), “padecem justamente da falta de
qualquer pauta, ao mesmo tempo em que seguem pedaços de variadas tradições, sem ter
ideia do que estão fazendo”. Dito isso, não significa negar o esforço de diversos
educadores em formular propostas formativas visando a melhoria da educação. No
entanto, não podemos perder de vista que a educação das crianças é tarefa essencial,
primordial para qualquer mudança.
O que trazemos para discussão é a formação do profissional responsável pela
educação das crianças, que se dá no Curso de Pedagogia. Vale perguntar sobre o aluno
de pedagogia e dos seus professores, sobre a formação que estamos sedimentando nos
cursos de pedagogia.
Tendo em vista as proporções deste trabalho e a base teórica proposta, algumas
indicações que possam interferir na formação dos futuros educadores, que se encontram
nos cursos de pedagogia, precisam ser apontadas. Primeiramente, as pesquisas de Gatti (
2009 ), Pimenta (2014), Marin (2014) indicam dados de uma realidade com diversas
insuficiências nos atuais cursos de Pedagogia brasileiros em relação à formação de
professores da educação infantil e séries iniciais. As análises evidenciam que a
formação dada no curso de Pedagogia, em sua grande maioria se mostra superficial,
fragmentada e dispersiva. Ao egresso da Pedagogia deveria pressupor o exercício do
processo alfabetizatório, no sentido paulofreireano, onde o ato de escrever e ler é, antes
de tudo, aprender a ler o mundo, levando o alfabetizando se conscientizar da realidade à
sua volta. Como coloca Freire (2002, p. 14), “a alfabetização e a conscientização jamais
se separam”. Vale ressaltar que legalmente o profissional responsável por esse processo
é o professor que cursou pedagogia. Como, então, garantir essa formação diante da
realidade evidenciada pelas pesquisas? E ainda, diante das Diretrizes Curriculares
Nacionais para o Curso de Pedagogia (BRASIL, 2006) que exige uma formação
abrangente envolvendo diferentes conhecimentos? Pimenta (2014) explicita críticas ao
amplo, disperso e impreciso perfil do egresso definido pelas DCNs, bem como
a indefinição do campo pedagógico, a dispersão do objeto da
pedagogia e a redução da pedagogia à docência. Consequentemente,
esses cursos, em sua maioria, não estão dando conta de formar, nem o
Pedagogo e, tampouco, o professor para os anos iniciais da Educação
Básica e para a Educação Infantil (p. 7).
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Como já afirmado, o profissional da pedagogia é o responsável pelas primeiras
experiências escolares das crianças, pelo aprendizado básico, onde a leitura e a escrita,
elementos fundamentais para o aprendizado de todas as disciplinas escolares, são
construídas. Isso faz da alfabetização inicial um momento de suma importância na vida
do aluno, já que é nesse momento que se instalam as bases de toda a aprendizagem
escolar. Diante de uma formação fragmentada como encontrar espaços para trabalhar a
dimensão subjetiva deste profissional?
Contudo, é fato: o profissional da educação infantil e anos iniciais do Ensino
Fundamental precisa de uma formação ampla e concreta, individual e coletiva. As
pesquisas denunciam a frágil formação dos cursos de Pedagogia. Formamos professores
sem uma compreensão real da criança, sem o entendimento da dimensão corporal dos
processos ensino-aprendizagem, ou seja, não se conhece a mediação das propriedades
estruturais e funcionais do sistema nervoso, especialmente o cérebro. Leonor Guerra e
Ramon Cosenza (2011, p. vii) afirmam: “Mais do que intervir quando ele [cérebro] não
funciona bem, os educadores contribuem para a organização do sistema nervoso do
aprendizado e, portanto, dos comportamentos que ele apresentará durante a vida. E essa
é uma tarefa de grande responsabilidade”. Sem saber os professores provocam
transformações no cérebro dos seus alunos, por isso é fundamental que, principalmente
o pedagogo, compreenda como os alunos aprendem, e, isso possibilitará que ele perceba
as melhores condições para o desenvolvimento da aprendizagem. Ao perceber a criança
em sua dimensão corporal, ele poderá ajuda-la a ter um bom fluxo de energia, não
permitindo que situações frustrantes cronifiquem tensões no seu corpo. Isso implica,
também, que o educador conheça seu próprio corpo, condição para desenvolver sua
capacidade de percepção do outro. Esse aspecto complementa a proposição de Libâneo
quando diz que:
somente professores que se transformam em sujeitos cultos, isto é,
sujeitos pensantes e críticos, serão capazes de compreender e analisar
criticamente a sociedade em que vivem, a política, as diferenças
sociais, a diversidade cultural, o interesse de grupos e classes sociais e
agir eficazmente frente a situações escolares concretas. (Libâneo,
2000, p. 36)
Este texto objetiva, pois, a partir de pesquisas já realizadas apontar elementos
para a formação do professor, no sentido de evidenciar subjetividades no processo de
educação das crianças. Isso se traduz no sentido de buscarmos referenciais para
percebermos a criança em sua complexidade que se apresenta primeiramente na
visibilidade do seu corpo.
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A criança: uma unidade funcional do corpo e da mente
Wilhelm Reich (1897-1957) é considerado o “autor das contribuições mais
originais ao debate em torno de Marx e Freud... Reich estava interessado, antes de mais
nada, em compreender as razões da defasagem entre a consciência e a existência social”
(ROUANET, 1983, p. 26 e 27). No impulso dessa ideia, nas primeiras décadas do
século passado, Reich caminha por trilhas diversas chegando a compreensão da unidade
entre corpo e mente. Hoje, a unidade entre corpo e mente é, também, objeto de estudo
da neurociência, e apresenta comprovação e atualização da teoria reichiana. Com o
advento de técnicas de neuroimagem como tomografia computadorizada, imagem de
ressonância magnética, avançou-se muito nos estudos do cérebro. O neurocientista
António Damásio tem se destacado nessa área ao estudar as relações entre razão e
sentimento, emoção e comportamento social. Para ele a mente existe dentro de um
organismo integrado. DAMÁSIO (1996, p. 17) sintetiza seu argumento nas seguintes
afirmações:
1) o cérebro humano e o resto do corpo constituem um organismo
indissociável, formando um conjunto integrado por meio de circuitos
reguladores bioquímicos e neurológicos mutuamente interativos (...);
2) o organismo interage com o ambiente como um conjunto; a
interação não é nem exclusivamente do corpo nem do cérebro; 3) as
operações fisiológicas que denominamos por mente derivam desse
conjunto estrutural e funcional e não apenas do cérebro: os fenômenos
mentais só podem ser cabalmente compreendidos no contexto de um
organismo em interação com o ambiente que o rodeia” .
Reich ao constatar que havia uma nítida distinção entre enfermidade psíquica e
enfermidade somática, questiona essa prática e elabora a ideia da identidade funcional
antitética entre os estímulos psíquicos e somáticos. Para ele é a energia biológica que
governa tanto o psíquico quanto o somático. “Bioenergeticamente, a psique e o soma
funcionam condicionando-se mutuamente e ao mesmo tempo formando um sistema
unitário” (1987, p. 291).
Procurando fundamentar essa ideia, ele faz uma profunda pesquisa na literatura
acerca da fisiologia do sistema nervoso autônomo, da química da angústia, da
eletrofisiologia dos fluidos do corpo e do movimento plasmático com protozoários
(BOADELLA,1985, p. 103). Nesse estudo percebe o processo de expansão e contração
desencadeado pelos nervos vegetativos. Identifica a antítese do prazer e angústia, do
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parassimpático e simpático, da expansão e contração, do aparelho vital da periferia e do
centro do organismo.
Para um melhor entendimento dessa temática, é válido destacar que o
organismo humano é constituído de dois sistemas nervosos que integram e
regulam suas reações: 1. o sistema cerebrospinal coordena a ação dos músculos
voluntários e a energia dos nervos proprioceptivos e exteroceptivos. É também
responsável pela regulação da tonicidade muscular e pela postura. Os músculos
estriados estão sob controle desse sistema. 2. O sistema nervoso vegetativo ou
autônomo regula alguns processos corporais básicos como a respiração, circulação,
pulsação cardíaca, digestão, excreção, atividade glandular e reações das pupilas. Os
músculos lisos estão sob seu controle e sua ação não é voluntária.
Esses conceitos são fundamentais na explicação do como funciona o
metabolismo energético do corpo, já que a excitação biológica ocorre através do sistema
nervoso autônomo. Este sistema consiste de dois conjuntos de nervos que funcionam
antiteticamente: o simpático e o parassimpático. Eles são compostos de nervos e
gânglios – células nervosas ligadas a todos os órgãos através de finas fibras - que
governam as fontes vitais involuntárias. Os gânglios do parassimpático estão
localizados principalmente no cérebro e na pélvis “nas duas extremidades do organismo
onde se situam as zonas erógenas e onde é importante o contato com o meio ambiente”
(BAKER, 1980:34). Os gânglios do simpático estão principalmente localizados no
abdômen e peito.
O sistema nervoso parassimpático, com a função da expansão - em direção ao
mundo, entra em ação quando há tensão, prazer. Inversamente o sistema nervoso
simpático, com a função de contração - retirada do mundo para dentro de si mesmo, é
acionado quando o sangue foge da periferia e aparece a palidez, a angústia e a dor. Na
experiência do prazer, Reich (1987:246) observa as seguintes características: os vasos
sangüíneos se dilatam na periferia, a pele se torna corada, o coração se expande, a
pulsação é calma e cheia, o sangue é impelido através de vasos largos, a expansão
funciona como excitação sexual. No estado de angústia observa-se ocorrer exatamente o
contrário: há palidez, contração dos vasos sanguíneos, desprazer, o coração se contrai e
bate rápida e fortemente, o sangue é impelido através de vasos estreitos, os vasos
contraídos causam uma congestão do sangue na direção do coração, os fenômenos
instintivos devido à contração funcionam como angústia.
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No encadeamento dessa discussão, Reich assegura que o desequilíbrio da
sensação somática interfere simultaneamente na autoconfiança e na unidade do
sentimento do corpo. É essa unidade que proporciona conexões com o mundo. Em
suma, é a energia biológica que governa tanto o psíquico quanto o somático. Isso
significa que as atitudes musculares e as atitudes do caráter têm a mesma função no
mecanismo psíquico, podendo substituir-se e influenciar-se mutuamente. Não é, pois,
admissível separar os processos psíquicos e somáticos.
O conhecimento desta teoria permite uma compreensão da criança em sua
visibilidade biológica, corporal, emocional, social.
A percepção docente e a visibilidade corporal da criança
A discussão ora empreendida conduz ao entendimento de que o profissional
destinado a trabalhar com a criança, requer uma formação que conduza a uma percepção
da criança, para ajuda-la se desenvolver sem grandes bloqueios. Reich exalta a
necessidade de transformarmos radicalmente a maneira de educar as crianças, com a
esperança de um processo educacional que trabalhe as características básicas do conflito
entre as expressões emocionais inatas da criança e as características próprias à estrutura
mecanizada e encouraçada do homem. Para isso o educador - a quem Reich faz
referência como o "educador do futuro" - precisa aprender a interpretar a linguagem das
expressões emocionais naturais da criança e aprender a lidar com o meio social, restrito e
amplo, na medida em que este se opõe a essas expressões (REICH,1986). É necessário,
portanto, deixar a bioenergia fluir livremente e assim aumentar a motilidade do corpo, do
pensamento e da ação .
A vida está em constante movimento e, segundo Reich, é o movimento que vai
delimitando o modo como pulsamos. Por isso cuidar da condição energética da criança é
cuidar também da condição em que o caráter vai se formando. O caráter está baseado no
modo como a educação foi vivenciada e no jeito como reagimos ao processo
educacional. É necessário construir uma base energética mais saudável sobre a qual o
indivíduo possa aprender a preservar as suas funções naturais. Para tanto, é fundamental
compreendermos a base energética do processo de desenvolvimento do organismo
humano.
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
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Como já foi elucidado neste trabalho, a preocupação com a energia humana torna-
se basicamente a grande matriz do pensamento reichiano. Sua preocupação é com o livre
metabolismo energético, a base de um organismo sadio. Devido à educação dada desde os
primeiros minutos da vida, poucos indivíduos percebem, no próprio organismo, o
metabolismo energético, bem como pouco se sabe da existência e dos efeitos desse
metabolismo no organismo humano.
Lamentavelmente a organização social contemporânea - o ambiente familiar,
escolar e social - frequentemente se opõe às necessidades de movimento das crianças.
Em nossa sociedade as perturbações, as repressões na primeira infância são
consideradas como algo normal e necessário. Apesar de estudos anunciarem que o ato
de aprender é relacional, já que aprendemos com os outros, com o conhecimento
produzido, consigo mesmo, a escola ainda se centra numa concepção de aprendizagem
vinculada a memória e a reprodução de saberes. Associado a esse drama, ainda está o
fato da escola ressaltar predominantemente as deficiências dos alunos, em vez de
valorizar e incentivar as capacidades já desenvolvidas.
A educação autoritária continua a prevalecer apesar das muitas teorias que
apresentam maneiras diferentes e melhores de se fazer educação. Contudo, ao levarmos
em conta que é importante a experiência que a criança tem do mundo, iniciada na
experiência do seu próprio corpo, saberemos que as necessidades emocionais das
crianças devem ser consideradas no ambiente escolar. Estar atento às perturbações no
funcionamento da criança, é possível intervir e impedir a cronificação dos bloqueios
físico-emocionais. Por isso ao professor se deveria dar uma formação que possibilitasse
o conhecimento da criança. Ele poderia, então, ajudar a criança a manter um bom fluxo
de energia, a sentir o seu corpo livre, a respirar reguladamente. O próprio REICH (1983,
p. 57) assim se expressa: “Precisamos assumir que educar crianças saudáveis não será
simples nem fácil, mesmo quando as funções básicas de saúde sejam perfeitamente
conhecidas.” Por isso, ao se tratar de crianças, a tarefa principal a ser exercida é
desviar o interesse de uma humanidade sofredora de prescrições
infundadas para a criança recém-nascida, a eterna „criança do futuro‟.
A tarefa é salvaguardar suas potencialidades inatas para que
encontrem o caminho. Assim a criança (...) é o princípio funcional
comum de toda a humanidade, passada, presente e futura. Ela é,
devido à sua plasticidade e por ser dotada de ricas potencialidades
naturais, a única esperança viva que resta neste holocausto do inferno
humano. A criança do futuro como o centro da atenção e do esforço
humano é a alavanca que novamente unirá a humanidade numa única
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comunidade pacífica de homens, mulheres e seus descendentes.
(REICH,1986, p. 223).
As pesquisas de Albertini (1992), Mota (1999), Moyzés (2003), Teixeira (2005),
Bacri (2005), Richter (2006), Lelis (2006), Rodrigues (2007), Oliveira (2008), Pereira
(2010) a partir do referencial reichiano, ressaltam a necessidade de se trabalhar uma
formação que possibilite ao educador tomar consciência de seus processos emocionais e
amplie sua percepção da criança com quem se relaciona. A criança traz consigo
potencial criativo, fé na vida. São mais sensíveis à comunicação do corpo, são capazes
de captar a linguagem corporal da professora valorizando-a, muitas vezes, mais do que a
comunicação verbal.
Com a discussão empreendida, esperamos entender os fundamentos das visões
que estruturam a organização escolar atual, pois, assim como Reich (1981, p.61),
acreditamos que “a organização de uma „nova vida‟ pressupõe o conhecimento das
contradições da antiga.” Por isso os professores, em exercício e em formação, ao
refletirem sua prática, precisam de uma considerável análise das condições sociais e
políticas que influenciam seu trabalho. Mas isso não basta. É preciso uma reflexão sobre
si mesmo. Ter clareza de que estamos situados num universo onde há contínua troca e
interpenetração de todos os fenômenos e que o ser humano como parte deste universo,
vivencia esta mesma dinâmica, é elemento básico para se pensar essa formação. O
homem é um sistema complexo que se inter-relaciona com tudo existente. O ser
humano é, pois, resultado de suas inter-relações, pelas quais, em troca com outros
sistemas energéticos vivencia afeto, rejeição, amor, alegria, tristeza.
Partindo desse pressuposto, demandamos pensar a formação de um pedagogo
que compreenda mais profundamente a criança e seja capaz de contribuir para sua
autonomia.
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XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
2955ISSN 2177-336X
MOVIMENTO EXPRESSIVO: FONTE DE COMUNICAÇÃO DA
CRIANÇA NA EDUCAÇÃO
Leonice Matilde Richter – UFU/FACIP
Resumo: Este trabalho objetiva analisar as concepções e práticas presentes na
organização do trabalho pedagógica de uma instituição pública de educação Infantil
quanto ao movimento corporal das crianças de cinco anos de idade. O propósito é
problematizar a perspectiva de movimento assumida pelos profissionais e como esta
linguagem é explorada no desenvolvimento da criança pequena no ambiente
institucionalizado da Educação Infantil. Compreendemos o movimento a partir do
referencial walloniano e reichiano, como movimento exógeno (passivo), autógeno
(ativo) e o deslocamento de segmentos corporais ou de frações musculares
(expressão/comunicação). Para a coleta de dados, realizamos observações da rotina da
instituição ao longo de um semestre, totalizando 193 horas de acompanhamento,
fazendo uso de registros fotográficos; utilizamos notas de campo; entrevistas com as
professoras da turma; a coordenadora pedagógica e diretora da instituição. As análises
apontam que as professoras compreendem o movimento corporal apenas em sua
dimensão ativa, a qual, não raro, é vista como distração e/ou indisciplina que deve ser
cerceada. O movimento corporal não é assumido como dimensão importante do
desenvolvimento das crianças, assim, no planejamento o tempo/espaço dedicado ao
movimento livre ou orientado é centralmente limitado. Em contrapartida, ao longo da
pesquisa, evidenciou-se a riqueza e criatividade das crianças para encontrar alternativas
para expressarem-se corporalmente. Esses momentos passam despercebidos pelos
docentes. Destaca-se, ainda, como nesta faixa etária a criança faz uso da linguagem
corporal como recurso de comunicação com os demais sujeitos e como elas captam, a
todo o momento, a expressividade corporal das professoras.
Palavras-chave: Educação Infantil. Movimento corporal. Trabalho pedagógico.
Introdução
No Brasil, a industrialização, a urbanização, a explosão demográfica nas
cidades, as mudanças da estrutura familiar, a intensificação da participação da mulher
no mercado de trabalho, o desenvolvimento de pesquisas nacionais sobre a criança,
entre outros fatores, ensejaram, nas últimas décadas, movimentos em favor do
reconhecimento do direito da criança pequena à educação institucionalizada.
Contudo, o momento em que vivemos hoje em nosso país é marcado pelo
divórcio entre a legislação e a realidade. Temos uma tradição cultural e política
assinalada por essa distância e, “até mesmo, pela oposição entre aquilo que gostamos de
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colocar no papel e o que de fato fazemos na realidade” (CAMPOS, 2005, p.27). Assim,
embora se assinale a compreensão do valor das experiências da primeira infância na
Educação infantil como aspecto essencial na qualidade do desenvolvimento cognitivo,
emocional e social da criança e, em longo prazo, para seu sucesso na escola e na vida,
na realidade, ainda, estamos longe de garantir o desenvolvimento completo da criança
como sinalizado do Referencial Curricular Nacional de Educação Infantil (RCN/EI,
1998)
Nosso objetivo no presente artigo é analisar as concepções e práticas presentes
na organização do trabalho pedagógica de uma instituição pública de educação Infantil
quanto ao movimento corporal das crianças de cinco anos de idade. Localizada em uma
região periférica, a instituição, locus da pesquisa, oferece creche e pré-escola, e suas
instalações foram projetadas para esta finalidade. Acompanhamos a rotina de uma turma
ao longo dos cinco meses, entre março a julho de 2005, três vezes por semana, das 7:00
às 11:15. A turma era formada por crianças na faixa etária de 5 a 6 anos de idade, sendo
ao todo 28 crianças, dentre elas, 11 meninas e 17 meninos. Foi realizado entrevistas
com a professora regente, a professora de Educação Física, assim como de
coordenadora pedagógica e diretora da instituição. As observações realizadas no
período em que estivemos presentes na instituição foram registradas em um diário de
campo, além do registro fotográfico. O período de observação na turma selecionada
perfez um total de 138 horas. Ao longo de todos os meses, participamos, por
aproximadamente 193 horas, da rotina da instituição, contabilizando reuniões,
entrevistas e observações.
A compreensão teórica do movimento pautou-se na perspectiva de Wallon (1971;
1975; 1979) e Reich (1999, 2001) que têm indicado para a necessidade do trabalho e o
entendimento do movimento corporal como uma dimensão do processo de
desenvolvimento humano que proporciona o entendimento, a expressão e a
comunicação de significados presentes no meio sócio-cultural.
A pré-escola e o movimento corporal da criança
Pensar a educação e o cuidado das crianças que se encontram na Educação
Infantil é pensar numa fase da vida em que se vivenciam as primeiras experiências
escolares, concomitantemente às expressões afetivas, emocionais e relacionais
extrafamiliares. Tal fato exige a concepção de uma prática pedagógica que conceba a
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criança como um ser que pertence a um contexto sócio-econômico-cultural, possuidora
de uma história de vida e, que apresenta várias dimensões (psicomotora, cognitiva,
afetiva e social) a serem desenvolvidas.
Uma das marcas da Escola Tradicional é a limitação do movimento. Ela é
estruturada em torno da compreensão de que a criança só aprende se o ambiente estiver
organizado em salas de aula, com crianças sentadas em carteiras enfileiradas, corpos
imóveis por várias horas seguidas, onde paire o silêncio profundo. Diante desta
concepção, muitos profissionais adotam na educação infantil, o ranço de uma prática
que já muito questionada no meio educacional, e atribuem que “o papel da pré-escola é
desenvolver hábitos, atitudes, habilidades e comportamentos necessários à sua vida
escolar” (ESTEBAM, 2001, p.23). Nessa percepção, a educação infantil é vista como
espaço para moldar a criança de maneira que esta se encaixe perfeitamente nos
princípios da escola, no ensino fundamental.
Percebemos ser ainda forte a noção de que, para haver aprendizagem, as crianças
devam ser enquadradas em ambientes organizados de modo tradicional, tendo em vista
a disciplinarização dos corpos. Além disso, a educação infantil definida, notadamente
nas últimas décadas no Brasil, como espaço do cuidado e educativo, vem adquirindo,
não raro, conotação propedêutica, particularmente com as crianças de faixa etária de 5
anos, como uma forma de legitimar seu cunho educativo.
O que a criança descobre poder realizar com seu corpo, os
movimentos que gostaria de saber fazer, ou os conhecimentos que
desejaria adquirir, não têm lugar na escola. Tal descoberta é
substituída pelos movimentos “necessários” a uma “boa
aprendizagem”, em especial, da leitura e da escrita (ESTEBAM, 2001,
p.25).
A educação infantil de qualidade deve potencializar o desenvolvimento global
da criança, deve contribuir para que as crianças vivenciem as diferentes linguagens
utilizadas na sociedade, aprendendo a ler essas linguagens e a usá-las para se expressar
(GARCIA, 2001, p. 19). Dentre as linguagens pouco trabalhadas, ou muitas vezes
cerceadas do espaço escolar, está a linguagem corporal, pois o movimento do corpo, via
de regra, é compreendido como bagunça. Segundo o RCN/EI, evidenciam-se, na
educação infantil brasileira, práticas de contenção do movimento, parece haver a ideia
de que o movimento impede a concentração e a atenção. Mas não seria a proibição
excessiva do movimento, a fonte da dificuldade em manter a atenção?
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É muito comum que, visando garantir uma atmosfera de ordem e de
harmonia, algumas práticas educativas procurem simplesmente
suprimir o movimento, impondo às crianças de diferentes idades
rígidas restrições posturais. Isso se traduz, por exemplo, na imposição
de longos momentos de espera - em fila ou sentados - em que a
criança deve ficar quieta, sem se mover; ou na realização de atividades
mais sistematizadas, como de desenho, escrita ou leitura, em que
qualquer deslocamento, gesto ou mudança de posição pode ser visto
como desordem ou indisciplina (RCN/EI, 1998, p.17).
O “movimento”, um dos eixos de trabalho apresentados no RCN/EI, é definido
como essencial para o desenvolvimento das crianças. Nesse referencial, compreende-se
que o movimento para a criança pequena “é muito mais do que mexer partes do corpo
ou deslocar-se no espaço. A criança se expressa e se comunica por meio dos gestos e
das mímicas faciais e interage utilizando fortemente o apoio do corpo” (RCN/EI, 1998,
p.18).
Para Reich (1950) todo movimento de um organismo vivo tem uma expressão
compreensível, isto é, significativa. Para tanto, a linguagem expressiva do organismo
está além da expressão verbal. Segundo Wallon (1975b, p.75) o “movimento, pela sua
natureza, contém em potência as diferentes direções que poderá tomar a atividade
psíquica”. No entanto, o corpo da criança, logo que chega à escola, é limitado de seus
movimentos, pois é compreendido como limitador do processo de desenvolvimento
cognitivo que é assumido como foco central da escola. Contraditoriamente, como
aponta Fernandez (1991), todo processo de aprendizagem depende e é construído com e
no corpo.
Tradicionalmente, de acordo com uma visão racionalista e dualista do
ser humano, considerou-se a aprendizagem exclusivamente como um
processo consciente e produto da inteligência, deixando o corpo e os
afetos de fora; mas se houve humanos que aprenderam é porque não
fizeram caso de tal teoria (FERNANDEZ, 1991, p.47)
A forma como, geralmente, o corpo e seu movimento é percebido no espaço
escolar, em grande parte, decorre das concepções dos docentes que nem sempre tiveram
no seu processo de formação inicial e continuado, atenção a essa temática. Moyzés
(2003) desenvolveu uma pesquisa, por meio da qual realizou um trabalho de
sensibilização e conscientização corporal com um grupo de professoras. Após a
realização desse trabalho, a autora observou uma significativa transformação na prática
pedagógica das professoras, evidenciando-se uma maior interação e contato entre elas e
as crianças.
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Para esta pesquisa, o movimento corporal foi analisado segundo o referencial
walloniano em suas três dimensões: o Movimento Passivo ou Exógeno, o Movimento
Ativo ou Autógeno e o Deslocamento de Segmentos Corporais ou de Frações. O
primeiro, como movimento de equilíbrio, está sob a dependência de forças externas,
principalmente a gravidade, e ocorre desde a vida intrauterina, possibilitando a
adaptação da criança ao meio, ao mundo. São movimentos de respostas, de
compensação e de reajustamento do corpo. Já o movimento autógeno ou ativo refere-se
ao movimento de locomoção e preensão, é a possibilidade de explorar os espaços e
objetos do nosso meio. Ele viabiliza a autonomia para explorar o mundo que nos cerca,
para onde se deseja ir, o que desejamos manusear, conhecer. Envolve, diretamente, a
construção da autonomia do sujeito ao ser explorado (WALON, 1975a).
E o deslocamento de segmentos corporais ou de frações diz dos movimentos de
reações posturais, que se dão mediante o deslocamento do corpo e de suas partes, os
quais se traduzem em atitudes expressivas e mínimas (WALON, 1975a). Estes
apresentam um caráter mais psicológico, ou seja, evidenciam um significado de relação
afetiva que se exterioriza na atitude, no corpo, no movimento de suas frações, que
muitas vezes comunicam muito mais que a fala oral da criança. Dedicamos-nos nas
páginas seguintes à análise dessas três dimensões no contexto da instituição pesquisada
O movimento corporal na organização do trabalho pedagógico
No diálogo tecido entre duas crianças envolvidas na pesquisa, no momento em
que estavam desenvolvendo uma atividade [colorir a imagem de uma pessoa], evidencia
o processo de aprendizagem da expressão do corporal como forma de interação e
comunicação social. Na situação abaixo elas associam o tom da pele à demonstração da
raiva.
João: Você já viu uma cara amarela de raiva?
Pedro: Não, eu já vi cara vermelha de raiva.
João: Não, é que ela também tá com a cara inchada.
[Diante desse diálogo, João, que já havia colorido de amarelo o rosto
do personagem do desenho, pega o lápis vermelho e pinta com muita
força por cima da cor amarela. O colega olha e diz:]
Pedro: Nummm!!
João: Olha que tanto de raiva. (Diário de Campo).
O foco do trabalho da professora é o ensino da leitura e escrita, expresso em
atividades realizadas em sala de aula e registradas em folhas mimeografadas. As
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situações, como o episódio anterior, não eram vistos como processo de aprendizagem e
o corpo e movimento das crianças estava associada à desatenção.
Era comum as crianças, nas terças-feiras, ocuparem lugares diferentes daqueles
ocupados nos outros dias da semana, geralmente, isso era definido pela professora
regente. Mas, em uma terça específica, na aula de Educação Física, que raramente
definia ou trocava as crianças de lugar, uma criança que sempre se sentava no fundo da
sala - já que “não precisa muito de ajuda” segundo a professora regente -, sentou-se na
frente. Todavia, nesse dia, a professora de Educação Física iria ocupar o espaço da sala
de aula. Então, a criança teve que se levantar e voltar para o fundo, para uma das únicas
carteiras disponíveis. Sua expressão facial mostrava seu desagrado e insatisfação (Fotos
1 e 2). Ainda que não possamos definir os sentimentos precisos da criança naquele
momento, a expressão corporal apontava que a situação que estava vivendo não a
agradou, embora não tenha manifestado oralmente. Evidencia-se o quanto, numa cultura
extremamente verbal, presa à fala, mesmo que a criança se expresse nessa idade
intensamente pelo movimento corporal pouco se valorizam essas informações.
A criança envolvida no episódio anterior aparecia ao longo das notas de campo,
sempre em cenas em que é a primeira a responder às perguntas da professora regente.
Segundo avaliação dessa professora, ela estava em um processo adiantado de
alfabetização. Entretanto, em muitas situações (como a anterior), suas manifestações
não eram percebidas, geralmente, retraia-se, ficava calada, ainda que o ocorrido lhe
desagradasse. Não eram percebidos, pois tais questões eram manifestadas pela
expressão corporal.
FOTO 1 e 2: Expressão corporal de desagrado diante da troca de lugares
Fonte: Leonice M. Richter
Durante as observações, procuramos chamar a atenção da professora regente
para o recolhimento/retração dessa criança, mas a professora por estar preocupação com
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a alfabetização, nem sequer percebia o que intencionávamos ao tentarmos induzi-la a
um olhar mais atento para essa criança. Suas respostas referiam-se sempre de modo
satisfatório ao processo “adiantado de alfabetização”. Antônio, segundo ela, era
inteligente, respondia prontamente às suas perguntas, mas a expressão sempre fechada
não era “percebida” pelas professoras ou foco de atenção.
Crianças são mais sensíveis à comunicação do corpo e exprimem suas emoções
e pensamentos por esse meio, são capazes de captar a linguagem corporal do professor
valorizando-a, muitas vezes, mais do que a comunicação verbal. Como destaca Lowen
(1982, p.86), “as crianças estão mais cônscias da linguagem corporal do que os adultos
que, após anos e anos de escolarização, aprenderam a dar mais atenção às palavras e a
ignorar a expressão do corpo”. O corpo fala da nossa história de vida e “fala” não
apenas na infância, mas em todas as fases da vida. Na educação infantil, a valorização
do movimento corporal é ainda mais necessária, considerando que, nesse momento do
desenvolvimento do indivíduo, ele tanto lê quanto se expressa de forma mais acentuada
por meio do corpo. A criança pulsa vida, busca conhecer o mundo, para isso, o
movimento é um elemento essencial.
O corpo é produzido culturalmente, e a escola se constitui em um espaço que
realiza de forma significativa essa função de produção/adaptação dos corpos dos
“educandos”. O corpo, tal como a vida, está em constante mutação, cada corpo, longe
de ser apenas constituído por leis fisiológicas, supostamente imutáveis, não escapa à
história (SANTA‟ANNA, 2000). Entretanto não consideramos que nossos corpos sejam
apáticos e pacíficos, mas, ao contrário, também se manifestam, rebelam-se, encontram
meios de se oporem a esse mecanismo de “normatização”. Durante as observações
realizadas por nós, percebemos significativos momentos de manifestação corporal das
crianças burlando as regras definidas pela professora, elas encontram meios para
movimentar/tocar/brincar de modo variado e criativo. Na foto 3, duas crianças brincam
com os lápis de cor em um momento de silêncio em que a brincadeira estava proibida na
sala e para que não fossem repreendidas elas buscam uma alternativa: escondem as
mãos embaixo da mesa. Estas imagens revelam corpos que interagem, que brincam, que
aprendem, apontando para indivíduos que são influenciados pela história de seu tempo,
mas que também são sujeitos ativos nessa produção.
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FOTO 3 Reação corporal da criança diante da disciplinarização
Fonte: Leonice M. Richter
Hoje, as instituições de educação infantil organizam rotinas em que o tempo para
brincar, para o movimento corporal fica cada vez mais restrito. Assim como, na
pesquisa há uma valorização conflitante dos espaços físicos, uma vez que as crianças
veneram o parquinho e para as professores esse é um espaço para descanso com valor
secundário em termo de aproveitamento pedagógico. O parquinho tão adorado pelas
crianças é, não raro, negado a elas, a ponto de ser alvo de castigo ou premiação, como
notamos nas seguintes falas da professora: “Vai ter [parque], mas depende de como
vocês se comportarem”, “Esse negócio do parque funciona bem!”,
Percebemos que há uma relação de hierarquia inversa da importância atribuída
ao espaço na instituição de Educação Infantil, entre as crianças e os profissionais. As
crianças veneram o parque e os profissionais o assumem como passatempo,
valorizando, essencialmente, a sala de aula, o que indica uma concepção de educação
infantil voltada, notadamente, para a alfabetização. Nas falas das professoras, o parque
aparece como recompensa diante do comportamento e do bom desenvolvimento das
atividades em sala. A fala da professora evidencia a importância dada à tarefa: “Todo
dia da minha aula eu levo vocês ao parque, mas tem que fazer a tarefa direito” (Diário
de campo). Já para as crianças, a expectativa é de vivenciar outras experiências que o
espaço possibilita: “Ah.! eu vou andar, vou correr, vou pular, brincar” (Diário de
campo).
O brincar e o movimento estão muito associados na infância. É comum
observarmos o movimento dar significado ao objeto com o qual a criança brinca, nesse
caso, o movimento é que viabiliza representação do objeto. Isso pode ser observado na
foto 4:
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Foto 4 Movimentos e gestos na representação de objetos: binóculo
Fonte: Leonice M. Richter
A criança utiliza gestos que comunicam o que os objetos que ela está
manipulando estão designando ou ela mesmo realiza movimentos representativos,
tornando-se um “monstro” (FOTO 5) ou “cachorro” (FOTO 6). Dessa dimensão,
observamos o movimento corporal como meio expressivo da criança, utilizado por ela
como elemento importante do mundo da representação, do desenvolvimento do
simbolismo. Ao propiciar momentos do brincar estamos possibilitando à criança o
desenvolvimento de uma expressão corporal.
Foto 5 e 6: Formas de representações corporais realizadas pelas crianças
Fonte: Leonice M. Richter
A criança interage por meio do movimento expressivo com os sujeitos do seu
meio. A organização do espaço que viabilize às crianças comunicar-se pelo movimento
deve possibilitar a ampliação do seu campo de visão, permitindo que vejam seus
colegas da forma mais completa possível. Na turma pesquisada as crianças, geralmente
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“enfileiradas”, veem apenas a nuca umas das outras, essa organização evidencia a
desvalorização dessa forma de comunicação (movimento expressivo).
Noutra situação a Professora lia uma história, enquanto isso, algumas crianças se
entretinham com outras coisas, como Fernando, que ficava brincando com a sombra da
sua mão projetada na mesa (Foto 7), ou Tiago que olhava para a janela e parecia
“ausente”. Já outro grupo estava atento e participativo da atividade proposta, o que
ficava bem evidente pelos gestos e expressões realizados por elas. Num instante da
história, por exemplo, o cachorro, personagem dessa história, pega uma planta e
caminha sobre apenas duas patas, nesse momento, as crianças que estavam prestando
atenção reproduziram corporalmente como imaginavam a imagem dessa cena (Foto 8).
A cena gerou a movimentação dessas crianças, foi justamente nesse momento que a
professora interveio falando e olhando para elas: “vamos prestar atenção”. Em outros
momentos da história em que professora também pede atenção, as crianças riam por que
a menina da história teria dado um beijo em uma flor (Diário de Campo).
Foto 7 Dispersão da criança na contação de história Foto 8 Grupo de crianças se envolve na história
Fonte: Leonice M. Richter
Diante da situação relatada, percebemos que os movimentos e gestos
reproduzidos indicavam a atenção das crianças e não o contrário. Esse grupo de crianças
estava elaborando mentalmente a história e reproduzindo-a corporalmente, ou seja,
construindo conhecimento. Desse modo, essas manifestações eram aliadas da
professora, pois mostravam o aprendizado delas, visto que os movimentos estavam
sendo materializados, diante da docente, o que a criança estava elaborando sobre a
história. Mas, contraditoriamente, é desse grupo de crianças que a professora chamou
atenção. As crianças que estavam quietas e desatentas à história não foram cobradas
pela professora.
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Chegamos a algumas constatações ao longo de nossas observações e de forma
mais específica com esse episódio. Primeiramente, percebemos que, em muitos
momentos, o que o corpo comunica por meio de seus movimentos no espaço escolar
não é considerado, pois passa despercebido pelas educadoras, por isso, não é valorizado.
Em outros momentos, ele é reprimido, porque o objetivo da professora é o “silêncio
corporal”, limitando, assim, o espaço de manifestação dessa forma de comunicação.
Definimos o silêncio corporal como corpos imóveis, que devem calar-se, em que o olhar
se direciona, ora para a professora, ora para a folha de atividade, um corpo que segue as
prescrições anunciadas pela professora.
Considerações finais
O movimento humano é mais que o deslocamento no espaço. Nossos
movimentos diferenciam-se dos demais animais por nossa capacidade de significar
nossos gestos, expressões e posturas. Neste estudo evidencia-se que ainda perdura uma
educação que busca “ensinar” a criança a congelar suas necessidades e manifestações
corporais quando, limitar os movimentos é limitar o seu desenvolvimento.
Percebemos na pesquisa que, em muitos momentos, o que o corpo comunica por
meio de seus movimentos no espaço escolar não é considerado, pois passa despercebido
pelas educadoras, por isso, não é valorizado. Em outros momentos, ele é reprimido,
porque o objetivo da professora é o “silêncio corporal”, limitando, assim, o espaço de
manifestação dessa forma de comunicação.
Os movimentos de reações posturais exteriorizam-se como atitudes e como
mímicas. Este movimento relaciona-se com o íntimo do sujeito, com suas emoções, atua
como fonte de comunicação entre a professora e a criança, é uma forma de linguagem.
Portanto, essa forma de movimento, que está vinculada a uma forma de comunicação
dos seres humanos, os quais atribuem significados às expressões corporais, que, muitas
vezes, passam despercebidas aos nossos olhos de professores, tem muito a contribuir na
compreensão da criança que está notoriamente voltada para essa forma de linguagem.
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CORPO DE PROFESSORAS: ESPAÇOS DE MÚLTIPLAS DETERMINAÇÕES
Angela Rodrigues Luiz- UFG
RESUMO: No centro de todos os fatos vividos, situa-se o corpo, que pode ser visto e
entendido por um observador atento e interessado. O corpo revela os meandros e as
curvas da história pessoal. Analisar o corpo pode ser um caminho seguro para
compreender o comportamento humano. Nessa direção constituiu-se o investimento do
presente estudo: dar voz ao corpo silenciado de professoras, em especial a que trabalha
com crianças. Para tanto, tomamos como aporte neste estudo uma professora que com
quase três décadas de atuação docente, apresenta em seu corpo marcas corporais
registradas conscientes e inconscientes ao longo de sua vida. Vale ressaltar que nossa
pretensão não está ancorada na análise judicativa do que seria certo ou errado no
ambiente escolar ou com os corpos, contudo perscrutar a história sinalizada na
individualidade da silhueta de professoras incita-nos ao autoconhecimento, à
autopercepção. Destacamos a importância de um olhar mais atencioso para o que falam
os corpos, de modo a vislumbrarmos relações pedagógicas mais gratificantes e
lançarmos indícios para compreensão das marcas corporais das professoras sem, no
entanto, esgotar as possibilidades de interpretação da vida energética e pulsante contida
no corpo.
Palavras-chave: corpo, professora, formação docente
Primeiras Palavras
Referendados pelo pressuposto reichiano de que toda história de vida está
registrada no corpo, dedicamo-nos a perscrutar a história marcada no corpo de
professorasi. Para tanto, tomamos como aporte neste estudo uma professora de
Educação Física que, com quase três décadas de atuação docente, apresenta em seu
corpo marcas corporais registradas conscientes e inconscientes ao longo de sua vida.
Wilhelm Reich (1897-1957), psicanalista austríaco dedicou seu trabalho à
análise das várias manifestações da vida, buscando integrar o homem e sua própria
natureza, e compreendendo a energia como aspecto inerente ao ser vivo. Para ele o
processo histórico dos indivíduos, na sua relação com os outros, ao expressar as
emoções e pensamentos, percorre a estrutura corporal, concretizando-se ou não em um
enrijecimento dos músculos, o que resulta em marcas corporais. Assim, toda rigidez
muscular contém a história e o significado de sua origem.
O encontro com a teoria reichiana foi de fundamental importância para
vislumbrar um caminho investigativo que dá voz a um corpo e sua história. A
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
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professora que ilustra essas análises graduou-se em Educação Física aos 22 anos de
idade em 1983, e, desde então atua na educação básica e, a partir do ano de 1991,
especificamente nas séries da educação infantil. Os longos anos de atuação docente e o
contato direto com crianças configuram-se como indícios significativos para evidenciá-
la como sujeito de nossa pesquisa. Seu corpo apresenta marcas corporais dimensionadas
por trabalho, família, opções pessoais e interferências sociais, aspectos sinalizados por
Reich (1983) como determinantes da história da vida, marcadamente observáveis e
manifestos no ambiente escolar.
Neste estudo, referendado pelas ideias de Reich, intentamos atribuir análise e
significado às marcas corporais manifestas no corpo de uma professora com o objetivo
de situá-lo como espaço de registro das diferentes dimensões educativas.
Compreender as marcas corporais em professoras tornou-se possível à medida
que articulamos as marcas visíveis com a história relatada. Assim, assumimos como
procedimentos metodológicos o registro fotográfico, o audiográfico e a observação. O
registro fotográfico e as observações aconteceram em momentos concomitantes, com o
objetivo de identificar padrões ou repetições de posturas que pudessem ser analisadas
como marcas corporais. Após o período de observação, mostramos à professora suas
fotografias e, com base em um roteiro, registramos a verbalização de suas impressões
sobre as fotos, sobre seus trejeitos, feições, silhueta corporal. Nesse momento, a
professora ofereceu elementos de sua história de vida, aspectos que extrapolavam a
dimensão profissional. Em todas as etapas da coleta de dados, mantivemos a intenção de
capturar a feição corporal da professora sem eliminar sua movimentação, sua
espontaneidade em meio à dinâmica cotidiana das atividades escolares.
Interpretações corporais: a leitura teórica e corporal
Educar configura-se como uma atividade complexa, e as professoras dispõem
de registros das transformações políticas e econômicas que incidem sobre sua ação
profissional. Situações socialmente impostas às professoras são refletidas em seus
corpos, ou seja, a situação de desconforto assume conotações de mal-estar, de
síndromes, de doenças, de enrijecimentos musculares.
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O processo de enrijecimento do corpo está presente na escola e incide sobre
educadoras e educandos, compondo uma lógica cíclica em que as professoras imprimem
nos alunos o modelo educacional que vivenciaram, o que, provavelmente, se repetirá
quando esses alunos se tornarem docentes. Logo, devemos atentar e atuar na formação
de professoras para diminuir situações causadoras de bloqueio nos alunos, que evitam o
livre fluxo de energia (Bacri, 2005).
Compreender as marcas corporais, próprias e do outro, constitui um saber
fundamental para qualquer professora, independentemente do conteúdo que ministre ou
do nível escolar em que atue. Nos limites deste estudo, quando atentamos para os
padrões de comportamento, marcas e silhueta de uma professora de Educação Física,
em grande medida, referendamos seu tempo de profissão, suas histórias e conquistas
pessoais, sua constituição familiar, suas vivências político-pedagógicas, suas relações
interpessoais, que podem ser semelhantes ou tomadas de empréstimo por aqueles que
veem seu corpo ser marcado, remodelado, em resposta às situações vividas.
Existe uma diversidade de obras que se dedicam a interpretar o que o corpo
relata. Em razão dos objetivos e das características deste estudo, limitamo-nos a
referendar os estudos corporais de Dychtwald (1984) e Kurtz e Prestera (1989), que dão
crédito e apreciam as contribuições de pesquisadores pioneiros nos estudos corporais,
como Wilhelm Reich e Alexander Lowen. Perceber as marcas corporais configura-se
como um exercício constante de observar corpos, na tentativa de compreender a história
que origina aquela marca e afinar nossa escuta sensível aos relatos nelas contidos.
Após o estabelecimento do primeiro contato com a professora, sujeito de
nosso estudo, passamos à observação minuciosa do comportamento e da movimentação
de seu corpo no espaço. Registramos, por meio de fotos, padrões em seu arranjo
corporal, de modo a caracterizar suas marcas corporais. Cada parte do corpo está ligada
a um determinado sentimento e/ou função orgânica. Desmembrar o corpo humano
constitui um caminho teórico utilizado por pesquisadores e terapeutas, a fim de
promover o descobrimento e posterior integração das partes corporais e seus
relacionamentos, permitindo colocá-lo em um estado de maior harmonia (Dychtwald,
1984).
Observamos, de modo geral, quanto à aparência e imagem física da professora,
pelo uso de roupas aderentes ao corpo e de tecidos transparentes, que seu corpo não
apresenta deformações evidentes. O aspecto vigoroso expresso pelo seu corpo advém da
coerência entre sua história de vida pessoal e profissional, marcada pela manutenção de
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um arranjo das atividades diárias, dentre elas, a prática constante de atividades físicas e
a ponderação de suas ações docentes.
A professora tem por hábito utilizar o apito em suas aulas e, a esse respeito,
afirma que se trata de uma estratégia utilizada para amenizar o desgaste nas cordas
vocais, tendo em vista que, ao longo dos anos de profissão, houve um declínio na
eficiência de sua voz, fato que também afeta sua disponibilidade para entoar cantigas e
músicas com as crianças.
A voz constitui um dos aspectos observados por Lowen (1990). Para ele, a voz
está largamente relacionada com o modo de expressarmos a vida contida no corpo, e,
por meio dela também alcançamos e afetamos o outro. Estabelecemos contato físico por
meio do toque e, a voz constitui um modo distinto de contato.
O corpo humano configura-se como um sistema complexo, composto de
muitas partes, exibindo em cada uma a natureza dual de atributos independentes que
resultam em uma totalidade maior. A configuração do todo faz cada corpo ser único,
mas “cada parte, devido à sua posição exclusiva no funcionamento do organismo, revela
algo diferente sobre nossos padrões estruturais, mentais e emocionais” (KURTZ;
PRESTERA, 1989, p. 61).
Ao assumirmos os pés como principal ponto de contato com a superfície
terrestre, passamos a interpretar como os demais segmentos corporais estão dispostos
em relação a eles, favorecendo as condições de movimentação e estabilidade das
diversas funções exercidas pelo corpo humano no espaço. Nas palavras dos autores,
embora em nossa cultura não se dê muita atenção aos pés como a base
sobre a qual toda a estrutura de nosso corpo repousa e como nossa
ligação com o chão, essa complexa rede de nervos, músculos e
tendões é extremamente importante [...] De um modo geral, o modo
como lidamos com a realidade se expressa no contato que nossos pés
têm com o chão (KURTZ; PRESTERA, 1989, p. 66).
Um padrão de postura que observamos no cotidiano da professora se expressa
pela parada com a deposição do peso corporal sobre o pé direito, e o calcanhar esquerdo
quase forma um ângulo perpendicular com o direito. O eixo de gravidade de seu corpo
também se aproxima do pé direito, marcando assim seu ponto de equilíbrio estático.
Conforme enfatiza Hay (1985, p. 129), “um corpo pode ter grande estabilidade numa
direção e ser quase instável em outra”. Para Lowen (1982),
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uma pessoa equilibrada está com os pés em bom equilíbrio, o peso
sendo distribuído igualmente entre os calcanhares e a parte
arredondada perto dos dedos. Quando o peso se situa nos calcanhares,
algo que acontece se a postura é mantida com os joelhos trancados, a
pessoa está fora de equilíbrio. Um leve empurrão no peito será o
bastante para fazê-la oscilar para trás, principalmente se estiver
desatenta ao movimento (p. 84).
O pé determina a troca de energia com o chão, e esse intercâmbio com o chão
fornece o senso de ligação com o mundo, ou seja, se sentimos um chão de apoio firme
de realidades genuínas, teremos uma certeza semelhante nas posturas na vida, estaremos
em contato com a realidade (Kurtz; Prestera, 1989).
Durante o período de observação das aulas, visualizamos a execução
conjunta de atividades realizadas pela professora e as crianças. Porém, sua ação docente
não evidenciou a interação ou execução de exercícios que pudessem contribuir para uma
estrutura musculosa. Posteriormente, a professora relatou, durante a narrativa, a
periodicidade na prática de caminhadas e natação, atividades que lhe conferem firmeza
aos músculos e que constituem momentos de exercício físico realizados com a família e
amigos.
Dychtwald (1984) apontou quatro tipos básicos de desenvolvimento das
pernas: fracas e subdesenvolvidas, maciças e superdensenvolvidas, grossas e
subdesenvolvidas, finas e tensas. Pessoas com pernas fracas e subdesenvolvidas
demonstram fragilidade em seu sistema de autossustentação, e, em resultado, têm sua
autoimagem diminuída. Em muitos casos, são forçadas a compensar tal fragilidade com
outras regiões do corpo, apresentando assim firmeza nos braços, pescoço, queixo, olhos
ou no intelecto, em substituição à falta de força e de apoio nas pernas. Pessoas que
apresentam pernas maciças e superdesenvolvidas desenvolvem com êxito a ação de
“segurar-se”, limitando a movimentação brusca e repentina que caracteriza mudança de
posição do corpo ou de opções na vida. O autocontrole e a aptidão para manter-se de pé
colocam a pessoa em uma situação de compulsividade e rigidez.
A professora observada, por sua prática de atividades físicas em associação
com sua postura comedida diante da vida, apresenta pernas que se aproximam à
descrição das pernas maciças e superdesenvolvidas. Tipicamente, mulheres na mesma
faixa etária da professora apresentam uma diminuição da musculatura das pernas,
conferindo-lhes um aspecto atrofiado ou com deposição de gorduras localizadas,
evidenciando o pouco recrutamento dessa parte corporal para a execução de atividades
de força e peso.
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Pessoas com pernas de constituição semelhante às da professora demonstram
traços de personalidade rígidos, não se entregando de forma completa e espontânea a
atividades que não apresentem estruturação e controle das situações. A pessoa de pernas
grossas e subdesenvolvidas está congestionada no mundo, sentindo-se incapaz de
lançar-se à frente para iniciar uma ação e para prosseguir de modo súbito (Dychtwald,
1984).
As pernas finas e tensas, em geral, são características de pessoas que não se
movem pela vida de maneira integrada e consciente, apesar do intenso fluxo energético
nessa região corporal que mobiliza a pessoa para a vida sem desenvolver por completo a
graça e fluidez ao mover-se. A rigidez na parte posterior das pernas incide sobre os
diversos tipos de pernas e tal aspecto está diretamente ligado à constante manutenção da
capacidade de autocontrole e a falta de confiança nas pessoas com quem convive. A
crescente individuação da vida na modernidade vem condicionando as pessoas a
enrijecerem-se diante das adversidades e das frustrações, e essa tensão evidencia-se na
rigidez da parte posterior das pernas como um movimento compensatório de
manutenção do arranjo de vida (Dychtwald,1984).
Remetendo-nos ao estudo de Duarte Jr, (1997), podemos visualizar o
enquadramento sofrido pelo corpo nos últimos anos. A carga depositada sobre o
controle das silhuetas corporais tem afastado as pessoas de suas emoções, sensações de
prazer, tem minado suas posturas e condutas naturais. As determinações da mídia sobre
o corpo incidem em grande medida sobre a barriga, sobretudo as femininas,
desrespeitando os princípios relacionados à natureza gestacional das mulheres. O
aumento na metade inferior da barriga pode refletir a maturidade orgânica e funcional
do corpo para o período da gravidez.
Culturalmente, conforme os ditames da mídia moderna, se idealizou um corpo
portador de uma cintura fina e barriga achatada. Muitas pessoas destinam parte de seu
tempo, dinheiro e esforço para reduzir o tamanho dessas regiões corporais.
Historicamente, o uso de espartilhos manteve a barriga feminina em constante aperto.
O corpo da professora observada acumula, em sua barriga ligeiramente
aumentada, a experiência de duas gestações, não caracterizando um excesso de peso. A
barriga, para além da comparação estética, está diretamente relacionada com o processo
respiratório. Normalmente, a barriga expande-se a cada inspiração, ação realizada por
atuação do diafragma, músculo respiratório que separa o tórax do abdômen, mas o
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diafragma é também responsável por integrar as duas metades corporais – parte de cima
e parte de baixo – para uma respiração efetivamente natural (Souchard, 1989).
O tipo de respiração pode variar de acordo com a atividade que o indivíduo
execute no momento. Para uma respiração normal, o fluxo de ar entra nos pulmões e no
abdome, expandindo assim a caixa torácica e as paredes abdominais. Contudo, os
padrões comportamentais e de beleza vêm condicionando a respiração a um processo
puramente torácico, comprimindo a barriga, e o músculo diafragma, antes responsável
pela integração entre tórax e barriga, agora, assume o papel de divisor, de barreira física
para a corrente de ar no processo respiratório (Souchard, 1989).
Respirar inadequadamente provoca ansiedade, irritabilidade e tensão. Todavia,
condicionamo-nos a realizar essa tarefa de modo inconsciente. Desde crianças, as
pessoas seguram a respiração para não chorar, tensionam os ombros para trás, enrijecem
o peito e comprimem a garganta para que não se ouça o grito, manobras que incidem
diretamente sobre a limitação do fluxo respiratório e, consequentemente, do fluxo
energético (Lowen, 1984).
Estar em contato com a barriga e aceitar as funções vitais ocorridas nessa
região possibilitam também entrar em contato com sensações de bem-estar promovidas
pela ampliação do fluxo energético, ampliando nossa consciência e sensibilidade em
relação ao próprio corpo. Sentimentos e sensações são oriundos das vísceras contidas na
cavidade abdominal e nos conferem uma consciência fundamental e instintiva.
Constantemente experimentamos a sensação de “frio na barriga”, sentimento
instintivo que tem origem na região abdominal, faz conexões instantâneas com o ritmo
respiratório, e, muitas vezes há uma compressão do tórax, que aciona o sistema nervoso
central e coloca nosso corpo em alerta. Por assim dizer, encontramos nesse exemplo de
sensação o equilíbrio no corpo, pois os três centros de impulso de energia (sistema
muscular, neural e respiratório) estão funcionando harmoniosamente (Kurtz; Prestera,
1989).
Na infância experimentamos, repetidas vezes, essa sensação de “frio na
barriga”, tendo em vista a descoberta do mundo e as infinitas possibilidades de
movimento, de contato e sentimentos que essa descoberta nos proporciona.
Vale atentar para o cotidiano das professoras de Educação Física Infantil e a
promoção de novas experiências para as crianças que ali se encontram. Executar um
movimento não habitual e controlar as sensações de ansiedade, medo e insegurança
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torna-se, para as crianças, uma ação mais fácil quando podem contar com o auxílio de
uma pessoa adulta. Podemos dizer que a professora observada conhece o prazer e a
aventura de realizar determinado movimento, e por esse motivo, ela se empenha na
conquista da confiança da criança para a realização do rolamento, da roda, da parada de
mãos, por exemplo, e ao fim de sua execução, pode conferir na sua face a sensação de
satisfação por ter experimentado o movimento. Estar aberto às necessidades sentidas
pelo outro é um exercício constante ao qual as professoras devem atentar-se,
contribuindo para o desenvolvimento das crianças que compõem sua turma.
Registramos a professora em posição de repouso, respirando livremente e sem
o policiamento comportamental de perceber-se corcunda. Em contrapartida, em outros
momentos executando movimentos compensatórios para a leve curvatura torácica, o que
demonstra o esforço e a sobrecarga em outros músculos das costas, a fim de estabelecer
uma postura mais ereta.
As posturas não naturais, geralmente, não são mantidas por longo tempo.
Quando a compensação de uma postura é forçosamente conseguida, o corpo evidencia
novos focos de complicações ou distorções musculares. O arranjo corporal é conseguido
mediante a interação de fatores biológicos e da nossa própria ação cultural sem,
contudo, tender desmedidamente para um desses fatores determinantes.
Complementando a sequência de análise, passamos a observar a cabeça da
professora. Nela estão quatro dos cinco sentidos sensoriais possuídos pelos seres
humanos. A rica gama de impressões do mundo são percebidas e processadas, em
grande parte, nessa região corporal e desse modo a consideramos em dois aspectos: o
primeiro relacionado à forma física e suas peculiaridades, e o segundo, relacionado às
expressões faciais percebidas no cotidiano escolar da professora observada.
Conforme enfatizam Kurtz e Prestera (1989, p. 116), “em certo sentido,
enquanto é verdade que cada parte reflete o todo, é a dinâmica do todo que determina o
significado particular dos segmentos individuais”. Desse modo, quando observamos o
posicionamento da cabeça da professora em relação às outras partes corporais, passamos
a investigar a ligação entre a cabeça e o corpo em uma acepção energética. Uma
evidente dissociação entre a cabeça e o corpo pode resultar na falta de sentimento na
pessoa, com bloqueios na percepção subjetiva de eventos corporais (Lowen, 1983).
Observamos uma leve projeção da cabeça para frente. Considerando que os
ombros da professora são levemente retraídos à frente, sua cabeça também se encontra
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projetada na mesma direção. Tal projeção pode ser medida a partir da variação existente
entre o posicionamento das partes corporais com uma linha lateral ideal.
O eixo ideal para se obter o maior equilíbrio é aquele que liga pontos
do topo da cabeça, meio da orelha, meio do ombro, meio da junta do
quadril, centro da junta do joelho e centro da junta do tornozelo. Essa
linha também passará através da junção da parte inferior da espinha e
do grande osso triangular apoiada na sua base (sacro). Quando esses
pontos estão alinhados dessa forma, cada segmento sustenta aqueles
que lhe estão acima (KURTZ; PRESTERA, 1989, p. 48).
O pescoço representa o caminho pelo qual nossos sentimentos e emoções
transitam desde o tronco até o sistema nervoso central. O pescoço representa o elo entre
a emoção e a racionalização de nosso comportamento, desse modo, essa parte corporal
também está à mercê de nossos tensionamentos musculares, uma vez que, para evitar a
expressão de alguns sentimentos, os retemos nessa região (Keleman, 1995).
Quando crianças, ouvíamos, por muitas vezes, a expressão “engole o choro”, e
passamos a travar uma luta contra a expressão de nossas emoções e sentimentos. Com
esse comando verbal, condicionamos nossos músculos do pescoço a evitar a ascensão
do choro, as contrações iniciadas no diafragma. Ele funciona como um filtro pelo qual
não passam as emoções, mas no qual concentramos nossas tensões.
O pescoço recebe atenção na bioenergética de Lowen (1982), pois, para ele,
“esta área é crítica porque representa a região de transição do controle voluntário para o
involuntário” (p. 240). Também Dychtwald (1984), em análise dos segmentos
corporais, enfatiza as transformações acontecidas no pescoço a fim de expressar nossos
sentimentos e emoções. O autor observa que
o pescoço é uma parte fascinante do corpomente humano por diversos
motivos. Primeiro, à medida que as emoções sobem num fluxo da
barriga e do peito e entram no pescoço, são aí adicionalmente
traduzidas em pensamentos e palavras. O pescoço é um outro ponto de
processamento ao longo do caminho do fluxo emocional pelo
corpomente. [...] Enquanto o peito serve para expandir e amplificar
estes fluxos emocionais, torna-se função do pescoço classificar e
refinar os mesmos, despachando-os depois a seus destinos apropriados
(DYCHTWALD, 1984, p. 185-186).
A função psicossomática de mediação exercida pelo pescoço contribui em
grande medida para a posição da cabeça na composição corporal. A impressão que
temos quando o pescoço e a cabeça estão debruçados para a frente é “que a cabeça é
uma carga grande demais para o corpo, de modo que este consentiu que ela pendesse”
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(DYCHTWALD, 1984, p.191). Essa postura pode declarar uma atitude permissiva da
pessoa perante a vida.
Na cabeça, por meio das expressões faciais, externalizamos os mais variados
sentimentos, com sorrisos, caretas, franzir de testa ou uma simples variação da nuance
cutânea. “O número e variedade de expressões que podem aparecer na fisionomia de um
indivíduo é enorme” (LOWEN, 1977, p. 107), e assim podem expressar leveza e
satisfação, suavizadas por um sorriso, expressão de cansaço, um momento de
introspecção ou reavaliação do fazer pedagógico, expressão de determinação com um
olhar objetivo e uma cabeça altiva, empreendedora.
Apesar do sorriso e da risada fluírem facilmente da face da professora
observada, a expressão que comumente percebemos se configura em seriedade, muitas
vezes imposta aos momentos de aula. Tal expressão deve ter se firmado ao longo dos
anos, mediante a contenção inconsciente de expressões mais suaves e sutis, bem como a
contenção do fluxo respiratório.
Para Reich (1995), a primeira ação do procedimento terapêutico consiste em
estabelecer o fluxo respiratório do paciente, permitindo que o ar entre mais fácil e
profundamente, quando o tórax se move, aumentando e diminuindo de tamanho com
cada respiração. Depois, há o estágio de mobilizar a expressão emocional mais evidente.
Também para Lowen (1984), a respiração é crucial para obtenção dos benefícios dos
exercícios da Bioenergética: “a respiração é a pulsação básica (expansão e contração) de
todo o corpo; portanto é a base da experiência de prazer e dor” (p. 37).
Respirar profundamente constitui um reflexo da saúde emocional da pessoa,
indica que seu diafragma está livre para executar seu papel extensor, participando
efetivamente do processo respiratório. A respiração superficial e aligeirada,
condicionada pela vida na modernidade, reduz a vitalidade do organismo, pois respirar é
imprescindível à vida.
Vale ressaltar que somos configurados por estruturas da realidade interna,
determinada geneticamente, e por estruturas da realidade externa que sofrem
interferência social, definindo padrões imitativos e determinações pessoais, subjetivas e
volitivas, aspectos que deve ser associados à compreensão da história de vida de cada
pessoa, de cada professora, de cada aluno.
Palavras Finais
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O referencial teórico ofereceu-nos subsídios substanciais para considerar, ler,
ouvir, interpretar, compreender as marcas corporais dos personagens envolvidos no
processo educacional. Pelo corpo, portanto, sentimos e expressamos concretamente as
transformações dos processos familiares, educacionais, sociais, profissionais.
A escola deixa marcas no corpo, pois, com o passar dos anos, o processo
educacional, muitas vezes repressivo, define os hábitos corporais que também passam a
limitar o movimento, diminuindo a flexibilidade, bloqueando e truncando a nossa
expressão, nos impedindo de experimentar de forma plena a vida. De modo evidente,
sabemos que a escola não é a única responsável por esse processo. À sua ação somamos
os fatores hereditários e as relações sociais estabelecidas no seio da família e da
sociedade.
Reich (2001), Lowen (1982), Kurtz e Prestera (1989), Dychtwald (1984), como
foram apontados, sustentam de maneira uníssona, que, com sensibilidade e prontidão,
compreendemos as marcas corporais, tanto de nossos próprios corpos quanto de outrem.
Essa compreensão humaniza e suaviza as relações interpessoais na complexa sociedade
que vivemos.
Por pensar em nossos alunos, buscamos compreender a atuação da professora,
que se configura como meio de alcance e viabilização do processo educacional. E, desse
modo, torna-se eminente o resgate da relação que esse profissional tem com seu próprio
corpo, para que, posteriormente, possa estabelecer relações com os demais.
A escola é tida como o local da produção de conhecimento e também de
disseminação da prática de “bons costumes”: permanecer sentado, controlar o tom de
voz ao falar, relacionar-se “educadamente” com seus pares. Mas é preciso estar atento,
como diz Gaiarsa (2006, p. 14), ao seu poder dominador, “atuando sobre as crianças a
fim de torná-las obedientes, alheias a si mesmas e a quase tudo o que as cerca – massa
plástica nas mãos de poderosos”. Segundo o autor, esse processo dominador vem se
repetindo e se intensificando ao longo dos anos. Assim é que, nos dias atuais, existem
professoras que um dia foram crianças dominadas e que agora reproduzem, ainda que de
modo inconsciente, as mesmas práticas educativas a que foram submetidas.
Destacamos a importância de um olhar mais atencioso para o que falam os
corpos, de modo a vislumbrarmos relações pedagógicas mais gratificantes e lançarmos
indícios para compreensão das marcas corporais das professoras sem, no entanto,
esgotar as possibilidades de interpretação da vida energética e pulsante contida no
corpo.
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
2979ISSN 2177-336X
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